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A FESTA DA SENHORA DO ROSÁRIO NA FAJÃ GRANDE

Terça-feira, 08.10.13

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, todos os anos se realizava, num dos domingos de Outubro e de forma a não coincidir nem com a Festa da Senhora do Rosário das Lajes nem com a festa do Patrocínio da Fajãzinha, a festa da Senhora do Rosário, também denominada, sobretudo por pessoas mais antigas, pela festa do Terço.

Esta festa, segundo contavam algumas pessoas mais idosas, tivera a sua origem por volta do ano de 1917, altura da primeira Grande Guerra Mundial e remontava também ao tempo em que começaram a ser divulgadas as aparições de Nossa Senhora aos pastorinhos de Fátima, altura em que, obviamente, ainda não existia a devoção à Mãe de Deus sob a invocação de Senhora de Fátima. Na altura, paroquiava a Fajã o padre Francisco Vieira Bizarra, homem de grande cultura e de acentuada espiritualidade, grande amigo de Nunes da Rosa que fora pároco o Mosteiro e a quem este escritor dedica um dos contos do seu livro “As Pastoraes do Mosteiro”. O padre Bizarra era natural de São Roque do Pico, tendo-se ordenado sacerdote em 1893, sendo nesse ano, nomeado coadjutor da Fajã Grande, onde era pároco o padre Manuel Augusto de Lima. O padre Bizarra permaneceu, como cura, na Fajã Grande, apenas durante dois anos, após os quais foi transferido para a vila das Velas, na ilha de São Jorge. Regressou à Fajã em 1909, agora como pároco, cargo que exerceu até 26 de Fevereiro de1922, dia em que faleceu com apenas cinquenta e dois anos de idade. Foi durante esta sua segunda e mais longa passagem pela Fajã Grande que criou a festa do Terço, em honra da Senhora do Rosário com o objectivo de solicitar à Virgem o regresso de todas aqueles que da Fajã Grande e de toda a ilha das Flores foram chamados a participar na primeira Grande Guerra e implorando também â Mãe de Deus que aquele terrível flagelo que devastou o mundo, no início do século XX, acabasse o mais depressa possível, para o bem de toda a humanidade. A festa continuou nos anos seguintes como cumprimento do voto feito, incentivou-se a quando da Segunda Guerra e mais tarde com a ocupação de Goa, Damão e Diu e, sobretudo, já nos anos sessenta, em plena guerra do Ultramar.

Na igreja da Fajã, no altar lateral sul, existia uma bela imagem da Virgem, de estilo barroco, pintada a ouro, com o menino ao colo e segurando nas mãos um enorme rosário de prata. Era essa imagem, conhecida como a Senhora do Rosário que era colocada em andor, no dia da festa, percorrendo algumas ruas da Fajã. Num dos domingos anteriores era feito um peditório por toda a freguesia. Ofereciam-se produtos agrícolas, galinhas, ovos, queijos, ofertas de massa e bolos doces, a fim de serem arrematados. Com o dinheiro resultante das arrematações e outros donativos era organizada a festa com confissões, tríduo preparatório, missa cantada, sermão, procissão e um pequeno arraial, mais tarde abrilhantado pela filarmónica Senhora da Saúde. Geralmente vinha um padre de fora, mais concretamente o padre António da Fajãzinha.

Acrescente-se que mês de Outubro era o mês consagrado ao Rosário de Nossa Senhora e que, durante o mesmo, era realizada, diariamente, na igreja paroquial, uma celebração denominada “Novenas do Rosário” em que se rezava o terço, havendo também uma prática ou pequeno sermão sobre cada um dos quinze mistérios do Santo Rosário, na altura, agrupados apenas em três categorias: gozosos, dolorosos e gloriosos. 

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publicado por picodavigia2 às 20:21

TERRA MALDITA TERRA BENDITA

Terça-feira, 08.10.13

Não havia dia em que o Luís do José Bento não fosse às Águas, mais do que uma vez. Era levar a Moirata à relva, onde florescia a erva já gasta e amarelada, era apanhar os inhames, na parte superior, junto à rocha, era subir a própria rocha, no corte de lenha para o lume.

