PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O DESASTRE DO VALE FUNDO
Durante a construção da estrada que liga o Porto da Fajã à Ribeira Grande foi necessário partir muito calhau e rebentar muita pedreira. O traçado da estrada, ao contrário dos caminhos antigos que nos seus trajectos procuravam os locais mais fáceis de abrir, era quase rectilíneo, desviado dos antigos caminhos, atravessando terras e serrados, cortando montes e tapando vales, rompendo por todo e qualquer sítio, sem dó nem piedade. Ao serem escavados os montes, no entanto, por vezes, surgiam enormes, pétreos e pesados calhaus ou indomáveis e tremendas pedreiras que só poderiam ser retiradas dali, a fim de desobstruírem o traçado da estrada, depois de partidas e desfeitas em mil pedaços. Os empreiteiros, vindos da Terceira, sabiam-no bem e, por isso, vieram prevenidos e preparados com pólvora, dinamite e os respectivos meios de perfuração de tão inexauríveis rochedos em que a ilha das Flores e, muito especialmente, a zona das fajãs era pródiga.
O processo de remoção de um calhau ou grande pedregulho era moroso, árduo e bastante complicado. Era necessário fazer um furo na respectiva pedra. Para tal eram necessários três homens: um a segurar a cavilha de ferro que muito lentamente ia fazendo um furo no penedo e dois outros homens batiam alternadamente com martelos de ferro na cavilha. De vez em quando tinham que parar para limpar o pó que se acumulava no orifício que, aos poucos, se ia perfurando. Só depois de pronto era metida uma vela de dinamite no buraco e a ela se ligava um “fiusgo” bastante comprido. De seguida gritava-se bem alto “fooooooooogo” para que não apenas os trabalhadores mas também quem por ali passasse ou andasse se colocasse em sítios protegidos. Só então se acendia lume no fio que ia ardendo lentamente até chegar à vela, provocando uma estrondosa explosão e o consequente rebentamento da pedra, que simultaneamente fazia explodir pelo arredores uma série de lascas cortantes como navalhas e uma enorme quantidade de pequenos pedregulhos tão mortíferos como balas. Mas os empreiteiros não terão trazido as velas de dinamite necessárias para tão grande quantidade de rochedos e, por isso, em alternativa ao dinamite, usavam. Sobretudo na parte final da empreitada, uma mistura de pólvora e outros explosivos, o que se tornava ainda mais perigoso.
Ora aconteceu que numa destas operações, lá para os lados do Vale Fundo, já quase junto à Ribeira do Ferreiro, ao preparar uma pedra com pólvora, esta terá sido atingida inadvertidamente por uma faísca que provocou uma explosão e um rebentamento, o qua apanhou alguns trabalhadores de surpresa. Foram atingidos gravemente três homens: o Corvelo, o Francisco Facha e o Roberto de José Padre. O Corvelo teve morte imediata, o Francisco Facha ficou gravemente ferido, sendo evacuado para Lisboa tendo perdido um dos olhos, enquanto o Roberto, o ferido com menor gravidade, foi evacuado para o Faial.
A notícia do acidente foi recebida no povoado com grande alvoroço e preocupação. As informações eram confusas e contraditórias e muita gente acorreu ao lugar para se certificar se algum familiar tinha sido atingido.
Apesar de grave e causar uma morte, no entanto, as consequências deste acidente poderiam ter sido bem maiores. No entanto ele constitui um marco bem amargo e doloroso no historial da construção daquele pequeno troço de estrada que havia ligar definitivamente a Fajã Grande a Santa Cruz, às Lajes e ao resto da ilha.
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A VIZINHA ILHA
A vizinha ilha do Corvo, a menor das ilhas do Arquipélago dos Açores, a ilha liliputiana, como alguém, recentemente, a cognominou, localiza-se no Grupo Ocidental, a norte da Ilha das Flores, frente a Ponta Delgada, Cedros e Ponta Ruiva.
O Corvo tem apenas um povoado, Vila Nova do Corvo, e é o único dos concelhos da República Portuguesa que não tem qualquer freguesia, já que, nos termos do artigo 136.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, este nível de divisão territorial não existe na ilha do Corvo, facto desconhecido por muitos. Politica e administrativamente, as funções dos órgãos de freguesia são assumidas pelos correspondentes órgãos municipais.
