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SÃO MATEUS APÓSTOLO E EVANGELISTA

Sexta-feira, 20.09.13

No tempo de Jesus Cristo, na época em que a Palestina era apenas uma província romana, os impostos cobrados eram onerosos e pesavam brutalmente sobre os ombros dos judeus. A cobrança desses impostos era feita por rendeiros públicos, considerados homens cruéis, sanguessugas, verdadeiros esfoladores do povo. Um dos piores rendeiros da época era Levi, filho de Alfeu, que, mais tarde, trocaria seu nome para Mateus, que significa "dom de Deus".

Um dia, depois de pregar, Jesus caminhava pelas ruas da cidade de Cafarnaum e encontrou com o cobrador de impostos Levi. Olhou-o com firmeza nos olhos e disse: "Segue-me". Levi, imediatamente, levantou-se, abandonou seu rendoso negócio, mudou de vida, de nome e seguiu Jesus. Na verdade, acredita-se que Levi, desde algum tempo, cultivava a vontade de seguir as palavras do profeta e que aquela atitude tenha sido definitiva para colocá-lo para sempre no caminho da fé cristã.

Daquele dia em diante, com o nome de Mateus, tornou-se um dos maiores seguidores e apóstolos de Cristo, acompanhando-o em todas as suas caminhadas e pregações pela Palestina. São Mateus foi o primeiro apóstolo a escrever um livro contando a vida e a morte de Jesus Cristo, ao qual ele deu o nome de Evangelho e que foi amplamente usado pelos primeiros cristãos da Palestina. Quando o apóstolo São Bartolomeu viajou para as Índias, levou consigo uma cópia.

Depois da morte e ressurreição de Jesus, os apóstolos espalharam-se pelo mundo e Mateus foi para a Arábia e a Pérsia a fim de evangelizar aqueles povos. Porém foi vítima de uma grande perseguição por parte dos sacerdotes locais, que mandaram arrancar-lhe os olhos e o encarceraram para depois ser sacrificado aos deuses. Mas Deus não o abandonou e mandou um anjo que curou seus olhos e o libertou.

Mateus seguiu, então, para a Etiópia, onde mais uma vez foi perseguido por feiticeiros que se opunham à evangelização. Porém o príncipe herdeiro morreu e Mateus foi chamado ao palácio. Por uma graça divina fez o filho da rainha Candece ressuscitar, causando grande espanto e admiração entre os presentes. Com esse ato, Mateus conseguiu converter grande parte da população. Na época, a Igreja da Etiópia passou a ser uma das mais activas e florescentes dos tempos apostólicos.

São Mateus morreu por ordem do rei Hitarco, sobrinho do rei Egipo, no altar da igreja em que celebrava o santo ofício da missa. Isso aconteceu porque não intercedeu em favor do pedido de casamento feito pelo monarca, e recusado pela jovem Efigénia, que havia decidido consagrar-se a Jesus. Inconformado com a atitude do santo homem, Hitarco mandou que seus soldados o executassem, pelo que morreu mártir, como os restantes apóstolos. Essa a razão por que a Igreja reveste os seus ministros de paramentos vermelhos, neste dia.

No ano 930, as relíquias mortais do apóstolo são Mateus foram transportadas para Salerno, na Itália, onde, até hoje, é festejado como padroeiro da cidade. Nos Açores São Mateus é o padroeiro de cinco paróquias, sendo uma delas a de São Mateus, na ilha do Pico.

A Igreja determinou o dia 21 de Setembro para a celebração de são Mateus, apóstolo.

 

“Últimas Graças” (Texto adaptado)

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publicado por picodavigia2 às 21:50

DAS FLORES AO TORRÃO

Sexta-feira, 20.09.13

Quando o Belarmino terminou o curso, na escola do Magistério Primário da Horta, respirou de alívio. Para trás ficavam dificuldades incontáveis, desânimos reiterados e, vezes sem conta, uma vontade quase incontrolável de desistir. Agora estava tudo superado. Os anos que se seguiriam, que estavam apenas atordoados com a constante ameaça da tropa e, pior do que isso, com a guerra do Ultramar, trazer-lhe-iam o singrar numa carreira profissional por muitos desejada mas por poucos conseguida.