Juntamente com a belga do Pico do Areal, as Águas eram o que os pais lhe haviam dado, quando casara e abandonara definitivamente o lar paterno. Era uma terra fraquita, junto à rocha, dividida em três partes. A parte mais baixa, que dava para a canada de serventia por um portal de pedra, era a erva, mas uma erva pouco tenra, onde a Moirata pastava nas noites frescas de Verão e nos dias chuvosos do Inverno. Mais acima, separada por uma parede baixa e alguns pequenos arbustos, a terra dos inhames, por entre os quais corriam alguns fios de água vindos das “grotas” da rocha. Na parte superior, e já pelas encostas da rocha, a terra de lenha, onde cresciam faias, incensos, alguns álamos e queirós.

Terra pobre e perigosa! Vezes sem conta, pela rocha rolavam enormes calhaus e ribanceiras que punham em risco as vidas do Luís e da Moirata. Ele, porém, já se habituara:

- É preciso é estar sempre atento. Quando elas caem um homem tem que fugir é p’ra junto da rocha. Se forem pedras escapamos... Se for ribanceira, tanto nos apanha longe como perto.

E lá ia, dia após dia, lamentando a sua sorte e o pouco que os pais lhe haviam dado relativamente ao que possuíam. Fora por isso, por lhe darem somente aquelas duas “niqinhas”, sem valerem quase nada e uma delas debaixo da rocha, que o Luís, a pouco e pouco, deixara de entrar em casa dos pais e já quase nem falava aos irmãos. Não fosse o cerrado do Porto, junto à casa, que a Amparo herdara da mãe e não teria milho, couves e batatas para sustento dos pequerruchos, que nasciamem catadupa. Vinhaaí o quarto!

Casara com a Maria do Amparo, abandonada pela mãe desde que nascera, sem conhecer o pai e criada em casa dos Fragarias. Os pais torceram o nariz a tal casamento... É que a Maria nada tinha de seu, a não ser o cerrado do Porto com a casa a cair e, além disso, era a filha da Engrácia, uma bendita que, pelos vistos, nem sabia quem era o pai da filha. A paixão, no entanto, não sem alguns amargos de boca, sobrepusera-se e ultrapassara os interesseiros caprichos paternais. O Luís, antes de casar, restaurara a casa. A mão-de-obra fora sua e de um ou dois amigos. Mas para comprar a madeira, o cimento e o restante material, teve que vender uma grande parte do cerrado, que muita falta lhe fez

Com a chegada dos filhos a vida tornou-se muito mais difícil e a casa pequena. O leite da Moirata, que a Amparo vinha todos os dias levar ao Martins & Rebelo, agora era quase todo para eles. O milho não chegava... E depois, ainda havia que comprar o açúcar, o café, o sabão, o petróleo... Apenas a roupa dos pequenos chegava da América...

- Da América!... A América!... Como será a América? – Perguntava o Luís, certo dia, ao Gancho, que há alguns anos para lá partira e agora regressara para vir casar. Sentados no Descansadouro do Batel, observavam um enorme e esbranquiçado paquete, que surgira da rocha da Ponta e se encaminhava para trás do Monchique.

- Aquele vai direitinho para a América! Aquilo é que é uma terra! – Dizia o Gancho e, num discurso imponente e convicto, descrevia-lhe, não sem lhe encravar alguma laracha e uma ou outra mentira pelo meio, a terra do Tio Sam.

O Luís ouvia-o mudo e pensativo.

Desde desse dia, porém, que a América não lhe saía da cabeça. O Gancho tinha razão. Ali na ilha, na Fajã, debaixo daquelas rochas, trilhando aqueles caminhos sinuosos, carregando cestos e molhos pesadíssimos, naquela terra maldita, era trabalhar, trabalhar, trabalhar, para não ter nada e ver os filhos a chorar de fome. A América sim! Aquilo é que é uma terra, uma terra para se viver à farta. É verdade que não se juntam dólares na rua, mas quem trabalha ganha o que quer. O tanso do José do Outeiro, que aqui nem sabia conduzir um carro de bois, já comprou um automóvel; o Augusto Amorim anda a varrer lixo, já comprou duas casas e manda montes de dinheiro aos pais. Ele próprio estava riquíssimo e para lá tinha partido há quatro anos, a trabalhar num rancho...

