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A PRESENÇA DE PEDRO DA SILVEIRA NAS GERAÇÕES QUE LHE SEGUIRAM

Domingo, 06.10.13

Ouvi falar de Pedro da Silveira pela primeira vez da boca de José Enes, que tanto me ensinou nos meus verdes e impressionáveis anos. Observador dos meus atrevimentos juvenis, achou que, como pedagogo, deveria procurar conduzir-me, canalizando os meus interesses para áreas formativas. Porque acreditava que os jovens deveriam ser impregnados do espírito dos clássicos, se por acaso quisessem vir um dia a escrever decentemente, meteu-me nas mãos Rodrigues Lobo. Esforcei-me em vão. Não conseguia desfrutar ali nenhum prazer de leitura. Eu nascera numa freguesia (não me atreverei a dizer “aldeia” diante do purista da linguagem açórica que é Pedro da Silveira), mas não era a corte na aldeia que me seduzia. O professor imaginou-me mais capaz do que eu era de facto. Tentou então os açorianos. Nunes da Rosa foi o primeiro. E eu entusiasmei-me deveras com os contos de Gente das Ilhas, e depois com Pastorais do Mosteiro. Logo a seguir, deu-me a separata de Pedro da Silveira corrigindo alguns deslizes do livro Um Mês de Sonho (em que José Leite de Vasconcelos registava a sua viagem aos Açores na década de vinte), bem como A Ilha e o Mundo, que me foi um deslumbramento. Mais tarde voltei a encontrar o poeta em Sinais de Oeste, na mesa de António Andrade Moniz, então no Seminário de Angra e hoje professor na Universidade Nova, quando escrevia uma recensão para a revista Atlântida.

Pouco tempo depois eu descobria Raul Brandão e, não sei exactamente quando, Nemésio e Roberto de Mesquita, uma constelação de autores que, sempre pela mão de José Enes, que a todos ia enquadrando na sua visão dos Açores e de Portugal, me formou o paradigma cultural dentro do qual passei a mover-me. De entre os que desde logo mais me tocaram, terei de mencionar Luís Ribeiro  e os seus Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, que o Instituto Açoriano de Cultura benignamente nos ia fazendo chegar às mãos em fascículos que eu assinava no Seminário de Angra, quando tinha catorze anos . O pequeno texto “O açoriano e os Açores”, de Nemésio e, mais tarde, o seu ensaio fundamental “O poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita”,  publicado em Conhecimento de Poesia e editado no Brasil . Só bem mais tarde viria eu a descobrir os estudos antropológicos de Arruda Furtado e os ensaios de história literária açoriana de Eduíno de Jesus. Quer dizer, na constelação paradigmática de autores açorianos que formataram a minha visão dos Açores e, de certo modo, do mundo, figurava Pedro da Silveira.

É difícil explicar o porquê do meu fascínio pela poesia de Pedro da Silveira se eu não conhecia as Flores. Para poemas como "Dia de Vapor" ainda encontrava eu elementos familiares nas visitas mensais do "Carvalho Araújo", alternadas com as do "Lima", atracados à distância na baía de Angra, e nas idas e vindas da lancha levando também a bordo os angrenses que iam desmonotonizar-se umas horas no bar da primeira classe, à semelhança do que nos narra o magnífico poema de Pedro da Silveira. Com os "Quatro Motivos da Fajã Grande", deveria eu talvez identificar-me menos. Mas não. Eles surgiram-me como radiografia de um estado de alma: o marasmo sem horizontes da vida insular, ou pelo menos da vida de grande parte da população dos Açores para quem o barco na distância era a única saída,  a adivinhar-lhe, à proa, / Califórnias perdidas de abundância, no belo verso do epigramático poema "Ilha".

Eu desconhecia totalmente o que fosse o neo-realismo e nunca encarei os poemas de A Ilha e o Mundo como pertencendo a qualquer corrente literária. Para mim eram simplesmente a expressão da corrente de consciência que começava a agarrar-me como ilhéu despertando para as realidades do mundo no dealbar dos anos sessenta.