A ilha ocupa uma superfície de cerca de 17 km², com 6,5 km de comprimento por 4 km de largura. Praticamente tem uma única estrada que une a Vila ao mítico local do Caldeirão, vestígio de uma antiga cratera, cujo fundo é um lençol de água, povoado por algumas ilhotas que, para os corvinos, personificam as ilhas do arquipélago
O Corvo dista das Flores, entre 13 milhas a 10 milhas náuticas, neste caso a partir da freguesia de Ponta Delgada. A ilha é formada por uma única montanha vulcânica extinta - o Monte Gordo, coroado com a cratera de abatimento, acima referida, chamada localmente de Caldeirão, com 3,7 km de perímetro e 300 metros de profundidade e onde se aloja a Lagoa do Caldeirão. Nela se podem observar várias lagoas, turfeiras e pequenas "ilhotas”. O ponto mais alto da ilha é o Morro dos Homens no rebordo sul do Caldeirão, com 718 metros de altura acima do nível médio do mar. Além desta elevação destacam-se ainda: a Lomba Redonda, a Coroa do Pico, o Morro da Fonte, o Espigãozinho e o Serrão Alto.
Todo a costa litoral do Corvo é alta e escarpada, constituindo o cone central do vulcão, com excepção da parte Sul, onde, numa fajã lávica e de rara beleza, se estabeleceu a Vila Nova do Corvo. A escarpa oeste, com uma falésia quase vertical com cerca de 700 m de altura sobre o oceano, é uma das maiores elevações costeiras existentes no Atlântico.
As terras imediatamente em redor da única povoação da ilha e uma pequena zona abrigadas na costa leste, nas chamadas Quintas e Fojo são as únicas em que é possível praticar a agricultura e manter algumas árvores de fruto. As melhores pastagens para o gado ficam mais para norte, nas chamadas Terras Altas.
Na enseada sul, denominada Enseada de Nossa Senhora do Rosário, existem três cais de desembarque – o Porto Novo, já em desudo, o Porto do Boqueirão e o Porto da Casa, o maior e o único utilizado no tráfego comercial. O Portinho da Areia, no extremo oeste da pista do aeroporto, é o único areal da ilha e a sua principal zona balnear. Possui uma excelente praia, infelizmente muito pouco aproveitada.
O clima do Corvo é muito semelhante ao das Flores, húmido e com uma elevada precipitação média anual, mas ameno, embora ventoso, mas com temperatura agradável Nas zonas altas, onde se cria o gado bovino e ovino e onde existem os tradicionais palheiros, os nevoeiros são quase permanentes. A agitação marítima, particularmente do quadrante oeste, é muito elevada, resultando numa elevada erosão costeira.
Juntamente com as Flores, o Corvo localiza-se sobre a placa tectónica norte americana, a oeste do rifte da Crista Média Atlântica, edificada sobre fundo oceânico com cerca de 10 milhões de anos. Ambas estas ilhas emergem do mesmo banco submarino.
NB – Dados retirados da Wikipédia
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LACERDA BULCÃO
António de Lacerda Bulcão nasceu na cidade da Horta, ilha do faial, em 17 de Junho de 1817, tendo falecido em dois de Fevereiro de1897. Lacerda Bulcão foi um entusiasta do liberalismo, alistando-se como alferes no batalhão de voluntários que se formou na Horta em 1831 para defesa da liberdade e que durou até 1840. Mais tarde, seguiu a carreira administrativa no Governo Civil da Horta, como oficial de secretaria, lugar que ocupou até à aposentação, em 1880.
Distinguiu-se como contista e novelista da geração romântica, deixando uma vasta obra dispersa por jornais do Faial, da Graciosa e de S. Jorge. Reuniu parte da obra literária numa colecção de romances originais. Escreveu, ainda, uma peça dramática, representada mas não publicada.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O ROGAS
O Rogas era o homem mais rude e bisbórrias da aldeia. Nasceu sem saber quem era o pai. Abandonado, mais tarde, pela mãe, deambulou, sem destino, até que o Cabral o apanhou, vendo nele mão-de-obra gratuita. Não se enganara, o mariola. O moço, embora raquítico e franzino vinha mesmo a calhar. Deixá-lo vingar e serviria perfeitamente para as lides agrárias, quer tratando de leiras e courelas onde florescia o trigo, a aveia e os legumes, quer pastoreando o gado nas encostas e barrocais da serra, enquanto ele, Cabral, se reservava exclusivamente às tarefas comerciais, no execrável e hediondo botequim que herdara do sogro, o qual profligava dia após dia.
