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A PRAÇA DA MENINA DOS BALÕES

Domingo, 22.09.13

Era uma vez uma menina simples, humilde, delicada e bela, como tantas outras meninas mas, na verdade, não tinha a alegria e a felicidade delas. Os seus olhos, embora carregados de um verde sublime e de um fulgor deslumbrante, escondiam um enorme rastro de tristeza, ocultavam um imenso acervo de mágoa, derramarem um fluxo de lágrimas plangentes, ofuscadas, estranhas e encastoadas numa ansiosa inquietude.

O pai partira há muito e para sempre. A mãe exacerbava-se entre doenças e maleitas e definhava lentamente, amortalhada de sofrimento e consumições. E ela, outrora o “ai Jesus” de um e outro, agora, apesar de criança frágil e débil, exorbitava-se de esforço, imiscuía-se em preocupações e tarefas, na mira de libertar a mãe do sufoco, aliviando-lhe a penúria. 

Todas as manhãs, colocando a melhor roupa que tinha, penteada, limpa e asseada, percorrendo quilómetros, rompendo a escuridão do lusco-fusco, desfazendo o silêncio deserto das ruas, carregada de esperança amarga e de balões multicolores, caminhava na direcção da grande cidade, onde havia uma enorme praça. Era lá que, sentada ou de pé, segurando uma enorme rima de balões, presos a uma cavilha de ferro, com cores, formas e feitios diferentes, os apregoava e vendia, um agora e depois outro, até os vender todos, regressando a casa com os bolsitos abarrotados de moedas.

Ao princípio os clientes rareavam e ela chegava ao fim do dia, apenas com dois ou três balões vendidos. Mas depressa o negócio cresceu e prosperou. Por vezes, ainda a meio da manhã, abandonava a praça, com todos os balões vendidos. O pai, outrora palhaço num circo, ensinara-lhe a arte de enchê-los e com a mãe, vendedora na feira do “Cortiço”, aprendera a sabedoria de bem os apregoar e vender. Mas era sobretudo a persistência da sua graciosidade, o perfume da sua inocência, a empatia da sua presença, a ternura da sua voz e os sonhos escondidos no seu olhar que aliciavam, atraíam e chamavam os clientes, permitindo que vendesse tantos balões quantos transportava para a praça. Crianças, jovens, casais de namorados, homens, mulheres e até velhinhos, todos paravam ali e compravam balões, fascinados pelo encanto da dócil e meiga vendedora, pela simplicidade e deslumbramento daquela inocente e angélica negociante. E a praça, outrora deserta, escura e sinistra, enchia-se, agora, em cada manhã, de sons, de cores, de pessoas e de alegria. A praça que tinha um nome tão estranho e esquisito, o nome de um senhor que ninguém sabia quem fora e alguns nem o sabiam pronunciar, passou a chamar-se, por todos os que a demandavam, “A Praça da Menina dos Balões”.

Mas um dia, numa manhã, cinzenta, escura, amordaçada por uma chuva incomodativa e sacudida por um vento assolador, a menina lá não estava a vender balões. A princípio cuidou-se que fosse do tempo mas, como a menina não viesse no dia seguinte, pensou-se que, talvez, estivesse doente. Mas não estava doente, a menina dos balões, porque passou uma semana, duas semanas, muitas semanas e muitos meses e ela nunca mais voltou a encher a praça com balões, com cores, com sons, com doçura e encantamento. E as pessoas ficaram muito tristes e desoladas porque a menina nunca mais voltou à Praça da Menina dos Balões.

É que naquela manhã, cinzenta, escura, amordaçada por uma chuva incomodativa e sacudida por um vento assolador, a mãe da menina dos balões, assim como o pai, partiu para sempre, deixando-a só. De longe vieram tios, primos e alguns amigos. Falaram, discutiram, opinaram e, por fim, deliberaram, sobre o destino da menina dos balões. O seu futuro, mais conveniente e menos embaraçoso, havia de ser na companhia de uns tios que moravam lá na Serra, bem longe da cidade onde ficava a Praça da Menina dos Balões.

Conta também a história que a menina cresceu, tornou-se ainda mais bela do que em criança, apaixonou-se e casou, evaporando-se por entre os densos nevoeiros da serra, nunca mais voltando à cidade onde ficava a praça que ainda hoje é chamada, por todos o que a demandam “A Praça da Menina dos Balões”  

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publicado por picodavigia2 às 17:48

VEM AÍ OS RUSSOS

Domingo, 22.09.13

O Lúcio arreou a lancha de pesca, agarrou o Baganha, recentemente regressado da Califórnia e que dava umas arranhadelas em inglês, meteu mais dois moços para os remos e abalou pelo mar fora, enquanto no pequeno porto, construído sobre os penedos negros do baixio, onde se haviam remediado algumas escaleiras de cimento, ficava um magote de gente tumultuada e que ali assomara quando se espalhara a notícia de que andavam por ali navios desconhecidos.

