PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ESTER
Assuero era um rei poderosíssimo, vivendo num belo palácio, luxuosamente decorado, com cortinados de púrpura, presos por cordões de algodão branco e com anéis de prata, a colunas de mármore. Os leitos eram de ouro e prata, o pavimento de mármore branco e o tecto de nácar. Em sua companhia vivia a rainha Vasti, esposa exuberante e bela, mas altiva e presumida.
Certo dia, Assuero ofereceu um grande e lauto banquete a todos os reis e príncipes da vizinhança, a fim de lhes mostrar todo o esplendor da sua glória. No final do festejo, Assuero convidou-os para passarem, na sua companhia, sete dias, durante os quais seriam seus hóspedes, convivendo no seu palácio. Todos os presentes aceitaram e, chegado o sétimo dia, Assuero ordenou aos seus eunucos que trouxessem, à presença de todos os convidados, a rainha Vasti, que havia de vir vestida com as melhores roupas e ornada com o diadema real, a fim de que a exibisse, perante todos, a sua beleza, a sua formusura e, sobretudo, o seu luxo e a sua riqueza, A rainha recusou-se a obedecer a tal ordem e o rei, tomado de uma enorme ira, reuniu os conselheiros do reino e decidiu que iria destituí-la, despojando-a de todos os bens e retirando-lhe todos os direitos de rainha e esposa. Cuidava o monarca que com o seu exemplo, daí em diante, no seu reino, todas as mulheres haviam de obedecer aos seus maridos e todo o homem, desde o mais alto dignitário da corte até ao mais humilde camponês, passaria a ser o senhor da sua casa e a fazer-se respeitar pela sua esposa.
Mas Assuero ficou muito triste com esta decisão e, pouco tempo depois, ordenou que se procurassem, por todo o reino, donzelas virgens e belas de aspecto. Trazidas à presença do rei, Sua Majestade havia de escolher, entre elas, a que mais lhe agradasse, a qual se tornaria rainha, ocupando o lugar da rebelde Vasti. Hegai, o eunuco do rei encarregado de zelar pelas mulheres do palácio, havia de providenciar às necessidades do seu toucador, preparando, também, os seus aposentos.
Ora, havia na cidade, uma jovem, chamada Ester, filha adoptiva de Mardoqueu. A moça, apesar de órfã de pai e mãe, era de belo porte, agradável de aspecto e ornada de virtude e sabedoria. Ester foi apresentada ao rei, juntamente com numerosas jovens, mas foi ela quem mais agradou a Assuero, granjeando as graças de sua Real Majestade que, de imediato, lhe ofereceu roupas, jóias, unguentos e perfumes para seu adorno. Além disso, providenciou-lhe sete damas que a acompanhariam e a serviriam dia e noite, reservando-lhe o melhor apartamento do palácio. Ester não lhe revelou a sua vida, simples e humilde, nem sua família, nem do seu povo, porque Mardoqueu lhe tinha proibido falar sobre isso.
O rei todos os dias passeava diante do pátio do apartamento de Ester, para a ver e para ter notícias dela, admitindo-a, ele próprio, no seu apartamento, à tarde e até pela manhã, não a tendo mais junto de si, a não ser que disso tivesse manifesto o desejo ou exígua oportunidade.
Assuero amou Ester mais do que todas as outras mulheres que, assim, granjeou todas as graças e favores reais e, por isso, lhe colocou sobre sua cabeça o diadema real e a fez rainha.
Passado algum tempo o rei deu, novamente, um grande banquete, desta feita, em honra de Ester, para o qual convidou todos os reis e príncipes da vizinhança. Ora Ester tinha um inimigo chamado Hamã, que era amigo e ministro do rei Assuero e que também foi convidado para o banquete. Hamã odiava Mardoqueu, o pai adoptivo de Ester, por ele não se inclinar perante ele e, por isso, elaborou um plano diabólico para o destruir, assim como o seu povo. Durante o banquete, Assuero, exaltando a beleza e a virtude de Ester, disse-lhe:
- Minha adorada Ester, pede-me o que quiseres e eu to darei de imediato.
- Eis o meu desejo, senhor: salva Mardoqueu da morte e salvando-o a ele salva também o seu povo. - Disse Ester, com firmeza e acrescentou - Mardoqueu e o seu povo, foram votados ao extermínio, à morte, ao aniquilamento. Se tivessem sido vendidos como escravos, eu me calaria, mas eis que agora o opressor não poderia compensar o prejuízo que causa ao meu rei e senhor.
- Quem é esse tirano, – perguntou o rei, - e onde está quem maquina tal projecto em vosso coração?
- O opressor, o inimigo, - disse a rainha, - é Hamã. Eis aí o infame!
Hamã ficou tomado de terror diante do rei e da rainha. Assuero, num acesso de cólera, levantou-se, abandonou o banquete e dirigiu-se para o jardim do palácio, enquanto Hamã permanecia ali, a fim de implorar o perdão de Ester, porque via bem que no espírito do rei estava decretada a sua sentença de morte. De nada serviram os seus choros e pedidos. Passado algum tempo, Assuero mandou suspendê-lo na forca que ele próprio tinha preparado para Mardoqueu.
Nesse mesmo dia Assuero ofereceu à rainha Ester a casa de Amã, que ela de imediato deu a Mardoqueu. Ester voltou de novo à presença do rei e, prostrada a seus pés, desfeita em lágrimas, suplicava-lhe que destruísse as maquinações que Hamã tinha, perversamente, urdido também contra o seu povo. O rei estendeu o ceptro de ouro a Ester, a qual se pôs em pé diante dele.
- Se parecer bem ao rei, - disse ela, - e se achei graça diante do meu senhor e se isso que lhe peço parecer justo e se sou agradável a seus olhos, revogue as cartas, que Hamã, redigiu para perder o seu povo, destruindo todas as províncias do reino. Como poderia eu consentir nas desgraças que aguardam o meu povo, sem vos implorar que tal não permitais?
Então o rei Assuero, comovido com a bondade de Ester, mandou aos escribas, que escrevessem cartas a todas as cidades do reino para que não fossem executadas as leis que o déspota Hamã havia decretado, sem o seu consentimento.
Foi assim que Ester provou ser uma sábia e muito digna mulher, permanecendo humilde e respeitada não só pelo rei Assuero mas também por todos os seus súbditos.
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HINO DOS AÇORES
Deram frutos a fé e a firmeza
no esplendor de um cântico novo:
os Açores são a nossa certeza
de traçar a glória de um povo.
Para a frente! Em comunhão,
pela nossa autonomia.
Liberdade, justiça e razão
estão acesas no alto clarão
da bandeira que nos guia.
Para a frente! Lutar, batalhar
pelo passado imortal.
No futuro a luz semear,
de um povo triunfal.
De um destino com brio alcançado
colheremos mais frutos e flores;
porque é esse o sentido sagrado
das estrelas que coroam os Açores.
Para a frente, Açorianos!
Pela paz à terra unida.
Largos voos, com ardor, firmamos,
para que mais floresçam os ramos
da vitória merecida.
Para a frente! Lutar, batalhar
pelo passado imortal.
No futuro a luz semear,
de um povo triunfal.
Letra - Natália Correia. Música - Joaquim Lima
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RESSARCIMENTO
Há alguns anos, no início de um novo ano lectivo foi-me atribuída uma turma vinda da, então denominada, quarta classe. Havia de tudo. Um punhado de bons alunos, educados e trabalhadores, possuindo competências e capacidades de aprendizagens invejáveis. Outros, a maioria, assim e assim. Finalmente, uma diminuta parte, constituída por um grupo de pequenos meliantes, pouco interessados, permanentemente distraídos, desanexados dos livros e desleixados nos trabalhos, revelando inúmeras dificuldades de aprendizagem. Como se isto não bastasse, ocupavam os recreios com brincadeiras violentas e, por vezes, estúpidas, que, para além de amachucarem e ofenderem os colegas, punham os cabelos em pé a professores e funcionários.
Entre os primeiros havia um aluno pequeno, franzino e indefeso que aparentava uma origem disfarçadamente burguesa e um feitio revelador de uma excessiva protecção familiar, nomeadamente por parte da avó, que passava os dias à porta da escola e não dava tréguas à Directora de Turma. O aspecto físico do garoto, o feitio ameninado que transparecia dos seus gestos e atitudes e o exagerado proteccionismo por parte avó, transformaram-no em alvo preferido de chacota na turma.
Preocupado com a situação do “Pedrinho” e analisando-a melhor, verifiquei que havia um aluno na turma, um dos mais atrevidotes do grupo dos meliantes, que se envolvia, permanentemente, em confusões, em brigas e em zaragatas, mas com o “Pedrinho nunca se metia. Pelo contrário, protegia-o com notório e exagerado cuidado. Se o insultavam era empurrão garantido ao ultrajante, se lhe batiam era bofetão certo no agressor, se o injuriavam era um chorrilho de ameaças intimidativas.
Tão exagerado proteccionismo inquietou-me. Percebi que algo de especial se passava sem, no entanto, entender o que quer que fosse.
Por isso, certo dia, no fim duma aula, pedi ao Hugo (assim se chamava o suposto paraninfo do “Pedrinho”) para não sair da sala, com os outros. Queria falar com ele. Barafustou, crispou-se, mas lá esperou contrariado.
Depois de todos saírem e de eu ambientar a conversa, perguntei:
- Olha lá. Tu és parente do Pedrinho?
- Não.
- És vizinho ou amigo dele?
-Não?
- Então porque é que estás sempre a protegê-lo quando lhe batem ou o ofendem e não fazes isso aos outros?
Baixou os olhos e calou-se. Como eu insistisse, ele, continuando absorto e sem olhar para mim, respondeu simplesmente:
- Não sei.
Cada vez mais intrigado, insisti. Não respondeu. Depois, sempre com os olhos fixos no chão, indagou:
- Se eu lhe contar o “Setô” não vai dizer nada à Directora de Turma?
- Claro que não. Podes falar à vontade.
- Nem vai fazer queixa ao Conselho Directivo.
Que não ia fazer queixa a ninguém, que estivesse descansado, que aquela conversa ficava entre nós.
Permanecemos os dois em silêncio, durante algum tempo. Finalmente o garoto levantou os olhos e olhou para mim. Foi então que vi à minha frente um rosto que, apesar de queimado pelo Sol e salpicado de sujidade, revelava um débito indefinido de ternura misturado com uma sinceridade incontroversa. Foi então que eu vi uns olhos azuis, ofuscados por lágrimas, mas sinceros, a difundirem um arrependimento autêntico e um remorso verdadeiro. Foi então que eu vi uma criança fustigada pelo infortúnio, mergulhada na desventura, travada pelo intransponível tapume da injustiça humana, mas ávida de saldar e ressarcir o “seu crime”. Estancando com as costas da mão o monco que lhe escorria do nariz, aos soluços, o Hugo disse-me com medo, com muito medo:
- “Setôr”, eu… uma vez … gamei… gamei… cem paus à avó dele.
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A LENDA DA ESTÁTUA DO CORVO
Conta uma antiga lenda que, ainda antes da ilha do Corvo ser habitada, alguns navegadores portugueses, os primeiros que por aquelas bandas passavam e que, partindo de Lisboa, navegavam para Ocidente, na procura de novos mundos, avistaram, ao lado de uma ilha maior, uma outra mais pequena e que, mais tarde, viria a ser chamada de Ilha do Corvo. Movidos pela curiosidade, pois aquela ilha era totalmente desconhecida, aproximaram-se de terra e, para espanto e pasmo seu, viram, bem lá no alto da pequena ilha, no lugar hoje chamado de “Ponta do Marco”, a estátua de um cavaleiro, montado em seu cavalo. Este apoiava-se nas patas traseiras, tendo as dianteiras levantadas no ar, como se estivessem a apontar para o noroeste, ou seja para frente, precisamente na direcção onde os navegadores cuidavam que, seguindo-a, haviam de descobrir o caminho que os levaria ao tão almejado Novo Mundo. O cavaleiro, por sua vez, vestia couraça e capuz, ostentava um elmo e empunhava uma espada num braço erguido. Ambos tinham sido esculpidos no basalto negro e vulcânico de que a ilha era formada.
