PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FESTA DA SENHORA DA SAÚDE
Nos anos50, afesta da Senhora da Saúde, que desde há décadas se realizava e continua a realizar na Fajã Grande, era incontestavelmente, na altura, uma das maiores e das mais concorridas de toda a ilha das Flores.
Celebrada no dia 8 de Setembro (mais tarde passou para o domingo mais próximo deste dia) a ela vinham romeiros de toda a ilha, sobretudo da Fajãzinha, do Mosteiro, do Lajedo, de Ponta Delgada, dos Cedros, das Lajes e da Lomba. Alguns, sobretudo os de mais longe, vinham com um ou dois dias de antecedência, regressando muitos deles à sua freguesia apenas na oitava da festa, pernoitando e alimentando-se em casa dos seus “conhecidos” da Fajã, durante vários dias. Também do Corvo, quase todos os anos, vinha uma lancha carregadinha de forasteiros que também se acomodavam em casa dos seus conhecidos da Fajã. Até à inauguração da Filarmónica “Senhora da Saúde”, no início da década de cinquenta, vinha geralmente uma banda de fora, da Fajãzinha, da Lomba ou do Corvo, as quais geralmente traziam muitos romeiros. Foi precisamente no ano em que a filarmónica contratada, a da Lomba, não compareceu que surgiu a ideia, mais tarde concretizada, de se criar uma banda de música na Fajã.
No que dizia respeito à parte litúrgica, a festa começava com um tríduo preparatório, pregado geralmente por um padre de outra freguesia ou por um professor do Seminário de Angra, natural das Flores, dado que nessa altura proliferavam pela ilha e que ainda se encontravam em férias, sendo o mais habitual o Dr Caetano Tomás, do Lajedo. Na véspera, de tarde, eram as confissões, geralmente com 4 padres de fora, espalhados pelos confessionários laterais ou pelos ralos da grade da capela-mor. No dia da festa celebravam-se três missas: a da manhã, bastante cedo, destinada às cozinheiras e pessoas que não pudessem ir a outra, mais tarde; a da comunhão, celebrada às nove, com sermão e destinada sobretudo às crianças da catequese e da Cruzada Eucarística e a outros comungantes e às onze, missa solene, cantada, de três padres e com sermão. Nesta quase ninguém comungava, dado que, na altura para o fazer era preciso guardar jejum desde a meia-noite.
Da parte da tarde, interrompendo o arraial, havia a procissão. À frente a cruz paroquial ladeada por duas lanternas, umas e outra levadas por homens trajando opas vermelhas. Depois os anjinhos de asas brancas e cestas de flores e as crianças da Cruzada Eucarística, cobertas com a cruz de Malta, desenhada a vermelho, em faixas brancas, atravessadas sobre o peito. Logo atrás os andores de Santa Teresinha, São José e da Senhora da Saúde, transportados por homens, vestidos de opas brancas. Depois os homens de opas vermelhas, carregando lanternas, pendões e o pálio, sob o qual seguia o Ouvidor das Lajes envergando capa de asperges branca e véu de ombros da mesma cor, a segurar o Santo Lenho, ladeado por dois padres vestidos com dalmáticas também brancas. À frente do pálio seguia o clero excedente que geralmente era pouco e algum seminarista em férias na ilha, envergando sotainas negras e sobrepelizes brancas. Logo atrás a Filarmónica. A procissão percorria a rua Direita, para cima até à Praça e para Baixo até à Rua Nova e as janelas, varandas e pátios das casas por onde passava estavam enfeitadas com colchas de cores variadas, que davam à rua Direita um colorido desusado. A rua estava ornamentada com bandeirinhas multicolores presas nos cantos e janelas das casas e o chão era atapetado com verduras e flores. Uma vez regressada à igreja, a procissão terminava com um sermão. Os três sermões do dia da festa eram geralmente pregados por pregadores diferentes e todos eles, assim como os do tríduo e a missa cantada eram promessas de fajagrandenses residentes na Califórnia e que antecipadamente faziam as suas reservas. Um sermão custava cento e vinte escudos, a missa cantada cem e a missa rezada vinte. As Trindades eram dobradas e não havia início de celebração ou levantar a Deus que não tivesse foguetes e repique bem redrobado. Durante a procissão os sinos também repicavam e os foguetes estralejavam ecoando nas rochas das Águas e da Figueira.