Após este breve intróito como que a legitimar a minha ligação à obra de Pedro da Silveira (e a minha presença aqui), passarei agora a ser menos umbilical, alargando esta retrospectiva ao impacto de Pedro da Silveira sobre a minha geração. Antes dela, aliás, a presença de Pedro da Silveira já se fizera sentir no grupo Gávea, muito embora um excelente poeta como Emanuel Félix tivesse optado por um registo poético quase nos seus antípodas. Atrevo-me no entanto a afirmar que, depois de Pedro da Silveira, quem não quisesse repeti-lo teria de seguir por trilhos bem diversos.

Santos Barros e Carlos Faria no suplemento "Glacial", Álamo Oliveira no seu percurso poético peculiar, ecoaram de algum modo a existência de A Ilha  o Mundo. Os convulsivos anos da década de setenta, espalhando-nos a todos pelos quatro cantos do globo, vieram apenas fazer recrudescer o nosso interesse pelas ilhas, pelas suas idiossincrasias, pelas marcas de insularidade que todos leváramos na mala de bagagem. João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa, J. H. Borges Martins, Daniel de Sá, Fernando Aires, Marcolino Candeias, Eduardo Bettencourt Pinto, e todos quantos se interessaram verdadeiramente pelos Açores como espaço cultural com uma marca identitária forte, tiveram  sempre, directa ou indirectamente, Pedro  da Silveira como referência importante, mesmo quando para dele se demarcarem.

A crítica literária, os estudos sobre a açorianidade, que então começaram a proliferar dentro e fora do arquipélago, passaram infalivelmente a citar poemas seus ou a inscrevê-los como epígrafe de ensaios, ao lado  de outras de Vitorino Nemésio e do simbolista Roberto de Mesquita, este também florentino, descoberto postumamente por Nemésio e posto a circular pelo próprio Pedro da Silveira (o seu Almas Cativas saiu na Ática em 1974, coordenado por Pedro da Silveira e com prefácio de Jacinto do Prado Coelho). Vejam-se os escritos de José Enes, José Martins Garcia, Luís de Miranda Rocha, Eduíno de Jesus, Vamberto Freitas, Adelaide Baptista, Álamo Oliveira, Carlos Faria, Urbano Bettencourt, Maria Teresa Marques, Victor Rui Dores, Frank Fagundes, Diniz Borges, Lisa Godinho, Luiz António Assis Brasil e seus estudantes no Rio Grande do Sul, no Brasil,  as teses que por aqui e por ali foram surgindo e – por que não mencionar? - os meus próprios escritos.

Dir-se-ia que o poema "Ilha", a que atrás aludi em paráfrase, se tornou o mais citado poema insular, uma definição clássica de ilha, objecto de minuciosas análises.

Uma delas foi elaborada pelo Professor George Monteiro, que até à aventura da tradução dos poemas de The Sea Within. A Selection of Azorean Poems, editada pela Gávea-Brown em Providence, nada conhecia da poesia açoriana. Interessou-se verdeiramente pelos versos de Pedro da Silveira. Num pequeno estudo publicado na revista Atlântida em 1979 - "Os Açores de John Updike e de Pedro da Silveira", o crítico literário luso-americano, professor de Literatura Americana na Brown University, comparava o referido poema "A Ilha" do poeta florense com o poema "Açores", que o famoso escritor americano escrevera a bordo de um transatlântico ao atravessar os Açores a caminho da Europa. George Monteiro contrasta os dois poemas mostrando que Updike “capta a essência dos Açores vistos segundo a perspectiva do turista que apreende, de fora, a realidade das ilhas.” (…) “O poeta-turista fecha, assim, um silêncio sobre o que poderá ser a vida de quem habita tais paragens. ” Em contrapartida, Pedro da Silveira capta num poema conciso “a nota de vida que falta no poema de Updike, naquela ‘falta’ de gente a habitar as ilhas e que pode estar implícita nas imagens associadas a ‘à deriva’ e à crescente ‘distância’”.

