PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A LENDA DA CANA-DA-ÍNDIA
Quando era criança, uma das estórias que ouvia era a lenda da Cana-da-Índia. Rezava, mais ou menos, assim:
Há muitos, muitos anos havia na ilha das Flores um pescador que era casado e tinha uma filha a quem pusera o mesmo nome da sua mulher, Maria. Eram bastante pobres, pois viviam alimentando-se, apenas, com uma pequena parte do peixe que o homem pescava. A restante parte vendia-a e era com esse pouco dinheiro que comprava o pão, o leite, o açúcar e todos os outros produtos necessários não só à alimentação da sua família mas também à manutenção do seu barco. Apesar de pobres e com parcos recursos viviam felizes e na paz do Senhor, contentando-se com o produto das pescarias que o homem fazia, ora de dia se o mar estava calmo ora de noite se era tempo de lua.
Porém, numa sexta-feira a vida do pescador e da sua família mudou radicalmente. Uma vizinha que, apesar de desconhecerem, estava disfarçada pois era uma feiticeira, estava às portas da morte e a mulher e a filha do pescador, boas e caridosas, tiveram muita pena dela e foram visitá-la, oferecendo-se para ajudá-la e socorrê-la no que necessitasse. A feiticeira, agoniada, cuidando que ia morrer sem passar a sua sina a outra mulher, pegou num novelo e desenrolando-o pelo chão, gritava:
- Quem pega que eu largo!? Quem pega que eu largo?
A mulher do pescador, vendo aquele sofrimento, sem saber no que se estava a meter e querendo ajudar a vizinha, aliviando-a na sua dor, ajudada pela filha, pegou no novelo. Imediatamente a feiticeira morreu e no mesmo instante a mãe e a filha ficaram possuídas da sua sina, ficaram enfeitiçadas.
A princípio o pescador não deu por nada e a vida parecia continuar como era costume. Mas, pouco tempo depois, o homem começou a notar alguma coisa estranha.
Certo dia, ao dirigir-se de madrugada para o porto, ao entrar na ramada, encontrou o seu barco todo molhado como se tivesse navegado toda a noite, sem ter sido ele a ir ao mar. Por isso desconfiado e de pulga atrás da orelha, começou a tentar descobrir o que se havia passado durante a noite.
Na noite seguinte deitou-se e fingiu que estava a dormir. Altas horas da noite, a mulher e a filha saíram de casa. Sem que elas se apercebessem, ele saiu atrás delas. Enquanto as duas Marias vagueavam pela terra, o pescador correu para o barco, embrulhou-se no pano duma vela e escondeu-se à popa. Passou ali mais de uma hora e, quando era pouco mais da meia-noite, chegaram a mulher e a filha. Logo uma delas, virando-se para o barco, disse:
— Põe-te a caminho com as duas!
Mas o barco não se mexeu e então a outra mandou:
— Põe-te a caminho com todos!
Então o barco, de imediato, pôs-se a andar por cima das ondas com tal velocidade que mais parecia voar. Em poucos instantes estavam numa praia da Índia. As duas feiticeiras desembarcaram, meteram-se por terra, entre um canavial que ficava à beira-mar e ali comeram, beberam, dançaram e folgaram com dois rapazes que tinham vindo do mato.
O pescador estava tolo com o que via, mas teve ainda a ideia de arranjar uma prova para as suas palavras. Arrancou uma cepa de cana e voltou para o barco onde se escondeu outra vez.
As feiticeiras chegaram, daí a algum tempo, e, saltando para dentro do barco, puseram-se a caminho, depois de uma gritar:
— Põe-te a caminhar com todos!
O poder da feitiçaria era tanto que muito antes de amanhecer já estavam novamente nas Flores e com o barco varado.
Logo que pôde, o pescador foi contar ao padre o acontecimento, mostrou-lhe como prova a cepa de cana e pediu-lhe a sua intercessão. O padre veio à sua casa, benzeu a mãe, a filha e o barco também. Quebrou-se o novelo e o enguiço e acabou a sina de feiticeira das duas mulheres. Mas o que nunca mais acabou nas Flores foi a cana-da-Índia, que rebentou da cepa que o pescador trouxe e que plantou no seu quintal, como testemunho do que tinha vivido naquela noite.
Autoria e outros dados (tags, etc)
ÂNGELA ALMEIDA
Ângela Maria Duarte de Almeida nasceu na cidade da Horta, em 6 de agosto de 1959. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa desde 1983. Possui o curso completo de Língua e Cultura Italiana, pelo Instituto Italiano di Cultura in Portogallo, um bacharelato em Turismo e o Curso de Guia-Intérprete Nacional, no Instituto de Novas Profissões. Foi assistente convidada da Universidade dos Açores e assessora para a Cultura na Câmara Municipal de Ponta Delgada. Ângela Almeida tem exercido um papel relevante como dinamizadora de realizações culturais nos Açores.
As suas principais obras literárias são: a nível da poesia Pela Vertente do Sonho, Sobre o Rosto e Signo. Na prosa ressaltam: Eugénio de Andrade: a Água, a Terra, o Fogo e o Ar, Bibliografia e Iconografia, O Baile das Luas.(narrativa poética). Natália Correia, Mãe Ilha, Retrato de Natália Correia. Uma Valsa para Antília e Ilha das Flores - A Sedução da Água.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
Autoria e outros dados (tags, etc)
ABRAÃO VAI PERDIDO
Os nevoeiros, as brumas, as tempestades e os temporais que surgiam frequentemente nos matos da Fajã, para além de perigosos eram, por vezes, aterradores e já alguns homens e rapazes que nesses dias tenebrosos demandavam aqueles andurriais, se haviam perdido, embora, na maioria dos casos, apenas temporariamente.