Foi, pois, um investimento razoável, o do Cabral. É que o tratante, na ânsia de enriquecer, tornara-se sovina e larápio. Não havia tostão que lhe saísse do bolso. No botequim vendia de tudo: o autorizado e o não permitido, o gamado e o obtido na candonga. Além disso, reinavam mixórdias e salsadas, entre pesos adulterados e medidas falseadas. Como era profícuo em falta de escrúpulos, a contratação do moço veio mesmo a calhar e estava facilitada, pois o garraio era pouco exigente, contentando-se com cama e mesa, prescindindo da roupa lavada.
O moço, no início, adaptou-se servil e perfeitamente ao trabalho. Levantava-se noite escura, levava uma côdea de pão e um naco de queijo e regressava ao lusco-fusco, com cada tarefa eximiamente cumprida. Não havia vento, chuvada, tempestade, nem muito menos escola que o poupasse e os campos do Cabral floresciam como nunca, enquanto as falcatruas, no botequim proliferavam assim como crescia o pecúlio no cofre.
O Rogas cresceu e tornou-se homem. O empenho desmesurado que colocava nas lides agrícolas impediam-no de se aventurar nas extravagâncias duma juventude fogosa e trivial. Nem domingos, festas, folguedos ou flostrias. Namoro, apenas passageiro. À cidade viera apenas uma vez. Foi para se inscrever no serviço militar do qual, por influências interesseiras do Cabral, foi dispensado. É que o Rogas, forçado às exigências do biltre, via-se obrigado a abdicar de tudo. Não possuía nada, nem coisa nenhuma. No entanto, com o rolar do tempo, foi-se apercebendo das injustiças de que era vítima e entendeu a promiscuidade que o rodeava e que singrava nos negócios e nas atitudes quotidianas do seu amo. Daí ao grito de libertação foi um ar. Continuar a ser explorado por aquele vigarista, aldrabão e gatuno é que não. O somítico nunca lhe dera uma folga, nem sequer um tostão.
Saiu, pois, do Cabral, pese embora desconhecesse o seu destino. Era certo porém que ninguém aceitaria como fâmulo um embusteiro embalado e formado na doutrina intrujona do Cabral.
Assim deambulou, algum tempo, sem dinheiro e sem destino. O primeiro dia foi de jejum e na primeira noite teve como abrigo as ombreiras da Igreja Matriz. Na noite seguinte, porém, foi despejado dali. Cuidando o zeloso sacristão que tal presença punha em risco a dignidade e decência do templo, escorraçou-o sem dó nem piedade. Restou-lhe como refúgio um casebre à porta de entrada do cemitério.
Nas primeiras noites, escuras como breu, sentiu alguns arrepios. Mas vieram, de seguida, as noites de lua cheia e, com elas, a adaptação a tão tétrico habitáculo.
A comida procurou-a por esmola. Pesava contra ele a malvadez e a sovinice do Cabral, com o qual agora como que era identificado. Por isso, vezes sem conta, lhe atiravam à cara:
- Vai comer para onde trabalhaste!
Granjeara, sem proveito, a fama desprezível do amo. Agora, isolado entre mortos e sepulturas, tornava-se cada vez mais rude, assumindo, além disso, um ar de marginal. Sobre ele despejava-se ódio, abandono e desinteresse. A roupa, sempre a mesma, não via água há meses e, consubstanciada com a barba por fazer e com o cabelo por pentear, atribuía-lhe, inevitavelmente, um perfeito ar de vagabundo, que levava uns a afastarem-se e outros a não lhe manifestarem qualquer auxílio.
Apenas o coveiro lhe dedicava alguma atenção e cuidados, partilhando com ele palavras e alimentos. Porém, a sua morte, tempos depois, redobrou-lhe a solidão e o isolamento, mas fez com que lhe surgissem novas perspectivas É que não havia, na aldeia, candidatos à vagatura. Por isso se generalizou a sentença: - “O Rogas que vá abrindo as sepulturas.”
Teve que aceitar e a primeira cova que abriu foi a do seu antecessor, assumindo o cargo, com dignidade, sonhando que, um dia, haveria de calcar o sovina do Cabral.
O Dr Assumido Paixão ocupava, desde a morte do pai um sumptuoso palácio edificado no centro da aldeia. Era um magnífico e gigantesco edifício, com jardim e grandes escadarias, construído muitos anos antes. O Dr Assumido, que agora dava continuidade às lides agrárias e aos negócios que herdara do avô, tinha uma filha, Isaura. Jovem, bela, crescera isolada entre as grossas paredes e os altos portais de ferro do palácio, pouco conhecedora do mundo que a rodeava. Partira muito nova para Lisboa, para estudar. Regressava à aldeia, apenas nas férias, desconhecendo quase na íntegra, lugares, costumes e pessoas. É que, sem parentes ou amigos, isolava-se no interior do palácio, percorrendo o jardim, contemplando as obras de arte e as espécies botânicas que por ali singravam, graças ao bom gosto artístico e ao amor à natureza do vovô Carmo.