A estátua equestre, no entanto, hoje já lá não está, pois, segundo a mesma lenda, terá sido mandada retirar dali, por El-rei D. Manuel I, a fim de ser levada para Lisboa, para a sua corte. No entanto, prossegue a lenda, ao ser transportada numa nau, esta, como que por castigo divino, naufragou perdeu-se por completo, nas profundezas do oceano, de onde nunca mais será retirada.
Dela apenas restam lendas, histórias e registos nas Crónicas de João III de Portugal e de Damião de Góis. Por esta razão também se terá chamado, primitivamente, à ilha do Corvo – “Ilha do Marco”.
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XOU PAJAM
No primeiro ano em que comecei a frequentar a catequese, na igreja paroquial da Fajã, ainda antes de entrar para escola primária, a Dona Maria, irmã do Senhor Padre Pimentel, decidiu ensaiar uma peça de teatro sobre o Nascimento de Jesus, a qual seria apresentada ao público na altura do Natal e do Ano Novo.
Primeiro foi escolhida a peça, cujo cenário principal se centrava na sala do trono do palácio do rei Herodes. A obra seleccionada contemplava, no entanto, uma ou outra cena, noutros locais, incluindo, como não podia deixar de ser, um presépio ao vivo. De seguida e, identificadas as personagens, foram seleccionados os actores e figurantes, que deviam ser escolhidos entre todos os meninos e meninas da catequese. Os mais velhos, sobretudo os mais dotados intelectualmente, ou os referenciados pela senhora professora que, juntamente com as catequistas, também ia colaborar nos ensaios, foram escolhidos para os papéis de maior responsabilidade e, muito especialmente, para o daquelas personagens que “falavam mais” e que os actores teriam um texto maior a decorar. Aos mais pequenos, aos da primeira e da segunda classe seriam atribuídas papéis de personagens secundárias, que apenas proferiam uma ou outra frase. Finalmente os mais pequenitos, grupo em que eu estava incluído, seriam apenas meros figurantes.
A distribuição dos papéis começou com grande expectativa e suspense. Todos estavam ansiosos e inquietos à espera da personagem que lhe seria atribuída e que cada qual teria que desempenhar com o empenho e a competência possíveis. O Salomão do Luís Fraga, talvez pelo monárquico e bíblico nome que possuía, foi escolhido para Rei Herodes, a Vitória do Francisco Inácio, provavelmente pela sua beleza e bondade, foi escolhida para Nossa Senhora, o José Lourenço para São José e por aí abaixo, até que chegou a vez dos mais pequeninos. Eu estava impaciente… O que seria…? Pastorinho, anjinho, menino pobre? E não é que, para espanto meu, a Dona Maria me espeta com a honrosa nomeação de “pajem” do perverso e malvado mas poderoso rei Herodes! Fiquei doido de alegria e louco de contentamento. Muito bem vestidinho, iria sentar-me num banquinho forrado com papel de seda, sem dizer palavrinha, mesmo ali, bem ao lado do trono do poderosíssimo monarca! Que maravilha!
Cheguei a casa muito feliz e com uma enorme vontade de desabafar o meu contentamento e inquieto para anunciar a todos a grande notícia. Como era cioso e pronunciava mal algumas palavras, ao entrar na cozinha, quando já todos estavam sentados à mesa a comer a sopinha de agrião com uma talhada de toucinho e pão de milho, gritei com todas as minhas forças extravasando o contentamento que me ia na alma:
- “Xou pajam”! “Xou pajam”! “Xou pajam”!
E não é que lá em casa, a partir de então, pese embora a peça nunca tenha sido representada, fiquei com o apelido do “Xou pajam”, suplício que tive que suportar durante toda a minha infância.
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A FREGUESIA DE SÃO CAETANO OU UM PARAÍSO ENCAFUADO ENTRE O MAR E A MONTANHA
A freguesia de São Caetano do Pico, pertencente ao concelho da Madalena, fica situada na parte Sul da ilha e alojada no regaço de uma pequena baía, denominada “Baía da Prainha”, onde assenta um pequeno porto, actualmente quase desertificado e dedicado exclusivamente a pequenos barcos de pesca e recreio ou a “banhocas”. A sua zona costeira, actualmente, é muito procurada por mergulhadores, por ser possuidora de espaços submarinos de rara pulcritude.
Esta freguesia possui uma beleza ímpar e uma singularidade singela em boa parte, devido à sua posição geográfica, dado que fica instalada entre o mar e a imponente montanha do Pico. É essa singularidade que lhe vai dispondo o casario ao longo de encostas soalheiras e montanhosas, ao mesmo tempo que lhe sulca e encrava os vinhedos, as florestas, as pastagens e, sobretudo, os terrenos de cultivo e de mato por entre socalcos de ribeiras e de ravinas, designadas por quebradas, sendo mesmo a freguesia que mais se aproxima da altíssima e magmática montanha. Por tudo isso recebe influências climáticas únicas e ímpares beneficiando da protecção dos ventos norte e noroeste que sopram, desalmadamente, durante o Inverno ao redor daquele enorme gigante de lava que é a montanha do Pico. Assim e quando o vento sopra vigoroso, roufenho e frígido, acompanhado por fortes chuvadas, nas restantes freguesias da ilha, São Caetano goza de um clima ameno, de um Sol radiante e de uma calma e tranquilidade invejáveis. Mas mesmo quando o vento sopra de sul, revoltado e furioso, criando um enorme e tremendo reboliço na terra e sobretudo no mar, a paisagem adquire uma beleza transcendente, enigmática e contagiante. Assim é, em Novembro, São Caetano e de um modo especial a Prainha do Galeão. É também a proximidade da montanha que dá grande sinuosidade ao território, assinalando-o com diversas elevações designadas cabeços: o da Prainha e o do Mistério, a Rocha Vermelha e o Paul ou sulcando-o por várias ribeiras: da Prainha, do Dilúvio, da Cancela, da Grota, da Laje e a Ribeira Grande. Esta sinuosidade fez com que os antigos caminhos fossem, na generalidade, autênticas canadas, sendo que algumas delas, em boa hora recuperados e reconstruídos, foram transformados, actualmente, em trilhos turísticos que conduzem qualquer viajante a apreciar o rico património paisagístico desta localidade, destacando-se o trilho da canada de São Caetano que se inicia junto à Prainha do Galeão, em forma de escadaria e o da canada da Ribeira da Prainha, trilho que ligava a Prainha do Galeão à parte superior da freguesia e que era usado por pescadores e baleeiros. Local de interesse histórico e paisagístico é também o Largo das Fontes, situado no antigo acesso às pastagens dos matos e famoso pelas suas fontes e como local de encontro e descanso dos homens que dia a dia subiam as encostas da montanha a tratar do gado ou até tirar-lhe o leite. Junto ao mar, para além das ruínas de um antigo poço de maré, infelizmente abandonado por indesculpável incúria, situam-se as tradicionais adegas feitas de pedra de lava e que enriquecem, não apenas a paisagem, mas também a história e a cultura locais. Ainda, mais junto ao mar, a antiga casa dos botes baleeiros, actualmente como que transudada em vivenda e um nicho dedicado a São Caetano, precisamente no local onde os primeiros colonos que ocuparam aquela localidade terão construído uma ermida dedicada ao padroeiro, contento o referido nicho uma suposta pedra da mesma e a primitiva imagem de São Caetano. Foi também neste local que um dos primeiros povoadores, de seu nome Garcia Gonçalves, mandou construir um galeão como forma de pagamento de dívidas ao rei Dom João III. Essa a razão porque esta localidade, popularmente, ainda hoje se chama “Prainha do Galeão”.
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A GLICÍNIA BRANCA
No jardim da senhora Manuela nasceu uma glicínia. Estranho e surpreendente acontecimento, porquanto a senhora Manuela no seu jardim apenas havia plantado, craveiros, orquídeas, roseiras e semeado girassóis, sécias e malmequeres. Além disso, a senhora Manuela não gostava de flores com nomes esquisitos e estranhos, com gladíolos, buganvílias, nem de plantas que davam flores roxas ou rosadas como as hortênsias, as flores-de-lis e, logicamente, as glicínias. Isto porque a senhora Manuela, em tempos, havia lido que existiam diversos simbolismos para as flores, nomeadamente para as roxas, as quais estão ligadas ao amor. Na realidade, acreditava a senhora Manuela, depois das suas leituras sobre flores, que a flor roxa da glicínia é conhecida como a flor que simboliza o primeiro amor. E o que menos a senhora Manuela pretendia era ter a seu lado algo que lhe fizesse lembrar o seu primeiro amor. Por isso, a senhora Manuela, que não só detestava como até odiava flores roxas, numa passagem ocasional pelo seu jardim, temendo que daquela glicínia que tão estranha e misteriosamente ali nascera e que, agora, crescia a olhos vistos, sem ser adubada ou sequer cultivada, havia de florescer, mais tarde, uma flor roxa que lhe viesse atormentar o viver tranquilo dos seus dias, arrancou-a, de maneira a que dela não ficassem raízes nem muito menos sementes.
Não se sabe por que estranha e invulgar carga d´água, passados alguns meses e para ainda maior espanto da senhora Manuela, no mesmo sítio do seu jardim, onde rigorosamente não havia deixado nenhum vestígio daquela estranha intrusa, voltou a nascer uma outra glicínia. Os procedimentos da senhora Manuela foram exactamente os mesmos e a possibilidade da glicínia crescer, florir e reproduzir-se foi reduzida a zero. A senhora Manuela arrancou-a, calcou-a aos pés, injuriou-a, desfê-la, reduziu-a a estrume e atirou com ela para bem longe, fazendo assim com que, no seu jardim, da estranha e enigmática criatura não ficassem quaisquer vestígios. Os meses passaram monótonos, desinteressantes e com a mesma lentidão do costume e, para espanto, desta feita incalculavelmente surpreendente, da senhora Manuela, voltou a nascer uma terceira glicínia naquele malfadado lugar do seu jardim. Encastoada entre o desespero e a incredulidade, a senhora Manuela mandou chamar alguém que certificasse a identidade daquele mistério que ali estranhamente florescia. Podia, muito bem, estar a enganar-se, a senhora Manuela e aquilo não ser uma glicínia. Vieram curiosos, técnicos e especialistas e até um jardineiro da Câmara e foram todos de opinião unânime. Não havia dúvida: era uma Wisteria Floribunda, perfeitamente identificável, semelhante às anteriores, única na sua espécie por ali, isolada lá bem longe, nos arrabaldes do jardim, ladeada por craveiros e malmequeres que a protegiam de ventos e temporais. A senhora Manuela, porém, muito admirada e com algum laivo de apreensão, decidiu, desta feita, não arrancar a estranha plantinha que lá foi crescendo, semelhante a uma ervilha-de-cheiro, uma trepadeira volúvel, lenhosa e decídua, florescendo deslumbrantemente e com um ar muito decorativo. As suas folhas eram como que pintadas, com uma coloração avermelhada e pubescentes, mas que aos poucos se foram tornando glabras e verde-brilhantes, intercaladas com inflorescências longas, pendulares, carregadas de numerosas e pequeninas flores, que a senhora Manuela, muito apreensiva, cuidava que haviam de ser roxas ou róseas. Mas nada. As flores da estranha glicínia do jardim da senhora Manuela eram de um branco alvíssimo e puro.
Foi essa a razão por que a senhora Manuela, a partir de então, passou a cultivar, no seu jardim, juntamente com craveiros, orquídeas, roseiras, girassóis, sécias e malmequeres, glicínias que continuavam a produzir flores brancas, de uma beleza invulgar. E o jardim da senhora Manuela encheu-se de glicínias, transbordou de glicínias, extravasou de glicínias, mas brancas. Todas brancas? Não, porque um dia, no jardim da senhora Manuela, no meio de todas aquelas glicínias brancas, nasceu uma glicínia diferente, estranha, muito semelhante à que muito tempo antes havia nascido num canto do jardim e que a senhora Manuela arrancara com desdém, a qual, novamente e para maior espanto da senhora Manuela, cresceu e floresceu como as outras, mas a sua flor era, simplesmente, vermelha.
