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A ABA

Sábado, 05.10.13

Na canada das Águas, um pouco antes da única curva que a delineava e que ficava bastante perto da rocha, no local onde havia uma ligeira subida constituída por vários degraus em ziguezague, havia um enorme calhau caído da rocha, sabia-se lá há quantos anos. Ali estava há um horror de tempo e nem os avós dos mais velhos se lembravam do seu desabamento. Era um gigantesco e descomunal penedo, bastante áspero e excessivamente tosco. O seu peso estimativamente excessivo e a presumível velocidade que teria atingido ao despegar-se daquele desmedido aclive encravaram-no de tal maneira no chão que aparentava ter sido ali plantado. Nem todas as juntas de bois que na altura existiam na Fajã, atreladas umas à frente das outras, seriam capazes de arrancar dali aquele mamarracho ou sequer de o mover um centímetro que fosse. Só com meia dúzia de velas de dinamite enfiadas em buracos bem profundos e com um rastilho bem alongado. Por coincidência ou por inteligente aproveitamento dos que construíram aquela sinuosa via, o calhau ficava mesmo à beira da canada, servindo, naquele sítio, de divisória e natural entre o caminho de servidão e a relva de Ti Manuel Rosa, situada mesmo ali pertinho.

Do lado que confinava com a via pública, na parte superior, o calhau tinha uma enorme aba e, na parte inferior desta, uma concavidade ou buraco, que com as chuvas, sobretudo com as oriundas do sul, se enchia de água. Só que, por caprichos da natureza, o buraco era uma espécie de poço, tão perfeito e tão bem elaborado que nem o cinzel de um pedreiro o talharia melhor. Além disso, na parte inferior, a aba do calhau possuía uma espécie de plataforma para que quem quisesse ou desejasse ali se sentasse a molhar distraidamente as mãos na água e a observar aquela pequena maravilha da natureza.

Meu pai possuía duas relvas por ali perto, uma um pouco mais adiante e outra já perto da rocha, por isso eu passava junto daquele calhau, vezes sem conta. Além disso tinha um pequeno curral, o qual, devido ao seu exíguo tamanho, era destinado exclusivamente a pasto da ovelha, que ficava mesmo em frente àquela espécie de monumento paleolítico. Embora não gostasse muito de ir para as Águas, com receio de que caíssem pedras ou ribanceiras, nos momentos em que por ali deambulava, eu adorava aquele calhau. Sempre que passava por ali, quando ia buscar ou levar as vacas, subia a plataforma, sentava-me e ficava a contemplar o pequeno lago, sobretudo quando cheinho de água, quase a transbordar, com formas e recortes tão semelhantes aos do baixio, como se fosse um mar. Havia mesmo um enclave em tudo igual ao Boqueirão, outro parecido com o Caneiro das Furnas e no meio, eu próprio lhe escarrapachava uma pedra a fazer de Monchique. Então nos dias em que meu pai por lá se demorava a ceifar feitos ou quando eu levava a minha ovelha a pastar no curral era um enlevo, pois enchia o lago de folhinhas de faia e de incenso a fazer de barcos. Depois sentava-me na plataforma e ficava ali horas e horas a brincar. Tocava com as mãos na água e esta agitava-se como se fossem ondas e o lago crescia, crescia até se transformar num enorme mar cheio de barcos, de gasolinas, de iates e de navios, uns ancorados fora do porto, outros partindo para a Europa, para a América, para outros mundos. Eu imaginava-me então piloto de um deles e seguia pelo mar fora até chegar a um país longínquo e distante onde não havia rochas de onde caíam pedras e ribanceiras e onde os caminhos não eram sinuosos nem repletos de pedregulhos Um país onde todas as árvores eram floridas, onde as casas eram palácios, as ribeiras eram rios, onde os campos se enchiam de trigo e onde os pássaros não debicavam os frutos. Um país onde o pão tinha um sabor adocicado, onde as manhãs clareavam com veemência, onde os homens não eram escravos da miséria e onde as mulheres se deliciavam a ouvir o canto dos pássaros. Um país onde havia candys, bolachas biscoitos e chocolates. Um país onde havia roupas perfumadas e limpas e sapatos para proteger os pés. Um país onde todas as crianças tinham mães a dar-lhes carinho e amor.