Mas homem prevenido vale por dois. Baseado nesse princípio e temendo que, mais dia menos dia, lhe pudesse acontecer o mesmo, isto é, que também havia chegar a sua vez de se perder no mato, no meio de um nevoeiro ou envolto numa tempestade, o velho Abraão, sem o confessar a quem quer que fosse, dia após dia, lá foi escrevendo, a letras garrafais, numa quantidade de tirinhas de papel julgada necessária, a seguinte frase: “Abraão vai perdido.” Guardou-as muito bem guardadas nos caninhos de uma caixa e, a partir de então, sempre que ia para o mato, quer estivesse sol de rachar, quer se previsse nevoeiro ou se adivinhasse temporal, lá ia Abraão, de cordas ao ombro e bordão em riste, com os papelinhos escritos, bem escondidos num dos bolsos.
E não é que o previsto aconteceu! Ia Abraão, certo dia, com destino a Santa Cruz, atravessando o Rochão Grande, prestes a chegar à Burrinha. Um forte nevoeiro tapou-lhe os olhos, tolheu-lhe os passos e entonteceu-o de tal modo que perdeu o rumo. Estava completamente perdido mas muito animado, recorrendo de imediato ao seu segredo, aos papéis que continha num bolso. Lá foi deixando cair os papéis um após outro, enquanto deambulava sem saber o rumo. Passou a noite numa furna, onde facilmente o encontraram aqueles que, seguindo os papelinhos, na manhã seguinte, o foram procurar.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O NAUFRÁGIO DO “STORTIND”
Muitos e variados foram os naufrágios que ao longo dos anos se verificaram nos mares circundantes à Fajã Grande. Situada no ponto mais ocidental da Europa e arpoada a oeste, a ponta do baixio com o seu pequeno e fraco farol era, apesar de tudo, até à segunda metade do século passado, um ponto de referência necessário e obrigatório para todas as embarcações que, oriundas das Américas, pretendiam rumar à Europa do Norte e do Sul, bem como as provenientes do Mediterrâneo e da Costa Ocidental Africana e que tinham como rota principal o Atlântico, na tentativa de aproveitar os ventos e as correntes favoráveis. Assim navios, paquetes, cargueiros, escaleres, escumas, lugres, galeras, bacalhoeiros, patachos. barcas, bergantins, iates, brigues e todo o tipo de embarcações eram como que obrigadas, nas suas rotas marítimas através do Atlântico, a demandar, ao de perto, a costa mais ocidental da ilha das Flores, a Fajã Grande.
Muitos deles, porém, terminaram os seus dias entre os baixios e escolhos da ilha das Flores, acossados por ventos, temporais e neblinas ou atingidos pelas balas e flechas assassinas da pirataria É que nem sempre as condições de navegabilidade, por aquelas paragens, eram as melhores. Umas vezes era o próprio mar altivo, bravo e revolto que dificultava a navegação e provocava naufrágios, outras as intensas neblinas e nevoeiros que com tanta frequência se formavam naquelas orlas marítimas. Num caso e noutro era muito difícil navegar com segurança e serenidade e chegar ao porto pretendido. Mas não eram estes apenas os maiores e mais eminentes perigos. Outros havia, que punham em risco a navegação ao redor da ilha. Por um lado a pirataria, sempre predisposta a atacar, a saquear, a roubar, a atirar e a matar, tanto em terra como no mar e da qual nem sempre as populações se sabiam defender e, por outro, as guerras mundiais que dominaram uma boa parte das primeiras cinco décadas do século XX, durante as quais barcos de guerra e submarinos pertencentes aos países envolvidos nesses conflitos mundiais atacavam sem dó nem piedade tudo o que lhe aparecesse pela frente, mesmo se tratando de vítimas inocentes, quer fossem pessoas quer embarcações. Foi o que aconteceu no dia 2 de Setembro de 1908 quando um cargueiro norueguês de nome “Stortind” navegava ao largo da costa oeste da ilha das Flores, por fora da Fajã Grande, transportando carga diversa, viajando entre Baltimore e La Palice. Este cargueiro, com quinze tripulantes, juntamente com uma pequena embarcação local, com nove pessoas a bordo, foi atacado e torpedeado por um submarino inimigo em plena 1ª Guerra Mundial. Deste ataque resultou a destruição e o naufrágio de uma e outra embarcação. O “Stortind” ficou de tal modo destruído, tornando-se incapaz de continuar viagem. Os náufragos de ambas as embarcações lançaram-se ao mar nos respectivos salva vidas e aportaram ao porto da Fajã Grande, onde aguardaram meios que, mais tarde, lhe proporcionassem o regresso aos seus países. Abandonados na costa. os salva-vidas foram, mais tarde, arrematados em asta pública e adquiridos por José Alexandre da Silveira e António Caetano Serpa, comerciantes de Santa Cruz.