- Num rancho. Isto é que eu queria – cismava o Luís. - Trabalhar num rancho, na Califórnia, com dezenas, talvez centenas de vacas, tirar o leite com “mechins”, criar bezerros, ter uma vida farta, viver naquela terra bendita – pensava em voz alta.

Certo dia, depois de tanto matutar naquilo, terminando a ceia – um caldo de couves com uma talhada de toucinho e um quarto de bolo que a Amparo cozera à pressa - atirou-lhe, de soslaio:

- Maria, vamos para a América!

- Credo, home! Parece que não estás bom do juízo!

O Luís expôs-lhe, então, com clareza, todo o plano que, durante algum tempo, arquitectara, ultrapassando decidida e convictamente todas as dificuldades e obstáculos que a Amparo contrapunha, inclusindo o da falta de dinheiro para as passagens.

- Já falei com meu padrinho. Ele descansou-me e disse-me que tudo se há-de arranjar. Depois temos a Moirata e o bezerro que darão algum, mais a casa e este bocado do cerrado...

A Amparo não se continha:

- A casa?!... Vais vender a nossa casa!?... E depois, se chegamos a S. Miguel, não arranjamos os papéis e temos que voltar para trás?!...

Naquela noite não dormiram, mas, de madrugada, a decisão estava tomada.

O Carvalho chegou às Lajes já noite escura. Demorara muito no Corvo, pois, trazia um Senhor Secretário de Estado de Salazar, acompanhado de numerosa comitiva, que vinha inaugurar o novo edifício dos Paços do Concelho. De certo que iria demorarem Santa Cruze, sobretudo nas Lajes, onde ficaria à espera de Sua Ex.cia, que tinha jantar agendado nas Flores. Os passageiros, no entanto, embarcaram imediatamente. Na última lancha, seguiu o Luís com a Aida num braço e o José Luís noutro, enquanto a Amparo sentava a seu lado a mais velha, a Ana e apertava no colo o Augusto, que nascera poucos meses antes. Ao aproximarem-se do velho paquete, a carita de espanto dos miúdos contracenava com as lágrimas da mãe. O vulto negro do Carvalho, onde entraram temerosos e inseguros, estava ali, flutuando sobre as águas calmas do oceano, como um monstro tenebroso e temível, que os engolia sem piedade. No convés e nas torres dezenas de luzes projectavam-se na noite escura e reflectiam-se nas águas mansas e límpidas da baía das Lajes. Do outro lado, a vila e a ilha, distanciando-se cada vez mais.

O navio levantou ferro já depois da meia-noite. Viajando em terceira classe, apenas a Amparo e os pequenos tiveram direito a um beliche, por condescendência especial do senhor Imediato. O Luís tinha que pernoitar no convés, numa cadeira que apanhasse livre. Como não encontrasse nenhuma, dirigiu-se para a borda do vapor, que, iniciava uma marcha lenta, enquanto, cada vez mais longe, a mancha escura da ilha, delineada pelos reflexos dos faróis das Lajes e do Albarnaz, se ia perdendo no infinito, até desaparecer

Agora só o roncar turbulento das máquinas, o marejar sincronizada do oceano, a incerteza escura da noite. O Luís perdera o sono. Debruçado sobre a borda do navio, observava a ilha cada vez mais longe, mais pequenina e mais perdida na escuridão.

Em Ponta Delgada fixaram-se na Rua do Arquinho. Um quarto pequeno, com duas camas. Era caro mas a Amparo podia utilizar a cozinha, o que tornaria a estadiaem São Miguel, não se sabia por quanto tempo, mais barata, embora agora tivesse que comprar tudo, até o leite, as batatas e o pão. Além disso o Consulado da América era perto, ali na avenida dos Milionários, e o Luís poderia deslocar-se a pé, sempre que necessitasse.

