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PÁSCOA DE 1946 OU A PRIMEIRA PÁGINA DO DIÁRIO DE TI’ANTONHO

Sábado, 21.09.13

Domingo, 21 de Abril de 1946

“Eu mal sei ler e escrever e, além disso, dou alguns erros e não sei usar estas palavras modernas. Mas nesta freguesia, sou dos poucos da minha idade que sabe ler e escrever uma niquinha. Aqui na Fajã Grande, antigamente, quando eu era pequeno nem escola existia. Havia um senhor professor que morava ali prós lados das Courelas e as crianças que os pais quisessem e deixassem iam lá quando bem queriam e quando lhes apetecia. Meu pai era um homem discreto, sabedor e inteligente. Pensava que se eu aprendesse a ler e a escrever seria melhor para mim, sobretudo porque sabia muito bem, que, mais-dia menos-dia, eu abalava para as Américas. Assim eu podia escrever-lhe e mandar notícias de vez em quando. Era um bom pai, o meu! Queria o melhor para mim e para os outros filhos. E foi assim que aprendi a ler e a escrever, embora tenha ido a casa do tal professor poucas vezes, mas como era inteligente e tinha muita vontade, aprendi depressa. Meu pai precisava de mim para trabalhar nas terras. Mas eu gostava muito de ler e escrever e fiquei sempre com este gostinho. Mas foi na América que ainda mais aprendi. E durante os poucos anos que lá estive escrevi algumas cartas para meus pais.

Eu já sou muito velho, ainda sou do tempo dos reis e lembro-me bem de terem assassinado o nosso rei Dom Carlos e o seu filho, príncipe herdeiro, Dom Luís Filipe. Quando chegou a notícia à nossa ilha foi uma tristeza muito grande. Então teve lá algum jeito, matarmos o nosso rei… Que grande pouca-vergonha! Agora já estou velho, tenho quase oitenta e já não posso trabalhar como trabalhava noutros tempos porque as pernas já não me querem ajudar. Mas se for preciso subir a Rocha e ir até ao Queiroal, para juntar e meter dentro uma rês que saltou o tapume, aqui está o Antonho. Muitos rapazes novos, a subir a Rocha, ainda ficam atrás de mim. Mas do juízo é que estou mesmo muito bom e ainda vejo muito bem. Por isso é que deitei mão à pena para ir rabiscando umas folhas, nestes dias que ainda por cá hei-de andar, até que Deus queira levar-me para a sua santa glória. Hei-de guardá-las bem guardadas no fundo dos caninos duma caixa verde que tenho na casa de fora e que trouxe da Califórnia, já lá vão muitos e muitos anos. Pode ser que algum dia, alguém se lembre de ler isto e, sabe Deus, de o escrever num jornal ou num livro. E por hoje é tudo.

Ah! Esqueci-me de dizer que hoje é dia de Páscoa, que já comi uma boa fatia de folar com linguiça que a minha Maria cozeu na Sexta-Feira Santa, dia em que comemos uma sopinha de funcho com bolo do tijolo. Esquecia-me também de dizer que hoje nasceram dois pequenos aqui na freguesia, coisa que raramente acontece na Fajã Grande. Um deles nasceu na Tronqueira e o outro… ali para os lados da Assomada.”

 

 

Texto publicado no “Pico da Vigia” em 21/04/11

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publicado por picodavigia2 às 20:46

LUA DE GANGA

Sábado, 21.09.13

(UM POEMA DE ÁLAMO OLIVEIRA)

quando te via

na ganga azul do teu fato

embandeirava-me de ternura

e propunha despir-te como

se lua fosses ou nada

 

 tocava

 com a ponta dos dedos

 o poema do teu corpo

 

era azul mas eu morria de medo.

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publicado por picodavigia2 às 19:24

A CASA

Sábado, 21.09.13

(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

Naquela casa meu pai nasceu

 Nela nasceu e acabou meu avô.

 Meu pobre avô! conheço-o apenas

 De um daguerreótipo esmaecido

 E de histórias que dele me contaram:

 suas aventuras marinheiras,

 as sete andanças do emigrante,

 mais os regressos derrotados,

 casos d’amores lá por longe…

 

Desde que me lembro ninguém morou

 Na casa longa e estreita como um navio,

 Com uma varanda sobre o Oeste.

