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VANGLÓRIA

Sábado, 28.09.13

Quando terminei o longo e penoso estágio pedagógico de dois anos convenci-me de que se não era o melhor professor do mundo, pelo menos andaria lá por perto.

Agora é que ia ser! As aulas que eu preparava com um zelo desmesurado e com um cuidado meticuloso, iam decorrer com uma qualidade de se lhe tirar o chapéu e com uma performance de alto gabarito. Sonhava ainda que aquele verniz com que havia sido, pedagogicamente, borrifado durante o estágio, já mais havia de se diluir e eu continuaria assim, perpetuamente, uma espécie de professor embalsamado numa auréola de prestígio pessoal e de dignificação profissional da carreira docente.

Iniciava as aulas convencido de que tudo corria bem e de que motivava os alunos da melhor forma, a fim de que estivessem sempre atentos e fizessem com dignidade, interesse e proveito os trabalhos propostos, o que, inevitavelmente, se havia de reflectir, de forma muito positiva, nas suas aprendizagens. Além disso, cuidava eu que via e que dominava tudo o que acontecia dentro da aula, onde nada, mas mesmo nada, ali ocorreria sem ser do meu conhecimento e, caso se justificasse, ter a minha pronta, eficiente e, pedagogicamente, adequada intervenção.

Certo dia leccionando uma aula de Português que eu destinara a aperfeiçoamento e correcção de texto e que exigia da minha parte grande atenção para com o que se passava no quadro, lá ia, como de costume, olhando, com alguma frequência, para os alunos, na tentativa de que não acontecesse nada de anormal.

A aula decorreu bastante bem e, a muito custo, lá lhes consegui impingir os conteúdos que eu havia programado, cuidando que os objectivos propostos haviam sido atingidos em plenitude.

E eis se não quando, terminada aula, um garoto de palmo e meio, mas muito esperto e desembaraçado, postou-se frente à minha secretária e, ziguezagueando a mão esquerda em frente ao rosto, afirmou com um misto de gozo e regozijo:

- Eu comi um pão com queijo, inteirinho, durante a aula e o professor não viu nada!

Toda a turma confirmou a veracidade do que o fedelho afirmava com uma enorme gargalhada, enquanto eu ficava estarrecido e com cara de parvo a olhar para ele e a sentir o início do desmoronar daquela espécie de castelo de cartas que me haviam impingido durante os dois anos do tal longo e penoso estágio pedagógico.

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publicado por picodavigia2 às 21:29

SIMBAD

Sábado, 28.09.13

(INSPIRADO NUM CONTO TRADICIONAL ÁRABE)

 

Nos dias de Harun al-Rashid, califa de Bagdá, vivia nesta cidade um pobre carregador. Certo dia, o carregador decidiu fazer uma pausa no seu árduo trabalho para descansar, sentando-se junto à casa de um rico comerciante que havia na cidade. Começou, então, a barafustar, em voz alta contra a injustiça do mundo, que permitia que ele fosse um pobre miserável e que o dono daquela casa fosse tão rico. Ao escutar estes lamentos, o comerciante pediu aos criados que lhe trouxessem o pobre carregador para dentro de casa. Depois de se apresentarem um ao outro, descobriram que, por mera coincidência, ambos se chamavam-se Simbad. O Simbad rico contou, então, ao Simbad carregador que também já fora pobre como ele e que se tornou rico por "fortuna e destino", dispondo-se a contar-lhe a história das suas maravilhosas viagens, durante as quais adquiriu toda a sua fortuna.