Os dias, porém, teimavam em passar sem nada se decidir. No Consulado eram horas e horas de espera para no fim ouvir: - “Volte amanhã.” ou “Olhe, ainda não chegou nada.” Ao regressar ao quarto eram os pequenos trancados no quarto, desassossegados, inquietos, pegados uns com os outros, era a Amparo aflita, sem pão, sem leite, sem açúcar e, pior do que tudo, sem esperança... Não raras vezes atirava-lhe à cara a precipitação em vender a Moirata, a casa e as terras:

- Eu devia ter ficado com os pequenos na Fajã e tu vinhas sozinho! Se conseguisses vínhamos ter contigo. Assim o que vai ser de nós? Vamos voltar para trás sem nada, desgraçados!... Totalmente desgraçados! Lágrimas amargas corriam-lhe pelos olhos, enquanto apertava ao peito o mais pequeno, que se desfazia em acentuado berreiro.

O Luís, já nem a ouvia! Permanecia mudo, apático e indiferente.

Os dias eram passados no pequeno cubículo. Deixar as crianças virem arejar e brincar para a rua no meio de tantos carros? Nem pensar!... A maioria das refeições eram pão e leite, porque esses não podiam faltar aos pequenos. O Luís saía de manhã, ia ao Consulado, trazia o pão e ali ficavam a tarde inteira, fechados no quarto, pensativos, tristes, misturados no reboliço dos filhos, Numa tarde, em que os três mais novos dormiam e a Ana saíra a convite duma filha da dona da casa, a Amparo resvalando dum passageiro e agora pouco vulgar rescaldo amoroso, timidamente, adiantou:

- Tenho, desde há muito, uma coisa para te dizer e não tenho coragem...

O Luís, assustado e estupefacto levou as mãos à cabeça:

- Vem aí outro?! Não faltava mais nada!

- Credo home! Vira-me a boca para o lado. Não é nada disso. É que antes de sair da Fajã, fiz uma grande promessa.

- Ora! Todos os que vão para América fazem promessas! Qual foi a que fizeste?

- Um jantar ao Senhor Espírito Santo... do Portal ao Risco!

- Fajãzinha, Cuada, Fajã e Ponta!?

- Sim, carne e pão em todas as casas, em louvor do Senhor Espírito Santo.

O Luís emudeceu. Sabes por quanto isso fica, Maria? Só a carne é uma fortuna! São precisos quatro bois!.. E temos que o vir dar? E as passagens?

A Amparo não pensara em nada disso. Apenas prometera, no meio de uma grande aflição, quando o vira vender a Moirata, a casa e o cerrado. Só o Senhor Espírito Santo os poderia salvar. Se tudo lhes corresse bem não teriam problemas. Não havia ninguém que fosse para a América com promessa e não viesse pagá-la.

- Pois – concluía o Luís – mas do Portal ao Risco, não é qualquer um.

E o milagre aconteceu. Finalmente chegou a tão almejada notícia! O Luís entrou no quarto efusivamente, saltando, abraçando a Amparo e esquecendo os filhos que, apáticos, não entendiam muito bem a razão de tão grande alarido. O Luís, aos soluços, num misto de alegria e sofrimento, exclamava:

- Eu sabia! Eu sabia que iríamos conseguir!

- Louvado seja o Senhor Espírito Santo!

- P’ra sempre seja louvado! – Rematou o Luís, acrescentando -  Assim que pudermos havemos de voltar todos para pagar a promessa.

A Agência “Melo & Cabral” tratou das viagens e dos passaportes. O dinheiro que sobrou da longa e penosa estadiaem S. Miguelquase nem deu para o carro de praça que os levou ao Aeroporto. Assim como o Carvalho, fundeado na baía das Lajes, os engolira naquela noite em que partiram das Flores, agora era o avião da SATA que os transportava até Santa Maria, para então tomarem o Boing da TAP, com destino a Boston. Voando sobre o Atlântico, enquanto os pequenos dormiam, a Amparo constrangida e amedrontada voltava-se, novamente, para o Divino Espírito Santo. O Comandante anunciava:

- Senhores passageiros, muito boa tarde. O nosso voo até Boston demorará cerca de quatro horas. Neste momento estamos a sobrevoar a ilha das Flores.