Autoria e outros dados (tags, etc)
LENDA DO RIO DOURO
Como muitos outros rios também o Rio Douro anda envolvido num episódio lendário. E diz-se que, no momento da criação, quando Deus procedeu ao lançamento dos rios pela terra, com a determinação do dia em que dariam início à marcha para o destino comum — o mar —, o Douro se deixara adormecer. Assim, não pôde partir na hora aprazada pois só lembrara a prescrição ao acordar do seu sono pesado.
Com a maior surpresa, ainda estremunhado, o Douro pôde ver que os outros rios já serpenteavam nos vales, cortando serras e dividindo montes, em cumprimento dos propósitos fixados por Deus para seu fadário. Face ao seu descuido, passado o momento da estupefacção, cobrou ânimo e pensou na maneira de levar a cabo a recuperação. Então, para ganhar o que perdera com o seu descanso, empreendeu uma corrida difícil, mas decidida e corajosa, descendo fragas, atravessando montanhas, partindo rochas, galgando penedias, até que atingiu o oceano atlântico muito antes dos outros, apesar destes terem saído mais cedo, mas que preferiram escolher um trajecto com terrenos mais suaves.
Fonte Biblio VALLE, Carlos Revista de Etnografia 26, Tradições Populares de Vila Nova de Gaia - Narrações Lendárias Porto, Junta Distrital do Porto, 1969 , p.422
Autoria e outros dados (tags, etc)
AFRODITE
Cronos era o deus do tempo. Certo dia, após uma esporádica rebelião entre os deuses do Olimpo, decidiu castigar Úrano, castrando-o e atirando-lhe os genitais ao mar. De imediato, formou-se, na água, um enorme remoinho de espuma, da qual surgiu uma bela mulher, Afrodite. Perdida no mar, foi Zéfiro, o vento norte, que, soprando suavemente, a transportou numa concha e a levou até à ilha de Chipre, onde as Horas a esperavam. Vestiram-na com um traje imortal e, adornando-lhe os cabelos com vistosas violetas, conduziram-na ao Olimpo, onde foi apresentada à assembleia dos deuses. A sua excelsa e ímpar beleza foi aclamada por todos. Jamais as divindades celestes tinham visto tão sedutora formosura, pelo que, de imediato, Afrodite foi consagrada e entronizada como a deusa do amor, da sedução e da sensualidade.
Afrodite cresceu e tornou-se tão linda, tão bela, tão atraente e tão sensual, que os deuses temiam que tanta beleza provocasse, entre eles, ondas de ciúme que haviam de por termo à paz e à harmonia, até então, reinantes no Olimpo. É que para além duma excelsa beleza, duma divinal sedução e do seu ar sensual e provocante, Afrodite era voluntariosa, amante do prazer e permanentemente dada a paixões provocantes e a eflúvios amorosos, mas inimiga da sensatez, da estultícia e da fealdade. Representava a doçura dos apaixonados, o ímpeto dos desejosos e o delicioso idílio da entrega dos corpos. Foi ela quem prometeu o amor da bela Helena ao príncipe Paris, comprometendo-os emocionalmente, a fim de que vivessem uma profunda e sublime paixão, sem se importar com as consequências que daí adviriam, consubstanciadas numa guerra sangrenta que devastaria e arrasaria, por completo, a cidade de Tróia.
Mais tarde, Zeus ficou ressentido, pois, tão grande era o poder sedutor de Afrodite que ele e os demais deuses do Olimpo lutavam, permanentemente, uns contra os outros, na disputa pelos encantos da bela diva, enquanto esta os desprezava a todos, como se de nada valessem. Como vingança e punição, Zeus obrigou-a a casar-se com Hefesto, o deus mais horroroso que existia no Olimpo e que, para além de feio, era coxo. Mas, apesar de inconformada com o casamento, a deusa não deixou de viver a voluptuosidade impetuosa das suas paixões. Assim, começou por trair Hefesto, não só com os mais belos deuses, mas também com muitos mortais. Hefesto apercebeu-se a tempo do embuste e, cuidando que estava a usar uma sábia perícia, cobriu-a com as melhores jóias do mundo, oferecendo-lhe, inclusivamente, um cinto mágico do mais fino ouro, mas entrelaçado com filigranas mágicas, com o fim de ela se sentir atraída por ele, não se apercebendo, o palerma, de que, mais do que por ele, aquele cinto mágico, mais a faria apaixonar-se e entregar-se a outros, em permanentes e irresistíveis paixões.
Afrodite sempre adorou o prazer sensual, a volúpia e o glamour. Amou e foi amada por muitos deuses e por outros tantos mortais. De entre todos os seus amantes, os mais famosos foram Anquises e Adónis, este também apaixonado por Perséfone, de quem a deusa era rival, tanto pela disputa do amor de Adónis, como no que se à sua beleza dizia respeito. É que Afrodite não admitia que nenhuma outra deusa ou mulher tivesse uma beleza comparável à sua, punindo os mortais que se atrevessem a desafiá-la, comparando a sua formosura com quem quer que fosse. Adónis era o jovem mais belo de toda a Grécia. Aprendeu com Afrodite a arte do amor, os segredos do corpo e do prazer. Um dia, enquanto a deusa descansava à sombra de uma árvore, Adónis caçava javalis. Ao atirar, atingiu um deles com uma flecha. Mesmo ferido, o animal teve forças para atacar e abater mortalmente o belo caçador. Ao ouvir os gritos de Adónis, Afrodite correu em seu auxílio. Mas chegou tarde demais, encontrando o seu jovem apaixonado, já sem vida. Abatida por uma dor infinita, a deusa recolheu algumas gotas do sangue do amado, regando com elas o chão, onde o jovem havia tombado. Do sangue de Adónis nasceu uma flor, a anémona, de vida efémera, florindo e renascendo em cada primavera, a relembrar o amor perdido pela deusa, também ele passageiro.
