PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
EMBETUMO
Não havia professor da turma que não tivesse percebido que o Jorge não gostava rigorosamente nada da escola. Revelava-o não só por atitudes mas também e sobretudo com palavras. Nas minhas aulas, apesar de tudo aquelas que aparentemente menos detestava, muitas vezes afirmara que não queria saber daquilo para nada e que quando fizesse dezasseis anos ou quando o deixassem… “Ó pernas!...” “Fugia dali a sete pés!...” A aula de Inglês era uma tragédia, a de Música um castigo e a de Matemática um inferno. Chegou ao extremo de afirmar em plena aula, que Ciências era uma merda, o que, obviamente, lhe valeu uma expulsão. A única disciplina, para além de Português, de que não se queixava, na sua persistente e continua objecção de consciência a todo e qualquer tipo de aprendizagem, era a de Trabalhos Manuais. De resto uma razia completa. Esta pertinaz obstinação à escola, aliada às fraquíssimas capacidades de aprendizagem de que era dotado, trouxe-lhe sucessivas reprovações que ainda mais açularam a sua aversão por aulas, disciplinas e professores.
Certo dia, ao passar num dos pátios da escola, encontrei o Jorge sozinho, acabrunhado e macambúzio, sentado num banco. Para gáudio seu a professora de Matemática tinha faltado e estava ali à espera da cantina abrir. Aproximei-me, pedi-lhe licença para me sentar ao seu lado. Passei-lhe, ao de leve, a mão pelo ombro e atirei de rompante:
- Olha lá, Jorge. Afinal porque é que não gostas de andar aqui, na escola? Porque não gostas nem das aulas, nem dos professores?
Resposta imediata e sucinta mas pouco racional:
- Porque não gosto.
- Mas isso não é razão - insisti. - Tens que te explicar melhor…
- Não quero. Não gosto da escola e pronto.
Era óbvio que por ali não ia a lado nenhum. Mudei de tema:
- E fora da escola? O que fazes quando não estás na escola?
- Vou para casa.
- E o que fazes quando sais da escola e vais a casa?
- Faço muita coisa.
Achei que tinha escolhido o caminho mais certo para manter o diálogo aceso e, por isso, insisti:
- E que coisas são essas que fazes em casa?
Resposta pronta, com um misto de alegria e um olhar de soslaio:
- Vou ajudar o meu tio, ele tem uma oficina de marceneiro.
Tentei então encorajá-lo para que a conversa não terminasse por ali:
- Ah! Bravo! Muito bem! - E prossegui. - E na oficina do teu tio, o que fazes?
- Muita coisa.
- E o que é “muita coisa”?
- Limpo as máquinas e o pó dos móveis, ajudo a carregá-los na carrinha e embetumo.
- O quê?!
- Embetumo as gavetas e as portas.
- O que é isso de embetumar?
- Embetumar é fazer assim uma coisa como por pasta de dentes para tapar os buracos e as rachas da madeira das gavetas e das portas dos móveis.
- Ah! Então embetumar é por betume nos móveis para lhe tapar os buracos e os alisar. Confesso que não conhecia essa palavra.
- Mas é “fixe”.
- É “fixe” o quê?
- Embetumar. É compor uma coisa de madeira que está furada ou rachada. Até há cinzento, castanho e doutras cores.
- E gostas de fazer esse trabalho e ajudar o teu tio?
- Gosto. Claro que gosto. É onde eu vou trabalhar quando me deixarem sair daqui. Quero ser marceneiro. É mais “fixe” do que andar na escola.
- E tu queres ser marceneiro, quando fores grande?
- Quero, claro que quero. – O seu rosto manifestava agora um enorme regozijo. Confesso que vi o Jorge sorrir de alegria pela primeira vez. Depois de uma pausa e de um respirar de alívio, continuou:
- Gostava era de poder estar lá todo o dia, em vez de andar aqui sem fazer nada. Mas o meu tio é que não me deixa. Quer que eu venha para a escola todos os dias… e eu não gosto de vir. Obriga-me a vir todos os dias só para chatear os professores.