Começou, então, por contar que, após dilapidar toda a riqueza que recebeu de herança de seu pai, a qual investiu comprando mercadorias, decidiu tentar a sua sorte como comerciante num navio que saiu do porto de al-Basra, com destino ao Oriente. Após uns dias de viagem, o navio aportou numa ilha, que na verdade se revelava ser uma gigantesca baleia adormecida, em cujo dorso cresciam árvores. Passado algum tempo depois de ali chegar, a baleia acordou, devido a uma fogueira acesa sobre ela pelos marinheiros, e, em seguida, mergulhou, desaparecendo nas profundezas do oceano. Na confusão, o navio em que viajava naufragou, deixando-o sozinho no mar, agarrado a uma tina de madeira. Após algum tempo à deriva no oceano, foi parar a uma ilha coberta de exuberante vegetação. Explorando-a, encontrou um serviçal do rei local e ajudou-o a salvar a égua do soberano, evitando que esta se afogasse e fosse levada por um cavalo misterioso que vivia debaixo d'água. Isto fez com que o rei daquela ilha se tornasse seu amigo e, assim, ele, Simbad, passou a ser um dos membros favoritos da corte real.

Um dia, chegou à ilha o navio no qual Simbad havia partido em viagem e ele recuperou sua mercadoria. Decidiu, então, abandonar a ilha, mas antes recebeu ricos presentes do rei. O navio viajou em direcção à Índia, onde Simbad desembarcou e onde fez grandes negócios, e ao retornar, de seguida, a Bagdá, conseguiu grande lucro ao negociar as mercadorias que trouxera do Oriente.

Ao terminar o relato da sua vida, Simbad deu ao carregador 100 moedas de ouro, e pediu-lhe que, no dia seguinte, voltasse a sua casa, a fim de escutar o resto da história da sua vida.

Assim fez o carregador e, no dia seguinte, o rico comerciante continuou a sua narrativa. Contou, então, que, apesar de ter juntado muita riqueza e de levar uma vida de diversão, ainda sentiu vontade de viajar, novamente, pelo mundo, por isso, embarcou noutra aventura comercial, e, acidentalmente, voltou a ser abandonado numa ilha pelos seus companheiros de viagem. Explorando a ilha, Simbad encontrou um enorme objecto, liso e arredondado, que descobriu ser um ovo de um pássaro fabuloso e gigantesco. Pouco depois, o pássaro retornou ao ninho mas não dando pela presença de Simbad, que usando o seu turbante, atou-se à pata do animal, na esperança de fugir daquela ilha deserta e ser levado para um lugar habitado. A ave levantou voo transportando o jovem aventureiro até um vale coberto de diamantes mas habitado por monstruosas serpentes que serviam de alimento aos pássaros. Simbad soltou-se e ficou sozinho no vale, no meio das serpentes, mas logo descobriu uma forma de escapar. É que para conseguir os diamantes que proliferavam naquele vale inacessível, os habitantes da ilha atiravam grandes pedaços de carne para o fundo do vale, a fim de que fossem agarrados pelas aves enormes que os levam aos seus ninhos. Assim, alguns diamantes ficavam agarrados aos pedaços de carne, o que permitia que fossem recuperados pelos homens. Ao ver isto, Simbad também amarrou um pedaço de carne ao seu corpo e, ao ser levado para fora do vale por uma das aves gigantes, trouxe consigo muitos diamantes. Resgatado do ninho por um mercador, voltou a Bagdá, desta feita possuindo uma fortuna em diamantes.

Mas a sua ânsia por novas aventuras, continuou Simbad, não ficou por aqui e, passado algum tempo, zarpou de Baçorá, numa nova expedição. Os ventos levaram o barco em que navegava a uma ilha habitada por homens peludos como macacos, que tomaram o barco e o abandonaram numa outra ilha. Colocados nessa ilha, Simbad e os outros marinheiros chegaram a um palácio habitado por um gigante com forma de homem, pele negra, olhos vermelhos como brasas, uma boca enorme como a de um camelo com longos dentes, orelhas como as de um elefante e longas garras como as das feras. O monstro começou a devorar a tripulação, começando pelo capitão, que era o mais gordo, assando-o na brasa. Simbad, juntamente com os companheiros, inventou nova estratégia para escapar à fúria daquele abutre. Para tal, construíram uma jangada e, quando o monstro dormia, furaram-lhe os olhos com os espetos que ele usava para assar sua comida. Cego e furioso, o gigante saiu do palácio, mas os homens fugiram a tempo, correndo para praia e fugiram na jangada que haviam construído. Após algum tempo de viagem, chegaram a outra ilha, na qual encontraram uma serpente gigante e feroz que comeu todos os companheiros de Simbad, deixando-o sozinho. Apesar de só, Simbab conseguiu ser resgatado pelo mesmo navio, que o havia abandonado na ilha, durante a segunda viagem. Assim conseguiu recuperar a sua mercadoria e voltar a Bagdá ainda mais rico.

