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AS LINGUAGENS DO “PÊ” E DO “Ó”

Quinta-feira, 10.10.13

Muito longe iam a nossa imaginação e a nossa criatividade, quando éramos crianças. Não havia computadores, consolas, playstations, iPhais, iPhones e afins, nem sequer automóveis de latão, cornetas de plástico ou bolas de couro, é verdade, mas inventávamos tudo o que pretendíamos, criávamos tudo o que desejávamos e construíamos tudo aquilo com que sonhávamos. Assim era com brinquedos, com jogos, com cantorias, com passa tempos e até, porque não, com a linguagem.

Quem não se lembra duma linguagem utilizada nos nossos tempos de escola e que usávamos depois de já ter “empinado” os nomes dos rios, dos reis, das linhas-férreas, das províncias de Portugal e até das próprias capitais europeias. Era a linguagem do «pê” que tinha como objectivo baralhar, sob o ponto de vista linguístico e de compreensão, os nossos interlocutores e que consistia no uso e emprego do som “pe” depois de cada uma das sílabas de toda e qualquer palavra, acrescentando-lhe o som vocálico da mesma. Assim, por exemplo, a frase “Eu vou jogar ao pião” pronunciava-se da seguinte maneira: “Eupeu voupou jopogarpar aopo pipiãopão.”  O interessante e curioso era que falávamos esta linguagem com uma competência, uma destreza e um à vontade notáveis. Como tempo não nos faltava, treinava-se muito.

Mas não ficava por aqui a nossa criatividade em termos linguísticos. Assim criámos também, com objectivo semelhante, uma outra linguagem, a do «ó», que consistia em colocar o som «ó» pelo meio de cada palavra que se pronunciava, geralmente junto à sílaba tónica, tentando assim dificultar a sua compreensão por parte do nosso interlocutor, servindo, neste caso para lhe dizer, de forma não comprometedora, uma ou outra palavra mais grosseira ou até um insulto ou um palavrão.

Assim este texto poderia muito bem ser “agraciado” por qualquer utilizador da linguagem do «ô», com o objectivo de ocultar subtilmente um possível ultraje a quem o escreveu com uma frase como a seguinte: “Merôda friôta paraô quemô fôez estaô escriôta.

 

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publicado por picodavigia2 às 20:36

A VIA LÁCTEA

Quinta-feira, 10.10.13

Conta-nos um dos muitos mitos da Grécia Antiga que Faetonte, o mais importante filho de Hélios (Sol), estando um dia a jogar apaixonada e emotivamente aos dados com o seu amigo Epapo, este, ao ser derrotado, como mau perdedor, desentendeu-se com ele e lançou-lhe à cara alguns insultos, nos quais se incluía uma grave e ofensiva suspeita de que ele não era filho de Hélios, o que punha linearmente em causa a seriedade da ninfa Climene, sua progenitora. Faetonte, preocupado com o insulto, foi interrogar Climene que, de imediato, o mandou certificar-se junto do seu pai, Hélios. Este confirmou que era o seu pai de verdade e, como prova dessa paternidade, despojou-se dos seus próprios raios em benefício do filho, ao mesmo tempo que jurava conceder-lhe, como real prova da sua efectiva paternidade, tudo o que Faetonte ali mesmo lhe pedisse. O jovem Faetonte pediu-lhe, então, que o deixasse conduzir, apenas por um dia, as rédeas do seu próprio carro. Não era essa a vontade de Hélios, mas como prometera em juramento, não podia voltar atrás com a palavra dada. Assim, Hélios emprestou-lhe o seu carro puxado por fortíssimos cavalos, deu-lhe a respectiva certificação de condutor e indicou-lhe a rota que devia seguir. Os fulgores juvenis de Faetonte, porém, levaram-no, em louca correria, até ao horizonte terrestre, numa desordenada condução, ora subindo em demasia e provocando oscilações nos astros, ora descendo abissalmente e aproximando-se demasiado da Terra. Os cavalos assustaram-se e os raios de Faetonte começaram, de imediato a queimá-la e a incendiá-la, ao mesmo tempo que afastando-se, ela arrefecia. Gerou-se, assim, um caos tremendo e universal, que culminou em tempestades ciclónicas e diluvianas, trovoadas contínuas, cataclismos destruidores e inundações arrasantes. A fim de salvar a Terra de um cataclismo destruidor, Zeus, pai dos deuses, viu-se obrigado a fulminar Faetonte com um raio, caindo o seu corpo no rio Eridano, perante o choro e o lamento de suas irmãs Helíades, que de tanto chorar se transformaram em choupos enquanto o seu amigo Cícuo, também por chorar em demasia, se transformou num cisne, eternamente errante pelas margens do Eridano. A desordem no universo foi tal que, durante um ano, não houve Sol e a corrida dos cavalos foi tão violenta que do carro ficou um rastro no firmamento, que se prolongou até hoje e que ainda se pode observar no céu, todas as noites - a Via Láctea ou o Carreiro de São Tiago.

