PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
INCÊNDIO
labaredas
fulvas,
atiçadas,
em catadupa,
contra árvores
preludiais,
desprevenidas
um sopro impossível
a apagá-las
…cinzas
faúlhas
e pó
terra ressequida,
morta
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ROSAS BRANCAS
A noite estava escura e do céu caíam flocos de neve que aos poucos iam atapetando o chão, transformando a verde alfombra num gigantesco e esbranquiçado tapete.
Joana há muito que se refugiara na cabana. No inverno, a noite caía bem mais cedo e naquela tarde, o frio descambara sobre os montes, sem dó nem piedade, mais violento, mais agressivo e mais abrupto. As ovelhas, que durante a manhã e uma boa parte da tarde haviam pastado, famintas, as ervinhas verdes e apetitosas, manifestaram, ao fim da tarde, uma enorme vontade de se recolherem, de se enfiarem dentro da cabana, de se enrolarem e enroscarem umas nas outras, protegendo-se do forte nevão que os flocos de neve caídos ao relento, anunciavam aproximar-se, cada vez com mais evidência. Até o Fiel, o seu amigo e companheiro de pastorícia, se apressara a enfiar-se porta dentro e enroscar-se junto ao brasido que Joana, num dos cantos da cabana, acabara de acender. Tirou o leite à “Danada”, migou-lhe uns pedaços de pão e repartiu o cardápio com o Fiel. Pouco depois, espreguiçando os braços como que a convidar e a abraçar o sono, repartiu o feno pelas ovelhas, despediu-se delas, uma a uma e deitou-se sobre uns montículos de bracéu, embrulhando-se num velho e grosso cobertor de papa.
Todos os dias repetia este ritual, embora, noites frias como aquela rareassem. A mãe, há muito que falecera e o pai, pobre, doente, sem eira nem beira, tinha nela e na guarda do pequeno rebanho que pastoreava nos montes contíguos à aldeia, os proventos que lhe adocicavam, levemente, uma existência dolorosa, sofredora, quase mesmo angustiante.
Nos primeiros tempos, após a morte da mãe, o pai, ocupado durante o dia no cultivo duma pequena courela, junto de casa, apenas à noite, abandonava o povoado e subia as íngremes encostas dos montes, levando-lhe o pão, ensinando-a na ordenha e no fabrico dos queijos, pernoitando, ele próprio na cabana para que a menina se habituasse, de futuro, àquele ermitério. De manhã, ainda lusco que fusco, descia a encosta, umas vezes com um queijo que ia vendendo na aldeia, outras, apesar do choro e dos protestos de Joana, com um cordeirinho que, eventualmente, algum lavrador mais abastado lhe encomendava. Joana ficava só, durante o dia, ansiando pela noite e pela companhia do pai. A doença, no entanto, fora galopando assustadoramente. A petiza compreendera. As visitas do progenitor começaram a rarear durante uns meses, passados os quais cessaram por completo. Agora já se habituara a ficar sozinha, com o Fiel, o seu amigo e companheiro de sempre e com as suas ovelhas. Apenas desejava que a morte, impiedosa e cruel, não levasse o pai como fizera com a mãe, era ela ainda uma criança.
Aos poucos Joana habituara-se aquela vida de solidão, de isolamento, de afastamento do povoado. Ao seu redor, para além da frescura e singeleza dos campos, do vigor e serenidade dos ares, do silêncio eloquente das madrugadas e do vento a confundir-lhe os desejos, tinha a amizade de cada uma das suas ovelhas e a protecção do Fiel. Conhecia as ovelhas uma a uma, chamava-as pelo nome, dialogava como elas como se fossem pessoas e tinha a firme certeza que elas a entendiam. Mas era o Fiel, um portentoso e meigo pastor alemão, o seu grande amigo e destemido protector.