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O VALE DAS CASCATAS DESLUMBRANTES
Cascatas de silêncio verde! Uma,
A maior, em torrente se despeja
No encanto de um lago e logo alveja
Solarengos respingos. - Doce espuma!
Outra, além, de salpicos se perfuma,
E agitada p’lo Sol que a flameja
Corre veloz, p’ro mar, que a corteja.
Enquanto se enfurece e avoluma.
A mais pequena, aqui, tem ao redor
Freixos, choupos e álamos içados,
A esgueirarem-se altivos - com fulgor.
E se houvesse desertos circundantes,
Seriam verdes e de silêncio alados,
No Vale das Cascatas Deslumbrantes.
NB – Qualquer semelhança entre este “Vale das Cascatas Deslumbrantes” e o Vale da Fajãzinha, na ilha das Flores (Açores) é mera coincidência.
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A PRESENÇA DE PEDRO DA SILVEIRA NAS GERAÇÕES QUE LHE SEGUIRAM
Ouvi falar de Pedro da Silveira pela primeira vez da boca de José Enes, que tanto me ensinou nos meus verdes e impressionáveis anos. Observador dos meus atrevimentos juvenis, achou que, como pedagogo, deveria procurar conduzir-me, canalizando os meus interesses para áreas formativas. Porque acreditava que os jovens deveriam ser impregnados do espírito dos clássicos, se por acaso quisessem vir um dia a escrever decentemente, meteu-me nas mãos Rodrigues Lobo. Esforcei-me em vão. Não conseguia desfrutar ali nenhum prazer de leitura. Eu nascera numa freguesia (não me atreverei a dizer “aldeia” diante do purista da linguagem açórica que é Pedro da Silveira), mas não era a corte na aldeia que me seduzia. O professor imaginou-me mais capaz do que eu era de facto. Tentou então os açorianos. Nunes da Rosa foi o primeiro. E eu entusiasmei-me deveras com os contos de Gente das Ilhas, e depois com Pastorais do Mosteiro. Logo a seguir, deu-me a separata de Pedro da Silveira corrigindo alguns deslizes do livro Um Mês de Sonho (em que José Leite de Vasconcelos registava a sua viagem aos Açores na década de vinte), bem como A Ilha e o Mundo, que me foi um deslumbramento. Mais tarde voltei a encontrar o poeta em Sinais de Oeste, na mesa de António Andrade Moniz, então no Seminário de Angra e hoje professor na Universidade Nova, quando escrevia uma recensão para a revista Atlântida.
Pouco tempo depois eu descobria Raul Brandão e, não sei exactamente quando, Nemésio e Roberto de Mesquita, uma constelação de autores que, sempre pela mão de José Enes, que a todos ia enquadrando na sua visão dos Açores e de Portugal, me formou o paradigma cultural dentro do qual passei a mover-me. De entre os que desde logo mais me tocaram, terei de mencionar Luís Ribeiro e os seus Subsídios para um Ensaio sobre a Açorianidade, que o Instituto Açoriano de Cultura benignamente nos ia fazendo chegar às mãos em fascículos que eu assinava no Seminário de Angra, quando tinha catorze anos . O pequeno texto “O açoriano e os Açores”, de Nemésio e, mais tarde, o seu ensaio fundamental “O poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita”, publicado em Conhecimento de Poesia e editado no Brasil . Só bem mais tarde viria eu a descobrir os estudos antropológicos de Arruda Furtado e os ensaios de história literária açoriana de Eduíno de Jesus. Quer dizer, na constelação paradigmática de autores açorianos que formataram a minha visão dos Açores e, de certo modo, do mundo, figurava Pedro da Silveira.
É difícil explicar o porquê do meu fascínio pela poesia de Pedro da Silveira se eu não conhecia as Flores. Para poemas como "Dia de Vapor" ainda encontrava eu elementos familiares nas visitas mensais do "Carvalho Araújo", alternadas com as do "Lima", atracados à distância na baía de Angra, e nas idas e vindas da lancha levando também a bordo os angrenses que iam desmonotonizar-se umas horas no bar da primeira classe, à semelhança do que nos narra o magnífico poema de Pedro da Silveira. Com os "Quatro Motivos da Fajã Grande", deveria eu talvez identificar-me menos. Mas não. Eles surgiram-me como radiografia de um estado de alma: o marasmo sem horizontes da vida insular, ou pelo menos da vida de grande parte da população dos Açores para quem o barco na distância era a única saída, a adivinhar-lhe, à proa, / Califórnias perdidas de abundância, no belo verso do epigramático poema "Ilha".
Eu desconhecia totalmente o que fosse o neo-realismo e nunca encarei os poemas de A Ilha e o Mundo como pertencendo a qualquer corrente literária. Para mim eram simplesmente a expressão da corrente de consciência que começava a agarrar-me como ilhéu despertando para as realidades do mundo no dealbar dos anos sessenta.
Após este breve intróito como que a legitimar a minha ligação à obra de Pedro da Silveira (e a minha presença aqui), passarei agora a ser menos umbilical, alargando esta retrospectiva ao impacto de Pedro da Silveira sobre a minha geração. Antes dela, aliás, a presença de Pedro da Silveira já se fizera sentir no grupo Gávea, muito embora um excelente poeta como Emanuel Félix tivesse optado por um registo poético quase nos seus antípodas. Atrevo-me no entanto a afirmar que, depois de Pedro da Silveira, quem não quisesse repeti-lo teria de seguir por trilhos bem diversos.
Santos Barros e Carlos Faria no suplemento "Glacial", Álamo Oliveira no seu percurso poético peculiar, ecoaram de algum modo a existência de A Ilha o Mundo. Os convulsivos anos da década de setenta, espalhando-nos a todos pelos quatro cantos do globo, vieram apenas fazer recrudescer o nosso interesse pelas ilhas, pelas suas idiossincrasias, pelas marcas de insularidade que todos leváramos na mala de bagagem. João de Melo, Cristóvão de Aguiar, Vasco Pereira da Costa, J. H. Borges Martins, Daniel de Sá, Fernando Aires, Marcolino Candeias, Eduardo Bettencourt Pinto, e todos quantos se interessaram verdadeiramente pelos Açores como espaço cultural com uma marca identitária forte, tiveram sempre, directa ou indirectamente, Pedro da Silveira como referência importante, mesmo quando para dele se demarcarem.
A crítica literária, os estudos sobre a açorianidade, que então começaram a proliferar dentro e fora do arquipélago, passaram infalivelmente a citar poemas seus ou a inscrevê-los como epígrafe de ensaios, ao lado de outras de Vitorino Nemésio e do simbolista Roberto de Mesquita, este também florentino, descoberto postumamente por Nemésio e posto a circular pelo próprio Pedro da Silveira (o seu Almas Cativas saiu na Ática em 1974, coordenado por Pedro da Silveira e com prefácio de Jacinto do Prado Coelho). Vejam-se os escritos de José Enes, José Martins Garcia, Luís de Miranda Rocha, Eduíno de Jesus, Vamberto Freitas, Adelaide Baptista, Álamo Oliveira, Carlos Faria, Urbano Bettencourt, Maria Teresa Marques, Victor Rui Dores, Frank Fagundes, Diniz Borges, Lisa Godinho, Luiz António Assis Brasil e seus estudantes no Rio Grande do Sul, no Brasil, as teses que por aqui e por ali foram surgindo e – por que não mencionar? - os meus próprios escritos.
Dir-se-ia que o poema "Ilha", a que atrás aludi em paráfrase, se tornou o mais citado poema insular, uma definição clássica de ilha, objecto de minuciosas análises.
Uma delas foi elaborada pelo Professor George Monteiro, que até à aventura da tradução dos poemas de The Sea Within. A Selection of Azorean Poems, editada pela Gávea-Brown em Providence, nada conhecia da poesia açoriana. Interessou-se verdeiramente pelos versos de Pedro da Silveira. Num pequeno estudo publicado na revista Atlântida em 1979 - "Os Açores de John Updike e de Pedro da Silveira", o crítico literário luso-americano, professor de Literatura Americana na Brown University, comparava o referido poema "A Ilha" do poeta florense com o poema "Açores", que o famoso escritor americano escrevera a bordo de um transatlântico ao atravessar os Açores a caminho da Europa. George Monteiro contrasta os dois poemas mostrando que Updike “capta a essência dos Açores vistos segundo a perspectiva do turista que apreende, de fora, a realidade das ilhas.” (…) “O poeta-turista fecha, assim, um silêncio sobre o que poderá ser a vida de quem habita tais paragens. ” Em contrapartida, Pedro da Silveira capta num poema conciso “a nota de vida que falta no poema de Updike, naquela ‘falta’ de gente a habitar as ilhas e que pode estar implícita nas imagens associadas a ‘à deriva’ e à crescente ‘distância’”.
A atrás mencionada edição da antologia de poesia açoriana The Sea Within permitiu que os poemas de Pedro da Silveira pudessem viajar para outros mares. Assim, uma das mais conceituadas revistas literárias norte-americanas, The Swanee Review, publicou no seu número mais recente um ensaio intitulado: "Marginal Notes: An Islander's View", da autoria de Tony Whedon. O autor, professor de literatura americana numa universidade da Nova Inglaterra, desde a infância residente (parte do ano) numa das ilhas do Maine, descobriu algures The Sea Within e ficou impressionado com os poemas de Pedro da Silveira nela incluídos. Quis conhecer mais da sua poesia e, por isso, contactou-me. Tentou ler outros poemas em português e conseguiu aperceber-se de que lhe interessariam bastante. Pediu-me que alguém os traduzisse. Bati de novo à porta de George Monteiro que aceitou o desafio.
O resultado é um primoroso ensaio em que Tony Whedon analisa os poemas de Pedro da Silveira a par de escritos de autores como Joyce Carol Oates, Elizabeth Bishop, os gregos Odysseus Elytis e George Seferis, Wallace Stevens, Milton, James Schuyler, Sandra McPherson, John Fowles e outros. Sobre os poemas de Pedro da Silveira especificamente, afirma a dada altura terem “alguma da espacidade (spatiousness) e monumentalidade” que ele encontra nos gregos Odysseus Elytis e Georgios Seferis (por sinal, ambos prémios Nobel de Literatura), embora os de Pedro da Silveira tenham algo da frieza do Atlântico Norte “nas entrelinhas e no seu sentimento directo” . Mais adiante escreve:
O poema expressa a inconsciência, o não pensar que tem origem no render-se involuntário do eu às forças inelutáveis da natureza, um render-se fora do comum – talvez mesmo não-existente – noutra poesia modernista.
(…)
Eu li naïvemente estes inesperadamente refrescantes poemas nesta ilha do Maine que partilha de alguma da melancolia (gloominess) dos Açores. O torpor, a sonolência da poesia de Pedro da Silveira molda-me o meu próprio estado de espírito e o modo como eu contemplo o rio hoje enquanto, por outro lado, o nevoeiro do Maine cobre e invade os poemas de Pedro da Silveira, ensopando-os nesta mesma solitude.
Num outro texto inédito intitulado “Pedro da Silveira, Poetry for all seasons”, George Monteiro compara o olhar implacável do poeta ao de Henry David Thoreau (o autor de Walden e do famoso ensaio sobre a desobediência civil), que Robert Frost, poeta da Nova Inglaterra, considerava mais “the most noticing person who ever lived”. Monteiro elogia “o estilo chão e directo” da poesia de Pedro da Silveira na expressão de certos “noticed moments”. De um deles (“Acabado, mas não tanto”), diz ser, no seu espírito, “tão antigo como a poesia dos gregos e tão moderno como a poesia dos ainda desconhecidos poetas de amanhã”.