- E o teu tio ensina-te a arte de marceneiro? Sim, porque aquilo é como uma arte, é assim como uma disciplina, não é? Para ser um bom marceneiro é preciso aprender.
- Ensina, claro que ensina. No sábado estive lá a trabalhar até à noite. Aquilo é “fixe”. Trabalha-se até estar pronto.
- E depois de pronto, o que se faz ao móvel?
- Carrega-se na carrinha e leva-se ao polidor.
- E gostas de estar na oficina, mesmo aos sábados?
- Eu gosto. Ficava lá todo o dia. Eu quero é aprender a ser marceneiro. Quando fizer dezasseis anos saio da escola de vez e vou para a oficina aprender. Aos dezasseis já vou trabalhar de marceneiro.
- Quando fazes dezasseis?
- No dia vinte de Julho.
- Então para o ano já não vens para a escola?
- Era o que faltava. Claro que não venho. Já fico todo o dia na oficina a aprender de marceneiro.
- E estás contente por isso?
- Claro que estou. Eu gosto é daquilo. Agora até vou fazer uma cadeira pequenina. Vou pedir madeira ao meu tio e vou fazê-la sozinho. Meu tio só me vai dizendo como é. Eu é que vou fazer tudo sozinho. É “fixe”, não é professor?
- É! Claro que é! E quando não trabalhas, o que fazes?
-Trabalho.
- Mas nos tempos livres, naqueles em que não tens que fazer?
- Eu vou para a oficina na mesma. Vou ver o meu tio trabalhar. Ainda no domingo estive lá toda a tarde.
- E não vês Televisão?
- Vejo, de vez em quando.
- E brincar? Já não brincas?
- Eu brincava antes. Agora já não. Quero é aprender a ser um bom marceneiro.
A cantina abriu e o Jorge pisgou-se. Queria ser o primeiro a almoçar.
Mas aquela conversa perseguiu-me durante dias e dias E não é que, algum tempo depois, dei comigo em plena reunião do Conselho Pedagógico, a propor que o Currículo da Escola fosse enriquecido com uma nova disciplina, Marcenaria, e que o professor até era fácil de arranjar: podia muito bem ser o tio do Jorge.
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AS SOPAS FEITAS COM A CARNE E O PÃO DO SENHOR ESPÍRITO SANTO
Não se pode falar propriamente em Sopas de Espírito Santo na Fajã Grande como as que se faziam e ainda se fazem, dando cumprimento a usos e costumes ancestrais, em quase todas as outras ilhas açorianas, nomeadamente, no Pico e Faial, onde se davam e distribuíam, frequentemente, sobretudo no Verão, as “Sopas do Senhor Espírito Santo”. Na Fajã essas promessas eram feitas de forma diferente. Designavam-se por “Jantares do Senhor Espírito Santo” e a carne era distribuída crua por todas as casas da freguesia, acompanhada da coroa, da bandeira e dos foliões, ainda crua, juntamente com o pão, este sim cozido. Assim era dada a possibilidade a cada família cozinhar a carne como muito bem quisesse e entendesse, na sua própria a casa, sendo que muitas vezes, depois de guisada a mesma se juntava ou era deitada sobre o pão, embebendo-o com o molho no próprio prato ou em terrinas, fazendo-se, então, as tradicionais sopas do Senhor Espírito Santo.
