PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O NAUFRÁGIO
O Francisco Gonçalves, marinheiro experiente, antigo baleeiro, mestre de traineira e profundo conhecedor dos arriscados meandros da faina marítima, bem o avisara: Vinha aí borrasca da grossa, olaré se vinha! Que não fosse para o mar. Que tivesse juizinho… O António da Grota, controlador diário dos movimentos, das estruturas, da altitude das nuvens e da sua relação com ventos e procelas ripostara, veementemente, que aquilo não era tempo de ir para o mar, nem para lado nenhum. O Alves do Redondo especialista em mudanças repentinas de ventos e ameaças de tempestades e ciclones, afirmava, a pés juntos, o mesmo e até o miúdo do Greves, com permanência efectiva e contínua em cima do cais, sempre pronto a ajudar no arrear das embarcações e sempre solícito em agarrar os cabos que enviavam dos barcos para terra e a prendê-los, com agilidade e perícia, nos moitões enferrujados, embutidos sobre o cais, lhe atirara à cara: O sinhô António está doide! Este mar nan tá capaz d’arriá. Está rofe!
Em casa, a mulher, apesar de mais profeta em tragédias virtuais e desgraças presumíveis do que conhecedora de ventos e marés, pedira-lhe, suplicara-lhe, implorara-lhe: Que não fosse. Que aquilo não era tempo para sair de casa, muito menos de ir para o mar. Mas ele, nada. Teimoso que nem um burro, casmurro que nem um tamanco, não dava ouvidos a ninguém, nem por mais que o aconselhassem ou até lhe pedissem, se demovia da sua decisão: havia de ir para o mar naquela noite, fizesse o tempo que fizesse, soprasse o vento que soprasse. Os filhos estavam, ali cheios de fome, a definharem-se. Os filhos que não tinham culpa de ter vindo a este mundo. Ele, sim, é que os fizera… e, agora era sua obrigação alimentá-los. E era no mar que estava a solução. Apenas do mar lhe era possível retirar o sustento da família. Naquela noite, como em tantas outras, havia de encher a sua Veloz de abróteas, de pargos, de congros, de garoupas, de gorazes e de bocas negras e havia de lhes atufar a mesa, havia de lhes colocar consolo nas barriguitas. Havia trocar o peixe excedente por farinha para o bolo que a sua Emília havia de cozer. Peixe e bolo não haviam de faltar no dia seguinte, nem em dia nenhum, sobre a mesa e ele, já refeito da safra, já dormido e acordado, havia de sentar-se na cabeceira da mesa e deliciar-se ao vê-los saborear aquelas cabeças a abarrotar de gordura, aquelas postas do lombo, alvas que nem a neve e a beberem umas valentes tigelas de caldo, tudo acompanhado com o bolo fresquinho, ainda a fumegar. Para os mais pequenitos até lhes havia de migar pedacinhos de bolo dentro do caldo. Juntava-lhes umas fevrinhas de peixe e haviam de consolar-se, os pequerruchos, que nem príncipes.
E já à boquinha da noite, com um céu pejado de nuvens escurras, ameaçadoras, carregadas de chuva e a correrem, como doidas, na direcção do Faial, acompanhadas de um vento intensíssimo, a soprar de leste, a trazer, pela baía dentro, uma ondulação altiva e perturbante, aparelhou e arreou sozinho a Veloz, pese embora o costado se raspasse, vezes sem conta, na aspereza rude do baixio circundante. A pequena embarcação, acossada pelo vento, sacudida pela braveza das ondas e, sobretudo, açudada pelos remos que o Simplício premia com uma força gigantesca, com uma convicção medonha e com uma veemência inaudita, saltava, galgava, pinchava e, até, voava na direcção do mar alto, onde o peixe abundava. Lançou, o Simplício, a apoita, engodou, preparou e atirou para o mar as linhas com os anzóis bem recheados de iscas apetitosas. Não tardou muito e o peixe começou a picar, a pegar e a saltar para a Veloz. Apesar de cada vez ser maior a ondulação e de o tempo piorar a cada momento, o fundo da embarcação começava a cobrir-se de abróteas, garoupas, bocas negras e um ou outro goraz.
Mas o diabo é que o mar piorava a olhos vistos. As ondas cada vez maiores e o vento a aumentar de força intensidade e, pior do que isso, a descair, inevitavelmente, para sueste. Um vento fortíssimo e perigoso. Raios! O pior vento que entrava pela baía e que quando forte, não dava tréguas, nem permitia entrada no porto, nem muito menos deixava encostar ao cais. As ondas agora eram quase gigantes e, umas após as outras, iam toldando o mar por completo, rebentando em crista, acompanhadas de chuva intensa, de trovoada e de um vento terrível que parecia ter o diabo no corpo. Um temporal nunca visto!