A atrás mencionada edição da antologia de poesia açoriana The Sea Within permitiu que os poemas de Pedro da Silveira pudessem viajar para outros mares. Assim, uma das mais conceituadas revistas literárias norte-americanas, The Swanee Review, publicou no seu número mais recente um ensaio intitulado: "Marginal Notes: An Islander's View", da autoria de Tony Whedon. O autor, professor de literatura americana numa universidade da Nova Inglaterra, desde a infância residente (parte do ano) numa das ilhas do Maine, descobriu algures The Sea Within e ficou impressionado com os poemas de Pedro da Silveira nela incluídos. Quis conhecer mais da sua poesia e, por isso,  contactou-me. Tentou ler outros poemas em português e conseguiu aperceber-se de que lhe interessariam bastante. Pediu-me que alguém os traduzisse. Bati de novo à porta de George Monteiro que aceitou o desafio.

O resultado é um primoroso ensaio em que Tony Whedon analisa os poemas de Pedro da Silveira a par de escritos de autores como Joyce Carol Oates, Elizabeth Bishop, os gregos Odysseus Elytis e George Seferis, Wallace Stevens, Milton, James Schuyler, Sandra McPherson, John Fowles e outros. Sobre os poemas de Pedro da Silveira especificamente, afirma a dada altura terem “alguma da espacidade (spatiousness) e monumentalidade” que ele encontra nos gregos Odysseus Elytis e Georgios Seferis (por sinal, ambos prémios Nobel de Literatura), embora os de Pedro da Silveira tenham algo da frieza do Atlântico Norte “nas entrelinhas e no seu sentimento directo” . Mais adiante escreve:

O poema  expressa a inconsciência, o não pensar que tem origem no render-se involuntário do eu às forças inelutáveis da natureza, um render-se fora do comum – talvez mesmo não-existente – noutra poesia modernista.

(…)

Eu li naïvemente estes inesperadamente refrescantes poemas nesta ilha do Maine que partilha de alguma da melancolia (gloominess) dos Açores. O torpor, a sonolência da poesia de Pedro da Silveira molda-me o meu próprio estado de espírito e o modo como eu contemplo o rio hoje enquanto, por outro lado, o nevoeiro do Maine cobre e invade os poemas de Pedro da Silveira, ensopando-os nesta mesma solitude.

 

Num outro texto inédito intitulado “Pedro da Silveira, Poetry for all seasons”,  George Monteiro compara o olhar implacável do poeta ao de Henry David Thoreau (o autor de Walden e do famoso ensaio sobre a desobediência civil), que Robert Frost, poeta da Nova Inglaterra, considerava mais “the most noticing person who ever lived”. Monteiro elogia “o estilo chão e directo” da poesia de Pedro da Silveira na expressão de certos “noticed moments”. De um deles (“Acabado, mas não tanto”), diz ser, no seu espírito, “tão antigo como a poesia dos gregos e tão moderno como a poesia dos ainda desconhecidos poetas de amanhã”.

Poderia continuar citando outros leitores de Pedro da Silveira e outros dados sobre o impacto da sua obra. Quedar-me-ei todavia por aqui. Queria no entanto terminar não com palavras minhas, mas prestando homenagem ao poeta nas suas próprias palavras. Desnecessário será, contudo, incluir aqui os poemas lidos. Registo apenas a frase com que precedi a leitura do poema “Acabado, mas não tanto”, pois queria com ela simbolicamente concluir esta minha homenagem a Pedro da Silveira: este poema é a antítese do fatalismo, do marasmo, da solidão que inundava a ilha do poeta nos anos quarenta, ela é uma afirmação de vida, de vigor, de finura de espírito, ainda e sempre a revelar a  mão de mestre de um senhor do verbo.