 

Ao pé da varanda erguia-se, alta,

 Uma figueira

 (mais alta que a casa velha;

 Isto recordo,estou a vê-la)

 E as paredes da sala estavam cobertas

 De desenhos ingénuos,imperfeitos:

 Navios,cavalos,bois

 Bichos que nunca houve

 E homens do mar barbados

 Tal e qual o meu avô.

 

Há uma data gravada na verga da porta

 Da casa sem ninguém de meus avós

 A(nno) D)ei) 1785

 -Este é o chamam “ o Ano da Fome”

 

Quem fez erguer a casa?

 Terá sido

Bartolomeu,o juiz do concelho?

 Ou seria o ajudante José Lourenço?

 

Laureano,Raulino,Ana Rosa,

 José Vitorino,Rosa Emília,

 Maria,António,Pedro…

 -aqui nasceram todos

 E há muito são mortos!

 Como ela se desfaz,

 Como derruiu,

 Descaiada.

 Fendida,

 Esta casa em que findou

 A raça de meu pai!

 É uma família morta,a de meu pai:

 Uma família morta ,

 De ausentes e mortos.

 Na Europa só eu resto;os outros

 Desertaram a casa,

 Abalaram,são hoje ,

 Nos que nem sei,

 Americanos,filipinos,cubanos

 E brasileiros,

 Venezuelanos

 E uruguaios

 -primos dispersos,

 Parentes

 Entre si ignorados.

 

De todos só eu sei onde jaz a casa morta.

 

Pedro da Silveira “Sinais de Oeste) 1952

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publicado por picodavigia2 às 15:16

TI'ANTONHO DO ALAGOEIRO

Sábado, 21.09.13

(TEXTO DE MARIA ANTÓNIA FRAGA)

 

António Luís descendia dos primeiros povoadores da ilha, no dizer do historiador homens corpulentos e nervudos, e de muitas forças, como bons e generosos africanos e portugueses antigos no falar e no trato, e nasceu em 1870, honrando até no físico as qualidades dos seus antepassados. Nunca foi à escola e, ainda rapazola, embarcou pelo alto para a América, a bordo de uma escuna. Uma vez lá, foi ter à Califórnia, onde ajudou a construir o relrôde e durante muitos anos pastoreou ovelhas pela serra Nevada, raifle na mão e olho atento aos caiotes, aos ladrões e aos índios. Acompanhado pelos fiéis cães, dava combate aos anteriores bem como aos temíveis grizzles e pumas, bicharada que a movimentação das ovelhas atraía. Trabalho sazonal, ia vendo os colegas gastarem nas cidades como Treiça, Tarloque e Los Angeles, as águias duramente ganhas, o regresso adiado à terra natal; propôs então ao patrão que o mantivesse no rancho por comida e dormida na época fraca, a só ia à cidade quando se tornava estritamente necessário, como na ocasião em que o foram buscar por causa de um fortalhaças de saloon que se gabava de partir a cara de todos os sanabaganas portugueses que encontrasse, e que, depois disso, terá sido forçado a mudar de opinião.
António Luís voltou à sua terra depois de quinze anos, com os mesmos sapatos do Lajedo que levara, mas bem cheio o belto das águias. E também tão português como fora, pois recusara-se a tirar os papeles que o transformariamem americano. Comprou algumas terras, e tratou de as valorizar, limpando e rebentando as rochas. Olhou à sua volta, e viu Maria Luísa…

Era bonita, prendada e sua prima. Falou com o tio, e este apesar de tudo foi mais honesto do que Labão para com Jacob: Maria Luísa? se queres casar, casa com Maria de Jesus, que é mais velha.

Não passou pela cabeça de nenhum dos três contestar a autoridade do tio e pai. E deste modo António casou com Maria de Jesus, que era também bonita e prendada. Tiveram vários meninos todos Josés, que foram percorrendo as ruas da freguesia nos seus pequenos caixões, até que um deles escapou, e depois deste mais sete filhos, entre rapazes e meninas. Maria Luísa emigrou também, só regressando depois de velha, madrinha de todos os sobrinhos, e já então por todos chamada Mar’quinhas d’Amer’ca.