Paralelamente havia uma parte profana ou cívica que começava no sábado e continuava no domingo e que consistia fundamentalmente num enorme arraial, com música, foguetes, quermesse e os jogos do Albino: o do boneco, em que um boneco de madeira suspenso na cintura por um eixo, rodopiava sobre um caixilho também de madeira, apoiado no chão com algumas pedras. O jogo consistia em atirar, de uma distância previamente delimitada, cinco bolas ao boneco, por um escudo. Quem acertasse no dito cujo e conseguisse que ele desse uma volta completa sobre si próprio receberia um prémio: um chocolate, uma laranjada, uma cerveja ou um pirolito de bola. Outro jogo era o da pesca à cerveja: dispostas seis garrafas de cerveja, outros tantos jogadores munidos de um caniço, com um fio e uma argola em vez do anzol teriam que enfiar esta o mais rapidamente possível no gargalo da cerveja que estava na sua frente. O prémio era a própria cerveja para o primeiro que atingisse o objectivo do jogo.
À noite o arraial era iluminado com várias lanternas petromax. Só depois da ida do Padre Pimentel à Califórnia, com o dinheiro que ele por lá arrecadou se comprou um motor que, sob os cuidados de José Furtado, iluminava não apenas a igreja mas também o adro e a parte central da Rua Direita com séries de lâmpadas multicolores também vindas da América. Enquanto José Furtado não chegava ou quando o motor falhava o arraial, para gáudio de muitos, fazia-se às escuras.
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HEMISFÉRIOS
Para além dos clássicos e gigantescos hemisférios terrestres que, sendo dois, uma vez que o Planeta Terra tem uma forma aprimoradamente esférica, acabam por ser quatro – norte e sul, se o planeta é divido pelo equador e ocidental e oriental se demarcado pelo meridiano de Greenwich – existem muitos outros hemisférios, com tamanhos diversos, mas todos com a mesma forma e alguns com funções paralelas. Os mais conhecidos, talvez mesmo os mais inebriantes na história e no desenvolvimento científico da humanidade são os de Magdeburgo, inventados e construídos por um dos burgomestres daquela cidade alemã - Otto von Guericke, também ele o inventor da bomba pneumática.
Antigamente, nas aulas de Físico Química, para provar a existência da “pressão atmosférica”, para além de se referenciarem muitos fenómenos do nosso quotidiano, recorria-se a estes celebérrimos hemisférios, constituídos por duas grandes abóbadas metálicas, ocas, de forma hemisférica que se ajustavam uma com a outra formando uma esfera. Do seu interior extraía-se o ar com uma bomba ou máquina pneumática, provocando-se o vácuo, no seu interior. Para a realização das experiências com o fim de demonstrar a existência da pressão atmosférica, os hemisférios eram justapostos, formando uma esfera oca. O interior da esfera comunicava com o exterior através de uma torneira, permitindo a sua ligação à máquina pneumática. Extraído o ar do seu interior, fechava-se a torneira e suspendia-se a esfera de um tripé apropriado por meio de uma argola existente num dos hemisférios. Do hemisfério inferior suspendiam-se pesos continuamente crescentes, até que os hemisférios se separassem. Ficava-se, assim, a conhecer a força exercida pelo ar atmosférico sobre o hemisfério inferior e, consequentemente, o valor da “pressão atmosférica”.
Outros hemisférios não tão conhecidos, talvez quase totalmente ignorados por muitos, são os hemisférios inventados e construídos por Halec von Cklarr, que, sendo germânico, não era senhor, nem muito menos burgomestre de uma cidade alemã, ou de outro país qualquer. Verdade porém é que os hemisférios por ele construídos também eram compostos por duas grandes abóbadas prateadas, ondulantes, luzidias, embora não ocas. À semelhança dos de Otto von Guericke os hemisférios de Halec von Cklarr também tinham forma hemisférica, estando separados por uma espécie de rilheira, semelhante às que as rodas dos carros de bois deixavam marcadas nas pedras da calçada e que unia as duas abóbadas, numa simbiose perfeita e delirantemente prática, ajustando-as uma com a outra, formando uma autêntica e genuína esfera – um diadema de anseios transcendentes, um espectro de desejos audaciosos, um paradigma de esbatidas esperanças. Do interior destes hemisférios não se extraía rigorosamente nada, ou coisa nenhuma, sendo que a máquina pneumática, supostamente introduzida na rilheira da esfera, no caso destes hemisférios, apenas produzia uma explosão exterior, provocando, assim, uma pressão semelhante à atmosférica, motivo porque Halec von Cklarr havia construído os hemisférios. Para a realização das experiências com o fim de criar a “pressão atmosférica”, os hemisférios deviam ser justapostos, formando uma esfera, que, embora opaca, era perfurada e comunicava com o exterior e vice-versa, como acontecia nos de Magdeburgo, através de uma torneira, permitindo a sua contínua e permanente agitação. A torneira nunca se fechava, apenas quando se suspendia a movimentação e, após ser detectada a existência da “pressão atmosférica”, se quedava, na expectativa duma nova utilização.
Contrariamente aos hemisférios de Otto von Guericke que eram usados no ensino secundário, os de Halec vom Cklarr eram utilizados nalgumas universidades.