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publicado por picodavigia2 às 21:30

A "FAEIRA" DO POCESTINHO

Sábado, 05.10.13

Meu pai tinha uma terra de mato, no Pocestinho. Aliás, no Pocestinho todas as terras eram de mato. Mas a do meu pai era especial e diferente das outras, porque nela cresciam incensos enormes, altíssimos e esguios, entrelaçados com loureiros e paus brancos e misturados com um ou outro sanguinho. De resto tudo “faeiras”. “Faeiras” desde a primeira à última belga, “Faeiras” velhíssimas, centenárias, com troncos grossíssimos mas muito belas e elegantes, altas e esguias, a abarrotarem de folhas verdes e de bagas suculentas e arroxeadas. “Faeiras” de caules acastanhados, porosos, cobertos de escamas e enrijecidos pelos anos, mas recheados de seiva adocicada, de suco perfumado, de aromas silvestres e tonificantes.

Entre todas elas havia uma, logo na primeira belga, que eu adorava. Era a minha “faeira” predilecta, preferida, a minha “faeira” de estimação. Era uma árvore de grandes dimensões, altíssima e detentora de uma beleza rara, de um porte imponente, de uma elegância sublime, de uma copa deslumbrante e compacta, com um tronco espesso que se ramificava e prolongava em pernadas mais pequenas que se iam adelgaçando até se tornarem, lá nas pontas, nuns fiozinhos muito delgadinhos, fofos, macios, frágeis, delicados e atraentes. A sua casca era lisa, raramente fendilhada, embora com a idade se fosse tornando um pouco mais áspera, mas também mais acutilante e demolidora, adquirindo uma cor alourada, muito próxima do verde dos tempos da sua juventude e do pardo-amarelo da sua infância.

Contavam-me que a minha “faeira” nascera ali havia muitos anos. Inicialmente um pequeno arbusto com gomos amarelos, muito pequenos e pontiagudos, foi crescendo, lentamente e transformando-se numa bela árvore, ao mesmo tempo que se ia tornando forte, rija e resistente a ventos e temporais, mas delicada, adorável e encantadora. As suas folhas, tingindo-se de um verde, muito vivo e brilhante iam-se metamorfoseando em nervuras paralelas, ora ovadas, ora elíptico-lanceoladas, ou então iam adquirindo a forma de bico, pontiagudas e penetrantes como se de lanças se tratasse. Na Primavera a minha “faeira” cobria-se de flores de cores rosadas, geminadas num invólucro ténue com lóbulos suaves e espinhos brandos. No Verão, das suas flores brotavam frutos magníficos - bagas brilhantes, tintas e arroxeadas a desenvolverem-se aos pares, com um inconfundível sabor acre e doce, muito ricas em gordura e como tal muito procurados e muito apreciados pela fauna bravia e pela passarada das redondezas. Eu próprio as mastigava com júbilo e as saboreava com desvelo. Muitos pássaros serviam-se delas para as suas "dispensas invernais" o que fazia com que os arredores da terra de meu pai do Pocestinho se enchessem de sementes de “faeira”, povoando-se, mais tarde, de um número infinito de pequenas e graciosas arvorezinhas.

Na terra de meu pai do Pocestinho, a minha “faeira” juntamente com todas as outras “faeiras” que por ali proliferavam, formavam uma densa floresta, fortalecendo e enriquecendo o solo, cobrindo-o com um tapete fecundante, formado pelas numerosas folhas que, dia após dia, ano após ano, delas caíam e ali se depositavam. Era, sobretudo, essa massa de folhas, transformada em adubo, que permitia que as sementes germinassem, com vigor, na Primavera. Por sua vez, a sua copa densa e copiosa fazia com que a luz que chegava ao solo fosse como que coada pelas folhas e pelos ramos e se tornasse frouxa e ténue, não permitindo, que ali, outras plantas houvessem desenvolvimento.

Mas o que eu mais adorava na minha “faeira” do Pocestinho era quando, aproximando-me dela, via plantado um ninho, nos seus ramos, bem lá no seu alto. Agarrava-me então ao seu tronco, pendurava-me nos seus ramos e enroscava-me nela, subindo-a com destreza e agilidade mas com enlevo e ternura, até chegar lá acima, ao ninho, Depois deliciava-me com a ternura inocente dos passarinhos, biquinhos abertos, corpos cobertos de penugem, também eles a sibilarem a doçura daquele encontro.

Um dia meu pai decidiu que havia de cortar a minha “faeira”. Na opinião dele, a intensa sombra da sua copa, deslumbrante e audaciosa, impedia de crescerem os inhames e as outras pequenas plantas, plantadas ao seu redor. Além disso precisava de lenha, de muita lenha…

 E eu, frágil e débil, nada pude fazer para o impedir dos seus intentos. A sentença de morte da minha “faeira” havia sido decretada e dela não havia recurso.