Poderia continuar citando outros leitores de Pedro da Silveira e outros dados sobre o impacto da sua obra. Quedar-me-ei todavia por aqui. Queria no entanto terminar não com palavras minhas, mas prestando homenagem ao poeta nas suas próprias palavras. Desnecessário será, contudo, incluir aqui os poemas lidos. Registo apenas a frase com que precedi a leitura do poema “Acabado, mas não tanto”, pois queria com ela simbolicamente concluir esta minha homenagem a Pedro da Silveira: este poema é a antítese do fatalismo, do marasmo, da solidão que inundava a ilha do poeta nos anos quarenta, ela é uma afirmação de vida, de vigor, de finura de espírito, ainda e sempre a revelar a mão de mestre de um senhor do verbo.
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ALMOÇO DE NATAL NO “SOLAR DOS PEQUENINOS” EM PAREDES
Há dias tive a honra e o privilégio de ser convidado para um almoço de Natal organizado por um Jardim-de-infância de Paredes. Trata-se do “Solar dos Pequeninos”, uma instituição de infância a funcionar desde 2000, no lugar de Abadim, na cidade Paredes, nas traseiras da Escola Secundária e que, nas suas instalações, alberga cerca de meia centena de petizes de palmo e meio, para além de dar apoio pedagógico a cerca de duas dezenas de alunos que frequentam a Escola Primária da Sede, também ali ao lado.
O “Solar dos Pequeninos” embora localizado praticamente no centro da cidade de Paredes, junto à zona escolar e à piscina municipal, está, no entanto, implantado, numa espécie de zona rural, nas antigas instalações de uma propriedade agrícola, que incluía casa de lavrador, com os devidos anexos e quinta, mas que foram devidamente restauradas e adaptadas, funcionando assim num ambiente de grande calma e tranquilidade, estando afastado do rebuliço frenético urbano. Além disso possui fácil acesso e está dotado de um enquadramento paisagístico harmonioso, com instalações modernas e funcionais. Sob o ponto de vista educativo, tem elaborado um plano pedagógico, activo e dinâmico, com um projecto educativo de qualidade onde os objectivos são claros e concretos e cuja concretização se evidencia na competência das suas educadoras e auxiliares de educação e na dinâmica das actividades que disponibiliza aos seus educandos.
Costumo lá ir mensalmente contar uma história aos petizes. Ouvem-me com atenção, envolvem-se nos meandros do emaranhado, exercitam-se na diegese da narração, enfim, rodeiam-me, solicitam-me e até me agarram como se fosse um deles.
Pois chegou o Natal, altura em que lá voltei a fim de lhes contar mais uma história. Os garotelhos não estiveram com meias medidas. Estavam a organizar um almoço de Natal e eu, forçosamente, tinha que lá ir almoçar com eles. Tivesse eu juizinho que não havia forma de recusar o convite.
E fui… com muito gosto e com muito alegria até porque também me prendo ao “Solar dos Pequeninos” por outras razões, uma vez que lá tenho uma “pequenina princesa”, encantada e feliz por eu ir almoçar na sua companhia.
Chegou o dia e a hora! O almoço à boa maneira do Natal na região, incluía bacalhau com todos, rabanadas, leite-creme e aletria, conforme constava da ementa afixada na entrada, em letras garrafais e que, na realidade, se assemelhava em tudo às grandes e tradicionais ceias de Natal. A sala de jantar estava enfeitada com motivos natalícios diversos, uns nas paredes, outros suspensos do tecto, muitos sobre as mesas e até um Pai Natal a envolver o guardanapo de cada um dos comensais. Uma maravilha! Todos os enfeites foram feitos manualmente pelos petizes, com a ajuda e com a criatividade das educadoras. Os alimentos estavam muitíssimo bem cozinhados e no ar sentia-se o verdadeiro perfume do Natal. Os convivas, autênticos duendes ornamentados com o gorro do Pai Natal, eram de palmo e meio, mas estavam tão bem, não apenas ao tomarem a sua refeição, mas também convivendo em sã alegria, confraternizando em doce camaradagem, entrelaçando-se em sincera convivência, nas suas minúsculas mesas e cadeiras, à espera do Pai Natal, que chegaria, no fim do repasto, carregadinho de prendas para todos.
Foi então que eu, sentado numa cadeirinha tão igual à deles, numa mesinha tão minúscula as suas, no meio daqueles pequenitos, senti uma enorme “raiva” de não poder voltar a ser como eles e ficar ali à espera do Pai Natal.
Texto publicado no Pico da Vigia em 21/12/10
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A LADEIRA DO COVÃO
A ladeira do Covão era, incontestavelmente, a mais desnivelada, a mais íngreme e a mais abrupta ladeira de todas as que possuíam os desnivelados e tortuosos caminhos da Fajã Grande. Situava-se logo a seguir ao Cimo da Assomada, no Vale da Vaca e ligava o antigo caminho da Cuada, das hortas e dos Lavadouros com a Canada do Covão, ou seja com a penhascosa e escarpada vereda de acesso à Pedra d’Água e ao Outeiro Grande, a meio da qual se engastava o mítico e tenebroso Calhau das Feiticeiras.
Situava-se pois, a referida Ladeira, numa elevada e altiva encosta, o que lhe concedia o estatuto de “estar totalmente impedida à circulação de carro de bois ou corsão”, pese embora a sua largura e o seu piso tal permitissem. A espessura era rigorosamente igual à dos restantes caminhos e por isso, por lá poderia passar, muito à vontade, uma junta de bois. O piso, por sua vez, era bastante bom e liso, propício ao rolar de um carro ou facilitador do deslizar de um corsão, dado que usufruía de um calcetamento muito superior em qualidade ao dos restantes caminhos da freguesia, geralmente calcetados com a tradicional “calçada romana”, mas cheios de altos e baixos e de pedregulhos soltos. O piso da Ladeira do Covão era feito de pequeninas pedras, iguais em tamanho e espessura, muito bem ordenadas e arrumadas, que davam à Ladeira do Covão um ar gracioso e uma locomoção fácil e acessível, estorvada sim, e de que maneira, pelo seu acentuadíssimo declive e pela sua desnivelada estrutura. O seu aspecto dava a entender que teria sido um dos caminhos mais recentemente construído e, naturalmente que os seus “arquitectos”, tentaram compensar a dificuldade da subida com a facilidade do piso. Estiveram muito bem os nossos antepassados.
Mas o que ainda mais caracterizava a Ladeira do Covão e que lhe dava um ar de singularidade, é que a mesma se alongava, de um dos lados, como que paralela ao Vale da Vaca, enquanto o outro se confundia com a encosta subjacente, povoado de silvas, de vinháticos, de cubres, de funchos e de canaviais, donde emanavam cores e perfumes diversificados e atraentes e onde a passarada esvoaçava em acasalamentos ou na procura estonteante de sítios mais adequados para os ninhos. Ao subi-la e, muito especialmente quando se chegava ao seu cimo desfrutava-se de um cenário deslumbrante, duma vista maravilhosa. Ao perto o enorme vale onde predominavam as terras e cerrados de milho, muito verde e robusto, mais ao longe a Assomada, com as suas casinhas a agregarem-se e a protegerem-se entre as encostas do Pico e do Outeiro, mais ao longe, a Rua da Direita com o seu casario altaneiro e a igreja com o campanário a sobressair sobre os telhados e, ainda mais ao longe, o mar, o Monchique e os navios. A protegê-la as encostas sombrias do Pico da Vigia.
É verdade que subir a Ladeira do Covão representava um enorme cansaço que, no entanto, se suavizava, com o encanto da paisagem, com o estonteante colorido da vegetação, com o perfume das flores, com os sabores dos frutos e, sobretudo, com a sublimidade do canto dos pássaros.
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A CASA DE TODOS OS SILÊNCIOS
Quando eu era criança, aquela casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, era como que o centro do mundo, para mim. Palco insubstituível dos meus sonhos, circo imperturbável dos meus desejos, baluarte latente dos meus anseios e aspirações, era nela que plantava todas as minhas cumplicidades tímidas, envergonhadas mas inocentes, era nela, nas suas paredes caiadas de branco, que eu desenhava o brilho estonteante das estrelas e era nela que eu hipotecava as minhas aparências idolatradas mas arrogantes de um futuro distante e indefinido.
E as portas da casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, abriam-se todos os dias, implacáveis, inflexíveis e destemidas, como que a lembrar que a luz da madrugada trazia um rio de sons, de cores, de perfumes, rio que aos poucos, transcendendo as margens, se transformava numa enorme enxurrada de vidas, de encontros e de memórias permanentes.
A casa, branca e altiva, plantada lá no alto da colina, ficava sobranceira ao povoado e era enorme, acolhedora, deslumbrante, destemida e sobretudo bela, muito bela. Estava sempre repleta de gente, de vozes, de encontros e de barulhos. Além disso estava envolta em véus de claridade desconcertantes e, assim como as portas, também as janelas, de onde se via o mar, o voo das gaivotas e o pôr-do-sol, estavam sempre abertas.
Quando entrávamos, a casa regurgitava memórias florescentes, imagens fascinantes, sons maravilhosos. A claridade entrava de mansinho, enchia-a de brilho e o vento afagava-a com deslumbrante desassossego.
E levada por correntes e marés, a casa navegou, embalada com o deslumbrante cântico das estrelas, adocicada com o permanente vozear dos rouxinóis e acicatada com o sublime perfume das roseiras, em anos de prosperidade e alegria, em idílios de ternura e devaneio, em ondas de serenidade, em eflúvios de deslumbramento, em pináculos de grandiosidade.
Depois?… Depois vieram anos desertos, tempos petrificados, momentos de solidão e a casa perdeu-se, apesar de continuar plantada no alto da colina…
E a claridade das madrugadas, embora disposta a ressuscitar a inocência dos silêncios, dispersou-se em ondas de abandono e sobrou, fortemente, no tempo, abalroando-a como se fosse os destroços de um navio naufragado.
E as portas da casa, branca e altiva, plantada no alto da colina nunca mais se abriram e até as janelas, outrora sempre abertas sobre o mar, se cobriram de uma enorme cortina de abandono e escuridão.
E agora quando todas as portas e todas as janelas se fecharam, apenas as paredes respiram, silenciosas, inconscientes, despidas de todos os ornamentos e desastradamente desertas, enchendo de silêncios a casa branca do alto da colina.
Os rugidos persistentes, roufenhos e aterradores do vento norte amortalharam-se, para sempre, transformando-se em cinzas dispersas sobre os musgos amortecidos do telhado.
O bater da chuva nas vidraças perdeu-se entre os resíduos dos fumos que, soltos e libertos, se evadiram pelas frestas do soalho.
O velho “Asónia” arqueado sobre uma prateleira encastoada na parede e que outrora martelava as horas dia e noite está destroçado. Não tem ponteiros e já nem se houve o bater de horas, nem muito menos o seu tiquetaque contínuo, aflitivo mas gracioso.
O reboliço contínuo e permanente da taramela da porta da cozinha, outrora sempre aberta ao relento das madrugadas e à fúria das tempestades, perdeu-se entre o rastro dos remoinhos das gretas das janelas.
Até os ecos roufenhos do ranger das dobradiças da porta da sala se calcinaram como se fossem cristais de gelo afundados num lago desértico.
As vozes, os gritos, os cânticos e até os ecos das sombras calaram-se para sempre porque a casa plantada no alto da colina, com vista sobre o mar, tornou-se sombria, cinzenta, deserta, dona de todos os silêncios e metamorfoseou-se em enigmático e terrível ermitério.
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A ILHA MONTANHA
No magro chão de lava há perfume
E o fluxo das marés sabe a frescura.
O Pico é um retalho de verdura
Do sopé da montanha até ao cume.
E se as fontes andejam de secura
Ou se o chão treme e arde em cruel lume
- Dias de terror, laivos de negrume -
O mar se abre logo. - Tanta fartura!
Zonzos, os currais negros dos vinhedos
Transformam esta lava em doce mosto!
Trabalhos tão sofridos são folguedos…
E nesta ilha de lava ressequida,
Até festas e folgas, em Agosto,
Joeiram o chão seco, dão-lhe vida!
