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O PRANTO

Quinta-feira, 24.10.13

Já tinham batido as três da madrugada. Na sala mantinha-se uma escuridão suavemente desfeita por um rastilho de luz emanado de um pequeno e velho candeeiro a petróleo, de vidro tisnado, com o pavio muito baixo, colocado em cima da cómoda. Ao lado um crucifixo e uma pagela da Senhora do Carmo. Num dos cantos, muitas fotos e, no outro, alguns santos. Numa cama, paralela à cómoda, o velho Gomes finava-se.

Paira um silêncio medonho, entrecortado, de vez em quando, muito levemente, pelos soluços e orações dos assistentes, pelo pranto da candidata a viúva e pelos estertores do moribundo. A mulher do Gomes está à cabeceira da cama, vestida de escuro e ao redor da sala amontoam-se bancos e cadeiras, onde as filhas, alguns parentes e muitos vizinhos estão sentados. Uns dormitam, outros rezam e alguns soluçam, enquanto o Gomes agoniza. Está prestes a entregar a alma ao criador! A Lisandra, dos presentes, a mais experiente em rezas adequadas a estas circunstâncias, pontifica:

- Glória ao Pai ao Filho e ao Espírito Santo.

Os que ainda se mantêm acordados lá vão murmurando desajeitadamente:

- Assim como era no princípio agora e sempre e por todos os séculos dos séculos. Ámen.

A Lisandra prossegue, pese embora o número de sonâmbulos aumente:

- Ó meu Jesus, perdoai-o e livrai-o do fogo do inferno… - E as rezas vão continuando cada vez mais indecifráveis até se esfumarem e perderem por completo.

Perante o silêncio dos circundantes, é a Lisandra que remata a sua própria invocação:

- E levai para o Céu as almas mais abandonadas. – Depois continua, na esperança de um ou outro mais desperto responder:

- Amado Jesus, José e Maria.

- Assisti-me na última agonia.

- Amado Jesus, José e Maria.

- Expire em paz e entre Vós a alma minha.

- Ò Virgem Santíssima, não permitais tal: Que eu não viva nem morra em pecado mortal.

- Em pecado mortal não hei-de morrer, porque a Virgem Maria me há-de valer.

- Que a sua alma descanse em paz.

Volta-se ao silêncio. O número dos que dormem parece aumentar. O Gomes lança o último estertor... Pouco depois parece expirar. Os amigos soluçam, os parentes choram e as filhas, desvairadas e em altos berros, gritam pelo pai. É então que a viúva inicia pranto:

- Jesuíno! Ò Jesuíno do meu coração! Ainda me ouves? Aperta pelo menos a minha mão, se me estás a ouvir…Não filha, não senti nada. Ai que desgraça a nossa! O que nos havia de acontecer! De repente, sem ninguém fazer conta… E eu que tinha tanta fé. Pus-lhe o escapulário do Carmo. Nossa Senhora do Carmo há dar-lhe um lugarzinho no Céu. Ele está nas últimas?! Está… Está. O meu coração diz-me que sim. O que vai ser de mim e dos meus filhos?… Ele era a luz desta casa… Nunca nos faltou com nada… Era das terras para casa e de casa para as terras. Sempre o primeiro a se levantar… Sempre o primeiro a chegar a tudo… Caminhava para as terras ainda de noite… Voltava depois das Trindades. Nunca fugiu ao trabalho… Nunca parava… Só se fosse p’ra falar com um amigo. Mas mesmo para isso nunca tinha tempo… Nunca faltou com nada aos pequenos… Ai meu querido marido! Ai meu rico Jesuino! As nossas terras sempre mondadas… Trazia tudo num mimo: as relvas, as terras de mato, as terras de milho… Toda a gente o gabava… Em casa sempre pronto a deitar mão a tudo… Era a lenha sempre no cepo… Era debulhar o milho… Era fazer os “cambulhões”… Ele é que tratava do porco e das galinhas… Nunca estava parado… Sempre a trabalhar… Sempre com o juízo nisto e naquilo, para que nada nos faltasse…O pobrezinho sentiu-se mal depois do jantar. De manhã, ainda foi à nossa terra da Grota, apanhar um cesto de inhames… E o desgraçado ainda trouxe o cesto às costas… Veio carregadíssimo, coitadinho…Sabem como ele era... Era sempre a trabalhar, a trabalhar. Mas ele já não podia… Chegou a casa, por volta do meio-dia…Sentou-se à mesa e não comeu quase nada: “e não tenho fome, e não tenho fome, não me apetece comer, e não sei o que tenho e dói-me aqui, tenho uma dor muito grande na barriga…” E nós numa aflição... Sem saber o que fazer… Fez-se um chá de erva-néveda, mas nada... Fez chá de poejo e nada. Fez-se chá de “mastrunços” e ele nada. Não havia maneira de ficar bom. Fizemos chás de tudo: de poejo, de cidreira, de macela, de funcho e nada... Ele deitou-se e nós numa aflição cada vez maior, sem poder fazer nada. E agora partiu para sempre. O meu Jesuíno foi juntar-se ao coro dos anjos e dos santos. O senhor padre já cá veio, mas só lhe deu a Santa Unção. Ele já nem falava, nem ouvia. Já não pode confessar-se, o pobrezinho, nem receber o Sagrado Viático. Mas Deus há-de recebê-lo na sua Santa Glória. Isto foi uma grande desgraça. Um homem que, desde que o conheci, nunca teve nenhuma doença, nunca tomou sequer um comprimido, nem uma injecção, nunca teve uma dor de dentes, nunca teve uma gripe, nunca teve nada... E de repente foi isto... Apagou-se…Foi como uma luz que se fosse apagando aos poucos.

