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A ANTIGA ERMIDA DE SÃO JOSÉ DA FAJÃ GRANDE

Sábado, 30.11.13

Benzida em quatro de Maio de 1757, a primitiva ermida de São José da Fajã Grande, terá muito provavelmente sido construída no início da década de cinquenta do século XVIII, ou seja, cerca de duzentos anos depois dos primeiros povoadores terem ocupado e iniciado o povoamento do actual território da Fajã Grande e um século depois de ser estruturado como povoado, tornando-se, provavelmente, num dos lugares mais prósperos da zona oeste da ilha das Flores. Essa foi talvez a razão porque em 1676, por provisão do bispo de Angra D. Frei Lourenço de Castro, o lugar da Fajã Grande foi desanexado da paróquia das Lajes, à qual pertencia, apesar da grande distância e maus caminhos, sendo, então, integrado na paróquia de Nossa Senhora dos Remédios das Fajãs, criada nessa altura, com sede na igreja daquela localidade, mas com jurisdição que abrangia toda a costa oeste da ilha, desde a Ponta da Fajã até ao Mosteiro, englobando assim os lugares de Ponta, Fajã Grande, Caldeira e Mosteiro.

A hipótese de ter havido uma outra ermida antes desta é bastante improvável, pois sabe-se que antes da construção desta capela, era costume os fiéis da Fajã irem à missa à Fajãzinha e quando o não podiam fazer, impedidos de passar o torrentoso caudal da Ribeira Grande, ficavam no alto da Eira da Cuada, donde viam a igreja Fajãzinha e ouviam os sinos, durante toda a missa, como que se estivessem presentes em espírito no próprio templo. Ainda hoje existe nesse local um enorme calhau, conhecido como a “Pedra da Missa”, precisamente no local onde os fiéis se reuniam e rezavam. Por outro lado, o caminho que liga a Assomada à ladeira do Biscoito, sempre se chamou ”Caminho da Missa”, por nele transitarem os fiéis quando iam à missa à Fajazinha, por não a haver na Fajã. Acredita-se inclusivamente, que no regresso viriam carregados com pedras para a construção da sua futura ermida.

Assim a primeira capela ou ermida existente na Fajã Grande terá sido esta, naturalmente construída em pedra e coberta de colmo como eram as casas da Fajã, nessa altura. Nas Courelas existe uma casa velha, ao lado do antigo palheiro de António Joaquim, que tem inscrições religiosas, abreviadas e em latim, nas vergas de duas portas e a data de 1757. Acredita-se que estas vergas teriam pertencido às portas desta ermida. Numa das inscrições pode ler-se “INRI”, e que são as letras iniciais das seguintes palavras latinas “Iesus Nazarenus, Rex Iudeorum”, que quer dizer “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus” e na outra “IHS” símbolo de Jesus Cristo presente na hóstia consagrada. A terem pertencido à ermida, fica demonstrado que esta era inevitavelmente construída em pedra.

O primeiro padre nomeado como administrador desta ermida, sem no entanto ser pároco pois a Fajã Grande ainda não era paróquia, foi o padre Francisco de Freitas Henriques, natural da Fajã, filho do capitão Gaspar Henriques e sua mulher Francisca Rodrigues e irmão do capitão Freitas Henriques, que, mais tarde, se tornou uma espécie de “senhor feudal” da Fajã Grande. Crê-se que este casal e os próprios filhos viveriam numa casa apalaçada, que ainda hoje existe, do lado norte da igreja e que estaria inclusivamente ligada à ermida através de uma ponte.

Também é provável que a imagem de São José exposta aos fiéis na igreja da Fajã, até aos anos cinquenta do século passado, fosse a mesma que existiu nesta primitiva ermida. Essa imagem, bastante antiga e com notável interesse histórico, apesar de muito cobiçada por coleccionadores de arte religiosa, resistiu a todas as tentativas de retirá-la da Fajã e, ainda hoje se encontra guardada na sacristia da actual igreja. A outra imagem existente na capela primitiva era a de São Miguel Arcanjo. Porém, esta, nos anos cinquenta e anteriores, não estava exposta aos fiéis, mas sim escondida numas arrecadações que existiam atrás do altar-mor, a que se relacionavam alguns medos e temores, pois o arcanjo tinha na mão uma balança com que havia de pesar o bem e o mal dos que iam morrendo, condenando-os ou salvando-os. Esta mítica imagem inspirou o poeta fajãgrandense Pedro da Silveira a dedicar-lhe um poema. No entanto, nunca se percebeu a razão por que o São Miguel, assim como a Senhora da Soledade não estavam na igreja à veneração dos fiéis.

Sabe-se também que o primeiro enterro realizado na Fajã e no interior da ermida, como era costume na altura, se realizou um ano após a sua inauguração, sendo a primeira pessoa ali sepultada Isabel de Freitas, de 22 anos, casada com Gervásio Rodrigues, naturais e residentes no lugar da Ponta e que haviam casado na igreja da Fajãzinha em dez de Julho de 1752.

Ainda hoje por decifrar é o facto de se chamar ao local onde se construiu esta ermida e, mais tarde, a igreja actual, o “serrado do Lincate”. Não parece que “Lincate” fosse nome de um lugar, pelo que seria sim nome ou antes o apelido do dono do terreno onde se construiu a ermida, embora fosse mais lógico citar-se o seu nome completo de um benemérito do que o seu apelido. Daí que continue a ser um pormenor ainda hoje indecifrável.

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publicado por picodavigia2 às 22:53

CARTAS E PATAS

Sábado, 30.11.13

“Quem joga cartas não apostora patas.”

Este adágio inclui uma palavra da “gíria” fajãgrandense, uma vez que usa “apostora” em vez da forma verbal “pastoreia”. Com ele pretendia-se alertar, sobretudo as crianças, de que não se pode realizar com competência duas actividades diferentes ao mesmo tempo. Assim quem realiza um trabalho, para o fazer com perfeição deve dedicar-lhe toda a atenção e nele concentrar todas as suas forças. De realçar, para que a mensagem seja mais forte, a referência ao jogo das cartas, o qual para ser bem jogado requer muita atenção, sendo que o jogador dele não pode afastar a sua concentração. Daí que o jogar cartas seja incompatível com o pastorear as patas, actividade durante a qual quem a executa também não se pode distrair com o que quer que seja.

 

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publicado por picodavigia2 às 21:05

EDIFÍCIOS RELIGIOSOS AÇORIANOS NECESSITAM DE RESTAURO

Sábado, 30.11.13

Segundo o jornal Público e alguns meios de comunicação social açorianos, cerca de 50 edifícios religiosos, dos quais 29 são igrejas paroquiais e 21 ermidas, pertencentes à Diocese de Angra, registam problemas graves de manutenção, ao nível da sua estrutura construtiva, sendo que dez dos mesmos necessitam de uma intervenção profunda nos altares e retábulos.

Nos Açores ou, mais concretamente, na Diocese de Angra, existem 172 paróquias, muitas delas com curatos anexos, possuindo tanto aquelas como estes, a sua própria igreja, num total de 217 edifícios. Por sua vez, em todas as paróquias existem pequenas ermidas, num total de 290, a que se acrescentam 32 conventos e 10 capelas, perfazendo o total de 549 imóveis religiosos inventariados, embora a Diocese, pelos vistos e actualmente, só disponha de informação sistematizada sobre 58 igrejas e 30 ermidas. Deste registo não constam, obviamente as centenas de capelas do Espírito Santo que, por pertencerem a cada Irmandade, não fazem parte do património diocesano.