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A ABA
Na canada das Águas, um pouco antes da única curva que a delineava e que ficava bastante perto da rocha, no local onde havia uma ligeira subida constituída por vários degraus em ziguezague, havia um enorme calhau caído da rocha, sabia-se lá há quantos anos. Ali estava há um horror de tempo e nem os avós dos mais velhos se lembravam do seu desabamento. Era um gigantesco e descomunal penedo, bastante áspero e excessivamente tosco. O seu peso estimativamente excessivo e a presumível velocidade que teria atingido ao despegar-se daquele desmedido aclive encravaram-no de tal maneira no chão que aparentava ter sido ali plantado. Nem todas as juntas de bois que na altura existiam na Fajã, atreladas umas à frente das outras, seriam capazes de arrancar dali aquele mamarracho ou sequer de o mover um centímetro que fosse. Só com meia dúzia de velas de dinamite enfiadas em buracos bem profundos e com um rastilho bem alongado. Por coincidência ou por inteligente aproveitamento dos que construíram aquela sinuosa via, o calhau ficava mesmo à beira da canada, servindo, naquele sítio, de divisória e natural entre o caminho de servidão e a relva de Ti Manuel Rosa, situada mesmo ali pertinho.
Do lado que confinava com a via pública, na parte superior, o calhau tinha uma enorme aba e, na parte inferior desta, uma concavidade ou buraco, que com as chuvas, sobretudo com as oriundas do sul, se enchia de água. Só que, por caprichos da natureza, o buraco era uma espécie de poço, tão perfeito e tão bem elaborado que nem o cinzel de um pedreiro o talharia melhor. Além disso, na parte inferior, a aba do calhau possuía uma espécie de plataforma para que quem quisesse ou desejasse ali se sentasse a molhar distraidamente as mãos na água e a observar aquela pequena maravilha da natureza.
Meu pai possuía duas relvas por ali perto, uma um pouco mais adiante e outra já perto da rocha, por isso eu passava junto daquele calhau, vezes sem conta. Além disso tinha um pequeno curral, o qual, devido ao seu exíguo tamanho, era destinado exclusivamente a pasto da ovelha, que ficava mesmo em frente àquela espécie de monumento paleolítico. Embora não gostasse muito de ir para as Águas, com receio de que caíssem pedras ou ribanceiras, nos momentos em que por ali deambulava, eu adorava aquele calhau. Sempre que passava por ali, quando ia buscar ou levar as vacas, subia a plataforma, sentava-me e ficava a contemplar o pequeno lago, sobretudo quando cheinho de água, quase a transbordar, com formas e recortes tão semelhantes aos do baixio, como se fosse um mar. Havia mesmo um enclave em tudo igual ao Boqueirão, outro parecido com o Caneiro das Furnas e no meio, eu próprio lhe escarrapachava uma pedra a fazer de Monchique. Então nos dias em que meu pai por lá se demorava a ceifar feitos ou quando eu levava a minha ovelha a pastar no curral era um enlevo, pois enchia o lago de folhinhas de faia e de incenso a fazer de barcos. Depois sentava-me na plataforma e ficava ali horas e horas a brincar. Tocava com as mãos na água e esta agitava-se como se fossem ondas e o lago crescia, crescia até se transformar num enorme mar cheio de barcos, de gasolinas, de iates e de navios, uns ancorados fora do porto, outros partindo para a Europa, para a América, para outros mundos. Eu imaginava-me então piloto de um deles e seguia pelo mar fora até chegar a um país longínquo e distante onde não havia rochas de onde caíam pedras e ribanceiras e onde os caminhos não eram sinuosos nem repletos de pedregulhos Um país onde todas as árvores eram floridas, onde as casas eram palácios, as ribeiras eram rios, onde os campos se enchiam de trigo e onde os pássaros não debicavam os frutos. Um país onde o pão tinha um sabor adocicado, onde as manhãs clareavam com veemência, onde os homens não eram escravos da miséria e onde as mulheres se deliciavam a ouvir o canto dos pássaros. Um país onde havia candys, bolachas biscoitos e chocolates. Um país onde havia roupas perfumadas e limpas e sapatos para proteger os pés. Um país onde todas as crianças tinham mães a dar-lhes carinho e amor.
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A "FAEIRA" DO POCESTINHO
Meu pai tinha uma terra de mato, no Pocestinho. Aliás, no Pocestinho todas as terras eram de mato. Mas a do meu pai era especial e diferente das outras, porque nela cresciam incensos enormes, altíssimos e esguios, entrelaçados com loureiros e paus brancos e misturados com um ou outro sanguinho. De resto tudo “faeiras”. “Faeiras” desde a primeira à última belga, “Faeiras” velhíssimas, centenárias, com troncos grossíssimos mas muito belas e elegantes, altas e esguias, a abarrotarem de folhas verdes e de bagas suculentas e arroxeadas. “Faeiras” de caules acastanhados, porosos, cobertos de escamas e enrijecidos pelos anos, mas recheados de seiva adocicada, de suco perfumado, de aromas silvestres e tonificantes.
Entre todas elas havia uma, logo na primeira belga, que eu adorava. Era a minha “faeira” predilecta, preferida, a minha “faeira” de estimação. Era uma árvore de grandes dimensões, altíssima e detentora de uma beleza rara, de um porte imponente, de uma elegância sublime, de uma copa deslumbrante e compacta, com um tronco espesso que se ramificava e prolongava em pernadas mais pequenas que se iam adelgaçando até se tornarem, lá nas pontas, nuns fiozinhos muito delgadinhos, fofos, macios, frágeis, delicados e atraentes. A sua casca era lisa, raramente fendilhada, embora com a idade se fosse tornando um pouco mais áspera, mas também mais acutilante e demolidora, adquirindo uma cor alourada, muito próxima do verde dos tempos da sua juventude e do pardo-amarelo da sua infância.
Contavam-me que a minha “faeira” nascera ali havia muitos anos. Inicialmente um pequeno arbusto com gomos amarelos, muito pequenos e pontiagudos, foi crescendo, lentamente e transformando-se numa bela árvore, ao mesmo tempo que se ia tornando forte, rija e resistente a ventos e temporais, mas delicada, adorável e encantadora. As suas folhas, tingindo-se de um verde, muito vivo e brilhante iam-se metamorfoseando em nervuras paralelas, ora ovadas, ora elíptico-lanceoladas, ou então iam adquirindo a forma de bico, pontiagudas e penetrantes como se de lanças se tratasse. Na Primavera a minha “faeira” cobria-se de flores de cores rosadas, geminadas num invólucro ténue com lóbulos suaves e espinhos brandos. No Verão, das suas flores brotavam frutos magníficos - bagas brilhantes, tintas e arroxeadas a desenvolverem-se aos pares, com um inconfundível sabor acre e doce, muito ricas em gordura e como tal muito procurados e muito apreciados pela fauna bravia e pela passarada das redondezas. Eu próprio as mastigava com júbilo e as saboreava com desvelo. Muitos pássaros serviam-se delas para as suas "dispensas invernais" o que fazia com que os arredores da terra de meu pai do Pocestinho se enchessem de sementes de “faeira”, povoando-se, mais tarde, de um número infinito de pequenas e graciosas arvorezinhas.
Na terra de meu pai do Pocestinho, a minha “faeira” juntamente com todas as outras “faeiras” que por ali proliferavam, formavam uma densa floresta, fortalecendo e enriquecendo o solo, cobrindo-o com um tapete fecundante, formado pelas numerosas folhas que, dia após dia, ano após ano, delas caíam e ali se depositavam. Era, sobretudo, essa massa de folhas, transformada em adubo, que permitia que as sementes germinassem, com vigor, na Primavera. Por sua vez, a sua copa densa e copiosa fazia com que a luz que chegava ao solo fosse como que coada pelas folhas e pelos ramos e se tornasse frouxa e ténue, não permitindo, que ali, outras plantas houvessem desenvolvimento.
Mas o que eu mais adorava na minha “faeira” do Pocestinho era quando, aproximando-me dela, via plantado um ninho, nos seus ramos, bem lá no seu alto. Agarrava-me então ao seu tronco, pendurava-me nos seus ramos e enroscava-me nela, subindo-a com destreza e agilidade mas com enlevo e ternura, até chegar lá acima, ao ninho, Depois deliciava-me com a ternura inocente dos passarinhos, biquinhos abertos, corpos cobertos de penugem, também eles a sibilarem a doçura daquele encontro.
Um dia meu pai decidiu que havia de cortar a minha “faeira”. Na opinião dele, a intensa sombra da sua copa, deslumbrante e audaciosa, impedia de crescerem os inhames e as outras pequenas plantas, plantadas ao seu redor. Além disso precisava de lenha, de muita lenha…
E eu, frágil e débil, nada pude fazer para o impedir dos seus intentos. A sentença de morte da minha “faeira” havia sido decretada e dela não havia recurso.
E eu que todos os dias ia com meu pai ao Pocestinho, exclusivamente, para ver a minha “faeira”, naquele dia não o acompanhei. E a partir de então, quando ia ao Pocestinho, o que raramente acontecia, esquivava-me sempre de ir aquela maldita belga para não mais ver aquele fatídico e malfadado vazio que o corte da minha “faeira” ali provocara.
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ILHA DE S. JORGE
(poema de álamo oliveira)
parece fácil desenhá-la: a mão
vai pela superfície do mar
e vira de repente coma certeza
de que nunca será redonda.
do topo salta um pingo de tinta
e fica como descuido divino
- sombra do pecado original.
vista de cima é a exclamação
do silêncio.
podem chamar-lhe dragão baleia dinossauro
parábola da água em vinho vivenda dos deuses
que sempre há-de ter faias
cedros dragoeiros hortênsias e giestas
nenhuma vontade de calar os garajaus
nenhum desejo antigo de partir
de fazer das fajãs o futuro de todas as virtudes.
o homem ali não passa de um sonho
descalço.
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CRENTE
MENU 11 – “CRENTE”
ENTRADA
Salada de alface ripada, com gumes de cebola finos e pedacinhos de queijo fresco, orvalhada com azeite e vinagre balsâmico.
PRATO
Bife de peru grelhado e recheado com mortadela de peru e acamado em legumes salteados e borrifados com geleia de melão.
Arroz de brócolos e rodelas de batata-doce fritas e barradas com creme de queijo fresco e ervas aromáticas.
SOBREMESA
Pêssego e Gelatina de Morango.
******
Preparação da Entrada: Limpar e ripar a alface, juntando-lhe os gumes de cebola finamente cortados e os pedacinhos de queijo fresca. Temperar com azeite e vinagre balsâmico.
Preparação do Prato – Aparar o bife de peru, cortá-lo muito fino e temperá-lo com alho, algumas horas antes. Grelhar o bife, regando-o com sumo de limão. Parti-lo a meio e recheá-lo com a mortadela. Cozer os legumes (cenoura, feijão verde e repolho) e salteá-los em azeite, anteriormente, perfumado com alho. Cobrir os legumes com geleia de melão e colocar o bife em cima. Cozer o arroz com os brócolos e fritar as rodelas de batata-doce, pincelando-as com o queijo de creme. Dispor os ingredientes em prato.
Preparação das Sobremesas – Fruta fresca. Gelatina - confecção tradicional.
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A MARQUINHAS JOSÉ DO CIMO DA ASSOMADA
Na penúltima casa do Cimo da Assomada, no caminho que dava para as hortas da Cabaceira e para a Cuada, antes da casa do Senhor João Fagundes, numa curva rectangular que o caminha fazia, junto ao palheiro do Francisco Tomé, ficava uma casa onde morava uma senhora já de avançada idade, conhecida pela Marquinhas José do Cimo da Assomada. A casa era muito velha e rústica, feita de pedra e situada numa espécie de buraco ou fundão, de tal modo desnivelado do caminho que apenas o telhado ficava paralelo a este. Assim a casa, frente à qual existia um pequeno mas bem cuidado jardim, comunicava e dava acesso ao caminho através de uma íngreme e tosca escada de pedra, que terminava, na parte superior, num pequeno portal, sem portão ou cancela. A casa era pequenina e o seu interior, pobre e escuro, limitava-se a uma cozinha com piso térreo e a uma outra divisão assoalhada que servia, simultaneamente, de sala e quarto de dormir. Vivia pois, a senhora Mariquinhas José em péssimas, limitadas e lastimáveis condições a que se aliava uma enorme pobreza e um exagerado desconforto. Vivia sozinha e não tinha parentes na Fajã que se conhecessem. Constava, apenas, que tinha uns primos no Mosteiro, os quais, no entanto, nunca a procuravam.