Na sua quarta viagem, prosseguiu Simbab, impelido novamente pela sua ânsia de aventura, embarcou num navio que, pouco depois naufrago. Os náufragos foram parar a uma ilha, na qual se confrontaram com selvagens nus e canibais que lhes dão para comer ervas com o poder de enlouquecer os que as provassem, para que depois os comessem. O único que não comeu ervas foi Simbad, que assim conseguiu escapar, sendo transportado e salvo por um grupo de colectores de pimenta de uma ilha, vizinha. Ali, Simbad travou amizade com o rei local que lhe deu como esposa uma bela e rica mulher.

Permanecendo nessa ilha algum tempo, Simbad teve conhecimento de um peculiar costume local, segundo o qual, após a morte de um esposo, o viúvo ou viúva devia ser enterrado vivo com o companheiro ou companheira, sendo ambos vestidos com as melhores roupas e os mais ricos vestidos. A mulher de Simbad adoeceu e morreu, pouco depois, sendo ele Simbad, seu esposo, encerrado vivo numa enorme caverna subterrânea - uma tumba comunitária - com um jarro de água e sete pães. Na altura em que lhe faltou a comida, foi lançado na caverna um cadáver de homem e, juntamente com ele a respectiva viúva é jogada. Simbad pegou no fémur de um cadáver e com ele atacou a  viúva matando-a. De seguida e apoderou-se de sua água e da sua comida e assim sobreviveu mais alguns dias.

Ao longo do tempo, Simbad foi matando outros condenados e apoderando-se da água, do pão e das jóias que os corpos levavam, sem, no entanto, conseguir uma maneira de escapar. Mas um dia, apareceu por ali um animal não-identificado que o guiou até uma saída. Já no exterior, Simbad foi resgatado por um navio que passava por ali e que, após completar a viagem pelo Sudeste da Ásia, o levou até Bagdá, onde regressou riquíssimo.

Passado algum tempo, regressou ao mar. O navio em que viajava Simbad passou junto a uma ilha deserta, onde a tripulação encontrou um ovo gigantesco, que Simbad reconheceu ser de um roca. Os marinheiros, para examinar melhor o ovo, partem-no e comem o filhote que estava por nascer. Simbad, assustado pelo que fizéramos seus colegas, pede-lhes que voltem ao navio, mas as aves gigantes furiosas, apareceram e fizeram rolar enormes rochas sobre o navio, afundando-o. Simbad conseguiu escapar, sendo levado para uma ilha, onde encontro o Velho Homem do Mar, que o torna seu escravo. Uma criatura estranha aproximou-se de Simbad e, colocando-se sobre os seus ombros, aperta-lhe o pescoço com suas pernas, que assumem a forma de ramos secos e impedem Simbad de desvencilhar-se. Passados dias, Simbad, usando, mais uma vez a sua astúcia, preparou uma bebida com vinho e convenceu o Velho do Mar a bebê-la, o qual, logo a seguir, caiu bêbado, permitindo a Simbad matá-lo. Embarcando em outro navio, Simbad foi levado à cidade dos macacos, onde população passavs as noites em barcos no mar, com medo dos macacos que, todos os dias, invadiam a cidade após o pôr-do-sol, matando os homens que encontravam. Simbad recuperou as suas riquezas e, eventualmente, regressou a Bagdá.