Em Abril do ano em curso foi iniciado um levantamento da situação em que se encontram estes imóveis, inserido no programa nacional de actualização da base de dados sobre o património móvel e imóvel da Igreja Católica.

O Sistema de Informação para o Património Arquitectónico já inventariou 542 imóveis no arquipélago dos Açores, na sua maioria igrejas e capelas. Este levantamento do património arquitectónico religioso dos Açores, iniciado em Abril, segundo João Paulo Constância, membro da Comissão Diocesana dos Bens Culturais da Igreja “tem procurado completar o acervo que já estava sinalizado ou que se inventariou de novo, quer em termos de informação histórica quer em termos de informação fotográfica”.

A Comissão Diocesana dos Bens Culturais da Igreja pretende desenvolver todos os esforços necessários para inventariar, salvaguardar e valorizar todo o património diocesano e proceder à elaboração de futuros roteiros que sirvam de guias turísticos a quem visita o arquipélago.

Estes parecem ser os primeiros dados obtidos a partir dos inquéritos enviados às paróquias do arquipélago dos Açores pela Comissão Diocesana para os Bens Culturais da Igreja, cujo objectivo é avaliar, embora de de forma genérica o estado de conservação do património cultural das igrejas da Diocese de Angra e identificar casos com necessidade de intervenção urgente.

Recorde-se que no que respeita ao património móvel, também já devidamente inventariado, existem na diocese 185 esculturas, 28 pinturas, 110 peças de ourivesaria e 177 de paramentaria e têxteis a necessitarem de um rápido restauro. Há também nove arquivos e cinco bibliotecas, pertencentes à Diocese, cujos acervos necessitam de restauro, registando-se igualmente 21 igrejas sem condições para acondicionamento quer do arquivo quer de biblioteca. Impõe-se pois à Diocese e aos poderes políticos locais o oneroso desafio de se encontrarem soluções para resolver os problemas mais prementes e ajudar na concertação de posições que possam reunir os apoios necessários, quer a nível governamental quer do mecenato, para a recuperação deste valiosíssimo património. Recorde-se que muitos destes edifícios são classificados como “monumentos nacionais”.

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publicado por picodavigia2 às 20:20

SONHOS

Sábado, 30.11.13

Os sonhos não são eternos.

Desfazem-se com o esvaziar das marés,

Descolorizam-se com o por do sol,

Escurecem com o negrume das nuvens,

Rompem-se com o silêncio da noite

E,

Por vezes,

Até fenecem,

Com o travo amargo da solidão.

 

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publicado por picodavigia2 às 19:21

QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE - II

Sábado, 30.11.13

(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

Na praça os velhos olham quem vem

E lembram histórias de tempos passados.                        

 

            “D’ua vez em Fresno…”

            “No Chinatão de S. Francisco…”

 

Ti Antonho Cristove encosta-se à bengala

E conta casos das suas idas

Nas barcas-de-baleias que vinham à ilha.

 

Um passarouco passa

Planando

No céu.

 

O vento rodou para oeste.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 18:27

SERRA COMPADRE

Sábado, 30.11.13

Uma das mais habituais e simbólicas brincadeiras com que os adultos, muitas vezes e nos seus momentos de descanso, nos brindavam quando eram forçados a tomar conta de nós, inocentes criancinhas, ou simplesmente quando estavam connosco por estar, para nos apaziguar de birras e choradeiras, ou simplesmente para nos divertir, era o “Serra Compadre”. Tratava-se de uma divertimento muito simples e ingénuo mas ternurento e carinhoso e que consistia apenas no seguinte: o adulto sentado numa cadeira ou deitado de costas, sentava a criancinha no seu colo, pegava-lhe nos bracitos ou dava-lhe as mãos e balanceando o seu corpo em movimentos sincrónicos com a criança, declamava:

 

“Serra compadre, serra comadre,

Eu com uma serra e tu com uma agulha

Ganhamos dinheiro como uma faúlha.”

 

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publicado por picodavigia2 às 18:22

A CANADA DA LADEIRA DO CALHAU MIÚDO

Sábado, 30.11.13

A meio da ladeira do Calhau Miúdo, do lado direito de quem vinha da Ponta e subia na direcção da Tronqueira, existia uma canada que ligava aquela ladeira e o caminho que a integrava a alguns serrados do Porto e a outros da Cambada. Esta canada, que propriamente mais se poderia designar por vereda, apesar de este nome ser pouco usado na linguagem fajãgrandense nos anos cinquenta, no entanto, não era a única nem sequer a principal via de acesso quer às terras do Porto, quer às da Cambada. Um e outro destes lugares. onde se localizavam algumas das maiores e das melhores terras de cultivo da Fajã, tinham outras canadas e ambos possuíam o seu caminho ou acesso principal e acessível a carro de bois ou “corsão”, dado que muito era o que produziam e bastante estrume para lá era necessário acarretar. O caminho de acesso à Cambada iniciava-se frente à antiga casa do João do Porto, na altura barracão de arrumos e armazém da “Firma” das Lajes, precisamente ao lado da Eira, enquanto o principal acesso às terras do Porto se fazia por um outro caminho, um pouco mais a norte e que se situava no local onde actualmente se inicia o ramal da Ponta. Assim, pode concluir-se que a canada da ladeira do Calhau Miúdo era apenas uma via cujo objectivo era facilitar um acesso mais rápido àquelas terras, interdito a animais e destinado apenas a pessoas, nomeadamente, aos habitantes da Tronqueira que viam a distância entre aqueles locais encurtada, uma vez que para irem à Cambada ou ao Porto, não tinham necessariamente que fazer um longínquo, distante e cansativo giro pela Via d’Água.

Esta canada, no entanto, era muito especial porque na realidade, contrariando a maioria das canadas da Fajã, o seu piso não era ladeado por duas paredes, mas apenas por uma. Na realidade, ela havia sido construída como se de uma espécie de bancada, sendo como que encastoada nas paredes a sul, das terras por onde passava. No entanto, como as paredes a norte dos terrenos do outro lado, ou seja de algumas terras da Tronqueira e da Cambada, eram muito altas, a respectiva vereda parecia ter sido pregada ou colada nessas próprias paredes, como se fosse uma prancha. No entanto, a sua altura e o excessivo tamanho das pedras que formavam a borda exterior do seu piso e que seguravam os pedregulhos soltos no interior do mesmo, transformavam-na numa interessante e curiosa obra de engenharia arquitectónica. Daí poder-se-ia concluir da sua importância, em tempos idos, como via de acesso, talvez única, aos férteis campos do Porto e da Cambada.

A entrada da ladeira para a canada era feita através de uns degraus de pedra muito bem lapidados e encastoados. Depois seguia rectilínea sobre o primeiro serrado ainda pertencente ao lugar do Calhau Miúdo. A seguir atravessava uma outra terra já situada no Porto e finalmente ombreava com um outro serrado do Tomé, bifurcando-se aí, junto a um “maroiço” que pertencia ao meu pai e que encimava o serrado que ele possuía no Porto. Na direcção norte seguia, curta e desabrida, com destino a outras terras do Porto e para o sul, embora mais estreita e sinuosa, a dar acesso a alguns serrados da Cambada.

