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A CEIFEIRA

Sexta-feira, 13.09.13

Ermelinda era a mais bela e a mais eficiente ceifeira da freguesia. O pai, um bisbórrias rabugento, tinhoso, abrutalhado e desumano – um sem coração - cismara que a pequena, desde tenra idade, havia de treinar-se no manejo da foice, ajudando-o e, muitas vezes, substituindo-o totalmente na ceifa dos fetos, no corte do restolho ou na apanha e recolha do trigo do Areal.

A moça, em criança, adorava a extravagância do progenitor, envaidecia-se em calcorrear os caminhos com a foice ao ombro, deliciava-se com o seu permanente ziguezaguear no corte de ervas e arbustos, manuseando-a com destreza, maneando-a com habilidade, dedicando-se à ceifa com entusiasmo, carinho e desvelo. Amava o que fazia, empenhava-se com esmero nas tarefas, desempenhava com eficiência os trabalhos, nunca se cortando ou sequer ferindo uma “nisca” que fosse de um dedo. Depois de crescida e, sobretudo, quando espicaçada pelas amigas que, contrariamente, passavam os dias refasteladas em casa a ler romances ou debruçadas à janela a namoriscar, enquanto ela se desgastava pelos campos a cortar, a ceifar a engavelar e a acarretar, começou a manifestar alguma renitência pelo ofício e um claro desinteresse pelas tarefas a que o abantesma do pai, a obrigava, dia após dia.

Mas nada podia fazer, a malfadada ceifeira.

Certa tarde em que o progenitor, depois de apanhado o trevo, a mandara sozinha para a ceifa do restolho no cerrado do Mimoio, enquanto ele tinha a distinta lata de ficar sentado à Praça, em amena cavaqueira e, pior do que isso, a meter-se na vida de uns e outros, passou por ali o Alvim. Sentou-se sobre a parede que separava o enorme cerrado do caminho e, sem que Ermelinda se apercebesse da sua presença, atirou-lhe para a frente do talho, um pequeno pedregulho. Apanhada de surpresa, Ermelinda espantou-se, mexeu-se e desconcentrou-se enquanto a foice já atirada em lance certeiro, pela mão direita, para cortar a mancheia de restolho amarfanhado pela esquerda, se descontrolou e foi enfiar-se-lhe no dedo indicador, abrindo-lhe, na falange, um enorme e fundo golpe.

A moça atirando, instintivamente, a foice para longe, emitiu um grito de dor, enquanto o Alvim, apercebendo-se da asneira, se escapulia dali, a sete pés, a fim de que não fosse visto e julgado culposo.

Ermelinda, forte e corajosa, embrulhou, de imediato, o dedo ferido com o lenço da mão, apertou-o com força para que o sangue estancasse e pôs-se a caminho de casa. O corte era tão grande e profundo que de forma nenhuma poderia continuar a ceifa.

Ao chegar à Praça deu de caras com o pai, ali sentado, a descansar. E perante a aflição e a dor estampada no rosto de Ermelinda e as imprecações do compadre Venâncio, que não cessava de vituperar a indiferença assumida pelo bisbórrias que, virando-se para a filha com um alheamento desmedido, perguntou com desdém:

- Cortaste-te num dedo!? Olha a grande coisa!

A moça, amarfanhada, triste e vilipendiada, virou-lhe costas e dirigiu-se, sozinha, para casa enquanto o bisbórrias cochichava para o Aires, sentado a seu lado:

- Antes no dedo dela do que no meu.

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publicado por picodavigia2 às 17:03

AS LATINHAS DE LITRO DE AZEITA

Sexta-feira, 13.09.13

Na Fajã Grande, nos tempos em que ainda não proliferavam os hoje tão divulgados utensílios de plástico e afins, rareavam os apetrechos necessários a uma vida quotidiana de cariz profundamente agrícola e rural. Por outras palavras, arranjar o utensílio necessário e adequado para o transporte de um líquido, de um cereal, de batatas ou de outro produto agrícola qualquer era um bico-de-obra. Para o transporte do leite havia apenas as enormes e descomunais latas de doze, dez ou seis litros e que para mais nada serviam, a não, realmente, para tirar o leite às vacas, transportando-o para os postos de desnatação. Além disso, em termos de latas, apenas era possível investir nas que destinavam ao transporte do leite. Para a água havia baldes de madeira, pesadíssimos, incómodos para o transporte e que, com o deteriorar-se através do uso, se transformavam, mais tarde, em baldes de comida para o porco, colocados permanentemente num canto da cozinha e onde se iam armazenando restos de comida e lavagens. Para o milho, abóboras, batatas e outros produtos semelhantes, assim como para a roupa suja que havia de ser lavada na ribeira ou posta a quarar em relvas ou nos estendais, havia cestos de vimes. Para os inhames havia os sacos de serapilheira. As garrafas eram raras e pequenas, não havia garrafões. As bilhas de barro eram para o petróleo e os bules para o café. Para amassar o pão utilizava-se selhas de madeira e para a carne do porco alguidares e salgadeiras de barro. E, praticamente, exceptuando as latas de madeira para a urina das vacas e as canecas das latrinas, ficávamos por aqui em termos de vasilhame.

Ora acontecia que por essa altura o azeite rareava. Era comprado apenas em pequeníssimas quantidades, guardado num minúsculo frasco, tinha o nome de “azeite doce” e era usado apenas com fins medicinais, sobretudo para untar os enormes “galos” que fazíamos na testa ou no cocuruto. Este azeite chegava às lojas em pequenas latas de1 litro, a maior parte das quais eram da marca “Galo”. Assim que um comerciante abria um dessas latinhas, fazendo-lhe dois furos na parte superior para ir vendendo o azeite a retalho, logo uma série de candidatos se perfilavam na esperança de terem acesso gratuito à lata, depois de vazia.