Na sua sexta viagem, Simbad e os seus companheiros sofreram, de novo, um naufrágio, pois o navio em que navegavam esbarrou contra uma alta falésia. Assim Simbad e os outros marinheiros foram parar a uma terra onde não havia nenhum tipo de comida, por isso começaram a morrer de fome, uns atrás dos outros. Apenas Simbad sobreviveu. Nessa altura descobriu um rio que corria por dentro da falésia e construiu uma balsa, usando-a para navegar através do rio, salvando-se. Mas o rio, para além de estar coberto de pedras preciosas, levou Simbad até uma cidade do reino de Serendib, na qual os rios estavam cheios de diamantes e os vales de pérolas. O rei local impressionou-se com os relatos que Simbad faz de al-Rashid, e decidiu dar-lhe vários presentes, entre os quais uma taça esculpida numa única pedra de rubi, uma cama feita da pele de uma serpente que havia engolido um elefante, e uma linda e bela escrava. Simbad voltou para Badgá com os presentes, riquíssimo.

Simbad ainda fez mais uma viagem, mas o navio em que viajava navegando voltou a naufragar. Desta vez, foram três monstruosos peixes que atacaram e destruíram o navio. Simbad foi parar a uma numa ilha, onde travou amizade com o mais importante mercador dessa ilha. Travaram amizade e, passado algum tempo Simbad casou com a filha do mercador, que morreu pouco depois, tornando-se, assim, Simbad o seu herdeiro. Simbad viveu feliz, na ilha, com a esposa até que, um dia, descobriu que os homens daquele lugar passavam por uma estranha transformação, dado que, uma vez por mês lhes cresciam asas e voavam até o céu, retornando depois. Intrigado, Simbad convenceu um deles para que o carregasse no voo que fizesse e, no mês seguinte, Simbad é levado ao céu por um dos homens alados. Lá no alto, Simbad viu anjos que cantavam louvores a Alá. Emocionado, Simbad exclama "Glória a Deus!", o que irritou enormemente os homens alados, que, assim, conseguiram abandona o cimo da montanha, onde se encontrava. Deixado sozinho, Simbad encontrou dois adoradores do Senhor, que lhe entregam uma bengala de ouro a qual utilizou, no regresso, para libertar um homem que estava a ser atacado por uma serpente gigante. Após isto, Simbad conseguiu voltar à cidade, onde teve conhecimento, pela mulher, que os homens alados pertenciam a uma raça de demónios, mas que ela e seu falecido pai são pessoas normais. Simbad decide, então, abandonar a ilha, partindo com sua mulher numa longa viagem pelos portos da Ásia. Esta viagem, a última que Simbad realizou, durou vinte e sete anos, findos os quais, Simbad regressou a Bagdá. Desta vez, renunciou, definitivamente, às aventuras no mar, arrependido de tantas vezes ter desafiado a sorte e arriscado a vida.

No final de seu relato, Simbad, o comerciante rico, ordenou que dessem mil moedas de ouro a Simbad pobre, dizendo-lhe:

"Não vês que alguém que superou tantas provações merece agora uma vida despreocupada?",

Simbad o pobre respondeu:

"Certamente mereces o ócio e o bem-estar. Vive em paz, e que cada instante te traga a felicidade!".

Agradecendo o ouro que lhe fora dado, Simbad, o carregador, prometeu que havia de tornar-se, ele mesmo, um grandioso mercador.

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publicado por picodavigia2 às 16:49

“COMO-TE VIVO”

Sábado, 28.09.13

Meu pai era um homem pacífico, pacato, ordeiro e trabalhador. Nunca se metia na vida dos outros e raramente falava mal de alguém. Passava os dias a trabalhar, poucas vezes se sentava à Praça e, quando o fazia, era apenas para descansar, “falquejar” e, por vezes, até para dormitar. Apesar de pobre e humilde granjeava o respeito de todos e a amizade de muitos. Além disso, todas estas qualidades se acentuaram após a prematura morte da minha mãe, altura a partir da qual o meu progenitor, causticado pela sorte e estigmatizado pelo destino, se tornou ainda mais melancólico, nostálgico e taciturno.