A Amparo de olhos fechados, fingindo dormir, nem o ouviu. O coração do Luís, porém, deu um enorme baque. Olhou pela pequena janela. O avião sobrevoava a parte sudoeste da ilha: as Lajes, a Fajã de Lopo Vaz, a Rocha Alta, um enorme alcantil escarpado, sobranceiro ao mar. Depois umas casitas isoladas, devia ser a Costa. Logo a seguir o Lajedo, o Mosteiro e lá ao fundo a ponta negra do baixio, estendida pela ilha fora, com as casinhas brancas, muito alinhadas e agrupadas. Por trás, como que a protegê-las, as escarpas do Outeiro e, finalmente, a rocha – era a Fajã!

Os olhos do Luís encheram-se de lágrimas, lágrimas de dor e lágrimas de raiva. Se não via, podia ao menos imaginar os caminhos que percorrera carregando molhos de erva, de incensos, de lenha, cestos de inhames, de milho e de esterco. Quanto sofrera, debaixo daquelas rochas, calcorreando aqueles atalhos, sem horas de descanso! Quanto trabalhara de enxada ou sacho na mão naquelas terras, semeando batatas, mondando o milho e plantando couves! Nunca tivera um tostão! Saíra de lá mas endividado! É verdade que era a sua terra, era a terra onde nascera, que lhe estava no corpo, mas era a terra maldita, que não lhe dera, nem nunca lhe daria aquilo com que tanto sonhava – fartura, não tanto para si, mas sobretudo para os filhos.

A Ampara, agarrando-se a ele, apenas perguntou:

- Vês a nossa casa?

- Não vejo nem quero ver – respondeu o Luís baixando o cortinado da janela.

No aeroporto de Boston a confusão estava institucionalizada. Dezenas de portugueses ali desembarcaram, nas condições do Luís. À maior parte, ou seja os que ali faziam escala para San Francisco, com destino à Califórnia, foram dadas ordens para não sair do avião. Um dos mais espevitados, com ar de “espertalhote”, experimentado em tais andanças, explicou, com ar de sabichão:

- Temos que sair. A TAP não voa para San Francisco, temos que mudar para a “Amaricana Arlaite”.

Nada, porém, se resolvia e os insultos começaram a chover:

- Tratam-nos como animais!

- Só lhes interessa o nosso dinheirinho!

- Depois de terem a massa no bolso não ligam a ninguém.

Algum tempo depois, uma senhora, de meia-idade, esquelética, cabelo louro, vestindo uma farda azulada, com um lenço azul e vermelho ao pescoço, entrou no avião e gritou com voz inglesada:

- Can va parra San Francisco siga-me porr favorr. Van semprre atrraz de mi.

Os portugueses, nos quais se incluía o Luís, a Amparo e os filhos, formaram uma fila compacta, amontoando-se e atropelando-se uns aos outros. Saindo do avião, percorreram corredores infindáveis por onde deslizavam funcionários fardados, passageiros em trânsito, de raças e nacionalidades diversas, carregando malas e sacos, num baralhar-se contínuo. A senhora da pronúncia americanizada, ao chegar à sala de embarque, avisou-os de que esperassem ali, até ser feita a chamada para o voo da TWA, com destino a San Francisco.

Este porém tardou. A noite já se aproximava. Na sala reinava a impaciência. As crianças choravam com fome e os adultos protestavam sem que ninguém os atendesse. Finalmente outra funcionária, falando português pior do que a primeira, entrou na sala e conduziu-os ao avião. Quatro horas mais tarde aterravam no aeroporto de San Francisco.

Depois de alguns dias em Vallejo, em casa da irmã Alice, o Luís, a Amparo e os pequenos rumaram para o Fresno, no Vale de S. Joaquim. Fora um primo do cunhado Heriberto que arranjara o emprego, precisamente o que o Luís queria. O ranho pertencia a um italiano, que passava mais tempo no seu país do que nos Estados Unidos. Assim era-lhe atribuída toda a responsabilidade de trabalho e a guarda do mesmo. Para além duma casa enorme, tinha direito ao leite que precisasse, poderia criar os bezerros que entendesse e cultivar o que lhe interessasse, nos campos circundantes. O patrão passaria por ali, apenas, uma vez por ano.