À medida que passavam os anos, António foi-se tornando ti’ Antonho Luís do Alagoeiro, do lugar onde comprara a casa com as últimas águias da Califórnia. Trabalhava as terras, fazia as grades, as aivecas e os arados, caiava a casa e acendia o lume à forja, batia o ferro em brasa. À noite, conduzia as orações familiares: Padre nosso que estais nos céus…perdoai-nos as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores…dai-lhes Senhor o eterno descanço…entre os resplendores da luz perpétua. E depois, à luz da candeia, contava mais uma vez a quem estava e chegava as histórias da América: a tosquia na primavera depois do inverno nos planos, as façanhas do Big Frank, do Serpa da Ponta, do Cardoso, do Serpa da Via d’Água, do Francisco Margarida, do J’sé das facadas, do J’sé inglês…e as suas próprias. Os ouvintes arregalavam os olhos imaginando o grizzle, que de pé era tão alto como ti’ Antonho Luís, o puma com a pata presa na armadilha para caiotes, rugindo e tentando libertar-se, os índios montados nos rápidos cavalos a fugir dos cães do pastor e do raifle que lhe sabiam certeiro.

Ti’ Antonho Luís salvou muitos franceses no naufrágio da barca Bidart, nadando até ao navio encalhado no meio do temporal, com uma corda amarrada ao peito pela qual os náufragos se guiaram para terra. No dia do incêndio em casa do foguista, entrou nas chamas para retirar primeiro o homem, depois os barris de pólvora e enxofre. Também se atreveu ao pântano da Caldeira Branca, onde fora com outros homens da freguesia procurar o cadáver de ti’ Ana Tenenta, que se deitara a afogar, e isto para que os passantes nocturnos não tivessem medo do local; mas dizia-se na freguesia que nunca o tinham conseguido resgatar, e que o caixão que traziam só continha pedras.
Saía com o seu barco para o mar, pescava chernes e os afogados, quando não chegava a tempo de os pescar com vida; com bom tempo, em cima do ilhéu Monchique até dançava a chamarrita. Cercava as ovelhas no mato, nos dias de fio, e ia à Vila buscar remédios para os doentes nas ocasiões em que os ventos sopravam pela Rocha com tal violência que mais ninguém conseguiria passar, rastejando de borco sobre os musgos e as queirós.

Aos seus rapazes, antes de irem para a escola, ensinava apenas uma antiga e simples regra de bom viver: vossemecês nunca sejam os primeiros a começar uma briga; mas se eu souber que alguém vos bateu e não se defenderam, olhem que quem vos chega sou eu! Ao que parece, nunca foi necessário. Mulher, só teve aquela que recebera da mão do tio e do padre da freguesia.

Ti’ Antonho do Alagoeiro assistiu à missa nova do seu José, e à frente da família, antes de todo o povo, subiu até ao altar para beijar a mão do novo sacerdote, ministro de Deus e seu filho. O alto corpo curvado, o rosto triste e fechado, o penetrante olhar apagado, para estranheza das crianças ao ver as lágrimas dos comovidos conterrâneos à sua passagem. Um homem da freguesia fizera-lhe, pouco antes, o que os índios, os ladrões, os grizzles, os caiotes, os pumas, o relrôde, a serra Nevada, os valentões, os maus pagadores, os enrediadores, o mar, o fogo, o vento e a Rocha não tinham conseguido: obrigara-o a baixar a fronte de vergonha e mágoa, desonrando-lhe a filha, ingénua como uma criança. Maria viria a dar à luz um menino, e no intervalo de uma semana morreriam ambos, a mãe do parto e o filho de inanição. Ao ter conhecimento da desonra, que muito a medo lhe foi participada, pegara na aguilhada sem dizer uma palavra e começara a descer a rua a caminho da praça. Aos gritos da mulher, amigos e vizinhos tentaram demovê-lo de fazer justiça por suas mãos; mas apenas um argumento, lançado pelo regedor, o deteve: António, se matares aquele bandalho, nunca o teu filho poderá ser ordenado padre…

Então foi-se com os cães para o Rochão Grande, onde só os zimbreiros o poderiam ouvir reclamar a justiça de Deus. E o nevoeiro cobriu-lhe o rosto de água… ou talvez tenha chorado nessa ocasião.