Certo dia, ao amanhecer, antes de partirmos para o Pocestinho para cortar e acarretar para o caminho uma carrada de lenha, decidiu-se por ir buscar um molho de milheiros ao cerrado do Mimoio. O curral do porco estava a abarrotar de lama, sujidade e imundície e o tempo das matanças aproximava-se. Para que o carrego fosse maior decidiu-se a levar-nos com ele: eu e os meus dois irmãos mais velhos.

Carregados de luto, saímos de casa ao lusco-fusco, descemos a Assomada, passámos à Praça e transpusemos as primeiras casas da Fontinha, na demanda da Canada do Mimoio. À frente eu e o António, mais afoitos e desembaraçados. Atrás o José mais vagaroso e arrevesado. Meu pai seguia no meio.

No cimo da ladeira da Fonte Velha, deparámo-nos com o Coelho estancado ao portão de casa. Meu pai, seguindo o seu caminho, sem nem sequer olhar para ele, saudou-o delicadamente:

- Isso é que levantar cedo!

O Coelho, sem delongas, ripostou:

- Ó grande bandalho! O que é que tens a ver como a minha vida? Mete-te na tua que tens sarna para te coçar.

Meu pai parou uns segundos, hesitou, mas seguiu o seu caminho. O Coelho, porém, insistiu mais veementemente:

- És um sanabicha, um preguiçoso. Se não fosse as terras que teus irmãos te deixaram não tinhas onde cair morto!

Meu pai parou novamente e, desta feita, voltou-se e olhou-o em tom ameaçador, mas continuou a caminhada. Nós cheios de medo.

Mas o Coelho sem mais de longas, aumentando o tom de voz e a indignidade dos impropérios, disparou:

- És um grande sabagana e um grande preguiçoso. Passas os dias sentado à Praça, sem fazer nada.

Meu pai não se conteve. Voltou-se num de repente, aproximou-se do portão, pegou no Coelho pelos ombros, levantou-o e sacudiu no ar, empurrando-o, de seguida, para dentro do pátio. Depois, fechando o portão com ímpeto desusado, gritou-lhe de cima do muro, em alto e bom som, enquanto nós assustadíssimos nos escondíamos atrás da Casa do Candonga:

- Ó alma do diabo! Se ao passares por mim me diriges a palavra mais alguma vez eu como-te vivo.

E, incentivando-nos a continuar a caminhada, retomou a subida da Fontinha, enquanto a Coelha, lá ao fundo, levantando uma ponta da cortina, com ar amedrontado, espreitava por dentro da janela.

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publicado por picodavigia2 às 09:55

O CAMBULHÃO

Sábado, 28.09.13

O ano fora forte em milhos. Chuvas gratificantes em Agosto e um Setembro soalheiro haviam transformado o cerrado do Picanço, no Areal, numa safra de bonança. A apanha do milho, iniciada alta madrugada, prolongou-se por toda a manhã, terminando, apenas, ao meio dia. Carros e caros de bois, estacados à porta do Picanço, a abarrotar-lhe a cozinha de maçarocas graúdas, recheadas de grãos suculentos. Uma riqueza! Um pecúlio como há muito não havia memória!

De tarde era a hora de encambulhar. Sentados em pequenos bancos ou sobre cestos virados com o fundo para cima, formaram círculo ao redor daquela espécie de pirâmide de maçarocas, o Picanço, a mulher, os filhos, uns parentes mais próximos, alguns amigos e um ou outro vizinho. A Engrácia, a filha do Mendonça, é que também não quis faltar, aparecendo de surpresa. Vinha oferecer os seus fracos e míseros préstimos. Mas, até era muito bem-vinda. Por parte do velho Picanço que via nela mais uma ajuda benfazeja e primorosa, por parte do filho mais novo, o Chico, que desde há muito, à sorrelfa, lhe andava a catrapiscar o olho.

