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DO MITO AO CONHECIMENTO RACIONAL

Sexta-feira, 18.10.13

Ainda hoje não é fácil definir, delinear ou identificar o intrigante e demorado período de tempo, nem o processo evolutivo da humanidade em que o ser humano percorreu, desde dos tempos imemoriais em que possuía exclusivamente uma percepção mítica do mundo e a altura em que emergiu nos primórdios do alcance do saber filosófico ou seja quando o ser humano começou a possuir ou ter capacidade para desenvolver um conhecimento gnosiológico do cosmos, mesmo que muito elementar.

Através do mito o ser humano, na sua insipiência original, procurava empiricamente explicar a realidade envolvente do seu quotidiano, os principais acontecimentos da sua vida e da dos outros seres vivos, os fenómenos da natureza dos mais simples aos mais complexos, as origens do Mundo e do próprio Homem por meio de deuses, semi-deuses e heróis míticos, dando-lhes um cunho sobrenatural, misterioso e divino ou, por vezes, maligno. Coube à chamada civilização helénica o privilégio de alcançar, num contexto social, político e económico quase miraculosamente favorável, a percepção diferenciada do mundo, sob uma perspectiva totalmente nova, declarando a preponderância e primazia da razão sobre o mitológico. É na Grécia Antiga que nasce o conhecimento e a cidade de Mileto, numa colónia da Ásia Menor (actual Turquia) torna-se assim como uma espécie de Paraíso do Intelecto Humano. A partir de então, as explicações lógicas, distintas e opostas de um conteúdo mítico, passam a dominar o pensamento humano. É evidente que não se trata do rompimento abrupto, momentâneo, decisivo, total e definitivo com o mito. Trata-se, pelo contrário, de um processo indubitavelmente muito lento, gradual, reflexivo e delimitado, com avanços e retrocessos, o que teve a vantagem de proporcionar ao ser humano uma melhor e mais profunda compreensão do cosmos e uma mais recompensadora reflexão sobre a sua própria natureza.

O “nascimento da sabedoria” ou a “passagem do mito à razão” aconteceu, pois, na Grécia, mais ou menos por alturas do século VI a.C. Numa época em que, até então, os deuses eram a razão de tudo e a explicação para tudo, passam-se a procurar explicações racionais para o mundo e para as coisas do mundo. Os deuses e as forças divinas deixam de ser a última razão de ser do cosmos e passa a haver um conhecimento real e empírico porque obtido através da razão. Ainda hoje, no entanto se questiona a forma como o homem passou a pensar de forma não-mítica? A resposta não é clara, mas crê-se que o "milagre grego" foi fruto, obviamente que de entre outros diversos factores, de uma nova organização social e política, ocorrida em todos os planos (religioso, político, social e intelectual) na Civilização Grega e que a transformou numa das mais arrebatadoras, surpreendentes e dignificantes civilizações de sempre. Com a queda dos regimes políticos ditatoriais gregos, inspirados no Oriente, onde os reis eram sacerdotes e adivinhos e detinham os poderes absolutos, houve um período de certa obscuridade do povo grego. Este período teve, no entanto a vantagem, de, lentamente, ir preparando uma nova ordem, onde se foi perdendo, paulatinamente, a intervenção e a supremacia dos deuses e o mundo passou a ser mais humano, isto é, menos subserviente à vontade divina... A principal novidade dessa nova ordem é o desaparecimento da figura do rei sacerdote e mago e a sua substituição por regimes democráticos onde surgem as cidades-estado, pese embora, por vezes algumas delas sejam governadas por chefes ditadores.

Neste contexto nasceu a necessidade de um confronto de ideias: ou se rejeitavam em absoluto os mitos ou se mantinham alguns, com o objectivo apenas de compor os rituais religiosos, os mistérios das seitas secretas e a enorme influência de toda uma história da qual ninguém jamais poderia se esquivar. Esta ideia prevaleceu, mas a partir de então o homem passou a olhar para a natureza de forma diferente, procurando respostas na razão, no confronto de raciocínios, no debate e na formulação e refutação de teses.

É pois do surgimento de uma prática politica e social onde impera o espírito democrático que nasceu o conhecimento racional e, lentamente, se foi abandonando o conhecimento mítico.