O alvoroço porém aumentara significativamente logo que o vigia da baleia, confiando na potência dos seus binóculos, confirmara que os navios eram muitos e tinham bandeira russa:

- Não há dúvida – garantia o Manquinho – toda vermelhinha e com uma foice e um martelo lá no canto superior, do lado de dentro, junto ao mastro, só pode ser russa.

A inquietação aumentou significativamente:

- Outra vez os russos! – Ouvia-se por todos os lados

E a verdade é que até os mais ceguetas podiam enxergar que o Oceano estava pejado de manchas negras, umas mais longe outras mais próximas da ilha. Via-se bem que eram navios de guerra.

Na realidade, a ilha das Flores, bastante afastada das outras ilhas açorianas e tendo apenas como companheira a pequenina ilha do Corvo, era muitas vezes visitada por navios russos, sobretudo depois de terminada a segunda Guerra Mundial e de os Americanos se terem estabelecido na base das Lajes, na ilha Terceira. Virada a poente e como que debruçada sobre o mar, a Fajã Grande – a freguesia mais ocidental da Europa – era, incontestavelmente, o ponto mais estratégico e de confluência da marinha soviética.

A população, amedrontada e assustada com as notícias que os dois únicos rádios existentes na freguesia iam captando, assustava-se e afligia-se cada vez mais. A última notícia tinha chegado há pouco mais de um mês - a da invasão da Hungria. Além disso padre Silvestre não cessava de, aos domingos, proclamar do púlpito que, de acordo com o segredo de Fátima, a “Rússia havia de espalhar os seus erros pelo mundo”. Tudo isto assustava, horrorizava, metia medo!

Naquela tarde de Agosto, mas de um Agosto escaldante como são os meses de Verão ali na Fajã Grande, com o Sol a encafuar-se nas rochas e a refractar-se sobre os velhos telhados do casario, concretizou-se a ameaça.

Para fugir à canícula as mulheres haviam-se resguardado em casa, a remendar roupa ou a tricotar e os homens iam-se arrastando pelas sombras das empenas do casario da Praça e da Casa do Espírito Santo de Baixo.

De repente e como que a despertar de toda aquela reinante letargia ouviu-se um grito, em bando vindo da Fontinha e que deixou em grande aflição mais de metade da freguesia:

- Vêm aí os russos! Vêm aí os russos!

Os homens levantavam-se e partiam em correria para o porto, as mulheres saíam dos seus cardenhos e, com as mãos sobre as sobrancelhas a afastar a cegueira provocada pela intensidade dos raios solares, punham-se a olhar o mar. Muitos procuravam os lugares mais altos a fim de que pudessem ver e avistar melhor o oceano.

Nunca algum navio estrangeiro se aproximara tanto de terra!

Perante a confusão aflitiva e o medo reinante, o Lúcio logo se havia de prontificar para lançar à água a lancha. Na realidade, uma daquelas estranhas embarcações aproximava-se excessivamente de terra e emitia silvos. Como não havia autoridade marítima e o cabo do mar raramente se deslocava das Lajes, o caminho estava aberto ao espírito aventureiro do Lúcio.

A lancha partiu e pouco depois aproximava-se do gigantesco navio cada vez mais próximo de terra, permitindo visionar o seu casco negro povoado de casotas à proa e à ré e com uma enorme torre ao centro. A embarcação aproximara-se tanto, tanto de terra que já se lobrigavam perfeitamente os marinheiros debruçados sobre a borda do convés.

Finalmente a lancha do Lúcio aproximou-se, fez sinais aos homens do navio que, pouco depois baixaram uma escada à qual o Lúcio encostou o pequeno batel. Pouco depois, ele e o Baganha subiram para bordo enquanto os outros seguravam a lancha próximo da embarcação

Um homem alto e esguio, com uma farda acinzentada repleta de divisas nos braços e condecorações no peito recebeu-os de continência, e cumprimentou-os com extrema simpatia, perguntando-lhes se falavam inglês.

Como o Baganha acenasse afirmativamente o homem explicou que andavam em viagem há muito tempo e que lhes faltava comida fresca: batatas, carne e frutas.

- Bem – disse o Júlio para o Baganha – Isso arranja-se já. Agora queremos saber o que nos dão em troca.

O homem não hesitou a responder: whisky, vodka e cigarros.

- Negócio fechado – concluiu o Júlio e acrescentou para uns marinheiros com quem tentava falar por sinais:

- Khrustchev no bom!

- And Salazar too – respondeu um dos marinheiros

Algum tempo depois a lancha do Júlio partia novamente do Porto, carregadinha de batatas, galinhas e fruta, produtos que seriam trocados com os russos por algumas garrafas de wisky, vodka e cigarros, numa perfeita transacção comercial internacional, da qual porém nunca tiveram conhecimento nem as autoridades nem o governo português, nem muito menos Salazar.