A carne era preparada e cozinhada da seguinte forma: uma vez temperada em vinha d’alhos, a carne era cozida lentamente, juntando-se as cebolas, os alhos e algumas folhas de couve inteiras e com o talo, normalmente amarradas num pequeno molhe. Ao mesmo tempo e amarrados num pequeno saco ou pedaço de pano colocavam-se os temperos, geralmente, alho, sal, pimenta em grão, hortelã e cravos da Índia. Juntava-se a água necessária para cozer e depois encharcar a quantidade de pão que se tinha. Uma vez bem cozida a carne retirava-se do lume e, partindo o pão às fatias e colocando-o com folhas de hortelã, no próprio prato ou numa terrina de louça e deitava-se em cima o caldo da carne ainda a ferver, formando assim as sopas que acompanhavam a carne, juntamente com umas boas talhadas de inhame.
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UM REGISTO DE BAPTISMO DO ARQUIVO PAROQUIAL DA FAJÃ GRANDE, NOS FINAIS DO SEC. XIX (1874)
Eram assim os registos de baptismo nos finais do sec. XIX, na Fajã Grande. Aqui se transcreve “ipsis verbis” o assento de um dos primeiros baptismos que foram realizados na nova paróquia de São José da Fajã Grande, desanexada da paróquia de Nossa Senhora do Remédios da Fajãzinha, e criada por alvará de D. Frei Estevam de Jesus Maria, Bispo de Angra, em 20 de Junho de 1861:
“Aos cinco dias do mez do Julho do anno de mil oito centos setenta e
quatro, nesta Egreja Parochial de São Jose da Fajam Grande Concelho da
Villa das Lagens ilha das Flores Diocese de Angra, Baptisei solennemente
hum individuo do sexo feminino a quem dei o nome de Maria, que nasceo no
lugar da Ponta desta Freguesia pelas cinco horas do dia primeiro do
corrente mez e anno, filha natural primeira do nome de Izabel Thomasia
solteira governo domestico natural e moradora no mesmo lugar da Ponta e
Parochiana desta mesma Freguesia, e de Pai incognito, Neta Paterna de Avos
incognitos, e Materna de Antonio Jose Jorge, e de Anna Luiza, foi Padrinho
seu avo paterno, cazado, trabalhador, Madrinha sua mulher Anna Luiza que
governa sua casa, os quaes todos sei serem os proprios. E para constar
lavrei em duplicado este assento que depois de ser lido e conferido
perante os Padrinhos nao assinaram por nao saberem escrever. Era ut
supra. O Vigario Antonio Jose da Freitas.”
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DIA DE BALEIA
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Agitação dos dias de baleia!
Marinheiros correndo para o porto.
Iguala o Universo num grão de areia
e o Nada é um doutor de olhar absorto.
A bomba que rebenta na vigia
sacode o ar num sobressalto de asas.
A vida igual de sempre dir-se-ia
outra na lida habitual das casas.
Mas à agitação se segue logo
uma ansiedade vã sobre a paisagem:
em cada coração crepita um fogo
à espera apenas de uma leve aragem.
Depois, qualquer sinal no horizonte
parece um barco – e uma baleia morta?
Um binóculo espreita, ali defronte,
E um vulto de mulher assoma à porta.
Inquieto, alguém pergunta: - Que é? Que foi?
Um coração lento cruza a dúbia praça;
reflecte a placidez do boi
a morna placidez da tarde baça.
Mas não há uma vela pelo mar!
As horas passam, moles, arrastadas...
A noite vem... Os botes sem chegar!
E um choro enche as casas desoladas.
Pedro da Silveira
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CASA COM JANELA PARA O MAR
Tia Jerónima sentou-se à janela da sala, apoiando-se com o braço direito, debruçado sobre o peitoril. O Sol há muito que se havia perdido no horizonte mas reinava, ainda, uma claridade, serena, silenciosa e acolhedora. A janela, encravada na empena oeste do minúsculo casebre, abria-se e despejava-se sobre um pequeno e estreito atalho, feito de pedregulhos toscos, emaranhados entre cascalho, desenhado sobre uma rocha a arfar de silvados e vinhedos, ali mesmo em frente e encavalitada sobre o mar. Descaído sobre o oceano, que se estendia como um enorme tapete azulado e fofo, aquele alcantil que, para além de uns canaviais e uma ou outra figueira ressequida, apenas carregava sobre si a casa de Tia Jerónima, assemelhava-se a uma espécie de trincheira natural, contra a qual, sobretudo em dias de vendavais e tempestades, o mar se atirava em laivos de raiva e uivos de ganância.