Outro dos amantes de Afrodite foi o próprio Zeus que, no entanto, nunca quis divulgar este seu enlevo, uma vez que a sua esposa Hera era muito ciumenta e Zeus tinha medo que Afrodite e ela fizessem algo que prejudicasse o seu casamento.
Outro deus que se apaixonou perdidamente por Afrodite, foi Ares que levava sempre para os seus encontros com a deusa, o jovem Aletcrião, deixando-o de vigília enquanto amava a bela deusa. Uma noite, porém, Alectrião deixou-se adormecer, enquanto Ares e Afrodite se entregaram, voluptuosamente, um ao outro. De manhã, quando Hélio, o deus Sol, despontou o dia, surpreendeu o ilícito idílio dos dois amantes. Indignado, Hélio procurou Hefesto e contou-lhe da traição da esposa. Na sua fúria de marido traído, Hefesto deixou-se abater pela tristeza, mas passado algum tempo, já recuperado, traçou um plano de vingança. Confeccionou uma rede invisível com finíssimos fios de ouro, tão resistente que nenhum homem ou deus a pudesse romper. Hefesto armou a sua rede sobre o próprio leito da traição, dizendo à esposa que se iria ausentar por alguns dias, partindo, de imediato, sem maiores explicações.
Cuidando que Hefesto estaria ausente, Ares e Afrodite entregaram-se, de novo ao prazer louco, enchendo-se de felicidade. Viveram uma noite de amor, descansados, sem o medo de serem surpreendidos. Movidos por uma arrebatadora paixão, deitaram-se, felizes, sobre o leito armadilhado. Só deram pelo ardil minutos depois, quando se viram prisioneiros da rede invisível. Naquele instante, Hefesto surgiu, cheio de cólera, gritando com uma voz tão forte, que se fez ouvir em todo o Olimpo. Todos os deuses acorreram e, presenciando a traição, testemunharam o crime dos dois amantes.
Hefesto estava disposto a deixar para sempre os amantes prisioneiros. Só através da mediação de Apolo se predispôs a soltá-los. Livre e envergonhada, Afrodite partiu para Chipre, sua ilha predilecta, enquanto Ares foi degredado para os campos de batalha da Trácia, a fim de esquecer, na guerra, as dores do amor findado.
Depois do degredo, Afrodite raramente descia à terra, relacionando-se com os mortais, adquirindo uma forma humana, possuindo o sublime poder de manipular um homem não só com a sua beleza e formosura, mas também com o seu olhar, ou simplesmente com o contacto físico ou mental.
Ainda hoje, Afrodite desperta o fascínio dos humanos, e dela se contam lendas das mais difundidas sobre a mitologia greco-romana, sendo o mito do seu nascimento, um dos mais explorados nas artes, nomeadamente, na pintura.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Ti JOSÉ TEODÓSIO
José Caetano Teodósio, conhecido na Fajã, na década de cinquenta, por “Ti José Teodósio” nasceu no longínquo ano de 1886, sendo seu pai António Caetano Teodósio e sua mãe Floripes Garcia de Mendonça, casados na nova paróquia da Fajã Grande, em 24 de Julho de 1880, mas baptizados ainda na igreja paroquial da Fajãzinha, antiga paróquia das Fajãs, uma vez que nasceram respectivamente em 1839 e 1844, quando a Fajã Grande ainda não era paróquia, nem tinha igreja paroquial. Ti José Teodósio, por sua vez, casou já no século XX, mais precisamente no dia 21 de Julho de 1906, na igreja paroquial da Fajã Grande, sendo sua esposa Maria da Glória de Freitas Teodósio. Deste casamento nasceram nove filhos, seis meninas e três rapazes, tendo o casal ainda adoptado uma criança órfã. Fixaram residência bem lá no alto, na última casa da Fontinha, de cuja sala, enorme e claríssima, se desfrutava duma das mais belas vistas sobre a Fajã, sobre grande parte das suas ruas e casas, sobre as terras do Porto e Areal, sobre a Ponta e a sua rocha, o ilhéu do Cão, o Monchique e Baixa Rasa, sobre o baixio negro e recortado e sobre o oceano ora calmo e tranquilo ora revolto e bravo.