Regresso ao silêncio e pouco depois a Lizandra, agora com todos acordados, inicia o terço, anunciando-o por alma do falecido: - Pai Nosso que estais no céu…

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publicado por picodavigia2 às 20:32

SOPA DE FEIJÃO

Quinta-feira, 24.10.13

Um dos pratos mais comuns nas casas fajãgrandenses, na década cinquenta, era a sopa de feijão. Servia-se, geralmente, ao jantar, ou seja à refeição do meio-dia e, embora sendo habitualmente designado por sopa, era, no entanto, um prato tão substancial que só por si só, juntamente com o pão, constituía uma refeição completa.

O feijão foi sempre um produto muito cultivado na Fajã pois “dava-se” bem em todos os terrenos e tinha boas condições de produção, tanto nas terras junto do mar como nas mais interiores. Além disso, o cultivo do feijão não exigia a exclusividade de um campo, isto é, não precisava de um terreno só para si, dado que crescia, florescia e frutificava muito bem em simultâneo com outros produtos agrícolas, nomeadamente com o milho. Neste caso com uma dupla vantagem: não era preciso trabalhar os terrenos de propósito para semear o feijão, pois aproveitava-se os que estavam preparados para o cultivo daquele cereal e nem era necessário espetar na terra estacas de cana ou de vimes para os feijoeiros subirem, uma vez que o faziam enroscando-se no próprio milheiro e ainda por cima enrolavam-se de maneira tão graciosa, admirável e de tal modo funcional que parecia que as vagens eram fruto do próprio pé de milho. Uma vez apanhadas as maçarocas, as vagens do feijão ficavam ali, penduradas nos milheirais, a amadurecer e a secar. Mais tarde, o feijão era apanhado, descascado, posto a secar nos pátios e estava pronto a guardar para com ele se confeccionar a tal sopa.

Havia muito feijão na Fajã! E havia-o de várias cores e raças. Mas o encarnado e o raiado eram os mais usados para a sopa. Uma vez demolhado de um dia para o outro, era posto a cozer em bastante água, com cebola, tomate e alho picados e outros temperos, nunca esquecendo uma boa colher de “graxa” de porco, preferencialmente da que cobria a linguiça. Quem tinha possibilidades juntava uma ou duas talhadas de toucinho ou um pedaço de osso da cabeça do porco. Em muitas casas mais pobres cozinhava-se simplesmente sem nada, ou melhor, apenas com colher de banha. Uma vez bem cozida em caldeirão de ferro, esta espécie de sopa era retirada do dito cujo, ainda a fumegar, com uma conha, sendo baldeada para uma terrina onde haviam sido colocadas fatias de pão de trigo. Nas casas com menos posses, nas quais a minha se incluía, colocavam-se fatias de pão de milho em vez do pão de trigo. E não é que a sopa de feijão parecia ainda ficar melhor… e então se levasse a talhadinha de toucinho… Era um verdadeiro manjar dos deuses!