Antes que o Simplício se consciencializasse da borrasca em que teimosamente se envolvera, uma onda gigantesca, rebentou-lhe na frente, revirando a Veloz, colocando-a de quilha ao ar, num reboliço terrível e medonho. O Simplício, apesar de atirado ao mar com uma violência horrenda e aterradora, conseguiu agarrar-se de unhas e dentes a uma argola encravada à ré da frágil embarcação. Sem leme, sem remos, nem sequer tentou voltar a Veloz. Seria um esforço inglório e cansativo. Poupava-se para o que aí vinha. Uma única alternativa lhe restava, Agarrar-se como lapa à pedra sobre a quilha e aguardar que o temporal amainasse e as correntes fortuitas das ondas empurrassem a embarcação, à deriva, para mais próximo de terra, de onde, a nado, pudesse alcançar uma qualquer escarpa da costa.
Ao romper da manhã grupos de homens, assolados pelos gritos de dor da Emília, toda a noite sem pregar olho, demandavam a orla costeira na procura do Simplício. As mulheres partilhavam lágrimas, dor e lamento. Ninguém acreditava que o tresloucado do Simplício tivesse escapado à fúria de tão grande temporal que sobre a freguesia se abatera durante a noite.
Foi o grupo do Saldanha que havia demandado, sem esperança, as escarpas da Rocha Alta, que o foi encontrar, todo molhado, enregelado, com a roupa rasgada e com feridas por todo o corpo, mas feliz, muito feliz e sorridente, porque tinha apanhado, nos laredos desertos do baixio, uns bons quilos de lapas para o almoço dos seus pequerruchos.
Autoria e outros dados (tags, etc)
OS CASTIÇAIS
Conta-se, ainda muitos anos antes da Fajã Grande ser paróquia, houve na Fajãzinha, sede, na altura da paróquia das Fajãs, que um padre que, contrariando as normas canónicas e eclesiásticas, moveu-se de intimidades com algumas paroquianas, das quais teve uma quantidade exagerada de filhos. A certa altura e quando estes já eram crescidotes, foi anunciada a visita do Bispo à ilha das Flores e às suas paróquias, nomeadamente, à da Fajãs, onde o referido padre paroquiava.
O reverendo, ao ter conhecimento de tão inesperado visita e metendo mão na consciência, começou a pensar em qual seria a melhor forma de confessar os seus delitos ao Bispo, sem no entanto este o perceber e, consequentemente, o castigar ou destituir do cargo e até eventualmente o suspender do múnus sacerdotal, retirando-lhe a paróquia e a prebenda.
Como era especialista na arte de fazer velas, preparou a visita episcopal elaborando um bom número de velas enormes, de excelente qualidade e desusada beleza, as quais, naturalmente, chamariam a atenção do prelado
No dia da visita episcopal, o pároco mandou enfeitar a igreja da melhor forma, expor as alfaias litúrgicas e os paramentos de acordo com as normas vigentes e as exigências canónicas, e, levando as velas para igreja, entregou uma a cada filho, colocando-os todos nos degraus da capela-mor, de joelhos, segurando cada um, com ambas as mãos, a respectiva vela acesa.
O prelado, ao entrar no templo, ficou muito admirado com aquilo. Impressionado com a qualidade das velas, elogiou-as nestes termos:
- Mas que lindas velas tem V. Reverência! Foi você que as fez?
- Saiba V. Excelência Reverendíssima que sim! – Retorquiu o pároco, vendo o seu objectivo alcançado. E acrescentou de imediato: - Fui eu que fiz não apenas as velas mas também os castiçais!
Autoria e outros dados (tags, etc)
SOPAS DO ESPÍRITO SANTO
“Sopas de Espírito Santo” é um prato típico, muito especial, confeccionado em todas as ilhas açorianas, por altura das festas em honra do Paráclito e que tem a sua origem ligada aos objectivos primordiais dos chamados “impérios” do Espírito Santo, também eles muito divulgados em todas as ilhas. Estes objectivos são, fundamentalmente, o da partilha da carne e do pão, pelos mais necessitados. Cuida-se que inicialmente a carne e o pão seriam distribuídos apenas pelos pobres, mas que, na prática, eram repartidos com quase todos os habitantes de cada uma das freguesias das nove ilhas, uma vez que nestas reinava bastante pobreza. Inicialmente, a carne seria oferecida crua juntamente com o pão cozido, costume que ainda se mantinha na primeira metade do século passado, nalgumas ilhas ou em algumas freguesias, como era o caso da Fajã Grande das Flores. Hoje, praticamente, em todas as ilhas, em todas as freguesias e em todos os impérios a carne e o pão são partilhados depois de cozinhados, sob a forma de Sopas do Espírito Santo.