Ti José Teodósio era uma figura imponente, altiva, digna e respeitada por todos. Mantinha ainda o tradicional traço do homem do século XIX, com um enorme bigode esbranquiçado a ocupar-lhe grande parte do rosto, suíças exageradamente descidas pelos lados da cara, face encardida e sulcada pelos rigores do tempo, mãos calejadas pelo trabalho árduo e contínuo dos campos e o corpo arquejado de canseiras e consumições. Fora um homem de muito trabalho, dedicando-se não só às terras “da porta” e arredores mas até às relvas do mato, onde consta que terá chegado a lavrar e a semear milho, com a ajuda dos dois filhos mais velhos. Mas paralelamente à intensa, cansativa, extenuante e contínua actividade agrícola, Ti José Teodósio ainda disponibilizava o seu tempo para as cantorias. Dotado de uma voz excelente e possuidor de um reportório musical genuinamente popular, herdado dos seus antepassados e das gerações anteriores, Ti José Teodósio era folião do Espírito Santo, cantava no Outeiro durante todas as terças e sextas da Quaresma e animava festas e casamentos com as suas cantorias, muitas vezes sem ser acompanhado por qualquer instrumento musical. Tio José Teodósio também era um homem extremamente generoso, sempre disposto a ajudar os outros e a partilhar com todos os seus bens e haveres, sobretudo a emprestar os diversos instrumentos agrícolas que lhe era permitido possuir, como arados, grades, caliveira, cangas, enxadas e sachos, a quem deles precisasse. E nem era preciso pedir-lhe, pois Ti José Teodósio guardava-os num palheiro, ao lado da sua casa, cuja porta estava sempre aberta, tanto de noite como de dia, para que quem muito bem quisesse e entendesse os fosse ali buscar para o utilizar nos seus campos.
No entanto o que mais dignificava a generosidade e o grande e bondoso coração deste homem, que naturalmente também tinha os seus defeitos e os seus inimigos, foi o facto de ele e a esposa, apesar de já serem pais de nove filhos, terem adoptado uma menina de nome Maria de São Pedro, filha de pai incógnito e órfã de mãe, dedicando-lhe tanto carinho, tanto amor e tanto afecto, revelados sobretudo no dia seu casamento que, por decisão e vontade expressa dos mesmos, em nada foi inferior ao dos seus próprios filhos. Apesar de muito criança, lembro-me desse casamento, da enorme festa que foi, do lauto almoço realizado na sala da casa de Ti José Teodósio e, findo o qual, tive o privilégio de ver e ouvir o velho Teodósio recostar-se nas costas duma velha cadeira, fechar os olhos como se estivesse a sonhar e cantar para os noivos:
“O melro canta, beijando a flor,
E nós cantámos ao vosso amor.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O SALÃO
A igreja da Fajã Grande tinha apenas uma sacristia, situada do lado do Evangelho, ou seja, a sul e que ficava anexa ao templo com o qual comunicava através do púlpito e de duas portas, uma que dava para a capela-mor e a outra para o cruzeiro. Era um edifício pequeno, de um piso e com duas divisões. Uma destas era a chamada “”sacristia de cima” e era o local onde o celebrante se paramentava e que, para além de duas ou três cadeiras e uma pequena mesa que servia de secretária ao pároco, tinha um enorme gavetão, com alguns santos velhos em cima e um cruxifixo ao meio, em cujas gavetas se guardavam os paramentos e todas as outras vestes e roupas litúrgicas e um armário, encastoado na parede, que servia de resguardo aos cálices, píxides, relicários e restantes objectos de culto. Por sua vez, a outra divisão, onde se localizava a única porta que dava acesso ao exterior, chamada sacristia de baixo, era mais pequena, sendo grande parte do seu espaço ocupado com as escadas do púlpito, por baixo das quais havia um armário de arrumos, reduzindo-se o restante espaço praticamente a um corredor de passagem, ladeado por alguns armários, onde se guardavam os objectos necessários à ornamentação, arranjo e limpeza do templo.
O padre Pimentel, no início da década de cinquenta, que paroquiava a Fajã Grande nessa altura, sentindo que a sacristia era exígua e, sobretudo, por pensar que lhe faltavam espaços para arrumos, para a catequese, para ensaios, para preparar os andores, para guardar a Senhora da Soledade, para apoio à quermesse da Senhora da Saúde e até para recolher o milho das almas, decidiu que se havia de construir um salão. O projecto era simples e, ele próprio, o arquitectou. Tirava-se o tecto à sacristia, subiam-se-lhe três paredes, porque a do lado da igreja estava construída por natureza, colocava-se-lhe um tecto novo e construía-se assim, por cima de toda a área da sacristia, um segundo andar, formando um salão com um espaço um pouco superior ao da referida sacristia. A concretização do projecto, no entanto, era substancialmente obstaculizada pela falta de dinheiro e de mão-de-obra. Mas quando o pároco, na missa de domingo, anunciou o projecto, todo o povo se ofereceu para ajudar. O dinheiro era apenas um pequeno problema: fazia-se uma derrama pela freguesia, escrevia-se para a América a pedir aos emigrantes e arranjava-se o necessário. Quanto ao trabalho?! Bem esse, nem problema era. Então não é que estavam ali todos para ajudar?
Fez-se a derrama, escreveu-se para a América a arranjou-se dinheiro para a madeira, para a cal, para a telha, para as fechaduras, para as janelas e para pagar a um ou outro carpinteiro. Aos domingos, porque o pároco esclarecera que trabalhar aos domingos e dias santos de guarda, para a igreja e em benefício de Nosso Senhor, não era pecado, formavam-se filas e filas de carros de bois, uns a acarretar areia do Canto do Areal ou madeira dos Paus Brancos, outros a transportar carradas de pedra do Calhau Miúdo, até atulhar por completo o adro que, na altura ainda não era cimentado. Homens, mulheres e crianças, todos trabalhavam e ajudavam, consoante a sua capacidade, uns a cortar árvores, outros a partir ou a ajuda-la a carregar e descarregar a pedra, outros a encher sacos de areia e, os mais experientes, a aplainar as traves e os tirantes, a fazer parede, a amassar o cimento com a areia e a chegar e aplicar a argamassa. O empenho da população foi tal que, passados alguns meses o salão foi inaugurado.