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publicado por picodavigia2 às 14:33

A MULHER COM PÉS DE CABRA DA LADEIRA DAS COVAS

Quinta-feira, 10.10.13

O Bigorna chegou a casa espavorido, misantropo, desfeito, esgazeado, a tremer como varas verdes e branco que nem cal. Enfiou-se na cama vestido, recusou-se a comer ou a beber o que quer que fosse, rejeitou a travesseira e cobriu a cabeça com os cobertores. Não tugiu nem mugiu durante o resto do dia. Um caco!

A mulher sabia que ele se levantara bastante cedo para ir ceifar um molho de erva à lagoa das Covas e, muito provavelmente, havia de demorar-se por lá algum tempo, como era seu hábito. Por isso, quando o viu entrar pela porta dentro, àquela hora e naquele estado, abriu a boca até aos ouvidos, perdeu a fala e ficou estancada na cozinha qual estátua de gesso. Depois, despertando de tão inaudita letargia, de um salto, abriu a porta do quarto, abanou o homem, sacudiu-o, balanceou-o, tentou descobri-lo e forçou-o a levantar-se. Mas nada. Parecia morto. É que quanto mais o sacudia mais ele se aquietava, quanto mais o remexia mais ele afrouxava e quanto mais o puxava para fora dos cobertores mais ele se encafuava quedo e mudo por entre os sulcos das folhas de casca que enchiam o colchão da velha enxerga.

A mulher, de consumida passou a alvoraçada, de alvoraçada a tresloucada e, cuidando que solavancos, repelões e lambadas naquele corpo inerte de nada valeriam para avivar tão estranho e repentino entorpecimento, desata pela vizinhança a gritar, a berrar e a pedir socorro. “Que lhe acudissem. Que acontecera uma grande desgraça. Que o seu homem estava a morrer. Que nunca se vira uma coisa assim.” Tanto foi o alarido e tão grande o berreiro que, em breve, a casa se encheu de vizinhas, de préstimos, de conselhos, mas também de lamentações e, até, de suspeitas e de desconfianças. Ali havia gato. Olaré se havia!

E os alvitres começaram a disparar: “Chama o senhor padre, faz-lhe chá “mastrunços”, põe-lhe um crucifixo nas mãos, tira-lhe os cobertores, põe-lhe um pano molhado na testa, promete um boneco a Santo Amaro, acende uma vela a Santa Luzia, dá-lhe canja de galinha…” Uma enxurrada de sugestões que não tinham fim. Fez-se de tudo e até o vigário veio, com cruz, água benta e livro de exorcismos. Mas nada… O Bigorna quedava-se recolhido no leito, mudo, inerte, estático, indiferente a tudo e a todos, perante o cada vez maior desespero da mulher e o inacreditável espanto dos circundantes.

Passaram-se dois dias, três dias de angústias extremas e de preocupações galopantes e nada. Ao quarto dia, mandada vir do Lajedo de propósito, apareceu por ali a Georgina Benta, muito entendida e experiente em bruxedos e maus olhares. Observou o doente e sentenciou de imediato:

- Há aqui o dedo do mafarrico! Se há… Ou eu não me chamo Georgina Benta. Aqui há bruxedo e dos graúdos. Posso garantir que isto só lhe passa com uma oração do livro de São Cipriano.

A mulher do Bigorna, muito da igreja e muito conceituada junto do pároco e de sua irmã, a princípio não aceitou muito bem a ideia. Mas era o seu homem que definhava dia a pós dia. “Só quem passa por isto é que sabe. Venha de lá a Benta e traga o livro de São Cipriano e todos os livros que quiser e entender. Primeiro que tudo está a saúde do meu homem.”