Por vontade dos pais ter-se-ia ficado pela 4ª classe. Aguardava-o, como aos outros da sua idade, o destino de ficar ali, na ilha, vergado ao peso da enxada ou agarrado à rabiça do arado, acartando molhos de lenha e cestos de inhames, galgando as encostas da Rocha ou transpondo as veredas dos Matos, em suma, condenado para toda a vida aos trabalhos inerentes a uma mísera agricultura de subsistência.

Cedo, porém, tentou libertar-se. Mas não foi fácil. Eram os entraves paternos, afirmando que trabalho digno de tal nome só o agrícola e eram os irmãos, atormentados pelas lides árduas dos campos, persistindo em contrariar a degeneração do último rebento dos Rodrigues.

Foi a D. Ilda, que o acompanhara da primeira à quarta classe e que não cessava de louvar a inteligência do garoto, que, a muito custo, demoveu o pai do seu persistente carracismo. Eram os irmãos de enxada às costas e foice na mão a caminho da Eira-da-Quada e dos Lavadouros e o Belarmino a tomar a camioneta para Externato de Santa Cruz, que Liceu nas Flores não havia,

Terminado o 5º ano, seguiu para o Faial, com destino à Escola do Magistério, enquanto os outros, por entre protestos execráveis e reclamações improfícuas, mais se excruciavam a cavar as belgas do Mimóio ou a sachar as courelas do Areal e viam o leite mingar na tijela das sopas, que agora não era só o sustento da casa. Não era bem aquilo que o Belarmino queria, mas Universidade nos Açores era um mito. Quem optasse por estudar tinha apenas duas alternativas: o Magistério ou o Seminário. A escolha, para o Belarmino, foi inequívoca.

Os dois anos que passou na Horta não foram fáceis. Dinheiro apenas para a pensão. Livros emprestados. Gastos supérfluos, nem pensar. Além disso, o Carvalho que chegava mensalmente das Flores e atracava à doca da Horta, trazia, juntamente com o correio e uma caixita de vitualhas diversas, uma enxurrada de ameaças:

- Olha lá se me reprovas! Acaba-se tudo!... Teu pai diz que há muitos fetos e cana roca para ceifar no Pocestinho e o cerrado das Furnas está à espera do arado e da enxada.

Nas férias matava-se a trabalhar. Os irmãos atiravam-lhe para o lombo os molhos mais pesados e os cestos maiores, ripostando:

- Tens que trabalhar agora, para compensar a boa vidinha que levas durante o Inverno.

Mas chegou o fim do Magistério e o concurso para professor. Como lhe segredassem que as vagas nos Açores eram poucas e, porque há muito sonhara abandonar o arquipélago, até porque temia cada vez mais o estigma da guerra do Ultramar, à qual se sabia que de Lisboa era mais fácil fugir do que das ilhas, decidiu concorrer para o Continente. A Graça, a colega de curso que por ele se havia perdido de amores desde há algum tempo, bem o tentava demover, assustando-o com Trás-os-Montes e com o Alentejo, locais onde, na opinião da apaixonada, proliferavam aldeias mais pobres e mais isoladas do que o Corvo ou as Fajãs de S. Jorge.

A decisão, porém, estava tomada e nada ou nenhum argumento o demoveu.

Seguiram-se dias de ansiedade. Finalmente as listas saíram. No átrio da Delegação Escolar da Horta, os recém-formados acotovelavam-se, na ânsia da certeza duma colocação. Como era impossível ver fosse o que fosse, o Gregório, por ser mais alto, ia apregoando:

- Amélia Martins da Silva – Fajã dos Bodes.

- Ana Maria Ferreira Borges – Barro Branco.

- Beatriz Deolinda de Melo Bettencourt – Ponta Ruiva.

- Belarmino José Pimentel Rodrigues - Torrão.

O Belarmino ficou branco e mudo. A medo indagou:

- Tô quê?!

- Torrão – repetiu o Gregório.

- Isso é no Continente?! Nos Açores não há terra com esse nome. Deve ser em Trás-os-Montes. Eu bem te dizia... – Balbuciou a Graça.

- Em Trás-os-Montes fica é o Marão. Mas aqui o que está escrito é Torrão. Lá onde fica não sei – acrescentou o Gregório, perante a indignação dos que ainda não tinham ouvido o seu nome.

À volta ninguém sabia onde ficava aquela terra.