Nunca mais dançou a chamarrita em nenhum lugar. Um dia, lavrava nas Queimadas quando se ouviram gritos na Rocha. Correu, saltando os muros de pedra, e um dos filhos viu-o de repente encolher-se e agarrar a barriga, depois endireitar-se e continuar a corrida até onde estava um grupo de conterrâneos a preparar-se para arrastar pelo carreiro abaixo um velho morto, caído no atalho estreito e íngreme. António pôs o corpo do velho às costas e com uma mão o segurou, com a outra a barriga, e assim o trouxe até à freguesia. A hérnia estrangulou e gangrenou. Delirava, no meio da febre altíssima; supondo-se metido numa fogueira, da qual já não conseguia sair por seus próprios meios, apostrofava a chorosa família: oh gente ingrata, que não me tirais deste lume! O filho mais velho deu-lhe a extrema-unção, e poucas horas depois a morte chegava.

Ti’ Antonho Luís do Alagoeiro era o pai do meu pai. Disseram-me que lhe chamavam o Príncipe.


Corruptelas: algumas são óbvias. Outras menos óbvias:

Relrôde: caminho de ferro (de rail road)
Raifle: espingarda (de rifle)
Caiote: espécie de pequeno lobo (de coyote)
Grizzle: urso pardo (de grizzly)
Treiça: Tracy
Tarloque: Turlock
Sanabagana: filho de…(de son of a gun)
Belto: cinto (de belt)
Planos: ? (do espanhol planícies?)

NB – Este excelente artigo que descreve de forma fascinante mais uma personagem fajagrandense é da autoria de Maria Antónia Fraga, neta de Ti’Antonho do Alagoeiro e foi publicado no seu blogue “Janela de Guilhotina”. Aqui está transcrito com a devida autorização da autora

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publicado por picodavigia2 às 15:14

O POÇO DO CURRALINHO OU UMA MARAVILHA NATURAL DE PORTUGAL ESQUECIDA

Sábado, 21.09.13

Um dos mais belos e mais fascinantes locais da Fajã Grande, outrora, era o Poço do Curralinho. Situado na fronteira que separa esta freguesia da vizinha Fajãzinha, ambas, actualmente, têm disputado a posse de tão valioso pecúlio natural e paisagístico. Durante muitos anos quase ignorado a não ser por quem passava por ali para as suas terras do Portalinho, do Curralinho e até dos Lavadouros, o Poço hoje parece ter-se tornado bastante conhecido com acesso a partir da Estrada Nacional, ao cimo da Ladeira do Biscoito. Talvez por isso mudou de nome, passando a ser conhecido por “Poço da Alagoinha” ou “Poça das Patas e ao que parece, até integram na área geográfica da Fajâzinha. Se o último nome lhe advém de ali se verem patos o segundo nunca se lhe pode atribuir dado que o lugar da Alagoinha é bastante distante dali, ou seja antes dos Lavadouros e logo a seguir ao Pico Agudo e Mateus Pires.

Em criança passei lá várias vezes, nas idas e vindas para uma terra de mato, embora pouco fértil, que meu avô tinha ali perto. Mais tarde lá o fui visitando uma vez ou outra, revelando-o a quem me parecia ter interesse por tão bela maravilha natural, mas sempre o considerei e continuo a considerar como património fajãgrandense e o nome porque sempre o ouvi chamar foi simplesmente pelo “Poço” ou então pelo “Poço do Curralinho”. Hoje é capa de revistas e como que uma espécie de ex-libris da ilha das Flores ou pelo menos da sua orla ocidental.

Na realidade o Poço é de uma beleza rara, sublime, inconfundível e transcendente. Ladeado a Este por uma alta rocha donde brotam inúmeras torrentes de água misturada com socalcos e ravinas revestidas de musgo, de eras e de fetos e nas restantes margens por uma vegetação luxuriante, onde predomina o incenso e a faia, o Poço até como que se atapeta nas suas margens do verde aveludado das ervas e dos arbustos. Povoam-no pássaros que desfazem o silêncio das suas margens com um canto solitário e dolente mas poli fónico e sibilante. O Poço é uma espécie de éden onde o céu se reflecte na água, onde a água se mistura com a terra e onde a terra como que se evapora por entre o verde da floresta até se transformar no silencioso murmúrio das nuvens. Por tudo isso, pelo que era outrora e pelo que permanece hoje, o Poço deveria ser incontestavelmente, pelo menos, a vigésima segunda maravilha natural de Portugal que no passado dia 11 de Setembro ficou perdida ou talvez esquecida entre as vinte e uma apresentadas nas Portas do Mar,em Ponta Delgadae das quais foram seleccionadas as sete melhores, sendo que duas são açorianas – a Lagoa das Sete Cidades e Paisagem Vulcânica da Montanha do Pico. 