A canada da ladeira do Calhau Miúdo, como tantas outras e muitos caminhos antigos da Fajã, hoje atrofiados, desfeitos e bloqueados por pedregulhos, arvoredos e silvados, permanece como um mito emblemático de um saudosismo, aparentemente supérfluo, mas coerente e perene para os que por ali passaram tantas e tantas vezes, durante muitos anos, carregando cestos de milho ou de batatas, molhos de couves ou de milheiros ou simplesmente transportando uma cestinha de figos e uva apanhados num insignificante “maroiço” do Porto.

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publicado por picodavigia2 às 17:19

À PROCURA DE UM GUEIXO PERDIDO NO MATO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sábado, 30.11.13

Domingo, 30 de Junho de 1946

“Estou cansadíssimo. Ainda bem que hoje é domingo para eu descansar um bocado. Ontem, passei o dia inteiro a calcorrear os matos da Fajã, à procura do gueixo do meu compadre Joaquim. O meu compadre Joaquim tem uma relva no Queiroal, que fica muito longe do Cimo da Rocha, lá quase para o meio da ilha, já pertence ao concelho de Santa Cruz. Só para lá chegar foi o cabo dos trabalhos. Mas pior do que isso, foi a caminhada que tivemos que fazer, durante todo o dia, por outras relvas e pelo concelho até encontrar o maldito do gueixo. O meu compadre, naquela relva, apenas cria gado alfeiro, uma vez que, ficando tão distante e com caminhos tão maus para lá chegar, é impossível colocar e manter lá vacas leiteiras, obrigando-o a ir à ordenha todos os dias. Como só vai lá de vez em quando, a última vez que lá foi é que deu pela falta do gueixo. Não o encontrou na relva, procurou ali à volta, mas nada. Muito aflito, no dia seguinte, voltou à relva sozinho, vasculhou tudo à volta… mas nada. Ficou tristíssimo o meu compadre. Era um prejuízo muito grande, pois é um touro que já vale um bom dinheiro. Eu mais um grupo de homens aqui da Fajã oferecemo-nos, de imediato, para o ir ajudar a procurar o animal. Morto ou vivo, havíamos de encontrá-lo. Nós aqui, na Fajã Grande, somos assim. Sempre que alguém tem um problema grave, todos se oferecem para ajudar. Os nossos antepassados ensinaram-nos a ajudarmo-nos uns aos outros, sobretudo nos momentos de grande dificuldade.

E lá partimos. Éramos prá i uma dúzia de homens. Saímos de casa muito cedo, a noite estava escura como breu e os galos ainda não cantavam, por isso, quando amanheceu já estávamos para lá do Caldeirão da Ribeira das Casas. Daí a pouco estávamos a vasculhar o mato todo. Uns foram pelo Curral das Ovelhas até à Burrinha, Eu e os restantes fomos precisamente pelo Queiroal. Mas dispersámo-nos depressa, primeiro porque alguns eram monços novos e muito valentes e outros velhos e trôpegos como eu e, em segundo lugar, porque se fôssemos todos juntos procurávamos todos no mesmo sítio e isso pouco adiantava. Andámos toda a manhã a procurar por tudo o que era sítio, desde da Caldeirinha até à Água Branca, mas nada de encontrar o maldito. A nossa sorte foi que alguns, adivinhando o pior, levaram bolo, queijo e fruta que fomos repartindo uns com os outros e bebendo água fresquinha das nascentes. Voltamos a procurar por toda a santa tarde. Corremos o concelho inteiro como se fosse dia de fio, pois sabíamos que nas relvas que tem dono ele não estava. Só à noitinha, quando já tínhamos perdido as esperanças, o maldito apareceu, lá para os lados das Pontas Brancas, escondido nuns montes, por trás de uns cedros e de umas moitas de junça brava. Os que o encontraram começaram a gritar pelos outros e, com a ajuda dos cães, lá nos juntámos todos. Mas para o amarrar foi muito difícil. Criado no mato, o bezerro estava levado dos diabos, muito bravo e a arremeter contra todos. Foram uns monços mais triqueiros que lhe lançaram uma corda enlaçada pela cabeça e prenderam-no pelo pescoço. Mas foi difícil amarrá-lo e segurá-lo, por que ele é muito forte. Mas por fim, todos juntos lá o conseguimos parar e amansar. Depois meteram-lhe uma argola com uma corda no nariz, passaram-lhe a corda à cabeça e lá o trouxemos até ao Cimo da Rocha. Meu compadre achou que era melhor ele ficar ali amarrado durante a noite. Era muito perigoso o animal descer a Rocha de noite, ainda por cima, estava muito escuro. Hoje de manhã lá o foram buscar e meu compadre já o tem amarrado à manjedoura, no palheiro.

É um bonito gueixo! Meu compadre está muito contente, pois o animal anafado e gordo como está, com mais dois ou três meses a dar-lhe erva e maçarocas, há-de dar perto de um conto de reis.

Esqueci-me de dizer que a minha comadre Inácia prometeu um gueixo de massa sovada de cinco quilos, ao Senhor Santo Amaro e como o gueixo apareceu são e salvo vai cumprir a sua promessa, no dia da festa, em Janeiro, por isso, já hoje andava preocupada com a maneira como havia de guardar tantos ovos para a massa, sem eles se estragarem de tanto tempo guardados.”

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publicado por picodavigia2 às 17:06

A MATANÇA DO PORCO NO DOURO LITORAL

Sexta-feira, 29.11.13

O dia que Mariana mais adorava era o da matança do porco. Nesse dia nem ia à escola. A mãe preparava tudo com muita antecedência. A enorme salgadeira, os alguidares, os caldeirões e as panelas, tudo era muito bem limpo e lavado. Na véspera Mariana ajudava a descascar uma enorme quantidade de alhos, a arranjar os temperos e a preparar as toalhas branquinhas enquanto o pai aprontava o colmo para a chamusca.

