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EMBETUMO

Quarta-feira, 18.09.13

Não havia professor da turma que não tivesse percebido que o Jorge não gostava rigorosamente nada da escola. Revelava-o não só por atitudes mas também e sobretudo com palavras. Nas minhas aulas, apesar de tudo aquelas que aparentemente menos detestava, muitas vezes afirmara que não queria saber daquilo para nada e que quando fizesse dezasseis anos ou quando o deixassem… “Ó pernas!...” “Fugia dali a sete pés!...” A aula de Inglês era uma tragédia, a de Música um castigo e a de Matemática um inferno. Chegou ao extremo de afirmar em plena aula, que Ciências era uma merda, o que, obviamente, lhe valeu uma expulsão. A única disciplina, para além de Português, de que não se queixava, na sua persistente e continua objecção de consciência a todo e qualquer tipo de aprendizagem, era a de Trabalhos Manuais. De resto uma razia completa. Esta pertinaz obstinação à escola, aliada às fraquíssimas capacidades de aprendizagem de que era dotado, trouxe-lhe sucessivas reprovações que ainda mais açularam a sua aversão por aulas, disciplinas e professores.

Certo dia, ao passar num dos pátios da escola, encontrei o Jorge sozinho, acabrunhado e macambúzio, sentado num banco. Para gáudio seu a professora de Matemática tinha faltado e estava ali à espera da cantina abrir. Aproximei-me, pedi-lhe licença para me sentar ao seu lado. Passei-lhe, ao de leve, a mão pelo ombro e atirei de rompante:

- Olha lá, Jorge. Afinal porque é que não gostas de andar aqui, na escola? Porque não gostas nem das aulas, nem dos professores?

Resposta imediata e sucinta mas pouco racional:

- Porque não gosto.

- Mas isso não é razão - insisti. - Tens que te explicar melhor…

- Não quero. Não gosto da escola e pronto.

Era óbvio que por ali não ia a lado nenhum. Mudei de tema:

- E fora da escola? O que fazes quando não estás na escola?

- Vou para casa.

- E o que fazes quando sais da escola e vais a casa?

- Faço muita coisa.

Achei que tinha escolhido o caminho mais certo para manter o diálogo aceso e, por isso, insisti:

- E que coisas são essas que fazes em casa?

Resposta pronta, com um misto de alegria e um olhar de soslaio:

 - Vou ajudar o meu tio, ele tem uma oficina de marceneiro.

Tentei então encorajá-lo para que a conversa não terminasse por ali:

- Ah! Bravo! Muito bem! - E prossegui. - E na oficina do teu tio, o que fazes?

- Muita coisa.

- E o que é “muita coisa”?

- Limpo as máquinas e o pó dos móveis, ajudo a carregá-los na carrinha e embetumo.

- O quê?!

- Embetumo as gavetas e as portas.

- O que é isso de embetumar?

- Embetumar é fazer assim uma coisa como por pasta de dentes para tapar os buracos e as rachas da madeira das gavetas e das portas dos móveis.

- Ah! Então embetumar é por betume nos móveis para lhe tapar os buracos e os alisar. Confesso que não conhecia essa palavra.

- Mas é “fixe”.

- É “fixe” o quê?

- Embetumar. É compor uma coisa de madeira que está furada ou rachada. Até há cinzento, castanho e doutras cores.

- E gostas de fazer esse trabalho e ajudar o teu tio?

- Gosto. Claro que gosto. É onde eu vou trabalhar quando me deixarem sair daqui. Quero ser marceneiro. É mais “fixe” do que andar na escola.

- E tu queres ser marceneiro, quando fores grande?

- Quero, claro que quero. – O seu rosto manifestava agora um enorme regozijo. Confesso que vi o Jorge sorrir de alegria pela primeira vez. Depois de uma pausa e de um respirar de alívio, continuou:

- Gostava era de poder estar lá todo o dia, em vez de andar aqui sem fazer nada. Mas o meu tio é que não me deixa. Quer que eu venha para a escola todos os dias… e eu não gosto de vir. Obriga-me a vir todos os dias só para chatear os professores.