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publicado por picodavigia2 às 17:41

A GALINHA PARVALHONA

Quinta-feira, 24.10.13

(Conto Tradicional)

 

Era uma vez uma galinha que estava debaixo duma pereira. De repente despenhou-se lá do alto uma pêra e caiu-lhe precisamente em cima da crista. Não percebendo o que se passava e muito assustada, a galinha foi, de imediato, prevenir o galo:

- Sai daí, galo, porque o mundo está a cair aos pedaços!

- Quem te disse? – Perguntou o galo.

- Ninguém – disse a galinha. – Fui eu que vi e senti cair-me um pedaço do mundo em cima da minha crista.

De seguida, um por um, foi avisar todos os outros animais.

O último animal que avisou foi a raposa. Aproximou-se da matreira e disse-lhe que ela também deveria ter muito cuidado por que o mundo estava a desfazer-se aos pedaços e poder-lhe-ia cair algum em cima.

- Ai! – Exclamou a raposa. – Se o mundo está a cair aos pedaços é porque vai acabar e vamos todos morrer. Pois eu quero morrer bem farta.

E atirando-se à galinha comeu-a num abrir e fechar de olhos.  

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publicado por picodavigia2 às 16:35

CASAMENTOS REALIZADOS NA PARÓQUIA DE SÃO JOSÉ DA FAJÃ GRANDE NO INÍCIO DO SÉCULO XX (ANOS DE 1905 a 1907)

Quinta-feira, 24.10.13

No início do século XX, entre os anos de 1905 e 1907, realizaram-se, na paróquia de São José da Fajã Grande os seguintes casamentos:

1905:  

A 30 de Janeiro - José Luís da Silveira, de 44 anos, filho de José Luís da Silveira e Maria Claudina da Silveira, casou com Maria Amélia de Freitas da Silveira, de 21 anos, filha de Raulino Inácio da Silveira e Maria Amélia de Freitas da Silveira.

A 23 de Fevereiro - José de Freitas Dionísio Júnior, de 35 anos, filho João José de Freitas e Maria Emília do Coração de Jesus, casou com Maria Dionísia de Freitas Branco, de 23 anos, filha de João Jacinto Branco (natural da freguesia de São José de Ponta Delgada) e de Maria Catarina (natural da Fajã Grande).

A 16 de Setembro - Frederico José Henriques, de 78 anos, filho de Manuel Caetano Rodrigues e de Maria de Jesus e já viúvo de Mariana Apolónio Gonçalves, casou com Maria da Conceição Henriques, de 71 anos, filha de António de Freitas Pimentel e de Ana da Conceição, sendo viúva de António Pimentel Brás.

1906:  

A 7 de Janeiro - António de Bettencourt Vasconcelos, de 27 anos, natural da Praia de São Mateus da Graciosa, filho de Estanislau de Quadros Bettencourt e de Maria Isabel de Bettencourt, casou com Maria do Céu Fragueiro de Bettencourt, de 33 anos, filha de Manuel de Freitas Fragueiro e de Mariana Margarida do Coração de Jesus.

A 26 de Abril - João Francisco Furtado, de 27 anos, filho de Manuel Francisco Gervásio e de Isabel de Jesus, casou com Maria do Céu Furtado, de 16 anos, natural das Lajes das Flores, filha natural de Emília de Jesus Vieira.

A 21 de Julho - José Caetano Teodósio, de 20 anos, filho de António Caetano Teodósio e de Floripes Garcia de Mendonça, casou com Maria da Glória de Freitas Teodósio, de 17 anos, filha de José de Freitas Fragueiro e de Maria José da Silveira.

1907:  

A 15 de Abril - Francisco José de Almeida, de 26 anos, natural de Santa Cruz, filho de Manuel José de Almeida, natural de Santa Cruz e de Maria Cândida, natural da Feteira, Faial, casou com Maria do Céu da Silva, de 16 anos, filha de Manuel Pereira da Silva e de Maria Trindade, ambos naturais dos Altares, Terceira.

A 22 de Abril - António Rodrigues de Freitas, de 23 anos, filho de António Rodrigues e de Maria Inácia de Jesus, casou com Maria de Jesus de Freitas, de 26 nos, filha de Manuel José Valadão e de Maria Inácia de Jesus.

A 25 de Abril - Laureano Inácio Mateus, de 23 anos, filho de José Inácio Mateus e de Maria Lucinda, casou com Maria Luísa Mateus, de 22 anos, filha de João Inácio Mateus e Isabel Floripes da Silveira.