Mal entrou Engrácia, levantou-se o Chico, muito solícito e mais apaixonado do que interessado na ajuda que a moça consubstanciava. Trouxe-lhe um banquinho e sentou-a a seu lado, partilhando não apenas os baraços de espadana com que se haviam de amarrar os cambulhões, mas também atirando-lhe olhares comprometedores, sussurrando-lhe disfarçados galanteios e até, provocando, propositadamente, um ou outro roçar de joelhos, camuflado pelo permanente arrepanhar das cascas das maçarocas. Não era bonita a Engrácia, mas era bela e encantadora. Não era linda, mas era fascinante e atraente. O rosto salpicado, junto aos olhos, por aglomerados de sardas que se iam dispersando e diluindo ao longo das faces, não era angélico mas revelava-se encantador e, delirantemente, sublime, por quanto, estampado numa espécie de esquelética agressividade, consubstanciava um encanto impar e uma fascinação invulgar. E ele, com o cabelo levemente acastanhado a sombrear-lhe a profundeza do olhar, impunha-se com uma rigidez cativante, atlética e com uma magnanimidade, inebriantemente, sedutora. Amavam-se sem, no entanto, o confessarem.

A safra do encambulho não parava e o monte, inicialmente desenhado pirâmide transformara-se, a meio da tarde, numa espécie de mastaba e esta, algum tempo depois, em eira. Se os fios de espadana rareavam, o Chico, na mira de aumentar o pecúlio dos atilhos, levantava-se e a moça não tirava os olhos dele. Voltava a sentar-se e, ao puxar do monte uma maçaroca, descambava sobre os ombros da moçoila, já inclinada, como que a adivinhar-lhe o enlevo. Apenas a Josefina – uma alcoviteira assumida, que não tirava o olho deles – impedia que olhares, toques e gracejos desandassem e se transformassem em requebros mais íntimos e comprometedores.

A tarde chegava ao fim e o monte das maçarocas era agora um eirado, derramado sobre o velho e carcomido soalho da cozinha. O velho Picanço, apercebendo-se que se aproximava o princípio do fim de tão farta azáfama, deu ordens. Era o Chico que havia de ir pendurar os cambulhões no estaleiro. Mas que o fizesse com cuidado; maçarocas bem apinhadas e com a casca mais grossa bem veadinha para fora. Era necessário proteger os grãos indefesos da chuva e do gorgulho. Aos mais novos e afoitos competia ajudar no carrego e transporte dos cambulhões para junto do estaleiro. Alguém havia de os “alcançar” ao Chico, quando encavalitado nas ripas do estaleiro ou pendurado numa escada anexa.

Engrácia, vermelha que nem um pero, ofereceu-se, de imediato. Se era o Chico a pendurar os cambulhões havia de ser ela a ajudá-lo. E ao aproximar-se do estaleiro, já ao lusco-fusco, ao alcançar-lhe o primeiro cambulhão, despendeu-o das mãos, simuladamente desajeitadas, deixando que o dito cujo se estatelasse no chão. Sempre solícito e adivinhando-lhe o intento, o Chico baixou-se para ajudá-la. Ao erguerem-se, fizeram-no tão ajeitadamente, que os seus rostos emparelhados se colaram num sufoco terno e emocionante, selando uma indelével paixão.

Entre choros e soluços, meses depois, era o Chico a partir para a América e a Engrácia, aflita e conturbada, com o coração despedaçado. No primeiro ano não havia vapor que não trouxesse carta do Chico e não havia carta que não viesse carregada de promessas e juras amor. No segundo as cartas rareavam e as promessas e juras esquecidas e, ao fim de três anos, o Chico já nem lhe escrevia. A Engrácia, no entanto, só e amortalhada, retinha dele um enorme e indelével amor, consubstanciado na memória permanente daquele cambulhão, caído propositadamente do estaleiro do velho Picanço, no escuro da noite daquele dia em que fora ajudar a encambulhar o milho do Picanço.

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publicado por picodavigia2 às 09:47





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