- E o teu tio ensina-te a arte de marceneiro? Sim, porque aquilo é como uma arte, é assim como uma disciplina, não é? Para ser um bom marceneiro é preciso aprender.

- Ensina, claro que ensina. No sábado estive lá a trabalhar até à noite. Aquilo é “fixe”. Trabalha-se até estar pronto.

- E depois de pronto, o que se faz ao móvel?

- Carrega-se na carrinha e leva-se ao polidor.

- E gostas de estar na oficina, mesmo aos sábados?

- Eu gosto. Ficava lá todo o dia. Eu quero é aprender a ser marceneiro. Quando fizer dezasseis anos saio da escola de vez e vou para a oficina aprender. Aos dezasseis já vou trabalhar de marceneiro.

- Quando fazes dezasseis?

- No dia vinte de Julho.

- Então para o ano já não vens para a escola?

- Era o que faltava. Claro que não venho. Já fico todo o dia na oficina a aprender de marceneiro.

- E estás contente por isso?

- Claro que estou. Eu gosto é daquilo. Agora até vou fazer uma cadeira pequenina. Vou pedir madeira ao meu tio e vou fazê-la sozinho. Meu tio só me vai dizendo como é. Eu é que vou fazer tudo sozinho. É “fixe”, não é professor?

- É! Claro que é! E quando não trabalhas, o que fazes?

-Trabalho.

- Mas nos tempos livres, naqueles em que não tens que fazer?

- Eu vou para a oficina na mesma. Vou ver o meu tio trabalhar. Ainda no domingo estive lá toda a tarde.

- E não vês Televisão?

- Vejo, de vez em quando.

- E brincar? Já não brincas?

- Eu brincava antes. Agora já não. Quero é aprender a ser um bom marceneiro.

A cantina abriu e o Jorge pisgou-se. Queria ser o primeiro a almoçar.

Mas aquela conversa perseguiu-me durante dias e dias E não é que, algum tempo depois, dei comigo em plena reunião do Conselho Pedagógico, a propor que o Currículo da Escola fosse enriquecido com uma nova disciplina, Marcenaria, e que o professor até era fácil de arranjar: podia muito bem ser o tio do Jorge.

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publicado por picodavigia2 às 12:08

AS SOPAS FEITAS COM A CARNE E O PÃO DO SENHOR ESPÍRITO SANTO

Quarta-feira, 18.09.13

Não se pode falar propriamente em Sopas de Espírito Santo na Fajã Grande como as que se faziam e ainda se fazem, dando cumprimento a usos e costumes ancestrais, em quase todas as outras ilhas açorianas, nomeadamente, no Pico e Faial, onde se davam e distribuíam, frequentemente, sobretudo no Verão, as “Sopas do Senhor Espírito Santo”. Na Fajã essas promessas eram feitas de forma diferente. Designavam-se por “Jantares do Senhor Espírito Santo” e a carne era distribuída crua por todas as casas da freguesia, acompanhada da coroa, da bandeira e dos foliões, ainda crua, juntamente com o pão, este sim cozido. Assim era dada a possibilidade a cada família cozinhar a carne como muito bem quisesse e entendesse, na sua própria a casa, sendo que muitas vezes, depois de guisada a mesma se juntava ou era deitada sobre o pão, embebendo-o com o molho no próprio prato ou em terrinas, fazendo-se, então, as tradicionais sopas do Senhor Espírito Santo.

A carne era preparada e cozinhada da seguinte forma: uma vez temperada em vinha d’alhos, a carne era cozida lentamente, juntando-se as cebolas, os alhos e algumas folhas de couve inteiras e com o talo, normalmente amarradas num pequeno molhe. Ao mesmo tempo e amarrados num pequeno saco ou pedaço de pano colocavam-se os temperos, geralmente,  alho, sal, pimenta em grão, hortelã e cravos da Índia. Juntava-se a água necessária para cozer e depois encharcar a quantidade de pão que se tinha. Uma vez bem cozida a carne retirava-se do lume e, partindo o pão às fatias e colocando-o com folhas de hortelã, no próprio prato ou numa terrina de louça e deitava-se em cima o caldo da carne ainda a ferver, formando assim as sopas que acompanhavam a carne, juntamente com umas boas talhadas de inhame.