Um sonho! Uma maravilha! Era exactamente o que o Luís pretendia. A América, mais concretamente a Califórnia, era, realmente, a Terra bendita com que tanto sonhara.

O acentuado interesse pela agricultura e pela criação de gado que o Luís sempre revelara, concretizava-se agora de forma objectiva. Além disso conjugava o trabalho de que gostava com o ganho e a fortuna com que sonhava. Em casa não faltava nada! Pão, leite, batatas couves e carne sobretudo carne!... E no fim do mês os dólares. A Amparo tratava da casa e da horta. Ele ordenhava dezenas e dezenas de vacas, carregava o leite num pickup que ele próprio conduzia e tratava de todas como se fosse a sua Moirata. Tudo ali, perto de casa, sem grande esforço, com “mechins” de todas as espécies e até com um automóvel para passeios e compras. Os filhos cresciam, iam para a escola e já falavam melhor inglês do que português. Aos quatro levados dos Açores juntaram-se mais quatro. As dívidas estavam pagas e já havia muitos dólares no banco. A Ana casou e veio o primeiro neto.

Era altura de voltar às Flores para pagar a promessa ao Senhor Espírito Santo. Isso não podia falhar!

Na véspera da partida, porém, a tragédia sobrepôs-se à continuada concretização do sonho de sempre, agora tornado realidade. O Luís sucumbia, vítima de um ataque cardíaco. Ali, naquela Terra bendita, mas que, apesar de tudo, fora incapaz de lhe segurar a vida.

Passaram-se os anos. Numa manhã cálida e cinzenta de Outono, em todas as casas da Ponta, da Fajã, da Cuada e da Fajãzinha fumegava, quer em velhos caldeirões de ferro quer em modernas panelas de pressão, carne guisada e sobre a mesa, um, dois ou três pães.

Era o jantar oferecido pela viúva do Luís de José Bent

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publicado por picodavigia2 às 14:59

O LARGO DE SANTO ANTÓNIO

Terça-feira, 08.10.13

Antes da construção da actual estrada entre o Porto da Fajã e a Ribeira Grande, no caminho que ligava a Assomada às hortas e aos Lavadouros, precisamente no sítio em que aquele caminho formava um cruzamento que dava para a Cuada, havia um largo, conhecido por Largo de Santo António ou simplesmente Santo António. Este largo, como tantos outros lugares na Fajã, tinha, fundamentalmente, a função de descansadouro ou seja, o de ser um sítio rusticamente preparado de modo a que os homens pudessem pousar as cargas que transportavam, descansar e conversar um pouco. Na realidade,em Santo António, como no Alagoeiro, no Pico Agudo ou na Ribeira das Casas e em tantos outros sítios, os homens, ao regressarem dos campos vergados ao peso dos pesados molhos de erva santa, de fetos, de incensos, de lenha ou com cestos a abarrotar de fruta ou de inhames paravam para descansar e cavaquear. Colocando os pesados carregamentos sobre as paredes circundantes, limpavam o suor com as costas das mãos, com lenços ensebados ou até com as mangas das frocas, com as quais também formavam espécies de rodilhas ou almofadas que colocavam sobre as pedras soltas, encostadas às abas das paredes mais abrigadas, para se sentarem sobre elas, de modo a não “apanharem frio”. Descansavam, fumavam, trocavam lume e cigarros, por vezes, se o descanso era mais prolongado, até falquejavam troncos de cana-roca ou um garrancho qualquer e conversavam, discutiam, umas vezes a tirar teimas outras “acertar contas”, recriminando-se reciprocamente. Uns vinham de longe outros de perto, uns mais cansados outros mais aliviados, mas todos ali se sentavam de manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite.