Mas… pior do que tudo isto, a Marquinhas José era muito doente. Para além de outras maleitas menores, tinha uma doença terrível na perna esquerda. Esta estava de tal modo inchada que bem se podia igualar, em espessura, à cintura da sua dona, dificultando-lhe, de sobremaneira, o andar, já de si lento e vagaroso. No entanto e apesar de todas estas limitações e contrariedades, fazia, ela própria, toda a sua vida quotidiana: cozinhava os parcos alimentos de que dispunha, acarretava baldes de água a uma fonte bem distante, arrumava e lavava a casa e a roupa e até transportava, à cabeça e sob uma rodilha, pequenos molhos de garranchos de lenha, que ia apanhar a uma belga que tinha para os lados da Cabaceira. Também era ela que trabalhava uma escassa courela que possuía atrás da casa e que lhe ia dando meia dúzia de maçarocas de milho, uns pés de couve e algumas batatas. Algumas pessoas da freguesia ajudavam-na, dando-lhe, de quando em vez, um pouco daquilo que também possuíam e cultivavam nos seus campos.
Mas apesar de pobre, desventurada, sofredora e estigmatizada pela solidão a Marquinhas José do Cimo da Assomada, parecia ser uma pessoa feliz e conformada com o seu infortúnio, pois tinha sempre um agradável sorriso no seu rosto, uma contagiante ternura no seu olhar e uma sincera afabilidade nas suas palavras.
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A FAJÃ GRANDE NA COMEMORAÇÃO DOS 35 ANOS DE EXISTÊNCIA DA RTP AÇORES
A RTP Açores, ao comemorar, a dez de Agosto transacto, os seus 35 anos de existência elaborou uma série de programas sobre as freguesias mais pequenas dos Açores e, por isso mesmo, talvez as menos conhecidas. Estes programas, com apresentação de Vasco Pernes e imagens de Rui Machado, que contemplaram entre outras freguesias açorianas as seguintes pertencentes à ilha das Flores: Ponta Delgada, Cedros, Caveira, Lomba, Fazenda, Lagedo, Mosteiro, Fajazinha e Fajã Grande, podem ser revistos no seguinte site da RTP Açores: http://ww1.rtp.pt/acores/?article=16337&visual=22&tm=28.
No que à Fajã Grande diz respeito, trata-se de uma excelente reportagem e de uma magnífica divulgação da freguesia mais ocidental da Europa e de um proveitoso publicitar das suas potencialidades turísticas, nomeadamente nos aspectos paisagístico, gastronómico, cultural, musical e até histórico. Para além de apresentar imagens de excelente qualidade sobre Fajã, Ponta, Cuada e as paisagens que envolvem estas localidades da freguesia, o programa divulga o seu artesanato através da Virgília Fragueiro que dá a conhecer um interessantíssimo arsenal de rendas, bordados, colchas e outros produtos manufacturados pela sua própria mãe, a Madalena de José Jorge. O programa ainda e, por um lado, dá a conhecer a gastronomia fajangrandense de antanho, incluindo as couves com conduto, a caçoila, as filoses, o bolo do tijolo, o queijo caseiro, o folar com linguiça, a morcela e o pão de milho, apresentados pela Maria Lídia, filha do Jesuíno do Pico e, alguns deles, confeccionados pela Deolinda do Augusto Arionó, e, por outro, delicia-nos com a sua cultura musical através da Tuna “Sol Mar”, da Filarmónica “Senhora da Saúde” e do grupo de Foliões da Casa de Cima. Destaque ainda para uma entrevista com o José Teodósio, actual presidente da Junta de Freguesia e com o meu primo, vizinho e amigo de outros tempos, o Guilherme, um artista na arte de fazer cestos, cestas e cabazes com vimes e uma outro com o dono de um burro que granjeou as simpatias do apresentador do programa e ganhou o epíteto de o “Trinta e Cinco”. De realçar ainda a divulgação, ao longo do programa de diversos utensílios agrícolas utilizados outrora nas lides dos campos, como os arados de ferro e de pau, a grade, o carro de bois com a sebe e todos os restantes apetrechos e ainda, o que considero mais notável, um corsão de canguinha com fueiros, cabeçalhos, canga, canzis, tamoeiros e até as boqueiras para o gado.
Este texto foi publicado no Pico da Vigia, em 09/10/10
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GUERRA
Gravaste sulcos dolorosos,
Estigmas,
Com fumos de pólvora cinzenta.
Os ruídos, aparentemente adocicados, das madrugadas
Eram o eco dos canhões,
O ribombar dos morteiros,
O ronco dos obuses
Que, nas noites anteriores,
Escuras, solitárias e aterradoras,
Esvoaçavam,
Sem cessar.
Por vezes,
Explodiam minas e rebentavam granadas!
Tiros de metralhadoras estouravam em cachão,
Quase perfuravam os ouvidos!
Corpos decepados
- Velas desfeitas de barcos naufragados.
Corpos ensanguentados
- Cachos de uva, espremidos em prensa.
E…
Um medo, enorme, do dia seguinte,
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CADE A ÁGUA
Cade a água?
O boi bebeu-a.
Cade o boi?
Foi debulhar o trigo.
Cade o trigo?
A galinha comeu-o.
Cade a galinha?
Foi pôr o ovo.
Cade o ovo?
O padre comeu-o.
Cade o padre?
Foi celebrar missa.
Cade a missa?
Está no altar.
Cade o altar?
Está no seu lugar.
Cade a campainha?
Está na buraquinha.
Cade o campanhão?
Está no buracão.
(Aravia popular fajãgrandense)
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SARGAÇO
Noite escura. A manhã tardava em alvejar. Clara sentiu um bater martelado na janela do seu quarto. A mãe já se levantara e, alumiada pelo brasido do lar, cirandava na cozinha, no meio duma penumbra confusa e impertinente. De fora um vozeirão grave e solene:
- Ó vocês, levem garfos, cestos e um pingo de café para o Rolo. Tá a sair uma grandeza de sargaço.
Não foi preciso esclarecer ou perguntar o que quer que fosse. Clara levantou-se de um salto e entrou assarapantada pela cozinha a alertar a mãe. Bem conhecera a voz do Ricardo. O pai, saíra de casa, com destino às Covas para ceifar um molho de erva, Decerto que se havia enfiado no Rolo, na retirada daquele maldito sargaço.
- E aquele homem que já não pode com nada e a meter-se sempre em grandes trabalheiras. Eu me benzo do Coiso Mau! Tanto que o aviso e lhe peço, Não há maneira de se aquietar. E eu sem o poder ajudar!
- Deixe lá mãe. Faça o café que eu vou levar-lhe os garfos e os cestos. Hei-de ajudá-lo como puder.
Pouco depois, com a escuridão ainda a aguçar-lhe o medo, Clara abriu a porta da cozinha que dava para os pátios traseiros. Cestos à cabeça, enfiados uns dentro dos outros, dois garfos alçados sobre o ombro direito e uma lata de café com leite, onde a mãe havia migado umas fatias de pão, com uma colherada de açúcar.
A Rua Direita ainda estava deserta mas na Tronqueira, para lá da casa do Belchior, já se viam muitos vultos apressados e cambaleantes que, como ela, se encaminhavam para o Rolo, na demanda do sargaço.
Todos os anos era aquela efervescência, desprezível para alguns, indiferente para outros mas gratificante para muitos. No Outono, com os ventos de oeste, com o mar a abarrotar de maresia e com as ondas a encapelarem-se alteradas, de vez em quando, o Rolo cobria-se de um extenso tapete aveludado, fofo, castanho e amarelado que ia do Pesqueiro de Tera até à Ribeira das Casas. Era o sargaço que, arrancado das profundezas do oceano, trazido por correntes e marés, ali vinha encafuar-se, sendo depois atiçado para terra pelo reboliço das ondas e pela correnteza da maré. O Reboredo era sempre dos primeiros a chegar. Assenhoreava-se de uma bom pedaço do Rolo, demarcava com canas e paus o seu território e, a partir de então, todo o sargaço que o mar ali trouxesse era seu. Depois era só atirá-lo à mão, à garfada, aos cestos, bem mais para cima a fim de que a maré, ao encher, assim como o trouxera, agora o não levasse.
Quando Clara chegou ao Rolo já os primeiros raios da aurora, embora tímidos, espreitavam sobre a Rocha dos Paus Brancos. Um reboliço enorme espalhava-se sobre todos aqueles calhaus, agora atapetados de algas mortas. Homens descalços e de calças arregaçadas até aos joelhos lutavam contra a braveza das vagas, na mira de arrecadar o maior quinhão. As ondas num vai e vem tremendo, assustavam os homens, afugentando-os quando subiam mas incentivando-os quando desciam. Muitos já haviam amontoado uma boa safra, mas todos se aventuravam na conquista de mais. O pai alapara-se mesmo ali, logo no início do Rolo, junto ao ilhéu do Constantino. Fora dos primeiros a chegar.
Clara saltitando de pedregulho em pedregulho, aproximou-se do eito, onde o pai todo molhado retirava das ondas temerosas e altivas, mancheias de sargaço encharcado. Colocando a latinha do café em lugar seguro, depondo cestos e garfos, atirou-se de rajada sobre o montículo de sargaço que o pai já havia armazenado, afastado das ondas. Ali tudo era cheiro a maresia e sabor a salinidade, ali, tudo era um tactear fofo, um saltar acolchoado, um contacto sublime e terno com o aroma delicado e doce do mar. E enquanto o pai, fazendo uma pausa na safra, se entretinha nas sopas, Clara, descalçando-se, aproveitou para retouçar, rebolar, pinchar, saltar, pular e espinotear sobre o montículo de sargaço que o pai ali já retirara do mar.
Depois, ora fugindo às ondas, ora deixando-se banhar pela frescura inebriante das águas lá foi, com galhardia e excelência, ajudando o pai. Ao meio-dia, quando a mãe ali chegou trazendo, num cesto, à cabeça, o almoço, o monte de sargaço do Reboredo era um dos maiores do Rolo.
O diabo era agora, de tarde, quando a maré subisse ao ponto de recusar a cedência sequer de mais uma febrinha que fosse, acarretá-lo para o “lago”, onde ele havia de ficar a fermentar, durante meses, até se transformar em precioso adubo. Ele, Reboredo, a encher os cestos, ela, Clara, no “lago” a despejá-los e a acalcar o sargaço… O problema era acarretá-lo, em cestos pesadíssimos, muito cheios, bem acuculados e a escorrerem água por quantas juntas tinham!...
E foi o Câncio, o filho do Machado, que, de boa vontade, se veio oferecer para ajudar. Perante a anuência do Reboredo, o rapaz que desde há muito catrapiscava o olho à Clarinha, cuidou que aquele seria um dia de esperança – esperança de, através da ajuda no sargaço, conquistar, para sempre, o coração da moça.
E não se enganou, o bisbórrias.
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GRANDE DERROCADA DE ÁGUA E LAMA SOBRE A FAJÃZINHA
Aqui transcrevo na íntegra, a notícia transcrita no site “Ilha das Flores”, (no dia 4 de Dezenbro de 2010) fonte “Diário dos Açores” sobre o desabamento de uma ribanceira sobre a vizinha freguesia da Fajãzinha, que desalojou as 74 pessoas que ali viviam.