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publicado por picodavigia2 às 23:00

ALMOÇO DE NATAL NO “SOLAR DOS PEQUENINOS” EM PAREDES

Domingo, 06.10.13

Há dias tive a honra e o privilégio de ser convidado para um almoço de Natal organizado por um Jardim-de-infância de Paredes. Trata-se do “Solar dos Pequeninos”, uma instituição de infância a funcionar desde 2000, no lugar de Abadim, na cidade Paredes, nas traseiras da Escola Secundária e que, nas suas instalações, alberga cerca de meia centena de petizes de palmo e meio, para além de dar apoio pedagógico a cerca de duas dezenas de alunos que frequentam a Escola Primária da Sede, também ali ao lado.

O “Solar dos Pequeninos” embora localizado praticamente no centro da cidade de Paredes, junto à zona escolar e à piscina municipal, está, no entanto, implantado, numa espécie de zona rural, nas antigas instalações de uma propriedade agrícola, que incluía casa de lavrador, com os devidos anexos e quinta, mas que foram devidamente restauradas e adaptadas, funcionando assim num ambiente de grande calma e tranquilidade, estando afastado do rebuliço frenético urbano. Além disso possui fácil acesso e está dotado de um enquadramento paisagístico harmonioso, com instalações modernas e funcionais. Sob o ponto de vista educativo, tem elaborado um plano pedagógico, activo e dinâmico, com um projecto educativo de qualidade onde os objectivos são claros e concretos e cuja concretização se evidencia na competência das suas educadoras e auxiliares de educação e na dinâmica das actividades que disponibiliza aos seus educandos.

Costumo lá ir mensalmente contar uma história aos petizes. Ouvem-me com atenção, envolvem-se nos meandros do emaranhado, exercitam-se na diegese da narração, enfim, rodeiam-me, solicitam-me e até me agarram como se fosse um deles.

Pois chegou o Natal, altura em que lá voltei a fim de lhes contar mais uma história. Os garotelhos não estiveram com meias medidas. Estavam a organizar um almoço de Natal e eu, forçosamente, tinha que lá ir almoçar com eles. Tivesse eu juizinho que não havia forma de recusar o convite.

E fui… com muito gosto e com muito alegria até porque também me prendo ao “Solar dos Pequeninos” por outras razões, uma vez que lá tenho uma “pequenina princesa”, encantada e feliz por eu ir almoçar na sua companhia.

Chegou o dia e a hora! O almoço à boa maneira do Natal na região, incluía bacalhau com todos, rabanadas, leite-creme e aletria, conforme constava da ementa afixada na entrada, em letras garrafais e que, na realidade, se assemelhava em tudo às grandes e tradicionais ceias de Natal. A sala de jantar estava enfeitada com motivos natalícios diversos, uns nas paredes, outros suspensos do tecto, muitos sobre as mesas e até um Pai Natal a envolver o guardanapo de cada um dos comensais. Uma maravilha! Todos os enfeites foram feitos manualmente pelos petizes, com a ajuda e com a criatividade das educadoras. Os alimentos estavam muitíssimo bem cozinhados e no ar sentia-se o verdadeiro perfume do Natal. Os convivas, autênticos duendes ornamentados com o gorro do Pai Natal, eram de palmo e meio, mas estavam tão bem, não apenas ao tomarem a sua refeição, mas também convivendo em sã alegria, confraternizando em doce camaradagem, entrelaçando-se em sincera convivência, nas suas minúsculas mesas e cadeiras, à espera do Pai Natal, que chegaria, no fim do repasto, carregadinho de prendas para todos.

Foi então que eu, sentado numa cadeirinha tão igual à deles, numa mesinha tão minúscula as suas, no meio daqueles pequenitos, senti uma enorme “raiva” de não poder voltar a ser como eles e ficar ali à espera do Pai Natal.