Nesse dia, a casa não se enchia de gente como na desfolhada, mas a azáfama era muito diferente e mais divertida do que a da vindima. Não era costume vir nem os vizinhos nem os amigos, porque todos tinham que preparar as suas matanças nesses dias. Apenas vinham os tios, os primos e os avós. De manhã cedo, quando o dia ainda não clareara de todo, chegava o Senhor Joaquim, o matador que o pai contratava todos os anos e que trazia umas facas enormes. Juntamente com o pai e os tios agarravam o cevado, amarravam-lhe as pernas e punham-no em cima duma pequena mesa que se guardava de ano para ano. Mariana de longe, apreensiva e cheia de medo, tapava os ouvidos com ambas as mãos para não ouvir os gritos de aflição que o porco emitia ao ser apanhado. A mãe, de avental novo ao peito, aproximava um alguidar do pescoço do porco e enchia-o com o sangue que se esvaía a jorros do buraco que lhe havia feito a faca certeira do senhor Joaquim. De seguida dividia o sangue em duas partes: uma para coagular e fazer o sarrabulho para a ceia, enquanto juntava à outra metade umas gotas de vinagre e deitava-a num alguidar, para mais tarde a misturar aos bocadinhos da carne da barriga com que se haviam de encher as chouriças. Com a palha do colmo retirada do centeio e transformada em espécies de vassouras, a que ateavam fogo, os homens chamuscavam o porco de uma ponta à outra. De seguida com baldes de água e sabão azul o suíno era lavado e esfregado com pedras e ramos de carqueja até ficar totalmente branquinho e limpo que era um regalo. Depois pegavam-lhe e levavam-no em ombros para a loja de arrumos, onde era amarrado de pernas para o ar, aos tirantes que seguravam o soalho do piso superior. A mãe limpava-o todo com um pano de linho, preparado exclusivamente para este fim e que depois de lavado era novamente guardado para o ano seguinte. O matador, com um enorme facalhão, abria-o de cima para baixo e retirava-lhe o fígado, os bofes, o coração, as tripas e a bexiga. As tripas eram embrulhadas em panos, de maneira a não secarem, a fim de que mais tarde fossem muito bem lavadas no rio. O porco ficava aberto e com umas canas a esticar-lhe a barriga, a fim de que a carne arejasse. Por cima das patas o pai colocava-lhe o redanho como que a simular um manto. E assim ficava até ao dia seguinte, escorrendo em fio um líquido avermelhado e sujo, recolhido numa bacia que lhe era colocada debaixo da cabeça. A mãe já havia preparado e guisado os miúdos com pedacinhos de batata e, com o fígado, fizera umas deliciosas iscas de cebolada. É que o dia começara cedo e a fome apertava. De tarde Mariana acompanhava as tias que iam ao rio lavar as tripas muito bem lavadinhas enquanto a mãe ficava em casa a preparar o unto para fazer o pingue. À noite, todos voltavam a sentar-se à mesa onde as papas de sarrabulho ferviam no velho caldeirão de ferro e exalavam um cheirinho a noz moscada e a cominhos que enchia a casa e, juntamente com o fumo, saía pelos telhados e se propagava pela vizinhança. No dia seguinte voltava o senhor Joaquim com as suas facas para desmanchar o porco. Tirava o redanho para que a mãe o derretesse. Depois extraía a carne da barriga destinada aos rojões, da qual separava as aparas para as chouriças. De seguida, cortava-lhe a cabeça, preparava as orelheiras e dividia o corpo em duas partes, das quais tirava os coelhos. Era com estes que a mãe fazia os melhores salpicões. Depois cortava as pás, tirava as costelas e as tiras da barriga que seriam guardadas na enorme salgadeira. Finalmente cortava os presuntos, que eram colocados juntamente com os salpicões num molho feito de alho, sal, vinho e louro e onde permaneciam durante alguns dias, antes de irem para o fumeiro. De modo semelhante eram temperados os ingredientes com que mais tarde seriam feitas as chouriças. Seguiam-se dias e dias de fumeiro, com a queima de rama verde, para o tornar mais lento e demorado. Depois os presuntos eram passados por vinha-d’alhos e postos em sal. Mariana ajudava a mãe em todas estas tarefas e com ela partilhava uma enorme tristeza quando algum presunto, ou porque o tempo estivesse mais quente ou porque não tivesse curado bem, se estragava.

 

C.F. texto retirado do conto “Mariana” e elaborado com a colaboração da Srª Dona Augusta Ribeiro, auxiliar de acção educativa na E. B. 2/3 de Paredes

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publicado por picodavigia2 às 21:15

UM ATAQUE DE PIRATAS (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 29.11.13

Uma outra “estória” que meu avô contava era a de que há muitos anos, ali para os lados do Canto do Areal, por fora da Poça das Salemas, muito antes da Barca Bidarta ali se afundar, ancorou um navio muito grande e estranho. O povo percebeu logo que se tratava de um navio de piratas e ficou muito alarmado porque todos sabiam que eles queriam roubar e levar consigo tudo o que pudessem.

As pessoas começaram a fugir para o mato, levando o que podiam e deixando o resto para os piratas. Era sempre bom deixar alguma coisa de valor, batatas, milho, hortaliças, alguma cabra ou ovelha, ou alguns porquinhos, até porque não podiam levar consigo ou esconder tudo o que possuíam. As pessoas sabiam que se os piratas não ficassem satisfeitos com o que encontrassem, destruíam tudo, lançando fogo às casas, matando quem apanhassem pela frente.

O povo ainda mais se assustou quando ouviu o navio disparar, na direcção da rocha, tiros de canhão. Os malditos dos piratas tinham percebido que as pessoas fugiam para se esconderem e protegerem lá no alto e, por isso, começavam a atirar. As pessoas lá foram subindo a rocha, de maneira que não fossem vistas, escondendo-se nas furnas e nas abas das paredes, mas os piratas insistiram nos tiros e arriaram de bordo alguns botes conduzindo um grupo de piratas armados para terra, os quais desembarcaram mesmo junto à Poça das Salemas. Bem armados, entraram pelas casas, destruíram muitas e largaram fogo a outras, antes porém tiraram e roubaram tudo o que lhes interessava. E o povo, escondido, lá em cima, a ver destruído e saqueado tudo o que era seu e sem poder fazer nada. Meu avô contava que tinham entrado em todas as casas, a certificarem-se de que não havia ninguém e pilharam, à vontade, e levaram tudo o que as pessoas tinham deixado, ao fugirem para o mato. As pessoas, muito caladas e cheias de medo, espreitavam lá de longe por entre os ramos das árvores. As mães acalentavam os bebés ao colo para eles não chorarem. Os homens, furiosos, de não lhes poder resistir, rogavam pragas terríveis aos piratas, “diabos vos levem”,” “raios vos partam”,“bandidos”! “Um fogo vos abrase”! Só os cães é que não se calavam, ladravam como danados, rosnavam, latiam.

E ninguém tinha coragem de descer a rocha e aproximar-se das casas, ou de se expor à violência dos malditos piratas.

Depois de darem a volta ao povoado e de entrarem em todas as casas, os piratas voltaram ao navio e foram, buscar várias vasilhas e sacos. Voltaram a terra, juntaram muitos animais, sobretudo as galinhas dos currais e muito do que havia nos campos o milho dos estaleiros, as batatas, o feijão e as cebolas guardadas nas lojas e até foram aos moinhos roubar os sacos de farinha que lá estavam à espera que os donos os fossem buscar. Depois levaram tudo para o navio. Meu avô contava que não ficou uma única galinha viva.

As pessoas esperavam que à noitinha, o navio de piratas se fosse embora, a fim de poderem regressar às suas casas, pelo menos às que não tinham sido destruídas ou incendiadas. Mas isso não aconteceu. O navio ficou ali toda a noite, pois os piratas esperavam que as pessoas descessem, ao anoitecer, para durante a noite atacar de surpresa e matá-las. Por isso mesmo, só na tarde do dia seguinte, depois de o navio desaparecer no horizonte, por de trás do Monchique, as pessoas desceram à povoação. Primeiro soltaram os cães que desceram correndo, a ladrar, depois desceram os homens, e por fim os velhos e as mulheres com as crianças. E o povo começou, então, a trabalhar na reconstrução das suas casa e muitos tiveram que construir outras novas, pois muitas tinham sido incendiadas e totalmente destruídas.

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publicado por picodavigia2 às 17:16

A VISTA DO MIRADOURO DO PORTAL OU PEDAÇO DA NATUREZA DESABADO DO CÉU

Sexta-feira, 29.11.13

Fascinante, soberba, maravilhosa, encantadora, sublime, deslumbrante, espectacular! São poucos e muito limitados os adjectivos com que se pode descrever a vista que se observa do miradouro do Portal - um pedaço da natureza desabado do céu.