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publicado por picodavigia2 às 23:28

AS ARCADAS DOS PORCOS, AS GALOCHAS DAS VACAS E AS ASAS AMARRADAS DAS GALINHAS

Sexta-feira, 18.10.13

Na Fajã, como em qualquer parte do orbe, por lei da natureza, os animais domésticos haviam de submeter-se aos desejos, vontades e caprichos dos seus donos. Os porcos tinham por habitat o curral, bem junto à porta da cozinha, de modo que pudessem apanhar, na gamela, todas as lavagens e restos de comida que sobravam dos parcos e humildes repastos de seus amos. Tinham um curral, por natureza sujo, enlameado e mal cheiroso, mas que não podia estar esburacado. É que muitos suínos, apanhando-se “capadinhos” e à engorda para a matança, tinham por hábito fossar, furar e esburacar de lés-a-lés os seus aposentos, o que, no entanto, não lhes era permitido por capricho, vontade ou desejo do seu senhorio. Se se habituasse a fossar, o porco havia de ver-se… Amarrava-se pelos queixos, como se fosse para a matança, prendia-se-lhe o cachaço e a cabeça entre as pernas e arame enfiado, retorcido e voltado a enfiar e a retorcer no focinho. O animal gritava, berrava, guinchava e esperneava como se fosse para a matança, mas não havia nada a fazer. Era ferradela certa! Com um alicate enrolavam-se as duas pontas do arame e o porco ficava ali com uma arcada no focinho que até parecia um brinco nas orelhas. Remédio santo! Porco com arcada nunca mais fossava.

Algumas vacas mais atrevidas também se lançavam em aventuras. No palheiro estavam bem amarradas à manjedoura mas, quando levadas para as relvas, apanhando-se soltas, de vez em quando, dava-lhes para saltar as paredes e enfiarem-se nas relvas e propriedades dos vizinhos, talvez cuidando que a erva aí era mais fresquinha e apetitosa. Mas podia lá ser! No dia seguinte levavam castigo pela certa: uma galocha de madeira na mão esquerda e terminavam as aventuras de saltar em campos alheios. A galocha era uma enorme tira de madeira, oval, achatada, aguçada em ambas as pontas e com um buraco a meio, com uma dobradiça que abria e fechava, sendo presa com uma pequena cavilha e que se prendia numa das mãos do animal. Um outro processo mais simples era “acabramar a vaca” ou seja amarrar-lhe uma corda à cabeça e prendê-la a uma das mãos, impedindo o animal de saltar. No entanto como as cordas, por vezes, rebentavam, as galochas eram mais seguras.

Finalmente as galinhas! Não é que as ditas cujas também se lançavam na aventura de saltar as paredes do curral e irem enfiar-se em sítios proibidos, a depenicar e a estragar tudo ou, ainda pior, a irem por os ovos em lugares desconhecidos. Haviam de ir, haviam! Saltavam uma duas vezes e era tesoura e agulha para cima. Cortavam-se-lhes as pontas das asas, nas quais se embrulhava uma tira de pano que depois se cosia com agulha e linha. E era o voas! Nunca mais saíam do curral. Algumas vingavam-se, comendo os próprios ovos ou os das suas camaradas. Mas, como comiam e não limpavam o bico, denunciavam-se a si próprias. O remédio era santo. Um pau em brasa e o bico queimado. Esperneavam que se fartavam pois devia-lhes doer à brava, mas os ovinhos lá ficavam direitinhos no “ninheiro”, à espera que a dona os recolhesse inteirinhos.