E eu que todos os dias ia com meu pai ao Pocestinho, exclusivamente, para ver a minha “faeira”, naquele dia não o acompanhei. E a partir de então, quando ia ao Pocestinho, o que raramente acontecia, esquivava-me sempre de ir aquela maldita belga para não mais ver aquele fatídico e malfadado vazio que o corte da minha “faeira” ali provocara.        

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publicado por picodavigia2 às 21:23

ILHA DE S. JORGE

Sábado, 05.10.13

(poema de álamo oliveira)

 

parece fácil desenhá-la: a mão

vai pela superfície do mar

e vira de repente coma certeza

de que nunca será redonda.

do topo  salta um pingo de tinta

e fica como descuido divino

- sombra do pecado original.

 

vista de cima  é a exclamação

do silêncio.

 

podem chamar-lhe dragão  baleia  dinossauro

parábola da água em vinho   vivenda dos deuses

que sempre há-de ter faias

cedros   dragoeiros  hortênsias e giestas

nenhuma vontade de calar os garajaus

nenhum desejo antigo de partir

de fazer das fajãs o futuro de todas as virtudes.

 

o homem ali não passa de um sonho

descalço.   

 

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publicado por picodavigia2 às 16:30

CRENTE

Sábado, 05.10.13

MENU 11 – “CRENTE”

 

ENTRADA

Salada de alface ripada, com gumes de cebola finos e pedacinhos de queijo fresco, orvalhada com azeite e vinagre balsâmico.

 

 

PRATO

 

Bife de peru grelhado e recheado com mortadela de peru e acamado em legumes salteados e borrifados com geleia de melão.

Arroz de brócolos e rodelas de batata-doce fritas e barradas com creme de queijo fresco e ervas aromáticas.

 

 

SOBREMESA

 

Pêssego e Gelatina de Morango.

 

******

 

Preparação da Entrada: Limpar e ripar a alface, juntando-lhe os gumes de cebola finamente cortados e os pedacinhos de queijo fresca. Temperar com azeite e vinagre balsâmico.

Preparação do Prato – Aparar o bife de peru, cortá-lo muito fino e temperá-lo com alho, algumas horas antes. Grelhar o bife, regando-o com sumo de limão. Parti-lo a meio e recheá-lo com a mortadela. Cozer os legumes (cenoura, feijão verde e repolho) e salteá-los em azeite, anteriormente, perfumado com alho. Cobrir os legumes com geleia de melão e colocar o bife em cima. Cozer o arroz com os brócolos e fritar as rodelas de batata-doce, pincelando-as com o queijo de creme. Dispor os ingredientes em prato.  

Preparação das Sobremesas – Fruta fresca. Gelatina - confecção tradicional.

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publicado por picodavigia2 às 13:35

A MARQUINHAS JOSÉ DO CIMO DA ASSOMADA

Sábado, 05.10.13

Na penúltima casa do Cimo da Assomada, no caminho que dava para as hortas da Cabaceira e para a Cuada, antes da casa do Senhor João Fagundes, numa curva rectangular que o caminha fazia, junto ao palheiro do Francisco Tomé, ficava uma casa onde morava uma senhora já de avançada idade, conhecida pela Marquinhas José do Cimo da Assomada. A casa era muito velha e rústica, feita de pedra e situada numa espécie de buraco ou fundão, de tal modo desnivelado do caminho que apenas o telhado ficava paralelo a este. Assim a casa, frente à qual existia um pequeno mas bem cuidado jardim, comunicava e dava acesso ao caminho através de uma íngreme e tosca escada de pedra, que terminava, na parte superior, num pequeno portal, sem portão ou cancela. A casa era pequenina e o seu interior, pobre e escuro, limitava-se a uma cozinha com piso térreo e a uma outra divisão assoalhada que servia, simultaneamente, de sala e quarto de dormir. Vivia pois, a senhora Mariquinhas José em péssimas, limitadas e lastimáveis condições a que se aliava uma enorme pobreza e um exagerado desconforto. Vivia sozinha e não tinha parentes na Fajã que se conhecessem. Constava, apenas, que tinha uns primos no Mosteiro, os quais, no entanto, nunca a procuravam.

Mas… pior do que tudo isto, a Marquinhas José era muito doente. Para além de outras maleitas menores, tinha uma doença terrível na perna esquerda. Esta estava de tal modo inchada que bem se podia igualar, em espessura, à cintura da sua dona, dificultando-lhe, de sobremaneira, o andar, já de si lento e vagaroso. No entanto e apesar de todas estas limitações e contrariedades, fazia, ela própria, toda a sua vida quotidiana: cozinhava os parcos alimentos de que dispunha, acarretava baldes de água a uma fonte bem distante, arrumava e lavava a casa e a roupa e até transportava, à cabeça e sob uma rodilha, pequenos molhos de garranchos de lenha, que ia apanhar a uma belga que tinha para os lados da Cabaceira. Também era ela que trabalhava uma escassa courela que possuía atrás da casa e que lhe ia dando meia dúzia de maçarocas de milho, uns pés de couve e algumas batatas. Algumas pessoas da freguesia ajudavam-na, dando-lhe, de quando em vez, um pouco daquilo que também possuíam e cultivavam nos seus campos.