O largo era circundado por três altas paredes. A Sul, do lado do Delgado ficava uma horta pertencente ao José de Nascimento, com paredes altíssimas e um gigantesco portão sobre o qual havia um pequenino nicho com uma imagem de Santo António, padroeiro onomástico do lugar. A Oeste e do lado da Cuada uma outra parede, também bastante alta e abrigada, pertencente a uma terra do Roberto de José Padre. A norte e a fazer esquina com as duas primeiras, uma terra do Augusto Mariano, com paredes mais baixas e uma espécie de maroiço anexo que servia de palanca onde os homens colocavam molhos e cestos. Um pouco acima e logo no início do caminho que dava para a Cuada havia uma relva pertencente ao Josezinho Fragueiro, onde havia uma nascente de água com uma bica que jorrava permanentemente um diáfano e fresquinho fio de água, onde homens, mulheres e crianças que por ali passavam ou ali paravam a descansar iam matar a sede. Muitos, no entanto, sobretudo crianças e mulheres, não iam à fonte sozinhos, simplesmente por medo, pois tinha sido naquele sítio, numa outra terra ali ao lado que, alguns anos antes, se teria enforcado um dos filhos da Mariana Felizarda.

A estrada passou e o Largo de Santo António, como muitos outros da Fajã, perdeu o seu protagonismo. Mas como aquele lugar manteve o mesmo nome e, talvez recordando o antigo nicho cuja imagem acabou por desaparecer, foi construída, precisamente no canto da terra do Augusto Mariano, no local onde, durante anos e anos, se colocaram tantos molhos e tantos cestos, uma pequena ermida dedicada a Santo António.

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publicado por picodavigia2 às 11:22

MAR

Terça-feira, 08.10.13

O mar…

é um tonto,

porque sabe a mar,

mas não sabe amar.

 

O mar

é um louco

porque umas vezes amansa,

mas nunca descansa.

 

O mar

é um estranho

porque, apesar de infinito,

não houve o meu grito.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:19

ESTER

Terça-feira, 08.10.13

Assuero era um rei poderosíssimo, vivendo num belo palácio, luxuosamente decorado, com cortinados de púrpura, presos por cordões de algodão branco e com anéis de prata, a colunas de mármore. Os leitos eram de ouro e prata, o pavimento de mármore branco e o tecto de nácar. Em sua companhia vivia a rainha Vasti, esposa exuberante e bela, mas altiva e presumida.

Certo dia, Assuero ofereceu um grande e lauto banquete a todos os reis e príncipes da vizinhança, a fim de lhes mostrar todo o esplendor da sua glória. No final do festejo, Assuero convidou-os para passarem, na sua companhia, sete dias, durante os quais seriam seus hóspedes, convivendo no seu palácio. Todos os presentes aceitaram e, chegado o sétimo dia, Assuero ordenou aos seus eunucos que trouxessem, à presença de todos os convidados, a rainha Vasti, que havia de vir vestida com as melhores roupas e ornada com o diadema real, a fim de que a exibisse, perante todos, a sua beleza, a sua formusura e, sobretudo, o seu luxo e a sua riqueza, A rainha recusou-se a obedecer a tal ordem e o rei, tomado de uma enorme ira, reuniu os conselheiros do reino e decidiu que iria destituí-la, despojando-a de todos os bens e retirando-lhe todos os direitos de rainha e esposa. Cuidava o monarca que com o seu exemplo, daí em diante, no seu reino, todas as mulheres haviam de obedecer aos seus maridos e todo o homem, desde o mais alto dignitário da corte até ao mais humilde camponês, passaria a ser o senhor da sua casa e a fazer-se respeitar pela sua esposa.

Mas Assuero ficou muito triste com esta decisão e, pouco tempo depois, ordenou que se procurassem, por todo o reino, donzelas virgens e belas de aspecto. Trazidas à presença do rei, Sua Majestade havia de escolher, entre elas, a que mais lhe agradasse, a qual se tornaria rainha, ocupando o lugar da rebelde Vasti. Hegai, o eunuco do rei encarregado de zelar pelas mulheres do palácio, havia de providenciar às necessidades do seu toucador, preparando, também, os seus aposentos.