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publicado por picodavigia2 às 19:09

O EXAME DA QUARTA

Sexta-feira, 18.10.13

No fim da minha quarta classe na Escola Mista da Fajã Grande, como era habitual, tive que ir fazer o exame às Lajes. As últimas semanas de escola foram de grande agitação e reboliço, para os que tinham feito provas positivas e que, por conseguinte, tinham ficado apurados para exame, entre os quais, obviamente eu estava incluído. Fizemos revisões de todas as lições de cor, lemos e relemos todos os textos do livro de leitura de fio a pavio, exercitamos contas das quatro operações, resolvemos problemas de todo o tipo e feitio, decoramos a tabuada, fizemos uma infinidade de ditados e, na verdade, ficámos com tudo na ponta da língua. Mas o que iria sair no exame, ou os conteúdos com que cada um seria confrontado e em que ia por à prova a sua sabedoria, eram desconhecidos. Por isso tivemos que estudar e ficar a saber tudo. Simplesmente tudo! Um mimo! A única certeza que tínhamos, no entanto, é que teríamos duas provas, uma escrita e outra oral.

Partimos, a pé, em rancho, para as Lajes, acompanhados por familiares e pela senhora professora. Uma romaria!...

Dormimos em casa de conhecidos e, manhãzinha cedo, lá estávamos fora da porta da escola. Na escrita safei-me bem. A minha professora esteve presente, como vigilante. Circulou pelas carteiras, esclareceu algumas dúvidas, enfim, inspirou-me muita confiança. Na oral, porém, estava muito apreensivo e nervoso, pois sabia-se que o presidente do júri, que possivelmente me faria as perguntas, seria uma professora das Lajes, por conseguinte estranha para mim e para os das outras freguesias e que, ainda por cima, tinha fama de má e de muito exigente.

A escola das Lajes, onde decorriam os exames, era a casa do Espírito Santo. As carteiras, estavam dispostas de tal maneira que, para estarmos voltados para o júri, ficávamos de costas para o altar do Divino. Entrei entre suores e desânimos. Lá estava o temível e terrível júri, composto por três professores. Ao centro a presidente, a tal professora estranha e exigente, a dona Adozinda. De um lado o professor Galvão, de fato, gravata e óculos escuros e do outro, o terceiro elemento, a dona Glória, que professora no Lajedo. A minha professora fora excluída, pois nenhum professor podia examinar, na oral, os seus próprios alunos.

A dona Adozinda, sem demoras ou sequer cumprimentar-me, ordenou formalmente:

- Menino, abra o seu livro de leitura na página 39!

Nervoso, tacteei, voltei atrás, à frente, de novo atrás e lá encontrei a 39. Que alívio! “Aljubarrota”! Era o texto que mais gostava e que lera mais vezes e que até já sabia de cor:

- “ALJUBARROTA”. “Raiou finalmente o glorioso dia 14 de Agosto de 1385. De um lado o poderoso exército castelhano, do outro, a pequena hoste portuguesa. Já ia o dia a mais de meio quando o exército castelhano....” – e continuei numa leitura senga e eloquente, que deixou o júri boquiaberto.

Terminada a leitura, de que se havia de lembrar a Dona Adozinda? De me perguntar qual a dinastia que se tinha formado depois da vitória do Condestável na batalha referida no texto e os nomes e cognomes de todos os seus reis. Era o que eu queria, pois era o que sabia melhor. Por isso desembuchei com segurança:

- Foi a 2ª dinastia ou de Avis. O primeiro rei foi o Mestre de Avis, D. João I, o de Boa Memória. O segundo D. Duarte, o Eloquente – e enumerei-os todos, tintim por tintim, até D. Henrique, o Casto.

 Depois, sem me aperceber, passou aos descobrimentos. Aqui também eu navegava à vontade!

- Quem descobriu a Madeira?

- João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira!

- E os Açores?

Que sorte! Nisto é que não falhava de certeza. E, durante dez minutos, lancei ao júri tudo o que sabia e que a senhora professora me ensinara sobre a descoberta dos Açores.

A dona Adozinda, manifestando alguma apreensão, cochichou, por uns momentos, com o professor Galvão. Pouco depois, mandou-me sair, enquanto a dona Glória, pondo os óculos e pegando na lista, chamava:

- João Câncio Fragueiro da Silveira.

Este, ao cruzar-se comigo, sussurrou-me:

- “Tiveste cá uma sorte!”

E tive, porque fiquei distinto e ele à beira de apanhar uma raposa.

Na viagem de regresso à Fajã, a senhora professora segredou-me que o Delegado Escolar, o senhor professor Galvão, lhe tinha dado os parabéns pelo brilhante exame que eu fizera.