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publicado por picodavigia2 às 12:04

UM REGISTO DE BAPTISMO DO ARQUIVO PAROQUIAL DA FAJÃ GRANDE, NOS FINAIS DO SEC. XIX (1874)

Quarta-feira, 18.09.13

Eram assim os registos de baptismo nos finais do sec. XIX, na Fajã Grande. Aqui se transcreve “ipsis verbis” o assento de um dos primeiros baptismos que foram realizados na nova paróquia de São José da Fajã Grande, desanexada da paróquia de Nossa Senhora do Remédios da Fajãzinha, e criada por alvará de D. Frei Estevam de Jesus Maria, Bispo de Angra, em 20 de Junho de 1861:

            “Aos cinco dias do mez do Julho do anno de mil oito centos setenta e
quatro, nesta Egreja Parochial de São Jose da Fajam Grande Concelho da
Villa das Lagens ilha das Flores Diocese de Angra, Baptisei solennemente
hum individuo do sexo feminino a quem dei o nome de Maria, que nasceo no
lugar da Ponta desta Freguesia pelas cinco horas do dia primeiro do
corrente mez e anno, filha natural primeira do nome de Izabel Thomasia
solteira governo domestico natural e moradora no mesmo lugar da Ponta e
Parochiana desta mesma Freguesia, e de Pai incognito, Neta Paterna de Avos
incognitos, e Materna de Antonio Jose Jorge, e de Anna Luiza, foi Padrinho
seu avo paterno, cazado, trabalhador, Madrinha sua mulher Anna Luiza que
governa sua casa, os quaes todos sei serem os proprios.  E para constar
lavrei em duplicado este assento que depois de ser lido e conferido
perante os Padrinhos nao assinaram por nao saberem escrever.  Era ut
supra. O Vigario Antonio Jose da Freitas.”

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publicado por picodavigia2 às 12:01

DIA DE BALEIA

Quarta-feira, 18.09.13

(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

Agitação dos dias de baleia!
Marinheiros correndo para o porto.

Iguala o Universo num grão de areia
e o Nada é um doutor de olhar absorto.

A bomba que rebenta na vigia
sacode o ar num sobressalto de asas.
A vida igual de sempre dir-se-ia
outra na lida habitual das casas.

Mas à agitação se segue logo
uma ansiedade vã sobre a paisagem:
em cada coração crepita um fogo
à espera apenas de uma leve aragem.

Depois, qualquer sinal no horizonte
parece um barco – e uma baleia morta?
Um binóculo espreita, ali defronte,
E um vulto de mulher assoma à porta.

Inquieto, alguém pergunta: - Que é? Que foi?
Um coração lento cruza a dúbia praça;
reflecte a placidez do boi
a morna placidez da tarde baça.

Mas não há uma vela pelo mar!
As horas passam, moles, arrastadas...
A noite vem... Os botes sem chegar!
E um choro enche as casas desoladas.

 

Pedro da Silveira

 

 

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publicado por picodavigia2 às 11:56

CASA COM JANELA PARA O MAR

Quarta-feira, 18.09.13

Tia Jerónima sentou-se à janela da sala, apoiando-se com o braço direito, debruçado sobre o peitoril. O Sol há muito que se havia perdido no horizonte mas reinava, ainda, uma claridade, serena, silenciosa e acolhedora. A janela, encravada na empena oeste do minúsculo casebre, abria-se e despejava-se sobre um pequeno e estreito atalho, feito de pedregulhos toscos, emaranhados entre cascalho, desenhado sobre uma rocha a arfar de silvados e vinhedos, ali mesmo em frente e encavalitada sobre o mar. Descaído sobre o oceano, que se estendia como um enorme tapete azulado e fofo, aquele alcantil que, para além de uns canaviais e uma ou outra figueira ressequida, apenas carregava sobre si a casa de Tia Jerónima, assemelhava-se a uma espécie de trincheira natural, contra a qual, sobretudo em dias de vendavais e tempestades, o mar se atirava em laivos de raiva e uivos de ganância.