- Lá sítio bom, não deve ser - comentava uma outra colega. – Pelo nome... Antes a Fajã da Sanguinha em S. Jorge ou a Ponta da Achada em S Miguel.

Foi o Guedes, que pondo-lhe o braço sobre o ombro, aconselhou:

- Calma Bernardino! Sabias muito bem, quando concorreste, que não ficavas em Lisboa ou em Coimbra. Mas olha que não deve ser tão mau como isso. Acho que Torrão fica lá para o Norte, no distrito do Porto. Mas quem te pode informar melhor é o professor Mapa-Mundi. Ele é do Continente, por isso deve saber onde fica. Vá falar com ele, com certeza que te recebe.

O Dr San-Bento era um homem baixo, magro e bastante enigmático. Uma calvície já acentuadamente desenvolvida, uns óculos redondos e muito fortes levemente descaídos sobre a ponta do nariz e um bigode farfalhudo e grisalho davam-lhe, na opinião dos alunos, uma semelhança perfeita e uma rígida equidade com o desenho de um professor que no livro da 3ª classe, de ponteiro em riste, apontava para o globo terrestre. Essa a razão porque o haviam agraciado, desde há muito, com o epíteto de “professor Mapa-Mundi’. O ar caricato do Dr San-Bento acentuava-se notoriamente com dois tiques: esfregava continuamente as mãos uma na outra como se estivessem sempre geladas e, sobretudo em momentos que tentava demonstrar a sua esperança convicta num futuro melhor, saía-se com o chavão “ gente nova, tempo novo.”

José António Alves da Silva San-Bento era um alentejano de gema. Nascera em Castro Verde, estudara em Coimbra e iniciara a carreira de docente no Liceu de Beja. Foi a vida académica que lhe estimulou os primeiros sentimentos de revolta contra o regime salazarista, aceleradamente açulados durante os primeiros anos de docência na capital alentejana.

O Alentejo, na opinião do jovem professor, apesar de votado ao abandono e ao ostracismo por parte de Lisboa, tinha um vigor e uma beleza que se reflectiam na imensidade das suas planícies, na alta nobreza dos seus montados de sobro e azinho, no esteval cerrado, na giesta ramalhuda ou no piorno em mata, que floresciam ao longo das suas planícies. O Alentejo, escrevia San-Bento nos jornais de Beja, senão fecundo é atraente, senão fértil é aprazível e dos seus rios transborda uma esperança de tranquilidade quase transcendente e infinita. Há qualquer coisa de imponente na sua aridez, na sua secura e no seu aspecto semidesértico, que contrasta com o cercear de um desenvolvimento que tarda em impor-se e germinar. A paisagem transtagana transporta-nos na contemplação dum idílio permanente e bucólico entre o céu e a terra, numa aspiração infinita de sonhos transcendentes e de liberdades desmesuradas. Se por um lado, o Alentejo é um sertão árido, uma gândara ou um chavascal povoado de feras e de uma secura desesperante, por outro é um recanto ubérrimo onde a paisagem tem um cunho de grandiosidade e beleza que se impõem em cada momento e em cada espaço. A sua grei também tem uma fisionomia especial, estigmatizada numa nobre independência, num coração generoso, numa contumaz personalidade, num desejo de libertação. Altivo e trabalhador, atlante de bondade e carinho, acomodado ao trabalho e à luta, mas não subjugado ao despotismo, o alentejano, por um lado mistifica-se numa mudez e num silêncio observador mas, por outro, galvaniza-se numa desmedida ânsia de libertação do esclavagismo, da pobreza e do abandono. O alentejano marca a sua individualidade, não apenas quando veste o pelico ou quando calça os safões, mas quando na sua rudeza e simplicidade manifesta a sua idiossincrasia quer através  da sua linguagem salpicada de frases típicas, de sainetes quer por meio dos seus cantares e tradições, que encerram o grito de revolta da sua alma. O alentejano encarna um espírito nobre e altivo, uma dignidade de vida e de costumes, ornado de um esperança infinita em tempos novos. Em suma, concluía San-Bento vezes sem conta, o Alentejo é sinónimo de gente nova, tempo novo.