Este miradouro, um dos muitos existentes na ilha das Flores, situa-se lá bem no alto, no cimo da Rocha dos Bredos, ali mesmo logo a seguir aos Terreiros, no cruzamento da nova estrada do Mosteiro com a do interior da ilha e um pouco à frente da chamada Cruz da Caldeira, sobranceiro, portanto, à freguesia da Fajãzinha.

A paisagem que dali se pode observar é transcendentemente bela. O grande círculo das Fajãs rodeia-se a leste, embora de forma irregular, por uma alta e imponente rocha, ora fendida por penhascos e quedas de água ora revestida de um verde com tons diferenciados, a provocar calafrios ou ainda sustentada por inúmeros rochedos a abarrotar de um negrume basáltico. Uma rocha de magma basáltica, recheada de verdura e de água e que os séculos foram enrijecendo e transformando num verdadeiro e mítico oásis de beleza, num estranho monumento de imponência e graciosidade. A oeste o mar, azul e anilado, como que a fechar o círculo com os seus salpicos levantados pelo vento e com as suas ondas a desfazerem-se junto aos rochedos lávicos do baixio, a bafejar courelas, serrados, belgas e outeiros. Depois as casas branquinhas entrelaçadas com outras de pedra negra e os tradicionais palheiros também negros, de portadas abertas, espalhados no meio das relvas ou plantados em cima de “maroiços”, aparentemente atafulhados de silêncio, de abandono e de solidão. São as pequenas povoações da Fajã Grande, Fajãzinha, Ponta e Cuada, formando e constituindo os pequenos povoados por ali dispersos, separadas por ribeiras onde deslizam as águas caídas das encostas e por montes e outeiros revestidos do verde dos incensos, das faias, dos sanguinhos e dos paus-brancos ou por pequenos planaltos, onde proliferam os campos de erva, de mato ou serrados de milho, as courelas de couves e abóboras e as belgas de batata-doce.

Em primeiro plano e logo ali debaixo a Fajãzinha a balancear-se sobre veios e levadas, a evadir-se em água, em verde, em pequenez e sobretudo em silêncio, com as suas casas dispostas ao redor do Rossio, a formar uma espécie de rendilhado, onde se excede a sua monumental e vetusta igreja matriz. A Fajãzinha, um pequeno oásis de singeleza, um recanto de serenidade perene e um manancial de frescura esverdeada. A Ribeira Grande, mais além, encostada à ladeira do Biscoito e a servir de sopé ao enorme planalto onde se alojam as velhas e negras, mas agora recuperadas, casas da Cuada. Apesar de se aproximar do oceano, o seu caudal ainda corre veloz e galopante, ora se quedando e desaparecendo por entre pedregulhos e fráguas, ora formando pequenos lagos encastoados entre o verde das ravinas e o azulado da penedia. Além e junto à rocha, aparando a água que cai com veemência das cascatas de um sem número de grotas e ribeiras, o Poço da Alagoinha, um recanto de beleza inigualável e de sublimidade absoluta. As suas águas, calmas, serenas e tranquilas, reflectem o verde dos andurriais, o negro dos penhascos, o acastanhado dos troncos dos álamos e o colorido das flores da cana roca.

Entre a Rocha e o mar, num planalto encastoado ente a Fajã e a Fajãzinha, a Cuada, um recanto de sublimidade silenciosa e de beleza histórica, actualmente recuperada e modernizada, mantendo, contudo, o negro basáltico das paredes, as vielas calcetadas de pedra já gasta por homens e “corsões”, com a mítica Casa do Espírito Santo, lá ao fundo, no início do caminho que antigamente conduzia à Fajã. Ontem como hoje, a Cuada é aquele recanto de graciosidade e singeleza, aquele paraíso de mistério e sublimação, aquele pântano de simplicidade e mistificação.

Depois é a Fajã, ora entrincheirada, muito tímida e envergonhada entre o Pico da Vigia e o Outeiro, ora a despejar-se arrogante e sem pejo sobre uma enorme planície debruçada sobre o mar, a acalentar o rugido das ondas, os sussurros das montanhas e o soprar do vento norte. A Fajã é um manto verde, branco, amarelado, negro e multicolor a estender-se e a prolongar-se sobre o mar, deixando lá ao fundo, a descoberto, uma ponta negra e firme – o Monchique.

Finalmente a Ponta, aninhada debaixo da Caldeirinha, juntamente com a igreja da Senhora do Carmo, no sopé da rocha, a emanar um silêncio desértico e uma beleza mistificada. Por trás a rocha umas vezes terna e meiga, a proteger, a salvar, a ajudar, a alimentar, outras a atirar-se sem dó nem piedade sobre o povoado destruindo casas, pessoas e colheitas.

A encimar tudo isto um céu ora muito claro ora ofuscado por nevoeiros e caligens, mas a reflectir o azulado do oceano, a serenidade dos vales e planaltos, o verde adocicado dos montes, o sussurro transparente das ribeiras e a simplicidade contagiante das pessoas.

O miradouro do Portal! Uma paisagem de sonho, desenhada sobre uma imponente e desértica singularidade, edificada sobre uma estranha plataforma de magma verde e envolvida por um misterioso manto de silêncio!

 

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publicado por picodavigia2 às 14:29

ENSAIO

Sexta-feira, 29.11.13

No ensaio…

Há sempre

Alguém que desafina

Que se perde na pauta,

Ou não encontra um lá sustenido

Ou um fá bemol.

 

E o maestro,

Sábio,

Pachorrento

E dócil,

Corrige,

Repete,

Ensina

E afina.

 

E, por fim, chega a harmonia.

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publicado por picodavigia2 às 09:56

TRÊS OVINHOS

Sexta-feira, 29.11.13

Ele era o benjamim da família e o “Ai Jesus” da mãe. Quando nasceu já os irmãos mais velhos acarretavam molhos de incensos e de lenha da Cabaceira e as irmãs iam lavar roupa à Ribeiradas das Casas, sozinhas. Por isso mesmo, açambarcava, em regime de exclusividade, todos os desvelos e carinhos maternais e conjugava com a benevolência excessiva do pai uma fuga contínua e pertinaz a trabalhos, sacrifícios e canseiras. Como consequência, à robustez e corpulência físicas, o petiz aliava uma personalidade maleável, um temperamento acarinhado e uma desenvoltura fragilizada. Amigos e colegas de escola, apercebendo-se da débil e instável personalidade do garoto, cedo se apressaram a ripostar com gracejos às suas atitudes, a macerar com vitupérios as suas intervenções e a desfazer-lhe sonhos e desejos com graçolas e gozo.

Sufocado pelo excessivo proteccionismo maternal e atordoado pelas exprobrações e pelo burlesco a que os amigos o expunham, lá foi sonhando que um dia havia de mostrar e provar a todo o mundo de que também era de fibra rija como eles, tão capaz como os outros de subir a Rocha, de mergulhar da ponta do Cais, ou de trepar à mais alta árvore da Fajã para ir tirar os ovos dum ninho.