A construção do salão assim como a compra da Filarmónica (com a oferta do leite do primeiro domingo de cada mês) e tantos outros projectos, embora menores, que na freguesia ganharam forma e concretização ao longo dos anos, foram e são, inequivocamente, um exemplo da força, da raça, do querer, do dinamismo, da generosidade, do espírito de entreajuda e de cooperação do povo da Fajã Grande.
Autoria e outros dados (tags, etc)
DO SONHO À REALIDADE
Sentado num degrau do Descansadouro, a meio da Rocha que se sobrepunha ao povoado, o António Balafanha maldizia, consigo próprio, a sua sorte.
A mãe falecera, não havia muito. O pai, olvidando cedo a memória da defunta, voltava-se de amores pela Conceição Fragueiro. Não demoraria muito, daria em novo casamento. Por um lado compreendia-o. Ainda era novo e bem precisava duma mulher que lhe tratasse da casa e lhe desse uma demão nas “semeaduras”. Mas caramba! Era muito pouco tempo! Bem podia esperar pelo menos um ano!... E ele? O que seria dele? Viver com uma madrasta, não lhe agradava rigorosamente nada. Além disso, sabia-se que o feitio da Conceição não era propriamente o duma santa... Depois viriam outros filhos... O irmão mais velho, o Francisco safara-se a tempo... A sua vida também tinha que mudar e seria ele próprio a resolvê-la...Tinha que ser ele a decidir o seu próprio futuro.
Levantou-se com intenção de continuar a íngreme subida. A vontade, porém, era quase nula. Todos os dias, calcorreava aquele íngreme e escarpado alcantil, sobranceiro à freguesia, que dava para os matos de relvas verdejantes, onde o gado, no verão, pastava tranquilamente. Se havia vacas leiteiras, era aquele castigo todos os dias: subir a Rocha e percorrer os matos, por entre veredas e atalhos, saltando “grotões” e tapumes, abrindo e fechando cancelas, até ao Queiroal. Depois, proceder à ordenha e descer aquelas dezenas de voltas e centenas de degraus, carregando duas pesadas latas de leite, suspensas num pau de araçá. E a relva do pai era muito distante do cimo da Rocha, já em terrenos do concelho de Santa Cruz. A última da Fajã!...
Voltou a sentar-se, olhando o oceano azulado que, ao fundo da ampla fajã, contornava a mancha escura do baixio. Depois as terras de milho, de couves e de batatas, a ladear as casitas, a maioria delas ainda cobertas de colmo, muito agrupadas, muito juntas, muito alinhadas na direcção da nova igreja, que agora se erguia imponente e altiva, a substituir a velha, humilde e pequenina capela do serrado do Lincate, ali mesmo junto à casa dos Freitas Henriques.
Mas foi o mar, porém, que mais uma vez, despertou a sua atenção. O mar, revolto e inquieto, a impor-se com um sussurrar roufenho ao nostálgico silêncio da ilha. Desde pequeno que sonhava com o mar. É verdade que na família não havia, que se soubesse, tradições marítimas. Ao avô e, agora, ao pai, o mar só lhes interessava para ir ao Caneiro das Furnas apanhar polvos e moreias ou ao Pesqueiro de Terra pescar uns “sarguitos” e umas vejas. Sempre se voltaram para a terra, para o trabalho agrícola e para o gado. Para quê? Para não ter nada! Apenas umas belgas de milho e couves, um curral de trigo no Canto do Areal, a relva da Escada Mar, a da Alagoínha e aquele maldito Queiroal, que não sustentava mais do que duas rezes. Como herança tinham miséria e pobreza, trabalhando de sol a sol, subindo rochas e outeiros, carregando latas de leite, molhos de incensos e de lenha ou cestos de inhames e batatas. A vida, na ilha, era de escravo, como lhe dissera um dia o padre António. O mar, pelo contrário, com o seu horizonte infinito, dava-lhe uma sensação de liberdade, de aventura, de grandeza e, talvez, de fortuna. Além disso, o mar era o caminho para a América. E agora, que as baleeiras americanas demandavam a ilha com mais frequência, o seu sonho era embarcar numa e tornar-se marinheiro, talvez no Ariôche.
E os seus olhos, por algum tempo, fixaram-se, indefinidos, na imensidão infinita e azulada do oceano.
O Chico Balaio veio acordá-lo. Costumavam, a maior parte dos dias, subir a Rocha juntos, embora, sendo a relva do Balaio, muito mais perto, logo a seguir ao Caldeirão da Ribeira das Casas, este reservasse, muitas vezes, o direito de partir para a ordenha bastante mais tarde. Haviam, no entanto, combinado que, quando não subissem juntos, o primeiro que, no regresso, chegasse ao Cimo da Rocha, havia de esperar pelo outro. Naquela tarde, porém, fora a relutância e fraca fogosidade do Balafanha que os juntara, ali, no Descansadouro, precisamente a meio da rocha.
O Balaio, mal o viu, gritou-lhe:
- Eh, Pá! Acorda!... Já sei no que estás a matutar!... Sempre no mesmo. Não há maneira de alguém te tirar essas ideias da cabeça.
- Não te enganaste – confirmou o Balafanha, convidando-o a sentar-se. – Desistir não é comigo. Cada dia que passa tenho mais certeza do que quero e do que vou fazer.