A 24 de Junho - Manuel Luís de Fraga, de 22 anos, filho de Manuel Luís de Fraga e de Maria Luísa da Assunção, casou com Maria Dias Avelar, de 21 anos, filha de Francisco Dias Avelar e de Maria de Jesus Dias, natural do Lajedo.

A 1 de Julho - José Caetano de Fraga, de 42 anos, filho de José Caetano de Fraga e de Rosa de Jesus, casou com Maria de Freitas Fraga, de 37 anos, filha de João de Freitas Silveira e de Mariana de Jesus.

A 6 de Julho - José Fagundes da Silveira, de 52 anos, filho de Bartolomeu Lourenço Fagundes e de Maria Laureana da Silveira e já viúvo da 1ª vez de Maria Fagundes da Conceição e da 2ª vez de Maria Rosa Fagundes, casou com Maria Luísa Fagundes, de 40 anos, filha de Manuel de Freitas Cardoso e de Maria Luísa.

Fonte: - Gomes, Francisco António Nunes Pimentel, Casais das Flores e do Corvo, 2006.

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publicado por picodavigia2 às 15:06

A CANADA DAS ÁGUAS

Quinta-feira, 24.10.13

O acesso ao sinistro e perigoso lugar das Águas, na Fajã Grande, era feito por uma estreita e sinuosa canada que se iniciava na Ribeira e terminava bem pertinho da Rocha, precisamente numa relva que meu pai ali possuía, que era a última daquele lugar e, consequentemente, o fim da vereda. A seguir um enorme e inacessível alcantil que fazia de margem esquerda da Ribeira das Casas e que, junto à Rocha, desembocava no mítico Poço do Bacalhau. Mais a baixo, o Moinho do Engenho.

Subindo a Fontinha e chegando ao Alagoeiro, voltava-se na direcção do lugar da Ribeira, precisamente ao sítio onde este era atravessado por uma ribeira que lhe deu nome e que, vinda dos Paus Brancos desaguava na Ribeira das Casas, como seu principal afluente, ia aumentando o seu caudal com todas as “grotas”, regos e regatos que se iam despegando da Rocha, desde da Alagoinha até à Figueira. E não eram poucos. Por isso, mesmo nos meses de maior seca, era quase impossível, atravessar a Ribeira e entrar logo abaixo, na Canada das Águas sem molhar os pés e uma parte das calças ou as botas, caso se andasse calçado, o que era raro. Os animais, esses sim, aproveitavam sempre aquela corrente de água, ora para saciar a sua sede, ora para se refrescarem e até se lavarem dos hediondos excrementos que tanto se lhes apegavam ao traseiro e se prolongavam pelos quartos, pela barriga e que, por vezes, se prolongavam quase até ao lombo. As vacas vindas das Águas chegavam aos palheiros, geralmente, um pouco mais limpinhas do que as oriundas doutras paragens.

Depois de se atravessar a Ribeira da margem esquerda para a direita e de a percorrer, uns escassos metros, na direcção da foz, virava-se na margem direita. Aí se iniciava a canada que conduzia ao lugar das Águas, lugar fajãgrandense situado praticamente, junto à Rocha com o mesmo nome. O primeiro troço daquela via, circundando terras de cultivo de milho e trevo, apesar de apertado e com piso em pedregulho, era rectilíneo e de acesso mais ou menos acessível. Mas a partir da relva de Ti Manuel Rosa a coisa fiava mais fino. Era o cabo dos trabalhos! É que devido à sinuosidade e inclinação do terreno e aos inúmeros e irremovíveis calhaus vindos da Rocha, o caminho era péssimo. O piso era curvilíneo, repleto de enormes pedras e grossos pedregulhos que rolavam de baixo dos pés e onde pessoas e animais tropeçavam com frequência e, pior do que isso, na curva que o tornava paralelo à rocha havia uns degraus toscos, desajeitados, com algumas pedras soltas e outras já caídas. Um martírio para quem ali passava! Para os homens quando carregando molhos de erva, de lenha, de fetos secos ou cestos de inhames. Para as vacas, sobretudo para as leiteiras ou pejadas, que ali se sacudiam e balançavam de tal forma que quase punham em risco a sua sobrevivência. Apenas a ganapada, quando passava por ali de mãos a abanar e o gado alfeiro, mais “triqueiro” e afoito, os subia ou descia com desenvoltura e facilidade.