“Foram 74 pessoas e muitas horas de susto e luta, tudo ao lado, e depois de uma derrocada imensa que deixou a Fajãzinha isolada do resto da ilha das Flores. Passavam poucos minutos das 5 da madrugada (do passado dia 3) quando uma derrocada, sem precedentes, atingiu parte da freguesia da Fajãzinha, concelho de Lajes das Flores. Só por volta das 7 horas da manhã toda a população ficou alerta do que se estava a passar e foi a partir daí que começaram os esforços para tentar “contornar” este incidente. As fortes chuvadas que assolaram a ilha mais Ocidental do arquipélago durante cerca de 72 horas consecutivas não podiam prever pior cenário, salvando-se o facto de não haver vítimas humanas nesta já considerada “tragédia”. Casas inundadas, carros submersos, garagens e palheiros arrastadas literalmente por uma ribeira de lama, água, entulhos, árvores e todo o lixo que se acumulou freguesia abaixo. O cenário foi descrito pelas dezenas de pessoas que o “Diário dos Açores” contactou durante todo o dia de hoje. As imagens falam por si, mas o que a população de uma das mais pequenas freguesias açorianas passou não tem precedentes. O polidesportivo que se encontra no centro da freguesia não se vislumbra, a Junta de Freguesia está toda destruída, dizem ao nosso jornal “isto não é a Fajãzinha”. Apenas às 11h50 a chuva dava sinais de ‘fraqueza’ e apenas passada uma hora a acalmia do vento, da chuva e do nevoeiro permitia perceber o estado lastimoso que a Natureza acabara de deixar este sítio. A única via de acesso à freguesia foi, também ela, afectada pelas ribanceiras que atravessaram a estrada regional, impedindo dessa forma a passagem de veículos para a freguesia. Só por volta das 14hoo as máquinas da Secretaria Regional Ciência Tecnologia e Equipamentos, SRCTE, e da Câmara Municipal das Lajes das Flores conseguiram chegar à zona mais afectada pelas fortes derrocadas. Sem luz nem água (postes de alta tensão deitados ao chão), cenário que não será restabelecido nas próximas semanas, a EDA pondera nesta altura garantir a electricidade na freguesia vizinha, Fajã Grande, através de geradores. Até por volta das 16h00 a população esteve reunida na Igreja e antiga escola primária, locais considerados seguros pelas autoridades. Mas os cerca de 70 habitantes da Fajãzinha já foram evacuados e permanecerão pelo menos até amanhã no aldeamento turístico da Aldeia da Cuada que acolheu praticamente toda a população (referir que alguns populares vão permanecer na freguesia – na escola primária). Dois idosos foram deslocados para o Centro de Saúde, em Santa Cruz, e por agora resta tentar inverter um cenário que ninguém esperava ver quando acordou. Os trabalhadores da Câmara Municipal das Lajes das Flores e da SRCTE procuram limpar, ao máximo, toda a zona que foi deteriorada, uma vez que face ao agravamento do tempo que se prevê durante a tarde as autoridades não deixam de parte a possibilidade de novas derrocadas e desabamentos poderem acontecer. Referir que durante todo o dia estiveram no local, desde o início da manhã, bombeiros (Protecção Civil), PSP, GNR, elementos da SRCTE, Presidente da Câmara, entre outros, chefiando toda a missão junto de uma população visivelmente assustada.”
Este texto foi publicado no “Pico da Vigia” em 04/12/10
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HOMENAGEM
Assinalando os 10 anos da sua morte, a Biblioteca Nacional apresentou uma pequena mostra documental sobre o florentino Pedro da Silveira.
Pedro da Silveira – autor, poeta, investigador histórico e literário, tradutor, etnógrafo – falecido há dez anos, foi um dos grandes poetas açorianos do século XX e deixou uma marca cultural profundamente impressiva cujo registo esteve patente na exposição da Biblioteca Nacional (em Lisboa), antecedendo a cerimónia de homenagem promovida no dia 1 de Outubro pela Casa dos Açores em Lisboa.
Este multifacetado autor florentino ilustrou a literatura açoriana – que defendeu frontalmente como teórico, historiador e crítico, até contrariando alguns meios intelectuais do Continente – foi também um dos seus mais persistentes e criteriosos divulgadores, tendo-se dedicado ainda a importantes recolhas de literatura oral.
Pedro da Silveira foi autor de várias obras de poesia, entre as quais se contam «A ilha e o Mundo», «Sinais de Oeste», «Corografias», «Poemas ausentes» e «Fui ao mar buscar laranjas», o primeiro volume da sua obra completa. Com uma vasta colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiras, Pedro da Siveira foi ainda autor de duas antologias de poetas açorianos, sendo que no prefácio de uma das quais – «Antologia de poesia açoriana – do século XVII a 1975» – ensaia uma tentativa de autonomia da literatura açoriana das restantes literaturas de expressão lusófona.
A sua poesia manteve sempre uma forte ligação ao solo açoriano, não deixando, porém, de dialogar cultural e poeticamente com «as ilhas todas do Mundo». Foi um dos promotores da elaboração da «Enciclopédia açoriana» e preparava uma «História da literatura açoriana» quando faleceu. Integrou, até 1974, o conselho de redação da «Seara Nova», tendo sido até 1992 funcionário da Biblioteca Nacional, da qual foi director dos Serviços de Investigação e de Actividades Culturais.
NB – Texto retirado integralmente do Forum Ilha das Flores
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INCÊNDIO
labaredas
fulvas,
atiçadas,
em catadupa,
contra árvores
preludiais,
desprevenidas
um sopro impossível
a apagá-las
…cinzas
faúlhas
e pó
terra ressequida,
morta
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ROSAS BRANCAS
A noite estava escura e do céu caíam flocos de neve que aos poucos iam atapetando o chão, transformando a verde alfombra num gigantesco e esbranquiçado tapete.
Joana há muito que se refugiara na cabana. No inverno, a noite caía bem mais cedo e naquela tarde, o frio descambara sobre os montes, sem dó nem piedade, mais violento, mais agressivo e mais abrupto. As ovelhas, que durante a manhã e uma boa parte da tarde haviam pastado, famintas, as ervinhas verdes e apetitosas, manifestaram, ao fim da tarde, uma enorme vontade de se recolherem, de se enfiarem dentro da cabana, de se enrolarem e enroscarem umas nas outras, protegendo-se do forte nevão que os flocos de neve caídos ao relento, anunciavam aproximar-se, cada vez com mais evidência. Até o Fiel, o seu amigo e companheiro de pastorícia, se apressara a enfiar-se porta dentro e enroscar-se junto ao brasido que Joana, num dos cantos da cabana, acabara de acender. Tirou o leite à “Danada”, migou-lhe uns pedaços de pão e repartiu o cardápio com o Fiel. Pouco depois, espreguiçando os braços como que a convidar e a abraçar o sono, repartiu o feno pelas ovelhas, despediu-se delas, uma a uma e deitou-se sobre uns montículos de bracéu, embrulhando-se num velho e grosso cobertor de papa.
Todos os dias repetia este ritual, embora, noites frias como aquela rareassem. A mãe, há muito que falecera e o pai, pobre, doente, sem eira nem beira, tinha nela e na guarda do pequeno rebanho que pastoreava nos montes contíguos à aldeia, os proventos que lhe adocicavam, levemente, uma existência dolorosa, sofredora, quase mesmo angustiante.
Nos primeiros tempos, após a morte da mãe, o pai, ocupado durante o dia no cultivo duma pequena courela, junto de casa, apenas à noite, abandonava o povoado e subia as íngremes encostas dos montes, levando-lhe o pão, ensinando-a na ordenha e no fabrico dos queijos, pernoitando, ele próprio na cabana para que a menina se habituasse, de futuro, àquele ermitério. De manhã, ainda lusco que fusco, descia a encosta, umas vezes com um queijo que ia vendendo na aldeia, outras, apesar do choro e dos protestos de Joana, com um cordeirinho que, eventualmente, algum lavrador mais abastado lhe encomendava. Joana ficava só, durante o dia, ansiando pela noite e pela companhia do pai. A doença, no entanto, fora galopando assustadoramente. A petiza compreendera. As visitas do progenitor começaram a rarear durante uns meses, passados os quais cessaram por completo. Agora já se habituara a ficar sozinha, com o Fiel, o seu amigo e companheiro de sempre e com as suas ovelhas. Apenas desejava que a morte, impiedosa e cruel, não levasse o pai como fizera com a mãe, era ela ainda uma criança.
Aos poucos Joana habituara-se aquela vida de solidão, de isolamento, de afastamento do povoado. Ao seu redor, para além da frescura e singeleza dos campos, do vigor e serenidade dos ares, do silêncio eloquente das madrugadas e do vento a confundir-lhe os desejos, tinha a amizade de cada uma das suas ovelhas e a protecção do Fiel. Conhecia as ovelhas uma a uma, chamava-as pelo nome, dialogava como elas como se fossem pessoas e tinha a firme certeza que elas a entendiam. Mas era o Fiel, um portentoso e meigo pastor alemão, o seu grande amigo e destemido protector.
Naquela noite, porém, uma enorme nostalgia perfurava-lhe o espírito e uma tremenda angústia trespassava-lhe o peito. Não adormecia. Revoltava-se sobre a palha, enrolava-se mais no cobertor e sobressaltava-se com o menor ruído. De repente, ouviu um barulho mais forte e prolongado. Erguendo-se, escutou mais atentamente. Pareciam-lhe passos, mas passos leves, suaves, sublimes, dir-se-ia, deliciosos. Tão afáveis e doces que nem o Fiel deles se havia apercebido. Aproximou-se, apreensiva, da única fresta que a cabana possuía e viu que desciam, em rancho, entre cânticos de glória e de louvor, um grupo de pastores e os três Reis Magos. Foi então que se lembrou que aquela era a noite de Natal. Os pastores e os reis, decerto, que se dirigiam, apressadamente, para o estábulo onde Jesus acabara de nascer e onde estaria em palhas deitado, junto de Maria e José. Os pastores levavam presentes simples e pobres mas generosos. Os três Reis Magos, levavam ricas ofertas: ouro, incenso e mirra.
Joana, apressada e sem que o Fiel desse por nada, pegou num cordeirinho que nascera dias antes. Assim como os outros pastores, levá-lo-ia ao Menino Jesus. No entanto, a mãe, apercebendo-se de que lhe era retirado o filhote, entrou num berreiro desolado, triste e sofredor. Joana entendeu, de imediato, que não podia, nem devia levá-lo retirando-o da pobre mãe. O Menino Jesus, decerto não exigia tal sacrifício à sua querida ovelhinha. Mas o que havia de levar se não tinha mais nada? Agasalhou-se, abriu a porta e saiu, cuidando que no exterior da cabana havia de encontrar algumas flores. O chão porém estava coberto de neve branca e nem uma flor se via. Desesperada, na ânsia de se juntar ao rancho dos pastores e aos Reis Magos, Joana arrancou do chão uma mão cheia dos primeiros arbustos que encontrou, cujas folhas estavam cobertas de neve e largou numa correria louca, na senda da gruta.
Ao chegar junto da gruta, donde emanava uma luz brilhante e resplandecia um brilho acariciador, Joana ficou muito triste. Os Reis e todos os outros pastores de joelhos diante do Menino, de Sua Mãe e de São José, estavam muito contentes e felizes pois todos haviam oferecido os seus presentes. Ela não tinha nada para oferecer ao Menino Jesus, a não ser aqueles pequenos arbustos, cobertas de neve. Começou a chorar. De repente, um anjo, que descera sobre a gruta, ao ver tamanha tristeza misturada com tão sublime inocência, passou junto de Joana e, enquanto as suas lágrimas caíam na terra gelada, tocando-lhe ao de leve com a brancura das suas asas, transformou os pequenos arbustos em lindas rosas brancas, que Joana, com o coração carregado de alegria e felicidade, ofereceu ao Menino Jesus.
Na manhã seguinte, ainda noite escura, bateram à porta da cabana, onde Joana dormia. O Fiel, sempre atento e vigilante, latiu. Joana acordou. Veio abrir. Era o pai! Estava melhor. Trazia uma cestinha com doces e vinha passar o dia de Natal com ela.
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VIDA
“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.”
Charles Chaplin
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OS BOIS SEM RABO
Um dos maiores, mais sórdidos e mais terríveis crimes cometidos na Fajã Grande, ao longo do seu historial, foi o do corte dos rabos de uma junta de bois que pertenciam precisamente ao meu avô materno. Era uma junta de bravos e valentes bois de trabalho, que passavam os dias a puxar o arado de ferro, a grade, o arado de pau, o corsão ou o carro e dormiam à noite, geralmente no palheiro, a fim de serem protegidos de eventuais doenças resultantes de esfriamentos subsequentes a um exaustivo cansaço, a uma árdua e persistente labuta diária.