Naquela noite, porém, uma enorme nostalgia perfurava-lhe o espírito e uma tremenda angústia trespassava-lhe o peito. Não adormecia. Revoltava-se sobre a palha, enrolava-se mais no cobertor e sobressaltava-se com o menor ruído. De repente, ouviu um barulho mais forte e prolongado. Erguendo-se, escutou mais atentamente. Pareciam-lhe passos, mas passos leves, suaves, sublimes, dir-se-ia, deliciosos. Tão afáveis e doces que nem o Fiel deles se havia apercebido. Aproximou-se, apreensiva, da única fresta que a cabana possuía e viu que desciam, em rancho, entre cânticos de glória e de louvor, um grupo de pastores e os três Reis Magos. Foi então que se lembrou que aquela era a noite de Natal. Os pastores e os reis, decerto, que se dirigiam, apressadamente, para o estábulo onde Jesus acabara de nascer e onde estaria em palhas deitado, junto de Maria e José. Os pastores levavam presentes simples e pobres mas generosos. Os três Reis Magos, levavam ricas ofertas: ouro, incenso e mirra.
Joana, apressada e sem que o Fiel desse por nada, pegou num cordeirinho que nascera dias antes. Assim como os outros pastores, levá-lo-ia ao Menino Jesus. No entanto, a mãe, apercebendo-se de que lhe era retirado o filhote, entrou num berreiro desolado, triste e sofredor. Joana entendeu, de imediato, que não podia, nem devia levá-lo retirando-o da pobre mãe. O Menino Jesus, decerto não exigia tal sacrifício à sua querida ovelhinha. Mas o que havia de levar se não tinha mais nada? Agasalhou-se, abriu a porta e saiu, cuidando que no exterior da cabana havia de encontrar algumas flores. O chão porém estava coberto de neve branca e nem uma flor se via. Desesperada, na ânsia de se juntar ao rancho dos pastores e aos Reis Magos, Joana arrancou do chão uma mão cheia dos primeiros arbustos que encontrou, cujas folhas estavam cobertas de neve e largou numa correria louca, na senda da gruta.
Ao chegar junto da gruta, donde emanava uma luz brilhante e resplandecia um brilho acariciador, Joana ficou muito triste. Os Reis e todos os outros pastores de joelhos diante do Menino, de Sua Mãe e de São José, estavam muito contentes e felizes pois todos haviam oferecido os seus presentes. Ela não tinha nada para oferecer ao Menino Jesus, a não ser aqueles pequenos arbustos, cobertas de neve. Começou a chorar. De repente, um anjo, que descera sobre a gruta, ao ver tamanha tristeza misturada com tão sublime inocência, passou junto de Joana e, enquanto as suas lágrimas caíam na terra gelada, tocando-lhe ao de leve com a brancura das suas asas, transformou os pequenos arbustos em lindas rosas brancas, que Joana, com o coração carregado de alegria e felicidade, ofereceu ao Menino Jesus.
Na manhã seguinte, ainda noite escura, bateram à porta da cabana, onde Joana dormia. O Fiel, sempre atento e vigilante, latiu. Joana acordou. Veio abrir. Era o pai! Estava melhor. Trazia uma cestinha com doces e vinha passar o dia de Natal com ela.
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VIDA
“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.”
Charles Chaplin
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OS BOIS SEM RABO
Um dos maiores, mais sórdidos e mais terríveis crimes cometidos na Fajã Grande, ao longo do seu historial, foi o do corte dos rabos de uma junta de bois que pertenciam precisamente ao meu avô materno. Era uma junta de bravos e valentes bois de trabalho, que passavam os dias a puxar o arado de ferro, a grade, o arado de pau, o corsão ou o carro e dormiam à noite, geralmente no palheiro, a fim de serem protegidos de eventuais doenças resultantes de esfriamentos subsequentes a um exaustivo cansaço, a uma árdua e persistente labuta diária.
Certo dia em que não trabalharam e em que, por conseguinte, não estavam fatigados, foram deixados, durante a noite, no cerrado das Furnas, a alimentarem-se de uns restos de couves e milho. Era uma noite fresca, de verão. Os animais necessitavam, ao menos por um dia, de repouso, descanso e de serem protegidos do calor e do bafio do palheiro. De manhã, quando alguém os foi recolher, a fim de iniciarem mais um dia de trabalho, um e outro dos bois tinha o rabo cortado. O crime tornou-se ainda mais horrendo, repelente e hediondo, atingindo mesmo a fronteira do sacrílego, porque os rabos dos bois foram amarrados e içados no pau da bandeira da Casa de Espírito Santo de Baixo.
