PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O TESTAMENTO DO GALO
Quando era criança havia em casa da minha avó apenas um único livro – “Um Resumo da Bíblia”. Porém juntamente com ele existiam quatro manuscritos: As profecias do Bandarra, A Morte de El-rei D. Carlos, A Menina e o Doutor e o Testamento do Galo. É este último que a seguir tento reproduzir.
Chegou finalmente a hora
De eu para o mundo acabar
Já ouvi dizer a minha dona:
“Vai-se hoje o galo matar”.
Já não há quem me console
Nesta minha triste sorte,
Esta noite escreveu-se
A minha sentença de morte.
Já ouvi afiar a faca
Com que me vão degolar
A minha morte hoje é certa,
Dela não posso escapar.
Em nome da benta hora,
Acudam todos e venham ver
O que faz um pobre galo,
Quando está para morrer.
A sentença já está dada,
O remédio é só morrer,
Mas antes que morte chegue
Vou meu testamento fazer.
Quero deixar o que tenho
Da forma que me parecer,
Oiçam pois com atenção
Por que não há tempo a perder.
Será meu testamenteiro
O filho do meu patrão,
A quem deixo p’ra comer
O meu lindo coração.
Deu-me milho com fartura
Quando tinha fome a valer,
Às escondidas de todos,
Sem a própria mãe saber.
Eu não posso não ser ingrato,
Com quem me tratou bem,
Só tenho ódio de morte
À senhora sua mãe.
Ela só me espantava
E não me dava comer.
Agora, ainda por cima,
Sentenciou-me morrer.
Quando vim para esta casa,
Há um ano e pouco mais.
Não julguei que tão depressa
Fossem os meus dias finais.
Tive fama de valente,
Também de bom cantador,
E para as minhas companheiras,
Foi de fama e louvor.
Delas hoje me despeço,
Porque a vida vou perder:
Adeus queridas companheiras,
Não vos tornarei mais a ver.
Apesar de que a minha morte,
Pouco tempo a chorareis,
Assim que houver novo galo
De tudo vos esquecereis.
As galinhas são parecidas,
Com as viuvinhas que o são,
Que já estão namoriscando
Com o marido no caixão.
Por isso logo que chegue
Outro galo à capoeira,
Esquecei por uma vez
Minha morte traiçoeira.
Vivei alegres e cantai
Criai os vossos filhinhos,
Que assim fazem as mulheres
Quando lhes faltam os maridinhos.
Estou muito atribulado,
Na hora da despedida,
Que deixar-vos nesta hora
De certo me custa a vida.
Deixo às minhas companheiras
Por quem tinha mais paixão
A mágoa que me acompanha,
Nesta minha triste separação.
Deixo o meu bico,
Com que eu me defendia,
A quem não se souber defender
Como eu tão bem o fazia.
Deixo o meu bigode,
Por ser coisa de respeito,
A quem o souber usar
Mas que o uso com jeito.
Deixo o meu olho direito,
Onde eu tinha o meu valor,
A quem tiver dificuldade
Em ser bom atirador.
Deixo a minha crista
Que é bem avermelhada
A alguma viuvinha
Que ande bem amortalhada.
Deixo os meus brincos
Às raparigas casadas
Para que amem os maridos,
Nunca fiquem abandonadas.
Deixo o meu pescoço
Que vem agarrado ao bico
A qualquer moço solteiro,
Para encabar um pico.
Deixo as penas da cabeça,
Por serem um pouco cadete,
A quem não tenha juízo
E delas faça um capacete.
Deixo o meu papo
Que ainda está cheio de milho
Para tornar mais rijo e forte
Quem quiser já ter um filho.
Deixo a pena do meu corpo,
Aquela que for mais curta
A um maestro de música,
Para que faça uma batuta.
Deixo os meus esporões
Que são duros como um pico
A quem precisar deles
Para picar o seu jerico.
E se por acaso desprezarem
Os conselhos que vos dou
Brevemente vos vereis
No estado em que eu estou.
Um conselho mais vos dou
E vos falo bem sizudo
Que fujais quanto puderdes
Dos três dias de Entrudo.
Erguei-vos de madrugada
E a casa não volteis
Ficai estes dias de fora
E para a Quaresma vireis.
E se virdes que há doença,
Vede lá como andais
Que também vos filham
Quando menos o cuidais.
Daqui a sete semanas
Quando entrar o mês de Abril
Eu já estou adivinhando
Que morrereis mais de mil.
E aqueles que escaparem
Alegres passem os dias,
Retirais-vos quando puderdes
Da função destes três dias.
Afirmai e vede bem
Esta cor da minha crista,
Parece que é a última vez
Que em cima lhe pondes a vista.
Já que falei em conselhos
Mais alguns quero dizer
Pois há na vida de um galo
Muita coisa a aprender.
Rapaziada da borga
Não vos fieis em cantigas
Que as raparigas songas
São as que vos fazem figas.
Procurai sempre as alegres,
As que são mais galhofeiras
São sérias quando se casam
E advertidas em solteiras.