Mas pensou melhor. Subir a Rocha era perigoso e afinal nenhum da sua idade o fazia sozinho. Mergulhos na ponta do Cais, que tirassem o cavalinho da chuva que só os rapazes pouco antes de irem às sortes o faziam. Agora subir uma árvore para tirar os ovos de um ninho era tarefa comum e generalizada entre os da sua idade e por isso mesmo havia de conseguir. A mãe empalideceu quando lhe adivinhou o desejo primordial: “Que não senhor! Que nem pensasse tal coisa! Ovos, tinha ela muitos em casa, e grandes.” Mas o projecto já estava delineado e em curso na sua mente. Ele até já sabia que o ninho estava na terra do Espigão, no cimo de um pau-branco muito alto e esguio. Havia de subi-lo, havia de retirar de lá o ninho e até os da quarta classe iriam ficar com a boca aberta, ao ver os ovos. Ai se iam!

Um dia a mãe teve que ir à Ponta. O pai ceifava “feitos” no Pocestinho. O fedelho, vendo-se só, aproveitou e zarpou a caminho do Espigão. As pernas tremiam-lhe como varas verdes e vezes sem conta sentiu uma enorme vontade de voltar para casa. Mas uma voz interior mandava-o seguir em frente. Depressa chegou ao Espigão, saltou o portal e entrou na terra. Deu mais uns passos e aproximou-se da árvore. Um susto enorme dominou-o, desfazendo-lhe sonhos e bloqueando desejos. Afinal nada de grave! Era o pássaro que, ouvindo ruído ali próximo, escapulira do ninho. Se disparassem um tiro de espingarda não fugiria mais rápido. Mas pode ver, para espanto e gáudio seu, que era uma galinhola. A coragem redobrou, a força renasceu e restaurou-se-lhe uma enorme capacidade de subir a árvore e retirar os ovos, até porque ovos de galinhola não era qualquer um que os conseguia.

Abraçou-se à árvore, olhou para o alto e, confiante, iniciou a subida. Era longe, muito longe, lá bem no alto, nos últimos galhos já muito frágeis e maleáveis. As mãos ardiam-lhe e os pés pareciam-lhe fugir. Mas, de nó em nó, já ia a meio e agora era impossível regressar ao chão. Dentro em pouco, teria os ovos na mão. De repente estremeceu e quase se desprendeu das frágeis vergônteas: “E se o ninho não tivesse ovos? E se a galinhola ainda lá não os tivesse posto? Todo aquele esforço seria em vão.” Esqueceu a dúvida, desfez o susto e continuou a subir. E tanto se agarrou, tanto se prendeu, tanto se segurou e tanto subiu que lá chegou. Estava junto do ninho. E o ninho, para gáudio seu, tinha ovos, três ovinhos de galinhola.

A alegria da conquista, a satisfação do sucesso e o contentamento da vitória fizeram-lhe esquecer o perigo da descida. Agora sim! Sonhava que havia de mostrar a toda a gente aquele troféu conquistado com a sua força, com a sua coragem e com ele havia de provar aos da quarta, à Senhora Professora, à própria mãe e a todos que era tão corajoso, tão destemido, tão capaz de conseguir o que queria e de atingir o que desejava, como todos os da sua idade e até como muitos mais velhos do que ele.

Cheio de alegria, exasperando felicidade, regressou a casa, colocando os ovos nas palmas das mãos, gritando em alto e bom para que todos vissem e ouvissem:

- “Olhem! Olhem! Três ovinhos! Três ovinhos de galinhola!

E é verdade que perante toda a garotada da freguesia ganhou fama de forte, robusto e corajoso, recuperou o estatuto de valente, desenrascado e destemido mas não se livrou de conquistar e ficar para sempre com o indelével e estranho apelido de  o “Três Ovinhos”

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publicado por picodavigia2 às 09:36

O INCÊNDIO DA CUADA

Sexta-feira, 29.11.13

Glória era uma das filhas de José Maria de Sousa e Maria José Teodósio, naturais e residentes na Cuada e que casaram na igreja paroquial da Fajã Grande, no dia 8 de Julho de 1877. Quis o destino que Maria José falecesse muito nova e José Maria, passados alguns anos, voltasse a casar, doando os filhos que tivera do primeiro casamento a famílias da Fajã que os criaram e educaram, com excepção de Glória que continuou a viver na casa de seus pais, no pequenino e isolado lugar da Cuada, freguesia da Fajã Grande.

Com muito trabalho e não menos sacrifício, lutando contra a fome e contra a pobreza, vencendo obstáculos e suplantando limitações, conquistando a sua vida por si própria, Glória cresceu, tornou.se moçoila saudável e robusta. Mulher feita ainda jovem, casou com Francisco, recentemente regressado das Américas. Mas, assim como a de Glória, a vida de Francisco não tinha sido fácil. Tal como muitos outros rapazes da Fajã, encafuados entre trabalhos e misérias, debaixo daquelas rochas e penhascos, Francisco também sonhou com a América e, um dia, para lá decidiu partir. Escondeu-se, à noitinha, nas margens da Ribeira das Casas e de madrugada atirou-se à aventura, navegando num pequeno batel que o conduziria a bordo de uma Escuma americana, ancorada nas redondezas do Monchique, carregada de água, verduras, carne, marinheiros e mais dois clandestinos. A guarda do forte da Castelhana, apercebendo-se da fuga e do embuste, atirou a matar sobre o batel. Francisco, temendo ser alvejado ou preso e impedido de fugir, atirou-se ao mar, nadando na direcção da Escuma, por entre os tiros da guarda cada vez mais intensos e certeiros. Francisco escapou e, passados alguns meses, chegou à Califórnia, prometendo, no meio da sua aflição, um jantar em honra do Senhor Espírito Santo, do “Portal ao Risco”.

Mas a vida de Francisco na América não foi fácil, nem a sorte o bafejou, regressando, algum tempo depois à Fajã, pobre, triste e acabrunhado. Foi então que casou com Glória, fixando residência na Cuada e com ela trabalhou, cavou, lavrou, ceifou, adquiriu uma ou outra terra e morreu, ainda novo, deixando onze filhos órfãos, a promessa por pagar  e Glória viúva. Glória chorou-o com dor, lembrou-o com saudade mas decidiu que tinha que ser forte e que havia de ser ela sozinha a criar e educar os seus filhos.

Ainda mal o luto se havia levantado, o dos filhos, porque o seu, Glória havia de guardá-lo para sempre, e nova tragédia havia de acontecer. A casa onde moravam, situada no único largo existente na Cuada e onde o caminho que seguia da Fajã se bifurcava para a Eira da Cuada e para o Vale Fundo, possuía, na parte inferior, duas lojas. Uma delas estava destinada ao gado enquanto a outra servia para guardar, juntamente com as rudimentares alfaias agrícolas, a rama seca, destinada ao alimento dos bovinos no inverno. Uma das filhas, inadvertidamente, numa noite escura, deslocou-se à loja e acendeu um fósforo num sítio onde havia a rama seca e, de um momento para o outro, sem que ninguém se apercebesse ou pudesse fazer o que quer que fosse, o fogo propagou-se pela rama, pelas madeiras e pelos pobres recheios da casa, incendiando e queimando, em instantes, tudo o que ali existia, provocando um enorme alarido em toda a Cuada. Os vizinhos acorreram com baldes e latas de água, chegaram pessoas da Fajã para ajudar, mas já era tarde. A casa ficou totalmente destruída, assim como todo o seu recheio. Glória e os filhos ficaram apenas com a roupa que vestiam no momento.