Depois dessa curva, a canada seguia o seu caminhar, paralela à Rocha, com um piso feito de pedras soltas, umas caídas outras por cair e com grande risco para os que por ali passavam, não fosse mais algum calhau desprender-se da Rocha, como todos aqueles que ali jaziam no solo e que dela se haviam despendido ao longo dos tempos.

A canada das Águas era pois um tormento e uma amargura para quase todos os que por ela tinham que passar, incluindo os próprios animais.

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publicado por picodavigia2 às 14:22

VASSOURAS DE MILHO DE VASSOURA

Quinta-feira, 24.10.13

As vassouras eram absolutamente necessárias na Fajã, pois eram usadas contínua e permanentemente, não apenas para varrer o cisco das casas, mas também para efectuar a limpeza dos pátios, dos logradouros, das lojas e de outros locais de arrumo. As vassouras ainda eram usadas para apanhar os cacos do que se partia, para juntar o trevo, o feijão, as favas e o milho quando postos a secar e, para os que produziam trigo, para o varrer e juntar na eira. Eram pois muito usadas, as vassouras.

Ora para as adquirir havia dois processos: ou se compravam nas lojas, as que vinham do Faial e que o Teófilo produzia e exportava para as Flores ou cada um construía as suas próprias vassouras. No primeiro caso era preciso ter dinheiro. No segundo, para além do cabo e de um pouco de fio, era preciso ter milho de vassoura, o que, no entanto, era fácil obter. Bastava semeá-lo.

O chamado milho de vassoura era semeado geralmente nos cantos das terras, ao mesmo tempo que se semeava o outro milho, dado que não era preciso grande espaço para o seu cultivo, uma vez que um simples punhado de palha chegava para fazer uma vassoura. Para além do milho e para fabricar uma vassoura era necessário apenas um cabo de madeira, semelhante a um bordão e barbante ou outro fio resistente.

O cabo era fácil de adquirir. Bastava ir ao cepo da lenha e arranjar um bom pau de incenso ou de araçazeiro, cortar-lhe os nós, tirar-lhe a casca e alisá-lo bem alisado, o que até poderia ser feito com um simples vidro partido. O milho, depois de apanhado, era seco e ripado, guardando-se uma parte do grão, uma espécie de painço, para semente, no próximo ano. As palhas, depois de secas, eram muito bem amarradas no cabo e de seguida espalmadas formando uma espécie de leque. De seguida e para que mantivesse essa forma achatada, a palha era cosida com uma agulha bastante grande e com fio barbante ou outro igualmente resistente. No entanto, havia quem o fizesse com tiras de pano, o que obviamente baixava o custo da vassoura, reduzindo-o praticamente a zero. Esta operação era efectuada um pouco abaixo do cabo e em mais do que um sítio, a fim de que a resistência da dita cuja fosse maior. Finalmente e com uma tesoura, as pontas das palhas opostas ao cabo eram muito bem aparadas de maneira que ficassem todas do mesmo tamanho. E estavam prontas as nossas vassouras. Força houvesse para manejá-las! E havia…

Constava que estas vassouras artesanais fabricadas pelos nossos antepassados eram de boa qualidade e bastante resistentes, ultrapassando em durabilidade e firmeza as que vinham do Faial e que em duas ou três varredelas mais exigentes, começavam a deixar cair palhinhas e a desfazerem, sendo necessário, por vezes, reforça-las, cosendo-as de novo ou colocando-lhes à volta um pedaço da canela duma meia velha de senhora.

Diziam as varredoras mais experientes que a vassoura se devia guardar encostada, junto ao forno, com o cabo para baixo, para não deformar a palha, dificultando ou tornando menos eficaz a sua função principal – varrer

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publicado por picodavigia2 às 10:18

UM E DOIS

Quinta-feira, 24.10.13

Um e dois e à bolina,

Mete o pé na pampolina.

Ò rapaz, que jogo faço?

Faço o jogo do capão:

Capão sobre capão,

Conta bem Manuel João.

Se contares e não errares

Vinte e quatro acharás

Peso o melro na balança,

Peso o rei que vai para a França.

Os cavalos a correr

E as meninas a aprender.

Qual será a mais bonita

Que se deve esconder,

Atrás do burro da Inês,

Cada uma por sua vez,

 

(Aravia popular fajãgrandense)

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publicado por picodavigia2 às 09:44

NEVOEIROS

Quinta-feira, 24.10.13

Fechou os olhos e sentiu um enorme calafrio. Parecia-lhe que os insensatos e inverosímeis sonhos de criança se esvaziavam por completo. Em todo o caso, manteve-se pensativa, sentindo que aquele doce perfume de luar que a noite, escuramente assumida, trazia, a transfigurava.