Entrou-lhe pois, a Benta do Lajedo, pela porta dentro, de vassoura e balde cheio de água benta. Não esteve com meias medidas e atira para cima do Bigorna a oração da “Cabra Preta”, enquanto o ia salpicando com respingues da água retirados do balde e atirados com a vassoura: “Cabra preta milagrosa que pelo monte fugiu, trazei-me o Bigorna que de minha mão sumiu (…) Bigorna, com dois te vejo, Bigorna com três te prendo, com Caifaz, Satanás, Ferrabás. Ámen!”

Não demorou muito. O Bigorna, ou pelo fresco da água ou pela intercessão de São Cipriano, lá foi escapulindo lentamente da letargia em que se encontrava. Esperneou, contorceu-se, escabujou, esticou o corpo prolongadamente, arregalou os olhos, atirou com os cobertores às urtigas e veio pôr-se à janela, a olhar admirado para a meia dúzia de mirones que lhe haviam parado em frente da casa.

Nunca se soube a quem o Bigorna contou o seu segredo. Mas toda a freguesia, algum tempo mais tarde, teve conhecimento do que acontecera naquela iníqua madrugada: o Bigorna cruzara-se na ladeira das Covas com uma mulher, jovem e bela, mas que não conheceu. Voltando-se para trás, por mera curiosidade, seguiu-a durante uns segundos. Foi então que a mulher também se voltou e o Bigorna, estarrecido de medo, viu que da cintura para baixo, tinha o corpo coberto de pêlo negro que parecia pêlo de cabra e os pés, esses eram mesmo bem iguaizinhos aos pés de uma cabra.

A parir de então muita gente da Fajã e da Ponta tinha um medo enorme de passar na Ladeira das Covas, onde uma misteriosa mulher, com pés de cabra, aparecera ao Bigorna.

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publicado por picodavigia2 às 10:15

ANDRÓMEDA

Quinta-feira, 10.10.13

Há muitos e muitos anos, num longínquo e legendário reino, vivia um poderoso monarca, chamado Cefeu, casado com a rainha Cassiopeia. Tinham, apenas, uma filha, de nome Andrómeda. Mãe e filha eram detentoras de tão grande e invulgar beleza, que reis e príncipes vinham, em caravana, das mais recônditas partes do mundo, exclusivamente, para contemplá-las. A mãe, porém, era vaidosa, soberba e arrogante enquanto Andrómeda era humilde, modesta e bondosa.

Certo dia, a rainha que se considerava a mulher mais bonita do mundo, perante uma multidão que a aclamava, ousou proclamar que era mais bela do que as próprias Nereidas, as princesas do mar, muito belas, gentis e generosas, sempre prontas a ajudar os marinheiros em perigo e que, pela sua beleza conquistavam os corações dos homens. Poseidon, deus dos mares, decidiu punir a rainha Cassiopeia por tão grande e arrogante atrevimento e por tão inusitada ofensa às mais belas criaturas do orbe - as filhas do seu amigo e companheiro Nereu, um velho e pacato deus marinho, com quem elas compartilhavam as águas do mar e que era justo, benevolente e sábio, sempre pronto a perdoar e, por isso mesmo, representando a calma e a serenidade das águas do oceano. Para castigar Cassiopeia, por tamanha ousadia, Poseidon enviou à terra um monstro marinho, chamado Ceteu, que havia de atacar e destruir por completo o reino de Cefeu e da sua vaidosa e arrogante consorte. Desesperado, Cefeu, ao tomar conhecimento de tão catastrófica ameaça, foi consultar um oráculo que lhe revelou que o seu reino só poderia ser poupado à hecatombe e salvo das ferozes garras de Ceteu, se ele sacrificasse a sua própria filha Andrómeda, entregando-a ao monstro, a fim de que este a devorasse. Cefeu decidiu salvar o seu reino e imolar a sua própria filha, acorrentando-a a um rochedo de uma ilha longínqua, para que o monstro a devorasse.

No entanto, algum tempo depois, passou pela ilha onde Andrómeda estava acorrentada, um jovem, chamado Perseu, que a salvou.