- Mesmo agora, depois de saberes que uma das patrulhas do exército que estavaem Santa Cruz, se veio aquartelar aqui, na Fajã, ali para os lados do Vale do Linho? Os tipos atiram a matar.
- Quantos se têm safado!... Eles atiram mas é em quem anda a dormir...
- Mas se te safares sem seres apanhado por eles, ainda corres um perigo maior, o perigo de seres baleado pela corveta, que anda por aí a vigiar a ilha. Não te lembras daqueles tipos do Mosteiro, que, o ano passado, foram baleados, já no mar alto? Antigamente era fácil!... Embarcavam muitos, não havia patrulhas e as corvetas eram raras. Mas hoje em dia, os perigos são muitos...
- Uma campanha nas baleeiras durante dois anos são cem dólares, cem dólares Chico, cem dólares e podemos ser pagos em águias. Como gosto do mar, faço cinco ou seis anos de marinheiro nas baleeiras e depois vou para o Ariôche, ganhar mais. Mas mesmo com quinhentos ou seiscentos dólares já fico na América. Com o que ganho nas campanhas faço vida na América. Hei-de voltar a esta terra, mas rico, muito rico....
- E os perigos que corres António? – Insistia o Balaio na tentativa de o demover da sua persistente teimosia. - Sabes o que é andar seis anos no mar?! Olha, os desastres que nos últimos anos aconteceram, aqui nas Flores. Só na Fajã, que me lembro, foram cinco ou seis. Lembras-te? No Inverno passado, aquele lugre francês, que se chamava Alixis, ou qualquer coisa parecida, que encalhou ali, por fora do Respingadouro e ficou todo desfeito, só se salvando um tripulante. Até o comandante morreu... Há dois anos foi um brigue inglês, o Concórdia, que encalhou na Poça do Cobre. A tripulação salvou-se mas com muita dificuldade e o barco perdeu toda a carga. E não te lembras do dia de Natal de 1869, há quatro anos, quando encalhou, no Canto do Areal, um bergantim francês? Já nem me lembro do nome dele. E tantos e tantos outros que não têm conta, Toino! E não só aqui na Fajã, mas em toda a ilha e até no mar alto.
O Balafanha, tentando mudar de assunto, retorquiu:
- Em toda a parte está o perigo! Ainda queres perigo maior do que o subir e descer esta maldita Rocha todos os dias... Mas já sabes que nada me demove do meu sonho… Ninguém sabe disto! Só tu e peço-te que não contes os meus planos a ninguém. Sabes bem que só se pode embarcar pelo alto da noite, às escondidas... E meu pai não pode saber de nada.
E levantando-se, propôs autoritariamente:
- Vamos à ordenha que se faz tarde! Olha o Sol onde já vai... E eu vou para bem mais longe do que tu.
Recomeçaram a subida, latas ao ombro, calados e macambúzios. O Balaio conhecia bem o Tonho. Sabia que coisa que se lhe metesse na cabeça dificilmente se lhe havia de tirar. Tinha, pois, a certeza de que ele partiria, como muitos outros, ultimamente, o tinham feito. Desde há mais de uma centena de anos que as baleeiras americanas visitavam as Flores, na procura de marinheiros. Estas baleeiras comercializavam na ilha e completavam a sua tripulação com habitantes locais. Contavam-se às centenas os que nos últimos anos tinham fugido à pobreza, ao isolamento e à miséria que reinavam na ilha, levados pelo sonho americano.
Quando, no regresso, chegaram ao Alagoeiro, vergados ao peso das latas a transbordar de leite, já era noite. Por entre o colmo das primeiras casas da Fontinha, saía um fumo esbranquiçado, anunciador de que se estavam a ultimar as ceias. Ao chegar à casa do Balafanha, um pouco mais abaixo, o Chico sussurrou-lhe:
- Até à manhã Toino! E vê se me tiras essas ideias malucas da cabeça!
- Psich! Não vês que meu pai pode ouvir! Não te esqueças de que ninguém pode saber de nada! – Disse-lhe quase ao ouvido. E entrou no velho casebre, onde o pai o esperava.
A casa do Alfredo Balafanha era das mais pobres da freguesia. Ficava a meio da Fontinha. Era um edifício de pedra negra, com dois andares. O superior, destinado às pessoas, e a loja, ou piso inferior, onde os animais pernoitavam no Inverno. O superior, ocupado pelos Balafanha, fora herdado dos avós e possuía apenas duas divisões: a cozinha e a sala. A primeira, que continha apenas uma janela e o forno, era escura e quase terrificante. A mobília era constituída por uma mesa, meia dúzia de bancos e um pequeno armário em que as portas eram uns panos escuros e pardacentos, muito sujos e ensebados, onde guardavam os pratos, as tigelas, os caldeirões e outros utensílios. Pelo chão abundavam sacos de serapilheira com batatas, inhames e cebolas, mas tudo num perfeito desarrumo. A lenha picada e empilhada de baixo do lar, constituía o sector de maior arrumação da casa. Era lá também que tinha habitáculo, o Farrusco, guardião eficiente da ratazana. A cozinha dava para a sala, por uma porta a desfazer-se, que já nem se abria ou fechava. Era nesta, divida por uma lençol branco, preso aos tirantes, ainda no tempo da mãe, que dormiam pai e filho. Tinha apenas uma janela e uma porta, a de serventia da casa.