Os escritos do Dr San-Bento, mais pelo que se lia nas entrelinhas do que nas linhas, trouxeram-lhe a perseguição da PIDE e o degredo para os Açores, sob a forma simulada de serviço militar, fixando-o durante alguns anos no Quartel de S. João Baptista, na ilha Terceira. Foi Angra primeiro e a Clotilde mais tarde que se encarregaram de o demover do sonho de, terminada a tropa, regressar ao seu Alentejo. Decidiu-se por ficar definitivamente nos Açores, na mui nobre leal e sempre constante Angra do Heroísmo, leccionando no Liceu de Angra, aquartelado no velhinho convento de S. Francisco, até porque a calma e serenidade das ilhas haviam-lhe proporcionado um crescimento galopante de sentimentos, atitudes e escritos antifascistas. Tal crescendo, porém, teve como consequência uma nova mas mais suave perseguição por parte da polícia política, configurada, alguns anos mais tarde, numa discreta transferência para a ilha do Faial.

Agora, na Horta, empenhava-se apaixonadamente na formação dos alunos da Escola do Magistério, dos futuros professores e a pouco e pouco, quer porque a idade fosse avançando quer porque a pequenez e o isolamento da ilha lhe cerceavam a divulgação de ideias e escritos, limitava-se a guardar na memória os sentimentos, cada vez maiores, da revolta que lhe ia na alma. A esperança cada vez mais convicta de que regime do velho ditador havia de cair pela força e coragem duma nova geração cravara-se definitivamente e bem fundo na alma do velho professor, onde era guardada como um tesouro escondido que um dia havia ser revelado. Ele, formador dos novos mestres, era cúmplice dessa futura renovação, da chegada de um tempo novo. Por isso, quer nas suas aulas quer em todo e qualquer local que tivesse oportunidade de falar, sintetizava todos esses sentimentos e ideias numa expressão muito a seu gosto “gente nova, tempo novo”, com a qual de facto simbolizava a sua esperança num Portugal novo, democrático, onde os direitos fundamentais do homem haviam de ser religiosamente respeitados, um Portugal com uma geração nova, que havia de nos conduzir a um tempo novo, onde reinasse a paz, florescesse a verdade e se cultivasse a justiça.

Era sobretudo o consciente sentido de responsabilidade pela formação desta nova geração que o acomodava agora a um mutismo oposto às frequentes extravasões dos seus ideais, quer em Beja, quer em Angra.

Foi o Dr San-Bento que esclareceu definitivamente o Belarmino. O seu ar enigmático e taciturno alterou-se de imediato, quando este lhe atirou com Torrão. Levantou-se e apontando para o ar com o dedo indicador exclamou:

- Torrão! Torrão! Foste colocado em Torrão, concelho de Alcácer do Sal. Parabéns meu rapaz. É uma terra excelente!

- O senhor Doutor conhece Torrão? Já lá esteve?

- Claro – continuava San-Bento. – Já lá estive muitas vezes. Tenho lá um grande amigo o Dr. Emílio Assunção. Somos conterrâneos, nascemos no concelho de Castro Verde, ele em São Marcos de Atabueira e eu em Entradas, numa freguesia vizinha. Quantas vezes fomos pescar juntos para a ribeira de Cobres! Belos tempos! Ele é médico em Torrão e já lá vai um bom par de anos que o não vejo. Hei-de recomendar-te a ele, quando para lá fores. É um homem que adora aquela terra, tem lhe dado muito e feito muito por ela. A esposa, a D. Ermelinda é professora lá. Maravilhoso! Maravilhoso! Vais ser colega da D. Ermelinda!

- E que tal a freguesia, senhor doutor? Será fácil arranjar pelo menos um quarto onde possa ficar nos primeiros tempos?

- Torrão embora pertencendo ao concelho de Alcácer do Sal é vila, talvez mesmo a vila mais tradicional do Alentejo, pelo seu casario, património e cultura popular – acrescentava com entusiasmo San-Bento e esfregando as mãos com grande intensidade uma na outra, prosseguia:

- Linda vila, meu rapaz, linda vila de casas térreas, muito brancas, com chaminés escuras rentes ao beiral. Além disso aquilo é terra com história. O Torrão esconde uma história de séculos e séculos, que se inicia na pré-história, passa pela romanização e pela ocupação árabe. Tem uma igreja matriz muito interessante e de grande valor histórico e arquitectónico. É um belo templo de três naves e várias capelas. O púlpito, que se destaca de uma coluna, é uma bela peça de cantaria, pouco vulgar entre nós. No cruzeiro e capela-mor existem belos azulejos. Outra edifício notável na vila de Torrão é a igreja da Palma, onde existem ricos painéis de azulejos do século XVIII e que representam cenas da vida da Virgem Maria e de S. João Baptista. Além de todos estes motivos que fazem do Torrão uma localidade historicamente riquíssima há um outro facto também notável, que individualiza aquela terra. Foi esta freguesia berço de vultos ilustres, dos quais se destaca o grande escritor quinhentista, autor da tão célebre obra “Menina e Moça”, o poeta das “Saudades”, Bernardim Ribeiro.

- Mas casa, senhor doutor, casa? Acha que consigo alugar ao menos um quarto? – Interrogava o Belarmino mais preocupado com o seu futuro imediato do que com o autor de “Menina e Moça”.

- Bem – concluiu San-Bento sem lhe dar ouvidos – vais iniciar a tua vida profissional numa grande terra, no Alentejo. Num Alentejo que, mais do que qualquer outra região de Portugal precisa de gente nova. Só com gente nova teremos um Alentejo novo.

- Gente nova, tempo novo – balbuciou o Belarmino e interrogava: – Mas casa senhor doutor casa? Será fácil arranjar casa lá?

A pedido do Dr. San-Bento, o Rodrigo, filho de um amigo do dr Assunção, veio receber o Bernardino a Lisboa, ao cais de Alcântara onde o Carvalho Araújo havia atracado. Levou-o até à Alcácer e dali ao Torrão, onde o dr Assunção já lhe havia garantido alojamento.

Mas só depois de se despedir do Rodrigo, quando ficou só, é que o Belarmino, trazendo à memória o dito tantas vezes repetido pelo dr San-Bento “gente nova, tempo novo”, entendeu verdadeiramente que começava ali o princípio duma nova vida.

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publicado por picodavigia2 às 17:25

CALHAU DAS LAPAS

Sexta-feira, 20.09.13

Um dos jogos, simples e inocente, que se fazia na Fajã Grande. Quando era criança era o célebre “Calhau das Lapas”. Quantas vezes, na nossa infância, acompanhávamos as pessoas mais velhas, sobretudo as mulheres, em momentos de carência alimentar, a ir até à beira-mar, saltar de pedra em pedra, de calhau em calhau, geralmente, lutando contra a braveza do mar, para apanhar um “punhadindo” de lapas, pequeninas, mas saborosas e tenrinhas, com que se haviam de fazer umas tortas, ou, se a apanha fosse generosa, haviam de ser guisadas em molho Afonso ou com pão de milho esmiolado. Ficávamo-nos na memória aquela luta quase titânica entre a pequenez humana e a sua força limitada e a imensa, gigantesca e temerosa robustez daquele mar enorme, infinito, capaz de tudo levar e destruir. E enquanto víamos as pessoas a avançar e encolher-se naquele e vai-e-vem das ondas, naquele escapulir à fúria do mar que rebentava nos laredos, sonhávamos e gravávamos no pensamento aquelas imagens de luta, de entrega e de abnegação, superando a agressividade das ondas.

Depois em casa, nas horas vagas, brincávamos ao “Calhau das Lapas”. Um de nós, para tal escolhido, fazia de calhau. Pondo-se de gatas no chão, colocava a cabeça sobre os braços de maneira que obstruísse a visão. Os outros, ao redor, imaginavam-no um enorme calhau, à beira-mar, carregadinho de lapas que tentavam apanhar. Para tal tinham que focar no calhau e em cada toque apanhavam uma lapa. Só que o jogador de gatas era calhau mas também era mar, bravo, furioso, a tentar agarrar quantos o ousavam demandar. Por isso, logo que sentia alguém tocar-lhe, enfurecia-se e levantando a cabeça e os braços tentava a agarrar e levar consigo os que tiravam as lapas do calhau, prefigurando assim uma árdua e trágica luta entre o homem e o mar. O jogo terminava quando o mar levasse todos os que apanhavam lapas, isto é quando o jogador que simulava calhau apanhava os outros jogadores. Claro que o jogo continuava com um outro jogador a fazer de calhau.

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publicado por picodavigia2 às 16:19





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