Isaura acabava de terminar mais um ano lectivo, o último antes de entrar para Direito, quando recebeu a notícia do trágico acidente em que morreram o pai e a mãe. Regressou rapidamente à aldeia entre prantos e lamentos. Aprontou-se o funeral. O Rogas, com trabalho redobrado, maldisse a sua sorte. O cortejo fúnebre entrou a passos lentos no cemitério. Atrás dos féretros, Isaura, vestida de negro, era a imagem da dor e do desalento. Uma pequena multidão seguia-a, partilhando o infortúnio e a tristeza.
Terminadas as orações a maioria dos acompanhantes retirou-se. Isaura ficou só. Trémula, lançava-se ora sobre um ora sobre outro dos caixões que jaziam sobre a terra calcada pelos pés dos circundantes. Dos seus olhos rolavam lágrimas de dor e desânimo. Espelhava, no rosto a marca terrificante do infortúnio. De repente, o seu corpo franzino, perdendo o vigor, balançou e caiu por terra.
O Rogas hesitou. Desde há muito que a sua atenção se fixara naquela jovem dolente, amargurada e inconsolável, despertando nele complacência e compreensão. O amor atrofiada desde criança a quando do abandono maternal e a compaixão adormecida desde as sevícias e abusos do Cabral, como que renasceram, naquele momento, explodindo fleumaticamente dentro do seu peito.
Dirigiu-se para junto da jovem e pegando-lhe nas mãos acariciou-lhe tímida mas carinhosamente o rosto pálido. Alguns circundantes mais chegados a Isaura ainda o tentaram afastar mas sem eficácia. Ela, abrindo os olhos, sorriu-lhe, aceitando os eflúvios carinhosos que emanavam daquele ser tão estranho e até então emocionalmente atrofiado.
E do rosto enegrecido e fleumático do Rogas, rolaram lágrimas de dor que perfurando a barba negra, se despegaram do rosto e caindo no chão se misturaram com o dolente sofrimento de Isaura. Pela primeira vez o Rogas chorou!...
A manhã seguinte surgiu cinzenta e enevoada. Entre os dois montes de terra fresca, cobertos de flores e fitas roxas, Isaura ajoelhada, orava.
O Rogas, tímido e hesitante, saiu do seu cubículo e aproximou-se. Nem uma palavra... O seu olhar, porém, revelava uma compreensão infinita e uma complacência sem limites. Ajoelhou-se ao lado... Orou também e chorou de novo.
As manhãs repetiram-se. Quando ela entrava, o Rogas, disponibilizando carinho e compaixão, como que adivinhando-lhe a chegada, já estava ajoelhado entre as duas sepulturas, sobre as quais as flores amareleciam.
Passaram-se dias, passaram-se meses. Entre muitas hesitações, Isaura decidiu continuar a manutenção do palácio de que agora era proprietária, as lides agrárias e os negócios do pai. Parentes, amigos e vizinhos davam conselhos e ofereciam préstimos. Isaura, apercebendo-se de intervenções tão descaradamente interesseiras, que contracenavam, na sua mente, com a imagem simples daquele homem que diariamente a acompanhara no cemitério, ia protelando decisões. Não esquecia a imagem do homem pobre e rude, que, sem a conhecer, sem interesses de qualquer espécie, se colocara humildemente a seu lado, partilhando a sua dor, oferecendo-lhe compaixão...
Estranhamente tomou uma decisão – aquele homem seria o seu capataz. Depois de ele se preparar devidamente, confiar-lhe-ia a gerência não apenas do palácio, mas de todos os seus bens e negócios, libertando-o da miséria e da rudeza em que vivia.
O Rogas recusou. O que aquela menina lhe oferecia era um absurdo. Isaura ultrapassou todos os obstáculos que ele lhe contrapôs. No início ela ajudá-lo-ia, preparando-o devidamente.
E preparou-o. E o Rogas transformou-se radicalmente, depressa se integrando, com grande dedicação e interesse, na gestão dos negócios e bens de sua ama.
Passaram os anos. A doutora Isaura regressou à aldeia licenciadaem Direito. Assumiunão exercer a advocacia, sistematicamente e por profissão. Como, no entanto, muitas pessoas, sobretudo as mais pobres, se dirigissem a ela para resolver os mais diversos assuntos, sempre com auxílio e colaboração do Senhor Rogas, cedo se espalhou, pela aldeia, a fama da sua eficácia e a excelência da sua generosidade. Tais qualidades, aliadas ao facto de fornecer os seus serviços gratuitamente, fizeram com que o palácio fosse sistematicamente procurado para que a senhora doutora resolvesse os assuntos mais complicados e as questões mais inverosímeis, sempre por intercessão do Senhor Rogas.