Mas apesar de pobre, desventurada, sofredora e estigmatizada pela solidão a Marquinhas José do Cimo da Assomada, parecia ser uma pessoa feliz e conformada com o seu infortúnio, pois tinha sempre um agradável sorriso no seu rosto, uma contagiante ternura no seu olhar e uma sincera afabilidade nas suas palavras.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:00

A FAJÃ GRANDE NA COMEMORAÇÃO DOS 35 ANOS DE EXISTÊNCIA DA RTP AÇORES

Sábado, 05.10.13

A RTP Açores, ao comemorar, a dez de Agosto transacto, os seus 35 anos de existência elaborou uma série de programas sobre as freguesias mais pequenas dos Açores e, por isso mesmo, talvez as menos conhecidas. Estes programas, com apresentação de Vasco Pernes e imagens de Rui Machado, que contemplaram entre outras freguesias açorianas as seguintes pertencentes à ilha das Flores: Ponta Delgada, Cedros, Caveira, Lomba, Fazenda, Lagedo, Mosteiro, Fajazinha e Fajã Grande, podem ser revistos no seguinte site da RTP Açores: http://ww1.rtp.pt/acores/?article=16337&visual=22&tm=28.

No que à Fajã Grande diz respeito, trata-se de uma excelente reportagem e de uma magnífica divulgação da freguesia mais ocidental da Europa e de um proveitoso publicitar das suas potencialidades turísticas, nomeadamente nos aspectos paisagístico, gastronómico, cultural, musical e até histórico. Para além de apresentar imagens de excelente qualidade sobre Fajã, Ponta, Cuada e as paisagens que envolvem estas localidades da freguesia, o programa divulga o seu artesanato através da Virgília Fragueiro que dá a conhecer um interessantíssimo arsenal de rendas, bordados, colchas e outros produtos manufacturados pela sua própria mãe, a Madalena de José Jorge. O programa ainda e, por um lado, dá a conhecer a gastronomia fajangrandense de antanho, incluindo as couves com conduto, a caçoila, as filoses, o bolo do tijolo, o queijo caseiro, o folar com linguiça, a morcela e o pão de milho, apresentados pela Maria Lídia, filha do Jesuíno do Pico e, alguns deles, confeccionados pela Deolinda do Augusto Arionó, e, por outro, delicia-nos com a sua cultura musical através da Tuna “Sol Mar”, da Filarmónica “Senhora da Saúde” e do grupo de Foliões da Casa de Cima. Destaque ainda para uma entrevista com o José Teodósio, actual presidente da Junta de Freguesia e com o meu primo, vizinho e amigo de outros tempos, o Guilherme, um artista na arte de fazer cestos, cestas e cabazes com vimes e uma outro com o dono de um burro que granjeou as simpatias do apresentador do programa e ganhou o epíteto de o “Trinta e Cinco”. De realçar ainda a divulgação, ao longo do programa de diversos utensílios agrícolas utilizados outrora nas lides dos campos, como os arados de ferro e de pau, a grade, o carro de bois com a sebe e todos os restantes apetrechos e ainda, o que considero mais notável, um corsão de canguinha com fueiros, cabeçalhos, canga, canzis, tamoeiros e até as boqueiras para o gado.

 

Este texto foi publicado no Pico da Vigia, em 09/10/10

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publicado por picodavigia2 às 09:58

GUERRA

Sábado, 05.10.13

 

Gravaste sulcos dolorosos,

Estigmas,

Com fumos de pólvora cinzenta.

 

Os ruídos, aparentemente adocicados, das madrugadas

Eram o eco dos canhões,

O ribombar dos morteiros,

O ronco dos obuses

Que, nas noites anteriores,

Escuras, solitárias e aterradoras,

Esvoaçavam,

Sem cessar.

 

Por vezes,

Explodiam minas e rebentavam granadas!

 

Tiros de metralhadoras estouravam em cachão,

Quase perfuravam os ouvidos!

 

Corpos decepados

- Velas desfeitas de barcos naufragados.

 

Corpos ensanguentados

- Cachos de uva, espremidos em prensa.

 

E…

Um medo, enorme, do dia seguinte,

 

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publicado por picodavigia2 às 00:03





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