Nunca se soube se este mísero, repugnante e condenável acto foi praticado por vingança, se por inveja ou se pura e simplesmente por mero prazer sádico ou divertimento estúpido, como também nunca se soube quem foi ou quem foram os seus executantes, nem os seus mandantes, se é que os houve. Foram indigitados vários suspeitos e o caso arrastou-se pelo tribunal de Santa Cruz ao longo de meses e anos, mas, e dado que as investigações judiciais, à altura e na ilha das Flores, eram muito limitadas, nunca foram encontradas provas que indiciassem os criminosos e, por conseguinte, o caso nunca foi julgado e os prevaricadores nunca foram condenados. Talvez se tivesse havido maior empenhamento por parte das autoridades de então, se as investigações tivessem sido mais exigentes e profundas e se não houvesse aparente e simulada intenção de poupar alguém, ter-se-iam descoberto os responsáveis. A arma do crime terá sido uma tesoura de cortar lata e, na altura, existiam poucas na Fajã Grande.
Consta que o estado em que os animais se encontraram era simplesmente horroroso, arrepiante e consternador: mugiam em altos brados, soltavam aulidos angustiantes, berravam desalmadamente, saltavam abespinhadamente e rebolavam-se no chão como se estivessem loucos. Numa palavra o seu desespero era tal e tão grande que tiveram que ser abatidos, logo após serem encontrados naquele lastimável estado.
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OS CAPITÃES FREITAS HENRIQUES
António de Freitas Henriques foi um dos mais conhecidos e destacados capitães da ilha das Flores, no século XVIII. Tal como no arquipélago da Madeira, os Açores eram, á altura, administrados ou governados por um sistema de capitanias, lideradas por um capitão donatário. O capitão-donatário ou capitão do donatário era um cargo criado nas ilhas atlânticas e a quem cabia a representação dos interesses do donatário, ou seja da personalidade a quem o rei doava a ilha ou apenas uma sua parte, garantindo os seus proventos e a administrando os seus bens. Serviam ainda de interlocutor entre as populações e o donatário. Para os ajudar tinha nas diversas localidades da ilha um capitão através do qual se fazia representar.
António Freitas Henriques, nascido na Fajã Grande a 30 de Março de 1721 foi capitão na Fajã Grande entre 1751 e 1770, ano em que faleceu. Era filho do capitão Gaspar Henriques Coelho e de Francisca Rodrigues. Naturalmente por ser capitão teve o privilégio, apesar de na altura a paróquia das Fajãs ter a sua sede na Fajãzinha, de realizar o seu casamento na antiga e primitiva ermida de São José da Fajã Grande que estaria ligada à sua residência por uma ponte. O casamento com Maria de Freitas realizou-se no dia 5 de Maio de 1760 e o registo obrigatoriamente foi feito na antiga paróquia das Fajãs e, por isso, consta nos livros de registo da Fajãzinha. Esteve casado apenas dois anos, tendo a esposa falecido em 14 de Outubro de 1762. O próprio capitão Freitas Henriques faleceu oito anos depois, aos quarenta e nove anos de idade. Foi também vereador, juiz do ordinário e comandante, com patente real, da companhia de ordenanças das Lajes. Era irmão do padre Francisco de Freitas Henriques que prestou serviço religioso na antiga ermida de São José. Da sua residência e da de seus pais resta ainda o edifício que se situava ao lado da igreja paroquial e que, nos anos cinquenta, pertencia a dois moradores: ao José Natal e à viúva de José Luís.
Sucedeu-lhe, alguns anos após a sua morte, o seu filho, também capitão, José António de Freitas Henriques que casou com Maria Vitória Almeida, natural de Ponta Delgada e da qual teve três filhos, sendo também todos eles capitães, tendo-se destacado o mais novo Francisco de Borja Freitas Henriques, capitãoem Santa Cruze que foi considerado na altura o homem mais rico da ilha das Flores.