Certa noite, aproximou-se do portão, um vulto negro de mulher, embrulhado num grosso xaile, que lhe cobria todo o corpo. Tocou ansiosamente a campainha. Como habitualmente, o Rogas veio abrir. Era ele que levava sempre os recados ou as súplicas que julgasse dignas de compaixão, à senhora doutora.
O vulto, ao aproximar-se, retirou o xaile descobrindo o rosto choroso. O Rogas estremeceu. Era a mulher do Cabral. O peito encheu-se-lhe de cólera e de raiva. A mulher, porém, perdida na escuridão da noite, sem se aperceber de que era ele, suplicava incessantemente:
- Peça à senhora doutora que liberte o meu homem! Ai, a senhora que liberte o meu homem, por alma dos seus paisinhos.
O Rogas, sem se dar a conhecer, tremulamente indagou:
- O que se passa? Porque prenderam o seu marido?
A mulher, então, explicou que o seu homem tinha sido preso, junto à fronteira, mas injustamente, por engano, sem ter feito nada. Apenas andava a tratar de uns negócios, nada de contrabando, não senhor, que o seu homem não era desses, que a senhora doutora podia confiar nele e que só uma palavrinha dela o libertaria da prisão.
O Rogas ouviu-a atentamente.
Passado algum tempo o Cabral foi libertado.
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A FURNA DO JOÃO DA MACACA E DA MARIA PEGUINHA
Na Rocha das Águas, (na Fajã Grande das Flores) bem lá no cimo e num lugar quase inacessível, precisamente por cima de uma relva que meu pai ali possuía, havia uma pequena furna, denominada, vulgar e enigmaticamente, por furna do “João da Macaca e da Maria Peguinha”. Não é fácil, no entanto, encontrar-se a razão de tão estranho nome, embora pareça bastante provável que esta designação e a própria furna se apresentassem como uma espécie de mito, com o intuito de intimidar ou até amedrontar as crianças, costume, aliás, muito habitual, em tempos idos, na Fajã Grande. Basta recordar como exemplos desses mitos o Boiceiro, o Velho Laranjinho, o Papão Feio, o Eira-Má e muitos outros.
Naturalmente que sendo de acesso quase inacessível, apenas meu tio Luís se gabava de lá ter chegado uma única vez (sabe-se lá se na realidade ou em sonho), jurando nunca mais lá voltar, aquele buraco, escuro e disforme, cuja profundidade se desconhecia e ainda por cima encravado numa rocha bastante perigosa e com o acesso praticamente obstruído, proporcionava-se a formatar-se como algo que assustasse, que intimidasse e que metesse medo às criancinhas, obrigando-as a cederem às vontades e caprichos dos adultos. Eu pelo menos, quando miúdo, assustava-me e amedrontava-me supinamente, quando ia sozinho às Águas e tinha um medo enorme daquela furna, considerada como a residência oficial daquele estranho e malévolo casal, de cujos nomes também se desconhecia a origem e que, pelos vistos, todos os dias, de madrugada e à noitinha, se vinham sentar à entrada da furna, a desfrutar o magnífico panorama que dado, muito provavelmente, se deveria visionar. Desfrutando de uma vista privilegiada sobre o casario da Fajã, o baixio, a baía e o oceano infinito, o João da Macaca e a sua consorte viam, observavam e registavam todas as asneiras, disparates, desobediências e má-criações que os meninos faziam para depois lhes aplicar o devido castigo, caso voltassem a repetir o que de mal haviam feito ou voltassem a ter as birras anteriormente arquitectadas.
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VINHO
uvas,
negras
perfumadas
entontecidas com a fascinação da lava.
uvas
doces
estonteantes
agitadas com o delírio das lavadias de Agosto.
uvas
sadias
amadurecidas
embaladas em lagares ancestrais.
uvas
esmagadas
espremidas
transformadas em mosto célico.
uvas
desfeitas
consagradas
a atufarem pipas opilantes.
uvas
limpas
transparentes
vazadas em copos de barro depauperado.
e foi assim
que das uvas
negras
perfumadas
doces
amadurecidas
sadias
deliciosas
esmagadas,
e espremidas
nasceu o vinho:
- safra milagrosa de Setembro
- sumo sagrado dos currais
- delírio ofegante das adegas!