Ora, havia na cidade, uma jovem, chamada Ester, filha adoptiva de Mardoqueu. A moça, apesar de órfã de pai e mãe, era de belo porte, agradável de aspecto e ornada de virtude e sabedoria. Ester foi apresentada ao rei, juntamente com numerosas jovens, mas foi ela quem mais agradou a Assuero, granjeando as graças de sua Real Majestade que, de imediato, lhe ofereceu roupas, jóias, unguentos e perfumes para seu adorno. Além disso, providenciou-lhe sete damas que a acompanhariam e a serviriam dia e noite, reservando-lhe o melhor apartamento do palácio. Ester não lhe revelou a sua vida, simples e humilde, nem sua família, nem do seu povo, porque Mardoqueu lhe tinha proibido falar sobre isso.

O rei todos os dias passeava diante do pátio do apartamento de Ester, para a ver e para ter notícias dela, admitindo-a, ele próprio, no seu apartamento, à tarde e até pela manhã, não a tendo mais junto de si, a não ser que disso tivesse manifesto o desejo ou exígua oportunidade.

Assuero amou Ester mais do que todas as outras mulheres que, assim, granjeou todas as graças e favores reais e, por isso, lhe colocou sobre sua cabeça o diadema real e a fez rainha.

Passado algum tempo o rei deu, novamente, um grande banquete, desta feita, em honra de Ester, para o qual convidou todos os reis e príncipes da vizinhança. Ora Ester tinha um inimigo chamado Hamã, que era amigo e ministro do rei Assuero e que também foi convidado para o banquete. Hamã odiava Mardoqueu, o pai adoptivo de Ester, por ele não se inclinar perante ele e, por isso, elaborou um plano diabólico para o destruir, assim como o seu povo. Durante o banquete, Assuero, exaltando a beleza e a virtude de Ester, disse-lhe:

- Minha adorada Ester, pede-me o que quiseres e eu to darei de imediato.

- Eis o meu desejo, senhor: salva Mardoqueu da morte e salvando-o a ele salva também o seu povo. - Disse Ester, com firmeza e acrescentou - Mardoqueu e o seu povo, foram votados ao extermínio, à morte, ao aniquilamento. Se tivessem sido vendidos como escravos, eu me calaria, mas eis que agora o opressor não poderia compensar o prejuízo que causa ao meu rei e senhor.

- Quem é esse tirano, – perguntou o rei, - e onde está quem maquina tal projecto em vosso coração?

- O opressor, o inimigo, - disse a rainha, - é Hamã. Eis aí o infame!

Hamã ficou tomado de terror diante do rei e da rainha. Assuero, num acesso de cólera, levantou-se, abandonou o banquete e dirigiu-se para o jardim do palácio, enquanto Hamã permanecia ali, a fim de implorar o perdão de Ester, porque via bem que no espírito do rei estava decretada a sua sentença de morte. De nada serviram os seus choros e pedidos. Passado algum tempo, Assuero mandou suspendê-lo na forca que ele próprio tinha preparado para Mardoqueu.

Nesse mesmo dia Assuero ofereceu à rainha Ester a casa de Amã, que ela de imediato deu a Mardoqueu. Ester voltou de novo à presença do rei e, prostrada a seus pés, desfeita em lágrimas, suplicava-lhe que destruísse as maquinações que Hamã tinha, perversamente, urdido também contra o seu povo. O rei estendeu o ceptro de ouro a Ester, a qual se pôs em pé diante dele.

- Se parecer bem ao rei, - disse ela, - e se achei graça diante do meu senhor e se isso que lhe peço parecer justo e se sou agradável a seus olhos, revogue as cartas, que Hamã, redigiu para perder o seu povo, destruindo todas as províncias do reino. Como poderia eu consentir nas desgraças que aguardam o meu povo, sem vos implorar que tal não permitais?

Então o rei Assuero, comovido com a bondade de Ester, mandou aos escribas, que escrevessem cartas a todas as cidades do reino para que não fossem executadas as leis que o déspota Hamã havia decretado, sem o seu consentimento.

Foi assim que Ester provou ser uma sábia e muito digna mulher, permanecendo humilde e respeitada não só pelo rei Assuero mas também por todos os seus súbditos.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:07





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