Na realidade a família dos capitães Freitas Henriques teve um papel relevante no povoamento e ordenação territorial da ilha das Flores, nomeadamente na zona das Fajãs.
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O CADERNO DIÁRIO
A Dona Madalena era muito exigente, extremamente meticulosa, excedendo-se frequentemente em repreensões exageradas, castigos excessivos e reguadas sem dó nem piedade. Aos preguiçosos, aos apedeutas e aos descurados nos estudos aplicava-lhes trabalhos caseiros em dose dupla. Aos prosélitos do erro ortográfico e aos correligionários da má caligrafia impunha castigos excessivos que, por vezes, roçavam a tortura e se aproximavam do suplício. Finalmente, aos negligentes e desleixados na conservação e limpeza do material escolar assentava-lhes reguada da meia-noite.
Eu pelava-me de medo e tremia como varas verdes. Não era pela preguiça ou desmazelo nos estudos, nem sequer pelos erros ou má caligrafia, parâmetros de avaliação em que era exímio, chegando mesmo, nas lições de cor, a ser o melhor da classe. Em História, num aranzel minucioso e leptológico, desembuchava os reis de Portugal a eito, da primeira à quarta dinastia, com os respectivos cognomes e os factos mais relevantes de cada reinado. Em Ciências, com um rigor absoluto e científico, definia cada órgão ou parte do corpo humano, a começar pelo coração e a terminar nos dedos, onde distinguia, com perícia e altivez, a falange, a falanginha e a falangeta. Finalmente e em Geografia, com arte e engenho desusados, papagueava os rios e os afluentes das margens direita e esquerda, as linhas-férreas com as principais estações e os mais importantes apeadeiros e até os países da Europa com as respectivas capitais. Onde eu prevaricava, contínua e permanentemente, era na limpeza e asseio do Caderno Diário. Não eram os erros ortográficos nem sequer a caligrafia – era pura e simplesmente a sujidade. Não havia mês, semana, talvez mesmo dia em que não me apresentasse junto à secretária da senhora professora com o caderno sujo, ensebado, denegrido, besuntado e imundo. Esta ignomínia, que a Dona Madalena julgava de falta de cuidado e alheamento total de responsabilidades, era fruto das precárias condições e da acentuada penúria que reinavam lá casa. Além disso, eu era o principal prevaricador na falta de limpeza e asseio do Caderno Diário. Isso revoltava-me! Revoltava-me porque os outros tinham sempre o caderno limpinho e asseado, embora nem de longe nem de perto me igualassem na leitura, na Gramática, nas lições de cor e em muitas outras aptidões. Mas quanto à limpeza, o meu Caderno Diário era, sem tirar nem por, o pior da classe. Uma autêntica vergonha! Ainda por cima, todos os outros, na classe, primavam por uma limpeza excessiva e por um requinte desmesurado nos seus cadernos o que acentuava mais e mais a imundície e o desmazelo do meu.
É que à enxurrada de irmãos que superabundavam lá em casa juntavam-se umas instalações exíguas, precárias e limitadíssimas que não se compadeciam, nem de longe nem de perto, com quaisquer exigências académicas ou culturais. Assim era forçado a fazer os trabalhos que a senhora professora mandava para casa em cima da carcomida mesa da cozinha, onde remanesciam migalhas de pão e restos de comida e sobejavam pingos de café, de leite e de graxa. Além disso, a cozinha, apesar de enorme, era vetusta, esconsa e mal iluminada de dia, enquanto à noite se acendia uma pequena candeia alimentada a enxúndia de galinha, em que flamejava uma chama frouxa e titubeante que mal permitia divisar pessoas e objectos, muito menos ler ou escrever o que quer que fosse. A mobília era constituída por uma mesa, meia dúzia de bancos e um pequeno armário em que as portas eram uns panos escuros e pardacentos, onde se guardavam os pratos, as tigelas, os caldeirões e outros utensílios. Pelo chão abundavam sacos de serapilheira com batatas, inhames, cebolas e maçarocas de milho, tudo num perfeito desarrumo, que se acentuava às sextas, dia de acender o forno e cozer o pão de milho para a semana. A lenha picada e empilhada debaixo do lar, constituía o sector de maior arrumação. Era lá também que tinha habitáculo o Farrusco, guardião eficiente da ratazana e parceiro de muitas brincadeiras. Num canto, por baixo da porta do forno, ficava o balde do porco, onde se iam armazenando os restos de comida, as cascas das batatas, dos inhames e as lavagens que, depois de cheio, constituía a principal refeição do suíno, mantido à engorda com excessivo zelo. Por baixo, uma loja dividida entre arrumos e estábulo.