Quando o António entrou o Farrusco veio de imediato ao seu encontro, miando, atirando-se-lhe aos pés e lambendo-lhe as mãos. O pai praguejava, maldizendo a sua sorte e a sua vida. É que os garranchos de faia e incenso, que dispunha, estavam verdes, não pegavam. Assim, tinham sido infrutíferas as diversas e sucessivas tentativas efectuadas para acender o lume e ferver o leite.
- O leite que trazes ainda deve estar quente! Vamos bebê-lo assim! – Sentenciou o pai, decidido a encerrar por ali as suas frustradas tarefas culinárias.
Sentaram-se à mesa, à luz da velha candeia, totalmente forrada de tisna e alimentada a enxúndia de galinha. O António abriu uma das latas e encheu de leite duas tigelas, nas quais cada um esmiolou metade do pão de milho que a Conceição, de tarde, lhes viera trazer. Um grande queijo, fresco e esbranquiçado, acabado de tirar da forma, completava o cardápio.
Passados alguns meses, o Lourenço Petrana, de Ponta Delgada, chegou à Fajã, com boas notícias, mas que apenas eram transmitidas de boca em boca. A “Eleanor” estava escondida, na baía dos Fanais, encoberta pelo ilhéu de Maria Vaz. Muitos de Ponta Delgada já estavam a bordo. Também alguns da Ponta, porque acharam que lá era local mais seguro para o embarque, já iam, por terra, a caminho dos Fanais. Para disfarçar, levavam caniços de pesca. O Lourenço garantia também que a baleeira estaria no Sábado à noite, na Fajã, frente à Ribeira das Casas, para se abastecer de água. Bastava estarem escondidos ao longo da Ribeira das Casas e juntarem-se aos que regressavam a bordo, carregando a água. Era muito fácil e absolutamente seguro.
O Balafanha passou os dias seguintes entre sobressaltos e hesitações. Era absolutamente necessário que o pai não se apercebesse de nada, nem tivesse a menor suspeita ou desconfiança. Na véspera procurou o vigário. Queria confessar-se, perante a estranheza do reverendo. Mas o padre, que manifestara sempre grande compreensão para com ele, acabou por lhe dar razão, absolvê-lo e até encorajá-lo. Finalmente, abraçando-o, aconselhou:
- Porta-te bem rapaz! Onde quer que estejas ou para onde quer que vás, lembra-te sempre de que és cristão. Respeita os outros e serás respeitado. Não te esqueças, todas as noites, das tuas orações! Deus te abençoe e te acompanhe.
No Sábado de manhã, a pretexto de ir ao moinho levar uma moenda, encaminhou-se para a Ribeira das Casas. Embrulhou algumas roupas e meteu-as num saco. Ia escondê-las na aba duma pedra. Sair com um saco, durante a noite, seria comprometedor. Subiu, pois, a Fontinha até à casa de Tio Antonho Silveira. Depois tomou o caminho do Mimoio. Porém, antes de chegar ao cruzamento da Ribeira das Casas, sentou-se sobre uma pedra, olhando as casinhas negras e brancas que rodeavam a nova igreja.
- Só Deus sabe se voltarei! – Murmurou. E hesitou por alguns momentos. - Não, voltar atrás, é que nunca! – E levantando-se, seguiu o seu destino.
À noite, antes de partir, sentado frente à tigela das sopas, quase chorou. E quando o pai, antes de se deitar, lhe deu as boas-noites, ao pedir-lhe a bênção, muito dificilmente resistiu ao instinto de o abraçar. Apenas lhe disse:
- Pai!... Vou dar uma volta com o Chico... Não se preocupe, se eu chegar tarde.
A noite estava escura, mas calma e estrelada. Ao longo da ribeira começaram a delinear-se vultos diversos, uns carregando enormes bilhas de barro, outros ajudando-os no transporte das mesmas.
O Balafanha cedo se integrou num grupo e chegou a bordo da “Eleanor”, sem dificuldade e sem ser visto por alguém.
Alta madrugada a baleeira partiu. Nem patrulha, nem corveta. Um mocito de cor, com uma pronúncia esquisita, avisou os intrusos da Fajã, que deviam dirigir-se à sala do capitão. Era um cubículo muito apertado, pequeno e sujo, onde couberam com dificuldade. Lá estavam, também, o Pineireira, o Chico da Maria Cambada, o Mateus Borrego, o Brilha da Fajazinha, e tantos outros.
Na Fontinha, numa pequena courela, junto à velha e abandonada casa do Alfredo Balafanha, falecido há um ano, o filho, o António, recentemente regressado da América, na logra “Forest Fairy”, vigiava as obras de construção da sua nova casa. Paredes caiadas de branco, janelas em abundância e cobertura de telha. O interior, dividido com madeira nova, era constituído por um piso superior, com sala, quarto de jantar e cozinha. Um saguão ligava-o à loja que se destinava a quarto de cama. Já tinha o casamento marcado com a Joaquina Greves, a moça mais bonita da freguesia e comprara várias terras, entre as quais o Cerrado da Corredoura, nas Furnas. Ao que se dizia pela freguesia, tinha vindo riquíssimo da América.
Quando, algum amigo menos íntimo, um parente mais afastado, ou outra pessoa qualquer o interrogava sobre o porquê do seu sucesso, respondia, tranquila e sorridentemente, com uma pequena frase:
- Foi o “meu sonho de marinheiro”.