Naquela noite, porém, o mar estava calmo e sereno. Abraçado à intimidade do anoitecer, apenas fazia sentir a sua presença através de uma ou outra pequena onda que, rolando lentamente, se vinha desfazer, num leve e suave murmúrio, junto ao negro areal que o separava do aclive. Uma irrequieta tranquilidade atraente! Um murmúrio de silêncio enternecedor!

Tia Jerónima permanecia, absorta e alheada, sentada à sua janela com vista sobre o mar, com a mão direita sobreposta ao olhar, como que a tapar-lhe as incandescências que o espectro do astro-rei, no seu ocaso, deixara desenhadas no horizonte em traços amarelos, alaranjados, vermelhos e violetas. Mais além, mas muito longe, um crepúsculo emaranhado crescia muito lentamente e parecia tornar-se madrugada, cobrindo uma enorme cidade, de casas altíssimas, comboios, “mexins”, vapores e soldados, atravessada por rios da cor da esperança.

Sentada à janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita sobre o olhar, a aclarar-lhe incandescências ofuscadas, tia Jerónima via as casas a erguerem-se ao céu, o burburinho das ruas atafulhadas de pessoas, o fumo que se elevava das fábricas, os comboios que passavam a correr, os rios a deslizarem com suavidade, os barcos a perderem-se no horizonte, os homens a arfarem cansaço e os soldados a partirem para a guerra. No ar surgiam pássaros de espuma e nos rios navegavam barcos de papel, cor de laranja, carregados de lágrimas e soluços. Depois a cidade adormecia, as casas fechavam as janelas, forravam-nas de madeira, vestiam-se de escuro e dos telhados saíam rolos de fumo, negro e estilizado. A cidade adormecida era como se fosse uma grande fábrica, uma espécie de fóssil industrial que homens, sonolentos e com bonés de veludo, enfiados até às orelhas, nas manhãs escuras e friorentas, procuravam com avidez, engolindo-o como se fosse um chocolate gigante. Depois transformava-se numa labareda de fumo aguerrida e devoradora e a cidade regressava à florescência do casario que, agora, sobressaía mais tenazmente, tornando o universo esverdeado e salpicado de manchas brancas. E os homens, transformados em pastores, agarravam, com uma ganância desusada, aquelas manchas, enchendo-as dentro de sacos, carregando-os às costas como se fossem rolos de lã ou de linho. E a tia Jerónima, sentada à janela da sua casa, também deslizava naquele universo como se fosse uma nuvem de papel, caminhava como se fosse a sombra de uma árvore desfolhada, voava como se fosse um pássaro perdido e sem rumo.

E lá, em frente à casa com janela sobre o mar, a noite crescia desalmadamente, tornava-se completamente escura, sem Lua e com as estrelas muito tímidas e hesitantes. Mas a tia Jerónima permanecia sentada à sua janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita a anafar o silêncio da noite, a açular-lhe sonolências perdidas, a acariciar os sabores do escuro, emaranhada em sonhos ora de encanto e alegria ora de dor e sofrimento. Depois, quebrando um silêncio torturador, tia Jerónima soluçava e estremecia, imaginando o suplicar dos braços agonizantes de alguém que desaparecera, com o Sol, lá no outro lado do Mundo.

E lá pela noite dentro, já quase madrugada, tia Jerónima acordou estrebuchada. Fechou a janela que ficava sobre mar e, na claridade tímida duma vela colocada à cabeceira da sua cama, rezou uma oração crente e purificadora, por alma do seu António que a “Calafónia”, fatalmente, nunca lhe devolvera. 

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publicado por picodavigia2 às 10:21





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