Mas Glória não desistiu e voltou a arregaçar as mangas. De toda a ilha e da América chegaram roupas e ajuda. Reconstruíram a casa e reorganizaram a vida, embora aquele terrível incêndio deixasse, para sempre, marcas horrorosas e indeléveis na memória e na mente daquelas crianças, algumas das quais, mais tarde e já adultas, acabaram por ser vítimas de doenças mentais com agravados desgastes emocionais e com acentuados desequilíbrios da sua personalidade. Glória, porém, manteve-se sempre firme vigorosa, acompanhando-os, amparando-os e confortando-os nas doenças e tendo ainda que superar os vitupérios e as injúrias de algumas mentes maliciosas e ingénuas que insinuavam que o incêndio teria sido “castigo” do Senhor Espírito Santo porque a promessa do jantar não fora paga.

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publicado por picodavigia2 às 09:22

ARRAIAL NAS ILHAS

Sexta-feira, 29.11.13

Luzes trémulas

semeiam,

sobre a noite vacilante,

uma claridade frouxa,

mas comunicativa.

e serena.

 

No ar,

um perfume desusado

e, do coreto carcomido,

descem acordes

que agregam olhares

e amortizam emoções.

 

Gritos cruciantes

avolumam arrematações:

- bolos, massa sovada, suspiros, frutos da terra… e um galo. -

Promessas de primícias!

 

Lá ao fundo,

encastoada entre os recantos da igreja,

sobre tábua besuntada:

- copos, favas, bifanas… e guloseimas -

a tasca

onde se estuporam dissabores:

 - desejos (efémeros) saciados,

 - consolações (falsas) conseguidas!

 

A igreja é um deserto.

Os sinos,

uma montanha de silêncio.

E até os foguetes

que, de tarde,

anunciavam eflúvios e orações,

afrouxaram o seu estralejar!

 

Grupos de pessoas

trocam alvoroços!

Os velhos

jazem em recordações,

os novos

navegam em assombros.

E há um homem a cambalear,

sozinho,

por entre chacotas sufocados.

 

Em breve,

chegará a noite,

densa e vigorosa

- a noite de todos os silêncios -

sem luzes,

sem música,

sem arrematações

sem alvoroços

sem emoções,

sem petiscos,

sem guloseimas

sem nada.

Apenas o homem

continuará a cambalear,

sozinho…

simplesmente, sozinho.

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publicado por picodavigia2 às 00:04

PALAVRAS, DITOS E EXPRESSÕES UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (V)

Quinta-feira, 28.11.13

Aqui se transcrevem mais algumas palavras, ditos ou expressões utilizadas na Fajã na década de cinquenta, sendo a maioria citada apenas de memória.

 

Apoquentar – Inquietar.

Arreganhar a taxa – Rir por tudo e por nada, fazer pouco de outro.

Avantajar – Sacudir os cereais contra o vento para separar o grão da moinha.

Bispar – Observar meticulosamente.

Blica – Pénis.

Cambeiros - Maxilares

Cemenos – Mau.                             

Chança - Oportunidade

Clauseta – Armário

Dar à trela – Falar sem ser necessário.

De veras – A sério,

Desbragalado – Com as roupas desabotoadas ou abertas no peito.

Enxúndia – Gordura de galinha utilizada outrora nas candeias das cozinhas.

Escaleira – Escada com degraus de pedra de um caminho ou canada.

Estás bem amanhado – Estás metido em problemas graves.

Falsa – Sótão.

Gadanhos – Mãos.

Gaitada – Gargalhada.

Galhos – Cornos, chifres.

Gama – Pastilha elástica.

Guindar – Saltar paredes (especialmente as vacas).

Há um bom padaço – Há muito tempo.

Linheiro - Ninho

Macaquins – Desenhos animados.

Nam t’inchergas – Não te conheces, desconheces a tua maneira de ser.

Nesga – Pouco.

Nisca de gente – Criança ou pessoa insignificante.

Pana – Alguidar de plástico.

Paranhas – Teias de aranha.

Pavia – Pequeno molho de rama de milho ou de um cereal..

Peleijar – Discutir com zanga, ralhar com alguém.

Pinchar – Saltar, pular.

Psinchinho – Muito pequeno

Resminés – Pouco abundante. Quase igual.

Samarra – casaco.

Serrado – Grande terreno agrícola.

Tirante – Trave da casa, solta, onde geralmente se pendura alguma coisa.

Uma pisquinha – Pouco, quase nada

Vento encanado – Corrente de  ar.

Wei home – Olá.

Zangaliar – Não estar seguro ou bem fixo.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 20:15

TRABALHO DE MENINO

Quinta-feira, 28.11.13

“O trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco.”

Adágio muito conhecido, outrora, na Fajã Grande, a significar que devemos aceitar sempre todo e qualquer tipo de ajuda por mais pequeno ou insignificante que seja, porque mais cedo ou mais tarde dela havemos de precisar.

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publicado por picodavigia2 às 19:14

A LENDA DAS SETE CALDEIRAS DAS FLORES (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quinta-feira, 28.11.13

Domingo, 23 de Junho de 1946

Outra estória que a minha avó contava era esta sobre a maneira como se formaram as lindas lagoas que temos nesta nossa ilha das Flores. Contava ela que havia nesta ilha um homem que tinha um filho que se chamava João, um nome muito usado por aqui. O monço era muito sonhador, mas simples e bom, como era toda esta gente da ilha das Flores.

Ora um belo dia o pequeno caminhou para esses matos, sozinho, carregando duas bilhas de água às costas para dar de beber ao seu gado que tinha lá pra riba. O rapaz tinha ido buscar a água longe, lá prás bandas da Burrinha. Ia sozinho e a sonhar, com os pés na terra e a cabeça na Lua, como é natural na maioria dos rapazes da sua idade. Ao chegar ao mato encontrou, a certa altura, um buraco no caminho e disse em voz alta, para si mesmo:

 - Dizem que nas outras ilhas e em muitos lugares por esse mundo fora há lagoas e caldeiras muito bonitas. Porque será que aqui na minha ilha das Flores não as há? Pois eu vou mas é deitar esta água neste buraco pra fazer uma lagoa bem bonita.

Se bem o pensou melhor o fez e aproximou-se do buraco, pegou numa das bilhas de barro que trazia cheia de água e despejou-a no buraco que encontrara no chão. Com a facilidade com que tinha sonhado em fazer as lagoas, logo se formou a primeira caldeira. O monço deu pulos de contentamento e logo pensou: "Sempre que encontrar buracos no chão, vou fazer o mesmo!"

 Ali ao lado estava outro buraco, ainda mais fundo e o rapaz, com confiança, vazou-lhe dentro a outra bilha de água. Formou-se outra vez uma lagoa, muito funda mas também muito bonita. Cada vez mais animado com o que via o moço voltou atrás e foi de novo encher as bilhas. Levado pelo sonho, foi andando, andando, pela ilha, tendo encontrado mais cinco buracos, onde foi deitando a água das bilhas. Assim se foram formando todas as sete caldeiras da ilha das Flores: a Caldeira Funda das Lajes, a Caldeira Rasa, a Caldeira da Água Branca, a Comprida, a Funda, a da Lomba e a Seca, porque para esta o monço já estava muito cansado e sem forças para ir buscar mais água para deitar no último buraco que encontrou.

Assim nasceram as sete lagoas das Flores, todas elas muito diferentes, mas muito bonitas, de águas limpas e transparentes, como foi desejo daquele rapaz, chamado João, que as sonhou e as fez.