Estas sopas são confeccionadas com pão seco que é, posteriormente, coberto com o caldo que resultou da água que cozeu a carne, devidamente temperada. Ao pão, antes de ser coberto com o caldo, é, também, adicionada hortelã e outros condimentos. A carne cozida serve-se juntamente com o pão. Tradicionalmente, estas sopas são servidas no dia das festas do Divino Espírito Santo, a todos os irmãos e a muitos convidados. No Pico, quer no domingo de Pentecostes, quer na segunda e na terça-feira seguintes, assim como no domingo da Trindade, são servidas dezenas de milhares de refeições deste tipo de sopas. Se tivermos em conta que numa freguesia relativamente pequena, como é a de São Caetano, apenas num dos seus dois impérios, no da Prainha, na terça-feira do Espírito Santo, são servidas cerca de quinhentas refeições e que todos os impérios da ilha do Pico, alguns deles bem maiores, servem sopas, durante aqueles três dias e ainda no sábado que os antecede e no domingo da Trindade, poder-se-á ter uma ideia da quantidade de refeições que, nestes dias, são oferecidas em louvor do Espírito Santo. Para além destas sopas, é incluída no cardápio do dia da festa, em muitas das freguesias picoenses, a famosa carne assada e, por fim, ainda é servido o tradicional arroz doce, sobre o qual, com canela em pó, é desenhado, em cada prato ou travessa, o símbolo do Paráclito, nas ilhas – a coroa.
Em todas as ilhas é possível comer estas sopas, todavia a receita vai variando de ilha para ilha e até mesmo de freguesia para freguesia. Entre as muitas e variadas sopas açorianas, a mais popular é esta, a do Espírito Santo, também conhecida por sopa do Império, a qual faz parte integrante da ementa do almoço, no dia da festa do Espírito Santo, sendo tradicionalmente realizada, regra geral, por altura do Pentecostes. Há, no entanto, confecção das mesmas, a quando do cumprimento de promessas em honra do Divino Espírito Santo, sobretudo por parte de emigrantes e que acontecem por alturas do verão. Mas, para além disso, cada vez se tem enraizado mais o hábito de as confeccionar por altura de qualquer acontecimento, festividade ou comemoração importante.
Para a confecção das sopas, no caso da ilha do Pico, basta cozer a carne de vaca em água com os respectivos temperos. É nestes que reside o segredo das sopas e do seu delicioso sabor. De seguida, parte-se o pão em pedaços, colocando-os em tigelas grandes ou terrinas. Deita-se o caldo de cozer as carnes por cima do pão até este ficar bem ensopado e abafam-se as sopas, até à altura de serem servidas.
Não há ilha açoriana onde se não façam, as sopas do Espírito Santo, sobretudo nos meses de Maio ou Junho. A acompanhá-las, o bom vinho da região. As sopas do Espírito Santo são uma espécie de ex-libris pantagruélico das ilhas, sendo servidas em muitas outras ocasiões, sobretudo em festas, casamentos, jantares de convívio ou de comemoração, em encontros de amigos, a visitantes e, até, fazem parte das emendas de muitos dos mais credenciados restaurantes das ilhas. Além disso, têm ultrapassado fronteiras, sendo servidas em quase todo o mundo onde se encontram emigrantes açorianos, nomeadamente nos Estados Unidos e Canadá.
Na freguesia de São Caetano, para além do chamado Império da Prainha, outrora um dos maiores do Pico, existe um outro Império de Espírito Santo, na Terra do Pão, sendo que a festa realizada por este império, se celebra no mês de Julho. Num e noutro destes dois impérios, no dia da realização da respectiva festa, servem-se, a todos os habitantes da freguesia e a muitos convidados, as tradicionais deliciosas sopas de Espírito Santo. Mas é especialmente, na Terra do Pão, em Julho, talvez por mais raras durante aquele mês, que estas sopas tem um sabor especial e são tremendamente gostosas e muito desejadas porquanto se confeccionam e, sobretudo, se servem com muito amor, carinho e dedicação
Infelizmente tenho que me abster destas sopas ou saboreá-las com moderação, talvez mesmo comer apenas o pão, evitando a carne. Eventualmente, até poderei ficar, apenas, a apreciar o seu aroma, o seu sabor, o seu aspecto. É que, lamentavelmente, estas belas e deliciosas sopas, sobretudo pela tenrinha carne de vaca que contêm, estão absoluta e radicalmente interditas aos doentes portadores de insuficiência renal.