Perseu era filho de Zeus e de Dânae. Logo após o seu nascimento, seu avô Acrísio meteu-o numa arca, juntamente com a mãe e atirou-a ao mar, a fim de que ambos perecessem. Assim Acrísio, um velho e ambicioso monarca, via-se livre deles para sempre. A correnteza das ondas, porém, arrastou a arca em que foram metidos Perseu e Dânae, até a ilha de Sérifo, no reino de Polidectes. Foi o próprio Polidectes que os encontrou na praia, os recolheu e os levou para o seu palácio, onde os hospedou. Passado algum tempo Polidectes apaixonou-se por Dânae e tomou-a como esposa e rainha. No entanto, com receio de que Perseu se opusesse, Polidectes decidiu afastá-lo do palácio e de junto da mãe. Para isso impôs-lhe uma tarefa, aparentemente, impossível: Que lhe trouxesse a cabeça de Medusa, uma perigosíssima górgona que transformava em pedra todos os que se aproximassem e olhassem para ela. Cuidava assim o déspota que Perseu nunca havia de vencer o monstro. Ao contrário, seria transformado num pedregulho e, por conseguinte, ver-se-ia livre dele, para sempre. Mas o jovem Perseu, com a ajuda da deusa Atena, que lhe emprestou as suas próprias armas e escudo, venceu Medusa, decapitando-a enquanto ela dormia. Perseu, triunfante, decidiu, regressar ao reino de Polidectes para resgatar a mãe e vingar-se do facínora.

Foi nessa viagem de regresso à ilha de Sérifo, que Perseu, ao passar por uma outra ilha, encontrou uma jovem acorrentada a um rochedo. Ao perguntar-lhe quem era e porque estava ali amarrada, a donzela, lavada em lágrimas, respondeu-lhe:

- Eu sou Andrómeda, filha do rei Cefeu. A minha mãe, Cassiopeia, ousou comparar a sua beleza com as filhas de Nereu, as ninfas do mar, e fomos castigados por isso. Poseidon mandou o monstro Ceto destruir, por completo, o reino do meu pai que, assim, me ofereceu como sacrifício, para o resgatar da ira de Poseidon.

- Salvar-te-ei, bela Andrómeda, se prometeres casar comigo. – Retorqui Perseu.

Palavras não eram ditas e eis que uma gigantesca onda se abriu no meio do mar, trazendo consigo um terrível monstro. Ao vê-lo, Perseu aproximou-se o mais que pôde e mostrou-lhe os olhos petrificantes da cabeça de Medusa que havia guardado e trazia consigo, para mostrar a Polidectes. Imediatamente o monstro transformou-se numa enorme pedra que se precipitou no fundo do oceano. No entanto, quando o perigo parecia ter terminado e Perseu se aproximou-se de Andrómeda para soltá-la, uma gota de sangue da cabeça de Medusa, caiu no mar. É que Poseidon também era apaixonado por Medusa, uma das três górgonas que povoavam os mares e que eram extremamente belas mas desregradas e sem escrúpulos. Mas a gota de sangue em contacto com a água provocou um estrondo medonho e transformou-se em espuma branca, da qual emergiu um belíssimo cavalo alado - Pégaso. Era, afinal, um presente de Poséidon a Perseu, para que ele abandonasse a ideia de vingar-se de Polidectes e de Dânae, casasse com Andrómeda e fugissem ambos, montados no cavalo Pégaso. Mas Andrómeda, tempos antes havia sido prometida em casamento, por seus pais, a Phineus e, por isso, no dia do seu casamento com Perseu, voltou a ocorrer nova adversidade - uma desavença entre Phineus e Perseu, pela disputa de Andrómeda. Mas Perseu, mais uma vez, servindo-se da cabeça da górgona Medusa, transformou Phineus num grotesco rochedo que também se afundou, para sempre, no oceano.

Andrómeda e Perseu, finalmente, casaram e viveram uma vida de alegria, de enlevo e de felicidade. Tiveram filhos, netos e construíram um reino de sonho, de paz e de magnificência. Para recompensar a dignidade, a nobreza e os sacrifícios que Andrómeda fizera em vida, após a sua morte, Atena, a quem Perseu oferecera a cabeça de Medusa, a fim de que a deusa também se visse livre da temível górgona, transformou Andrómeda numa bela constelação e colocou-a, para sempre, no firmamento, entre as mais brilhantes constelações do universo, onde ela, ainda hoje serve de guia aos humanos.

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publicado por picodavigia2 às 00:39

NAUFRÁGIO

Quinta-feira, 10.10.13

nuvens desorientadas,

sem rumo!

aguarela desfeita,

crisântemo de novembro,

estraçalhado

despido de folhas…

 

e um vento fortíssimo

a cair sobre o mar

ondas em cascata

gigantescas

altivas

a confundirem a maré

 

rastro medonho…

espectro de navio naufragado.

 

e as ondas incertas

bravas,

ferozes

atafulham os destroços…

 

Quantos naufrágios

virão depois?

 

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publicado por picodavigia2 às 00:18





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