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publicado por picodavigia2 às 15:05

O CHORO DO ÚLTIMO BALEEIRO

Sábado, 21.09.13

De quem são aquelas sombras entontecidas e trôpegas, que parecem nuvens gigantes a sulcarem o infinito?

Quem são aqueles vultos entrelaçados entre as distâncias azuladas do horizonte e os escolhos submersos pelas marés cheias?

De quem são aqueles respingos amordaçados e entontecidos, polvilhados com o sabor acre da salmoura, semelhantes a jactos de lava vulcânica, incandescente e destruidora, que caem sobre as ondas moribundas e amordaçam o canto embevecido das gaivotas?

E aquele mar pejado de botes esvaziados de vigor, despejados de baleeiros, de velas enoveladas nos mastros derrubados, à deriva sobre a perene perplexidade das ondas, como se fossem destroços de navios naufragados?

 

Já não se ouve o ribombar do foguete, no alto da vigia, que, assustando os tentilhões açulados pelo amadurecer dos trigais, apontava a senda da esperança que sobrava do rasto repetitivo das baleias.

Já não se ouvem gritos nas madrugadas que buliam em silêncio e os remos, agora, descansam, pausadamente, sobre as caibros das ramadas, em sonolento apodrecer.

O arrear dos botes transformou-se num vaivém de pesadelos e memórias e o içar das velas num hino de aventuras agonizantes.

A força dos remos é agora um suplício paramentado de negro, um sonho castrado, dolente e destruidor, acorrentado às incongruentes vitórias das tempestades.

Outrora atraente, o sabor das marés verteu-se, em vão e sem proveito, sobre o cais deserto, como se fosse lava que secou ao sabor de um Sol, estranhamente, arrefecido.

Sobre os pedregulhos soltos do varadouro, apenas se arrastam ecos de memórias amordaçadas e envoltas no vaivém contínuo das marés.

Porque se não abrem, sobre o mar, aquelas janelas que, mesmo sem cortinas, deixavam esvoaçar as andorinhas e ver o horizonte, e agora, nem permitem sequer vislumbrar o Sol, mesmo que sombrio ou a esconder-se entre o sufoco permanente da montanha?

 

Há dias de sobra e noites de lamento!

Mas há também um tempo desprovido e um espaço impotente, onde não se pode permanecer escondido das mágoas enroladas em velas, da nostalgia suspensa nos remos ou das angústias que cerceavam a segurança do leme.

Não se podem rasgar ou sequer esquecer as aventuras escritas, com remos arquejantes, sobre o reboliço das ondas.

Nem se podem apagar ou cilindrar os sulcos gravados, pelas quilhas dos botes, na braveza do oceano.

O vento acarreta o eco persistente de vozes conhecidas, de gritos encorajadores, semelhantes ao canto das cagarras e aos destroços de navios naufragados.

O mestre, à ré, manda, ordena, grita, implora, aconselha, encoraja, mas sacode, inconsciente, um esparrel apodrecido.

E em pé, à proa, o homem do arpão, atira-o na demanda de espantalhos dissipados.

E os olhos derretem-se em vagas tormentosas, angustiantes, abrutas, semelhantes às ondas do oceano embravecido, desfocando os horizontes para sempre perdidos.

 

A última baleia fugiu, livre e destemida, porque os arpões eram feitos com fios de memórias de um passado glorioso, ornado com sentimentos que o tempo e a distância não conseguiram olvidar.

E agora, enquanto as marés se esvaziam abruptamente, todos os baleeiros se perderam como náufragos, entre o reboliço das ondas e a atrocidade da maresia.

O vento enrolou-os como se fossem pássaros com o rumo desfeito, sentou-os à beira-mar, sobre os baixios, onde há apenas uma história para contar:

 – A história do baleeiro que chorou quando a última baleia se perdeu no horizonte.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:12





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