Naquela noite, porém, o mar estava calmo e sereno. Abraçado à intimidade do anoitecer, apenas fazia sentir a sua presença através de uma ou outra pequena onda que, rolando lentamente, se vinha desfazer, num leve e suave murmúrio, junto ao negro areal que o separava do aclive. Uma irrequieta tranquilidade atraente! Um murmúrio de silêncio enternecedor!
Tia Jerónima permanecia, absorta e alheada, sentada à sua janela com vista sobre o mar, com a mão direita sobreposta ao olhar, como que a tapar-lhe as incandescências que o espectro do astro-rei, no seu ocaso, deixara desenhadas no horizonte em traços amarelos, alaranjados, vermelhos e violetas. Mais além, mas muito longe, um crepúsculo emaranhado crescia muito lentamente e parecia tornar-se madrugada, cobrindo uma enorme cidade, de casas altíssimas, comboios, “mexins”, vapores e soldados, atravessada por rios da cor da esperança.
Sentada à janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita sobre o olhar, a aclarar-lhe incandescências ofuscadas, tia Jerónima via as casas a erguerem-se ao céu, o burburinho das ruas atafulhadas de pessoas, o fumo que se elevava das fábricas, os comboios que passavam a correr, os rios a deslizarem com suavidade, os barcos a perderem-se no horizonte, os homens a arfarem cansaço e os soldados a partirem para a guerra. No ar surgiam pássaros de espuma e nos rios navegavam barcos de papel, cor de laranja, carregados de lágrimas e soluços. Depois a cidade adormecia, as casas fechavam as janelas, forravam-nas de madeira, vestiam-se de escuro e dos telhados saíam rolos de fumo, negro e estilizado. A cidade adormecida era como se fosse uma grande fábrica, uma espécie de fóssil industrial que homens, sonolentos e com bonés de veludo, enfiados até às orelhas, nas manhãs escuras e friorentas, procuravam com avidez, engolindo-o como se fosse um chocolate gigante. Depois transformava-se numa labareda de fumo aguerrida e devoradora e a cidade regressava à florescência do casario que, agora, sobressaía mais tenazmente, tornando o universo esverdeado e salpicado de manchas brancas. E os homens, transformados em pastores, agarravam, com uma ganância desusada, aquelas manchas, enchendo-as dentro de sacos, carregando-os às costas como se fossem rolos de lã ou de linho. E a tia Jerónima, sentada à janela da sua casa, também deslizava naquele universo como se fosse uma nuvem de papel, caminhava como se fosse a sombra de uma árvore desfolhada, voava como se fosse um pássaro perdido e sem rumo.
E lá, em frente à casa com janela sobre o mar, a noite crescia desalmadamente, tornava-se completamente escura, sem Lua e com as estrelas muito tímidas e hesitantes. Mas a tia Jerónima permanecia sentada à sua janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita a anafar o silêncio da noite, a açular-lhe sonolências perdidas, a acariciar os sabores do escuro, emaranhada em sonhos ora de encanto e alegria ora de dor e sofrimento. Depois, quebrando um silêncio torturador, tia Jerónima soluçava e estremecia, imaginando o suplicar dos braços agonizantes de alguém que desaparecera, com o Sol, lá no outro lado do Mundo.
E lá pela noite dentro, já quase madrugada, tia Jerónima acordou estrebuchada. Fechou a janela que ficava sobre mar e, na claridade tímida duma vela colocada à cabeceira da sua cama, rezou uma oração crente e purificadora, por alma do seu António que a “Calafónia”, fatalmente, nunca lhe devolvera.