Era nestas instalações que montava sala de estudo e, por essa razão, o meu caderno diário normalmente se transformava numa execrável, sórdida e hedionda bodeguice.
Certo dia, em que o esquecera sobre a mesa, alguém involuntariamente, deixou-lhe cair em cima umas brasas que saltaram do ferro de passar roupa, queimando, parcialmente, meia dúzia de folhas. Estarreci. Com que cara me iria apresentar, no dia seguinte, à Dona Madalena, tendo o caderno naquele estado? Ia ser o bom e o bonito! E não me enganei. Para além da chacota de que fui alvo, levei as habituais dez reguadas punitivas da sujidade, com a rigorosa imposição de, sem falta, ter que arranjar um caderno novo e passar tudo a limpo, para o dia seguinte.
Matutei a tarde inteira na forma de resolver o imbróglio em que estava exprobrado, apesar de inocente e que passava pela compra de um caderno novo, operação comercial que, no mínimo, me forçaria a ter que desenvencilhar uns cinquenta centavos. Mas só tinha amealhado trinta e a festa da Senhora da Saúde aproximava-se… Recorri à generosidade de minha avó que me abonou apenas os vinte que faltavam.
Ao fim da tarde, sentei-me à mesa e comecei a árdua tarefa de passar tudo a limpo. Estava prestes a chegar à última folha, quando de repente me emborcam literalmente uma tigela de café sobre o caderno que eu acabara de copiar de lés a lés.
De nada valeram protestos, choradeiras e reclamações. E tive que me apresentar na escola, na manhã seguinte, com aquela espurcícia em riste, apesar de envolto em temor, imaginando o que me esperava.
Foi então que, num gesto de grande nobreza, dignidade e misericórdia, o Amâncio, apercebendo-se da minha angústia e atrapalhação, me acalmou. Desde há muito que eu era o seu maior amigo. Tirou um caderno limpo e novo da sua pasta e, com excessivo cuidado e engenho, cortou-lhe a capa, pedindo-me que na mesma escrevesse o meu nome. Depois, com grande perícia e determinação, cortou a capa do seu próprio caderno, substituindo-a por aquela em que havia escrito o meu nome e colando-a, muito disfarçadamente, com goma-arábica. Quando, algum tempo depois, a senhora professora me chamou, ele, encorajando-me e incentivando-me com grande convicção, disse baixinho, perante a minha perplexidade:
- Vai! Vai! Não sejas parvo! Ela não vai dar por nada.
E não deu. Apenas, em tom de censura, me recriminou apreensivamente:
- Hum! Que caligrafia é esta?! Nem parece a tua – e, de imediato, perguntou - Foste tu que passaste?
- Fui, sim, senhora professora. É que… passei tudo à pressa…
- A caligrafia não está grande coisa. Mas lá que está limpinho, está – concluiu.
E assim, com uma perfeita mentirinha, safei-me de mais umas valentes reguadas.
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ANGRA
Há um fumo de maresia
A ornamentar as janelas que nunca se abriram.
Há um hino de silêncio
A atapetar as ruas que nunca se povoaram.
Há uma chuva de caligem
A tingir de negro os rostos que nunca se encontraram.
Há uma Angra estilhaçada,
Perdida entre o restolho dos vulcões