É que as mesmas eram aproveitadas e transformadas em pequenas latas. Essa tarefa competia ao latoeiro da freguesia, o Antonino de tio Francisco Inácio, com oficina ali mesmo à Praça, que as preparava com meticuloso cuidado e desmedia perfeição. Cortava-as na parte de cima de modo a que esta fizesse uma tampa e colocava à volta da parte de baixo uma tira de lata soldada na qual a tampa cortada havia de encaixar-se. Com pingos de solda tapava os dois buracos da tampa, com um pequenino pedaço de lata soldava-lhe uma espécie de mão e punha-lhe um arame à volta, preso em anilhas soldadas nos lados, abaixo da tampa e aí estava uma lata de litro perfeita. Restava apenas lavá-la muito bem a fim de que perdesse por completo todo o sabor e a gordura do azeite.

Estas latas eram um autentico luxo para quem as possuía e serviam sobretudo para quem ia comprar leite ou para quem tinha uma cabra ou uma vaca que desse menos do que um litro. Curiosamente também serviam para ir levar umas sopinhas de café aos homens que trabalhavam nos campos.

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publicado por picodavigia2 às 16:54

OS TRÊS HERDEIROS

Sexta-feira, 13.09.13

Era uma vez um homem que tinha três filhos. Quando chegou a hora da sua morte chamou-os e disse-lhes:

- Filhos eu estou a morrer, mas o que me custa mais é deixar-vos tão pobres, pois não tenho mais nada para vos deixar senão uma foice, um gato e um galo.

Os filhos, apesar de tristes por ver aproximar-se o fim de vida do seu progenitor, retiraram-se, conformados com a sua situação. Quando o pai morreu, dividíramos bens que o pai lhe deixara: o filho mais velho ficou com a foice, o do meio com o galo e o mais novo com o gato. Depois, decidiram correr o mundo, levando consigo, cada qual, o objecto que herdara.

Um dia o mais velho, passando por um campo de trigo viu os ceifadores a ceifar o trigo com facas e disse-lhes:

- Então vocês andam ainda a ceifar o trigo com facas? Eu trago aqui um bichinho que ceifa tudo num instante.

E entrando no campo, ceifou um pouco de trigo coma a foice. As pessoas admiradas com a rapidez do bichinho perguntaram-lhe quanto queria por ele. O rapaz pediu-lhes muito dinheiro. As pessoas acharam que era muito caro, mas, como precisavam dele deram-lho todo o dinheiro que ele pediu. Mas os ceifeiros não sabiam ceifar com ele e o primeiro que o experimentou cortou-se e disse:

- Ai raio do bicho já me mordeu! – E atirou a foice para o meio do trigo.

Os outros ceifeiros ao verem aquilo e a ferida do companheiro, começaram a bater na foice e a atirar-lhe pedras. Esta aquando as pedras lhe caiam em cima zunia:

- Zim, Zim, Zim...

- Atiremos-lhe mais porque o bicho está assanhado. – Diziam os ceifeiros uns para os outros. Depois, abandonando a tesoura num canto, voltaram a ceifar com facas.

Continuaram a correr mundo e, passado algum tempo, o filho do meio, ainda lusco-fusco, encontrou uns homens com carros de bois e disse-lhes:

- Então onde vão tão cedo com os caros de bois?

- Olha, vamos buscar a manhã; todos os dias nos levantamos cedo e vamos buscar a manhã. O rapaz, apesar de achar aquilo estranho, disse-lhes:

- Eu tenho aqui um bichinho que vos pouparia todo esse trabalho, pois é ele que, todos os dias, chama a manhã.

- Então quanto quer pelo bichinho? – Perguntaram os homens.

O rapaz fez como o irmão e pediu muito dinheiro pelo galo. Mas eles logo lho deram. Todos os dias o galo cantava: - Có-có-ró-có-có… e logo amanhecia.

Finalmente, o filho mais novo também teve oportunidade de vender o que herdara do pai. Certo dia, passou por uma cidade onde havia muitos ratos. As pessoas andavam com grandes varapaus a matá-los, mas por mais que matassem não conseguiam acabar com ele. Quando viu isto, o rapaz disse para as pessoas:

- Vocês andam aí com tanto trabalho a caçar ratos com paus. Eu tenho aqui um bichinho dentro desta saca que os comeria todos e vocês ficariam totalmente livres deles. - E tirando o gato do saco, atirou-o pelas ruas. O gato, ao apanhar-se cá fora, começa logo a matar e comer ratos.

As pessoas assim que viram esta espécie de milagre, perguntaram-lhe logo:

- Quanto quer pelo bichinho?

O rapaz, a exemplo dos irmãos, pediu muito dinheiro. Deram-lho e pôs-se a caminho. Quando lá ia longe as pessoas lembraram-se que não tinham perguntado o que o bichinho comia e começaram todos a chamá-lo perguntado:

- Olhe lá o que come o bichinho?

Ele responde:

- Do que a gente come.

Como já ia longe eles perceberam:

- Muita gente come.

Começaram então todos à pancada no gato até que o mataram. Assim ficaram de novo com muitos ratos na cidade.

Os três irmãos que apenas tinham herdado a foice, o galo e o gato ficaram ricos e viveram felizes.

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publicado por picodavigia2 às 16:50





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