Foi então que, nesse momento, sentiu que havia um enorme e enigmático mistério a toldar-lhe a vida, talvez, até, a moldar-lhe o destino. Não queria desperdiçar as ilusões que o futuro parecia reservar-lhe. Em criança tivera um arsenal inteiro de quimeras que se haviam esvaído com a juventude. No dia em que deixou cair toda esses sonhos míticos, esses assombros encantadores, ficou apenas, a envolvê-la, uma enorme dúvida, numa espécie de desintegração total e absurda. Não poderia confessá-lo e, para o esconder, possuía um só argumento: limitar-se a negar todas as evidências, com palavras e com gestos, mesmo de forma disfarçada e denunciadora. Formulava, assim, uma incredulidade inaudita, sobretudo para si própria. Mas diante de uma realidade tão sonora e tão doce, embora incongruente e enigmática, era-lhe impossível encolher os ombros e permanecer indiferente.

No dia seguinte, ele entrou na sala e cuidou, presumidamente, vê-la estremecer, sensibilizar-se e ocultar um sentimento estranho. Não pode deixar de sentir-se lisonjeado. Ela olhava-o com ternura deslumbrante. Muito provavelmente, a amizade transformara-se num mistério frio e estranho, numa credenciação inaudita. Olhou-a de forma a não lhe dar a conhecer a anuência do seu regozijo. Realmente, era graciosa sem ser elegante, bela sem ser bonita e forte sem ser fascinante. Era viva nos gestos, expedita nas atitudes, comedida nas palavras, deslumbrante no sorriso, encantadora nos olhos grandes e cálidos, na boca fina e no espectro global da sua essência, permanentemente, interrogativa. O seu porte grave e sisudo fazia-o estremecer e transformar-se num ingénuo, sem acção, sem iniciativa e sem intuição.

A convivência quotidiana, entre os reflexos da aurora e o estrebuchar do amanhecer trouxe-lhes uma certa intimidade. Como daí chegar ao amor, nunca o souberam, nem muito menos o confessaram um ao outro. Mas verdade é que gostavam de passar as horas juntos, em perfeita harmonia, mesmo que fosse com os olhos fixos no infinito, a olhar coisa nenhuma. As próprias palavras, quando as havia, eram vulgares, fúteis, dispersas e silenciosas. Mas até os silêncios eram sublimes, deleitosos e, estranhamente, eloquentes.

E o crepúsculo da madrugada seguinte, voltou a fechar-lhe os olhos. Ao longe, como em eco, sussurravam as palavras que ele nunca havia de lhe ouvir. A luz era pouca, os degraus carcomidos pelos pés dos transeuntes, o corrimão enferrujado, pegajoso, a abarrotar de um cheiro a bafio. Ele não a viu, nem voltaria a encontrá-la, porque o tecto do mundo, telúrico e agreste, estava coberto de nevoeiros densos e dos montes desciam sombras, como se fossem fantasmas inertes, apodrecidos e inúteis. Nada pairava sobre as nuvens mas a permanente ausência dele, fustigava-lhe o sangue, perturbava-lhe a alma, amordaçava-lhe o destino.

Olhou três vezes ao redor e, outras tantas, bateu à porta. Se esta se abrisse, lá dentro havia de encontrar uma escuridão apenas entrecortada por um ténue fiozinho de luz solar que entrava pela fresta duma janela mal fechada. Mas a porta comunicava com um enorme jardim, povoado de gladíolos, açucenas, begónias e malmequeres e onde havia apenas uma mesa. Lá dentro? Velhos trastes, resíduos de um trémulo regozijo, paredes sombrias, frias, despidas de poemas e vazias de sentimentos. Um ar de pobreza desgastante que lhe aumentava a dor e lhe destruía o fascínio. Abriu a porta com intenção de sentar-se sobre o silêncio da madrugada, diante da mesa, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz que por ali entrava lhe batesse, em cheio, no rosto. Ela partira, para sempre e os nevoeiros do cimo dos montes, haviam descido as encostas, enrolando-se nas árvores, nas casas e entrando pelas portas e janelas abertas. Voltou-se para o mar e fixou o horizonte… Um nevoeiro ainda mais intenso do que o das montanhas, encobria o mar e o céu, desfazendo aquele abraço eterno e infinito.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:15





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