 

Texto publicado no Pico da Vigia em 21/12/10

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publicado por picodavigia2 às 18:12

A LADEIRA DO COVÃO

Domingo, 06.10.13

A ladeira do Covão era, incontestavelmente, a mais desnivelada, a mais íngreme e a mais abrupta ladeira de todas as que possuíam os desnivelados e tortuosos caminhos da Fajã Grande. Situava-se logo a seguir ao Cimo da Assomada, no Vale da Vaca e ligava o antigo caminho da Cuada, das hortas e dos Lavadouros com a Canada do Covão, ou seja com a penhascosa e escarpada vereda de acesso à Pedra d’Água e ao Outeiro Grande, a meio da qual se engastava o mítico e tenebroso Calhau das Feiticeiras.

Situava-se pois, a referida Ladeira, numa elevada e altiva encosta, o que lhe concedia o estatuto de “estar totalmente impedida à circulação de carro de bois ou corsão”, pese embora a sua largura e o seu piso tal permitissem. A espessura era rigorosamente igual à dos restantes caminhos e por isso, por lá poderia passar, muito à vontade, uma junta de bois. O piso, por sua vez, era bastante bom e liso, propício ao rolar de um carro ou facilitador do deslizar de um corsão, dado que usufruía de um calcetamento muito superior em qualidade ao dos restantes caminhos da freguesia, geralmente calcetados com a tradicional “calçada romana”, mas cheios de altos e baixos e de pedregulhos soltos. O piso da Ladeira do Covão era feito de pequeninas pedras, iguais em tamanho e espessura, muito bem ordenadas e arrumadas, que davam à Ladeira do Covão um ar gracioso e uma locomoção fácil e acessível, estorvada sim, e de que maneira, pelo seu acentuadíssimo declive e pela sua desnivelada estrutura. O seu aspecto dava a entender que teria sido um dos caminhos mais recentemente construído e, naturalmente que os seus “arquitectos”, tentaram compensar a dificuldade da subida com a facilidade do piso. Estiveram muito bem os nossos antepassados.

Mas o que ainda mais caracterizava a Ladeira do Covão e que lhe dava um ar de singularidade, é que a mesma se alongava, de um dos lados, como que paralela ao Vale da Vaca, enquanto o outro se confundia com a encosta subjacente, povoado de silvas, de vinháticos, de cubres, de funchos e de canaviais, donde emanavam cores e perfumes diversificados e atraentes e onde a passarada esvoaçava em acasalamentos ou na procura estonteante de sítios mais adequados para os ninhos. Ao subi-la e, muito especialmente quando se chegava ao seu cimo desfrutava-se de um cenário deslumbrante, duma vista maravilhosa. Ao perto o enorme vale onde predominavam as terras e cerrados de milho, muito verde e robusto, mais ao longe a Assomada, com as suas casinhas a agregarem-se e a protegerem-se entre as encostas do Pico e do Outeiro, mais ao longe, a Rua da Direita com o seu casario altaneiro e a igreja com o campanário a sobressair sobre os telhados e, ainda mais ao longe, o mar, o Monchique e os navios. A protegê-la as encostas sombrias do Pico da Vigia.

É verdade que subir a Ladeira do Covão representava um enorme cansaço que, no entanto, se suavizava, com o encanto da paisagem, com o estonteante colorido da vegetação, com o perfume das flores, com os sabores dos frutos e, sobretudo, com a sublimidade do canto dos pássaros.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:09

A CASA DE TODOS OS SILÊNCIOS

Domingo, 06.10.13

Quando eu era criança, aquela casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, era como que o centro do mundo, para mim. Palco insubstituível dos meus sonhos, circo imperturbável dos meus desejos, baluarte latente dos meus anseios e aspirações, era nela que plantava todas as minhas cumplicidades tímidas, envergonhadas mas inocentes, era nela, nas suas paredes caiadas de branco, que eu desenhava o brilho estonteante das estrelas e era nela que eu hipotecava as minhas aparências idolatradas mas arrogantes de um futuro distante e indefinido.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, abriam-se todos os dias, implacáveis, inflexíveis e destemidas, como que a lembrar que a luz da madrugada trazia um rio de sons, de cores, de perfumes, rio que aos poucos, transcendendo as margens, se transformava numa enorme enxurrada de vidas, de encontros e de memórias permanentes.

A casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, ficava sobranceira ao povoado e era enorme, acolhedora, deslumbrante, destemida e sobretudo bela, muito bela. Estava sempre repleta de gente, de vozes, de encontros e de barulhos. Além disso estava envolta em véus de claridade desconcertantes e, assim como as portas, também as janelas, de onde se via o mar, o voo das gaivotas e o pôr-do-sol, estavam sempre abertas.

Quando entrávamos, a casa regurgitava memórias florescentes, imagens fascinantes, sons maravilhosos. A claridade entrava de mansinho, enchia-a de brilho e o vento afagava-a com deslumbrante desassossego.

E levada por correntes e marés, a casa navegou, embalada com o deslumbrante cântico das estrelas, adocicada com o permanente vozear dos rouxinóis e acicatada com o sublime perfume das roseiras, em anos de prosperidade e alegria, em idílios de ternura e devaneio, em ondas de serenidade, em eflúvios de deslumbramento, em pináculos de grandiosidade.

Depois?… Depois vieram anos desertos, tempos petrificados, momentos de solidão e a casa perdeu-se, apesar de continuar plantada no alto da colina…

E a claridade das madrugadas, embora disposta a ressuscitar a inocência dos silêncios, dispersou-se em ondas de abandono e sobrou, fortemente, no tempo, abalroando-a como se fosse os destroços de um navio naufragado.

E as portas da casa, branca e altiva, plantada no alto da colina nunca mais se abriram e até as janelas, outrora sempre abertas sobre o mar, se cobriram de uma enorme cortina de abandono e escuridão.

E agora quando todas as portas e todas as janelas se fecharam, apenas as paredes respiram, silenciosas, inconscientes, despidas de todos os ornamentos e desastradamente desertas, enchendo de silêncios a casa branca do alto da colina.

Os rugidos persistentes, roufenhos e aterradores do vento norte amortalharam-se, para sempre, transformando-se em cinzas dispersas sobre os musgos amortecidos do telhado.

O bater da chuva nas vidraças perdeu-se entre os resíduos dos fumos que, soltos e libertos, se evadiram pelas frestas do soalho.

O velho “Asónia” arqueado sobre uma prateleira encastoada na parede e que outrora martelava as horas dia e noite está destroçado. Não tem ponteiros e já nem se houve o bater de horas, nem muito menos o seu tiquetaque contínuo, aflitivo mas gracioso.

O reboliço contínuo e permanente da taramela da porta da cozinha, outrora sempre aberta ao relento das madrugadas e à fúria das tempestades, perdeu-se entre o rastro dos remoinhos das gretas das janelas.

Até os ecos roufenhos do ranger das dobradiças da porta da sala se calcinaram como se fossem cristais de gelo afundados num lago desértico.

As vozes, os gritos, os cânticos e até os ecos das sombras calaram-se para sempre porque a casa plantada no alto da colina, com vista sobre o mar, tornou-se sombria, cinzenta, deserta, dona de todos os silêncios e metamorfoseou-se em enigmático e terrível ermitério.

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publicado por picodavigia2 às 09:01

A ILHA MONTANHA

Domingo, 06.10.13

No magro chão de lava há perfume  

E o fluxo das marés sabe a frescura.

O Pico é um retalho de verdura

Do sopé da montanha até ao cume.

 

E se as fontes andejam de secura

Ou se o chão treme e arde em cruel lume

- Dias de terror, laivos de negrume -

O mar se abre logo. - Tanta fartura!

 

Zonzos, os currais negros dos vinhedos

Transformam esta lava em doce mosto!

Trabalhos tão sofridos são folguedos…

 

E nesta ilha de lava ressequida,

Até festas e folgas, em Agosto,

Joeiram o chão seco, dão-lhe vida!

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publicado por picodavigia2 às 00:10





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