    

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publicado por picodavigia2 às 15:43

A PONTE DE AMARANTE

Sexta-feira, 18.10.13

Baluarte de uma persistência inglória e vítima de uma loucura vácua, a ponte sobre o Tâmega, em Amarante, possui uma história de beleza singela, ou melhor, uma lenda de encanto inigualável. Consta que foi São Gonçalo que, em vida, miraculosamente a construiu. Mas mesmo com tão santo e douto construtor, a ponte, algum tempo após a sua construção, acabou por ruir e desaparecer, definitivamente.

Reza a lenda que Frei Gonçalo decidiu construir uma ponte, nas margens do Tâmega. O frade havia-se compadecido das dificuldades e agruras dos seus conterrâneos, que ali labutavam, sendo, vezes sem conta, impedidos de atravessar o rio de uma para outra margem, devia à força da sua corrente e ao perigo do seu caudal, sobretudo em momentos de grandes chuvadas. O seu objectivo era, simplesmente, o de ajudar a vida e aliviar a miséria dos pobres e humildes camponeses. Como não tinha dinheiro para fazer a ponte, mandou pedi-lo a um homem muito rico mas também muito avarento. O somítico não queria dar o dinheiro mas também temia recusar um pedido do frade. Para resolver o imbróglio, informou o frade de que lhe dava apenas o dinheiro equivalente ao peso de uma folha de papel. Frei Gonçalo concordou e levou-lhe um papel. O avarento colocou o papel num dos pratos da balança e começou a deitar pequeninas e leves moedas no outro prato mas, por milagre, o papel pesava tanto, tanto que o homem foi obrigado, para não faltar com a palavra dada, a colocar na balança uma grande quantidade de dinheiro. Foi com este dinheiro que Frei Gonçalo conseguiu construir a ponte.

Conta ainda a lenda que, sendo o diabo um ganancioso, quando viu que Frei Gonçalo construía uma ponte sobre o Tâmega, em Amarante, ficou roído de inveja e encheu-se de raiva. Cuidava o mafarrico que os camponeses se haviam de voltar ainda mais para Deus e para o frade. Por isso mesmo, decidiu também construir uma ponte igual, numa outra localidade, próxima d’ali, a fim de também conquistar a gratidão dos fiéis. Se bem o pensou, melhor o fez. Ao terminar a sua obra, o diabo, simulando uma estranha galhardia, veio convidar Frei Gonçalo para ir vê-la, recomendando-lhe, no entanto, que nem por sombras pensasse em tocar-lhe ou, muito menos, benzê-la. Frei Gonçalo aceitou o convite e acabou por reconhecer que, a obra do diabo era, na verdade, melhor do que a sua, pelo que teceu grandes elogios à ponte, enaltecendo a sua beleza, louvando a sua grandiosidade, exaltando o seu encanto, regozijando-se com a sua excelência.

O diabo, pelos vistos, ainda mais vaidoso ficou com tanta galantaria, começou a caminhar à frente de Frei Gonçalo. Mas este vendo o diabo enlevado e distraído com tão grandes gabos, ergueu o cajado na direcção da ponte e fez, no ar, uma enorme cruz, em sinal de bênção. A ponte que o diabo construíra ruiu com enorme estrondo, desfazendo-se por completo.

O diabo ficou furioso e começou a correr espavorido até ao cimo de um monte, sobranceiro à ponte que Frei Gonçalo construíra. Cheio de ódio, de raiva e de fúria, começou a atirar pedras ao frade. Só que estas eram tão grandes e tanto rolaram e voltaram a rolar pelas encostas, atingindo tão grande velocidade que chegaram até a Amarante, acabando por derrubar e destruir, quase por completo, a ponte que Frei Gonçalo construíra para benefício do seu povo.

Como sobrassem alguns vestígios da ponte, Frei Gonçalo ainda encetou algumas tentativas de a restaurar. Porém, sempre que o fazia, o diabo enfurecia-se ainda mais, voltava ao cimo do monte, rolando enormes pedregulhos na direcção da ponte, até que a destruiu por completo, fazendo com que desaparecesse para sempre.

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publicado por picodavigia2 às 00:00





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