Mas a partir daquela tarde o povo deixou de se assustar e preocupar com os navios russos, porque entendeu que afinal a guerra era feita apenas pelos governantes e que o povo esse sim queria era a paz, a amizade, a cooperação e a ajuda recíproca.

Nas águas calmas do Atlântico, a Oeste das Flores, mais concretamente por fora da Fajã Grande, Russos e Portugueses entendiam-se perfeitamente num verdadeiro espírito de paz, entreajuda e solidariedade.

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publicado por picodavigia2 às 17:23

FRASCOS DE XAROPE A SERVIREM DE BIBERÕES E LEITE AQUECIDO EM CIMA DE CANDEEIROS A PETRÓLEO

Domingo, 22.09.13

Muito tiveram que inventar os nossos antepassados! Não apenas no seu dia à dia mas também e sobretudo nos momentos ou ocasiões mais importantes e significativas da sua vida, como eram aquelas em que nascíamos e íamos crescendo, no meio de enormes dificuldades, com excessivas carências, limitadas condições e pouquíssimos meios de conforto e bem estar. Fixemo-nos num pormenor aparentemente muito simples: o dos nossos biberões. Nos tempos em que nos criámos, na década de quarenta, não havia plásticos ou afins e, consequentemente, não existiam biberões com a forma, a qualidade, a performance e a excelência dos actuais. Aliás nem sequer nenhuns biberões de outra coisa qualquer havia e se os houvesse não era possível comprá-los por parte da maioria das famílias da Fajã Grande. Assim, aos nossos progenitores só se proporcionava uma alternativa, a de inventar. Havia que inventar não apenas os biberões mas tudo o resto necessário ao nascimento e ao subsequente crescimento duma criança. Para o nascimento inventou-se a velha do Corvo, que daquela pequenina ilha trazia os meninos numa cestinha. Mas inventar ou arranjar biberões não era assim tão fácil como criar a figura mítica duma velha vinda do Corvo. É que os recipientes de vidro também eram raros e a maioria desadequados, não apenas na forma mas também no tamanho. Imagine-se o que seria dar de mamar a uma simples e inocente criancinha numa garrafa de litro, uma vez que estas eram praticamente as únicas então existentes, resultantes da venda de vinho, aguardente ou licores por parte dos comerciantes. As de cerveja e laranjada eram cilíndricas e muito escorregadias e as de pirolito tinham uma bola no gargalo que impedia a saída do leite.

Sendo assim e perante tais dificuldades e limitações, havia que procurar frascos mais adequados para biberões, noutras paragens, recorrendo-se frequentemente aos frascos de medicamentos, geralmente os dos xaropes, dado que estes eram mais pequenos, ligeiramente achatados e, obviamente, mais adequados a que as frágeis mãozinhas os agarrassem, dado que as mães não tinham muito tempo para os ir segurando durante a mamada. Era pegar e mamar. Assim, recorria-se geralmente aos frascos de xarope Benzodiacol, usados contra a tosse e, por isso existentes em maior quantidade e mais adequados por duas razões: primeiro porque o gargalo onde se enroscava a tampa tinha muitas voltas, sendo assim mais fácil prender a “mamadeira” e, por outro lado, eram bastante espalmados permitindo, assim, ao fedelho segurá-los melhor, enquanto bebia o delicioso, agradável e reconfortante leitinho.

Quanto ao leite, normalmente era fervido num caldeirão próprio, bastante mais pequeno do que os caldeirões de cozinhar. Mas não era possível estar a fervê-lo ou aquecê-lo ao lume sempre que a criancinha tivesse fome. Custava muito acender o lume com garranchos verdes e, ainda por cima, só para aquecer um pingo de leite… Micro-ondas?!... Nem na imaginação ou em sonhos… Daí recorrer-se a algo acessível e fácil mas nem sempre eficiente e eficaz, ou seja, por vezes não se alcançava o objectivo deseja, sendo, nesse caso, “pior a emenda do que o soneto”. Para aquecê-lo colocava-se o leite num pequeno caneco de alumínio e este em cima do fogão de vidro de um candeeiro a petróleo, daqueles que tinham um rendilhado ou uma espécie de flor na parte superior do vidro chaminé. Uma pequena distracção e estava, neste caso em vez do caldo, o leite derramado, com a agravante de sujar e besuntar não apenas o caneco mas também o candeeiro e, muito especialmente o fogão da luz que ficava num estado de sujidade impressionante e que só poderia ser limpo depois de arrefecer.

Tantas eram consumições! Tantas eram as arrelias. Talvez por isso mesmo deixávamos de mamar nos biberões bastante cedo e nos habituávamos a beber o leitinho pelas tigelas de loiça, por canecos de alumínio ou até pelas tampas das latas em que se ordenhavam as vacas. E nem um pingo se derramava!

 

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publicado por picodavigia2 às 17:19





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