Certo dia em que não trabalharam e em que, por conseguinte, não estavam fatigados, foram deixados, durante a noite, no cerrado das Furnas, a alimentarem-se de uns restos de couves e milho. Era uma noite fresca, de verão. Os animais necessitavam, ao menos por um dia, de repouso, descanso e de serem protegidos do calor e do bafio do palheiro. De manhã, quando alguém os foi recolher, a fim de iniciarem mais um dia de trabalho, um e outro dos bois tinha o rabo cortado. O crime tornou-se ainda mais horrendo, repelente e hediondo, atingindo mesmo a fronteira do sacrílego, porque os rabos dos bois foram amarrados e içados no pau da bandeira da Casa de Espírito Santo de Baixo.
Nunca se soube se este mísero, repugnante e condenável acto foi praticado por vingança, se por inveja ou se pura e simplesmente por mero prazer sádico ou divertimento estúpido, como também nunca se soube quem foi ou quem foram os seus executantes, nem os seus mandantes, se é que os houve. Foram indigitados vários suspeitos e o caso arrastou-se pelo tribunal de Santa Cruz ao longo de meses e anos, mas, e dado que as investigações judiciais, à altura e na ilha das Flores, eram muito limitadas, nunca foram encontradas provas que indiciassem os criminosos e, por conseguinte, o caso nunca foi julgado e os prevaricadores nunca foram condenados. Talvez se tivesse havido maior empenhamento por parte das autoridades de então, se as investigações tivessem sido mais exigentes e profundas e se não houvesse aparente e simulada intenção de poupar alguém, ter-se-iam descoberto os responsáveis. A arma do crime terá sido uma tesoura de cortar lata e, na altura, existiam poucas na Fajã Grande.
Consta que o estado em que os animais se encontraram era simplesmente horroroso, arrepiante e consternador: mugiam em altos brados, soltavam aulidos angustiantes, berravam desalmadamente, saltavam abespinhadamente e rebolavam-se no chão como se estivessem loucos. Numa palavra o seu desespero era tal e tão grande que tiveram que ser abatidos, logo após serem encontrados naquele lastimável estado.
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OS CAPITÃES FREITAS HENRIQUES
António de Freitas Henriques foi um dos mais conhecidos e destacados capitães da ilha das Flores, no século XVIII. Tal como no arquipélago da Madeira, os Açores eram, á altura, administrados ou governados por um sistema de capitanias, lideradas por um capitão donatário. O capitão-donatário ou capitão do donatário era um cargo criado nas ilhas atlânticas e a quem cabia a representação dos interesses do donatário, ou seja da personalidade a quem o rei doava a ilha ou apenas uma sua parte, garantindo os seus proventos e a administrando os seus bens. Serviam ainda de interlocutor entre as populações e o donatário. Para os ajudar tinha nas diversas localidades da ilha um capitão através do qual se fazia representar.
António Freitas Henriques, nascido na Fajã Grande a 30 de Março de 1721 foi capitão na Fajã Grande entre 1751 e 1770, ano em que faleceu. Era filho do capitão Gaspar Henriques Coelho e de Francisca Rodrigues. Naturalmente por ser capitão teve o privilégio, apesar de na altura a paróquia das Fajãs ter a sua sede na Fajãzinha, de realizar o seu casamento na antiga e primitiva ermida de São José da Fajã Grande que estaria ligada à sua residência por uma ponte. O casamento com Maria de Freitas realizou-se no dia 5 de Maio de 1760 e o registo obrigatoriamente foi feito na antiga paróquia das Fajãs e, por isso, consta nos livros de registo da Fajãzinha. Esteve casado apenas dois anos, tendo a esposa falecido em 14 de Outubro de 1762. O próprio capitão Freitas Henriques faleceu oito anos depois, aos quarenta e nove anos de idade. Foi também vereador, juiz do ordinário e comandante, com patente real, da companhia de ordenanças das Lajes. Era irmão do padre Francisco de Freitas Henriques que prestou serviço religioso na antiga ermida de São José. Da sua residência e da de seus pais resta ainda o edifício que se situava ao lado da igreja paroquial e que, nos anos cinquenta, pertencia a dois moradores: ao José Natal e à viúva de José Luís.
Sucedeu-lhe, alguns anos após a sua morte, o seu filho, também capitão, José António de Freitas Henriques que casou com Maria Vitória Almeida, natural de Ponta Delgada e da qual teve três filhos, sendo também todos eles capitães, tendo-se destacado o mais novo Francisco de Borja Freitas Henriques, capitãoem Santa Cruze que foi considerado na altura o homem mais rico da ilha das Flores.
Na realidade a família dos capitães Freitas Henriques teve um papel relevante no povoamento e ordenação territorial da ilha das Flores, nomeadamente na zona das Fajãs.
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O CADERNO DIÁRIO
A Dona Madalena era muito exigente, extremamente meticulosa, excedendo-se frequentemente em repreensões exageradas, castigos excessivos e reguadas sem dó nem piedade. Aos preguiçosos, aos apedeutas e aos descurados nos estudos aplicava-lhes trabalhos caseiros em dose dupla. Aos prosélitos do erro ortográfico e aos correligionários da má caligrafia impunha castigos excessivos que, por vezes, roçavam a tortura e se aproximavam do suplício. Finalmente, aos negligentes e desleixados na conservação e limpeza do material escolar assentava-lhes reguada da meia-noite.
Eu pelava-me de medo e tremia como varas verdes. Não era pela preguiça ou desmazelo nos estudos, nem sequer pelos erros ou má caligrafia, parâmetros de avaliação em que era exímio, chegando mesmo, nas lições de cor, a ser o melhor da classe. Em História, num aranzel minucioso e leptológico, desembuchava os reis de Portugal a eito, da primeira à quarta dinastia, com os respectivos cognomes e os factos mais relevantes de cada reinado. Em Ciências, com um rigor absoluto e científico, definia cada órgão ou parte do corpo humano, a começar pelo coração e a terminar nos dedos, onde distinguia, com perícia e altivez, a falange, a falanginha e a falangeta. Finalmente e em Geografia, com arte e engenho desusados, papagueava os rios e os afluentes das margens direita e esquerda, as linhas-férreas com as principais estações e os mais importantes apeadeiros e até os países da Europa com as respectivas capitais. Onde eu prevaricava, contínua e permanentemente, era na limpeza e asseio do Caderno Diário. Não eram os erros ortográficos nem sequer a caligrafia – era pura e simplesmente a sujidade. Não havia mês, semana, talvez mesmo dia em que não me apresentasse junto à secretária da senhora professora com o caderno sujo, ensebado, denegrido, besuntado e imundo. Esta ignomínia, que a Dona Madalena julgava de falta de cuidado e alheamento total de responsabilidades, era fruto das precárias condições e da acentuada penúria que reinavam lá casa. Além disso, eu era o principal prevaricador na falta de limpeza e asseio do Caderno Diário. Isso revoltava-me! Revoltava-me porque os outros tinham sempre o caderno limpinho e asseado, embora nem de longe nem de perto me igualassem na leitura, na Gramática, nas lições de cor e em muitas outras aptidões. Mas quanto à limpeza, o meu Caderno Diário era, sem tirar nem por, o pior da classe. Uma autêntica vergonha! Ainda por cima, todos os outros, na classe, primavam por uma limpeza excessiva e por um requinte desmesurado nos seus cadernos o que acentuava mais e mais a imundície e o desmazelo do meu.
É que à enxurrada de irmãos que superabundavam lá em casa juntavam-se umas instalações exíguas, precárias e limitadíssimas que não se compadeciam, nem de longe nem de perto, com quaisquer exigências académicas ou culturais. Assim era forçado a fazer os trabalhos que a senhora professora mandava para casa em cima da carcomida mesa da cozinha, onde remanesciam migalhas de pão e restos de comida e sobejavam pingos de café, de leite e de graxa. Além disso, a cozinha, apesar de enorme, era vetusta, esconsa e mal iluminada de dia, enquanto à noite se acendia uma pequena candeia alimentada a enxúndia de galinha, em que flamejava uma chama frouxa e titubeante que mal permitia divisar pessoas e objectos, muito menos ler ou escrever o que quer que fosse. A mobília era constituída por uma mesa, meia dúzia de bancos e um pequeno armário em que as portas eram uns panos escuros e pardacentos, onde se guardavam os pratos, as tigelas, os caldeirões e outros utensílios. Pelo chão abundavam sacos de serapilheira com batatas, inhames, cebolas e maçarocas de milho, tudo num perfeito desarrumo, que se acentuava às sextas, dia de acender o forno e cozer o pão de milho para a semana. A lenha picada e empilhada debaixo do lar, constituía o sector de maior arrumação. Era lá também que tinha habitáculo o Farrusco, guardião eficiente da ratazana e parceiro de muitas brincadeiras. Num canto, por baixo da porta do forno, ficava o balde do porco, onde se iam armazenando os restos de comida, as cascas das batatas, dos inhames e as lavagens que, depois de cheio, constituía a principal refeição do suíno, mantido à engorda com excessivo zelo. Por baixo, uma loja dividida entre arrumos e estábulo.
Era nestas instalações que montava sala de estudo e, por essa razão, o meu caderno diário normalmente se transformava numa execrável, sórdida e hedionda bodeguice.
Certo dia, em que o esquecera sobre a mesa, alguém involuntariamente, deixou-lhe cair em cima umas brasas que saltaram do ferro de passar roupa, queimando, parcialmente, meia dúzia de folhas. Estarreci. Com que cara me iria apresentar, no dia seguinte, à Dona Madalena, tendo o caderno naquele estado? Ia ser o bom e o bonito! E não me enganei. Para além da chacota de que fui alvo, levei as habituais dez reguadas punitivas da sujidade, com a rigorosa imposição de, sem falta, ter que arranjar um caderno novo e passar tudo a limpo, para o dia seguinte.
Matutei a tarde inteira na forma de resolver o imbróglio em que estava exprobrado, apesar de inocente e que passava pela compra de um caderno novo, operação comercial que, no mínimo, me forçaria a ter que desenvencilhar uns cinquenta centavos. Mas só tinha amealhado trinta e a festa da Senhora da Saúde aproximava-se… Recorri à generosidade de minha avó que me abonou apenas os vinte que faltavam.
Ao fim da tarde, sentei-me à mesa e comecei a árdua tarefa de passar tudo a limpo. Estava prestes a chegar à última folha, quando de repente me emborcam literalmente uma tigela de café sobre o caderno que eu acabara de copiar de lés a lés.
De nada valeram protestos, choradeiras e reclamações. E tive que me apresentar na escola, na manhã seguinte, com aquela espurcícia em riste, apesar de envolto em temor, imaginando o que me esperava.
Foi então que, num gesto de grande nobreza, dignidade e misericórdia, o Amâncio, apercebendo-se da minha angústia e atrapalhação, me acalmou. Desde há muito que eu era o seu maior amigo. Tirou um caderno limpo e novo da sua pasta e, com excessivo cuidado e engenho, cortou-lhe a capa, pedindo-me que na mesma escrevesse o meu nome. Depois, com grande perícia e determinação, cortou a capa do seu próprio caderno, substituindo-a por aquela em que havia escrito o meu nome e colando-a, muito disfarçadamente, com goma-arábica. Quando, algum tempo depois, a senhora professora me chamou, ele, encorajando-me e incentivando-me com grande convicção, disse baixinho, perante a minha perplexidade:
- Vai! Vai! Não sejas parvo! Ela não vai dar por nada.
E não deu. Apenas, em tom de censura, me recriminou apreensivamente:
- Hum! Que caligrafia é esta?! Nem parece a tua – e, de imediato, perguntou - Foste tu que passaste?
- Fui, sim, senhora professora. É que… passei tudo à pressa…
- A caligrafia não está grande coisa. Mas lá que está limpinho, está – concluiu.
E assim, com uma perfeita mentirinha, safei-me de mais umas valentes reguadas.