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publicado por picodavigia2 às 16:31

JOSÉ JACINTO BOTELHO

Quinta-feira, 28.11.13

António Moreno, pseudónimo de José Jacinto Botelho, nasceu em Ponta Garça, ilha de S. Miguel, a dois de Março de 1876 e faleceu nas Furnas, em Abril de 1946. Poeta e orador sacro, usou o pseudónimo literário, por que ficou conhecido, de António Moreno, e, raramente, o de Maria Angelina. Fez ocurso de Teologia no Seminário de Angra do Heroísmo e foi ordenado sacerdote em Braga, chegando a frequentar a Universidade Gregoriana, em Roma, não completando nenhum curso, por motivos de saúde, sobretudo primordialmente causados pelo afastamento da ilha. Amigo íntimo de Armando Cortes Rodrigues, António Moreno passou bastante à margem dos movimentos e escolas do seu tempo. Autor de uma obra dispersa por jornais e sem ambições literárias, foi porém reunida e estudada criteriosamente por Eduíno de Jesus, abrangendo os «livros» Ronda da Saudade, Sete Espadas, Urze do Monte, Ave Maria, Pai Nosso, cujos títulos já são significativos. A poesia de António Moreno, alheia a escolas e movimentos do seu tempo, ocupa-se, fundamentalmente, de temas religiosos, piedosos e mariânicos, em que o culto da saudade, da mãe como entidade protectora, o louvor da Virgem e a recordação da infância e das coisas simples do campo avultam. A preocupação «clássica» com o soneto e a presença insistente de dezenas de quadras ao gosto popular demonstram não só uma disciplina formal de seguimento da tradição e com os esquemas rimáticos, mas também o isolamento geográfico-cultural do vigário das Furnas. Uma linha de simplicidade e reacção religiosa fim de século, que se poderia ir buscar a António Nobre e, no meio micaelense, ao seu amigo Armando Cortes Rodrigues, vem transparecer no poeta furnense numa sensibilidade extremada e quase franciscana. A própria concepção cristã da vida, que lhe impunha a vida sacerdotal, e a sua tendência contemplativa e triste confluem em versos nos quais correm o sentimento da vida breve, da vida como «vale de lágrimas» e das «visões» do passado, as doces recordações da infância quando confrontadas pungentemente com a dureza presente. O conjunto de poemas reunidos sob o título Sete Espadas, apesar do seu caracter descritivo e prosaico relativo à Paixão de Cristo e aos sofrimentos da Virgem, consegue atingir um alto grau de exaltação religiosa e constitui um poema mariânico com certa unidade estrutural. Ao poeta, crítico e professor, Eduíno de Jesus, que se deve um fundamental estudo crítico e de recolha e ordenação da poesia de António Moreno.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 15:43

O CULTO DOS MORTOS

Quinta-feira, 28.11.13

Assim como a religião, também o culto dos mortos teve e continua a ter um lugar de relevo em todas as civilizações e é, talvez, um dos fenómenos mais estranhos, interessantes e diversificados da História da humanidade. Uma reflexão e um estudo profundo da evolução do pensamento e dos costumes das várias civilizações ao longo dos séculos, desde as épocas mais remotas até aos nossos dias, permite-nos conhecer as ideias, os sentimentos, as emoções, os rituais e as celebrações do homem sobre o mistério da sua própria morte.

Acredita-se que o culto dos mortos tenha sido anterior ao da adoração da divindade, talvez mesmo tenha sido o primeiro que originou o segundo, isto é, foi o homem que celebrando a memória dos seus mortos, pela primeira vez, teve a ideia ou o sentimento do sobrenatural e do divino, acreditando em algo que transcendesse a própria morte.

As civilizações indo-europeias, ainda antes do aparecimento dos primeiros filósofos, na cidade de Mileto, na Ásia Menor, foram pioneiras da crença na existência duma outra vida para além da vida terrena, considerando que a morte não consistia na decomposição do ser humano, mas sim na sua transformação para uma outra vida, convicções que muitas outras religiões, entre as quais o cristianismo, consagraram nos seus ensinamentos, através dos tempos

Também os gregos e os romanos acreditavam numa segunda existência humana, mas cuidando que a alma iria passar essa segunda vida na terra, junto dos vivos, mas num lugar diferente, chamado Inferno. Exemplo claro disto é a visita de Ulisses, na sua viagem de regresso após a guerra Tróia, aos Infernos, onde vai encontrar a mãe e outras pessoas que já haviam falecido, mas com quem ele fala e convive. Os gregos, no entanto, acreditavam que nesta segunda existência, a alma continuava unida ao corpo, pois este não se desfazia por completo, apenas se transformava, após a morte. Todas estas crenças originaram necessariamente ritos fúnebres muito diversificados, os quais, de alguma forma também mostram claramente que os povos que os celebravam, acreditavam que o falecido sobrevivesse depois da morte, e, por isso, enterravam junto com o morto, roupas, vasos, armas, vinho, comida, até mesmo sacrificavam escravos e cavalos para servi-lo na sepultura, como o haviam feito durante sua vida terrena. Inclusivamente os gregos tapavam os olhos dos mortos com duas moedas com que pagariam ao barqueiro a viagem que fariam entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

De todas estas crenças dos gregos e de outros povos primitivos surgiu a necessidade de sepultar os mortos, pois acreditavam que a alma sem uma sepultura tornava-se perversa, aparecia aos vivos, atormentava-os e provocava-lhe doenças. Mas não bastava apenas enterrar o corpo, era necessário obedecer alguns ritos e realizar cerimónias fúnebres, evocando as almas e fazendo-as até sair, por alguns instantes, do sepulcro. A cerimónia dos mortos, na Grécia Antiga, era uma espécie de comemoração em que as famílias colocavam alimentos sobre o túmulo do seu morto, pronunciavam fórmulas que o convidavam a comer e ninguém podia tocar nestas oferendas pois eram destinadas explicitamente às necessidades do morto.

Como os mortos eram considerados criaturas sagradas, muitos povos antigos veneravam-nos como se fossem deuses e, por isso, diante da sepultura construíam um altar para sacrifícios semelhantes aos que existiam nos templos para oferecer sacrifícios aos deuses.

Os povos da Índia, também homenageavam os seus mortos, fazendo-lhe oferendas, rituais e celebrações diversas em sua memória e, assim como na Grécia, também ofereciam à alma dos mortos alimentos e tratavam-nos como seres divinos, a fim de que as suas almas não fossem atormentadas. Os egípcios também acreditavam na vida para além da morte, mas para permitir o acesso e a continuação nessa vida, era necessário que o corpo estivesse preservado, por isso os embalsamavam os seus mortos e construíam túmulos monumentais, chamados pirâmides, mastabas e hipogeus, onde também colocavam roupas, jóias, cosméticos e móveis para que o defunto utilizasse na sua nova habitação.

Outros povos da antiguidade possuíam crenças estranhas. É o caso dos cultos masdeístas, para quem a terra é sagrada e, por isso, os mortos não podiam ser enterrados por que eram considerados impuro, sendo os cadáveres colocados em torres e em outros lugares altos a fim de serem devorados pelas aves de rapina.

 Muitas destas crenças foram adoptadas, depois de sobrenaturalizadas, pelo cristianismo, e perduraram ao longo da Idade Média, sendo que, algumas delas, se mantiveram até aos nossos dias.

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publicado por picodavigia2 às 13:56

O CULTIVO DO TRIGO NA FAJÃ GRANDE

Quinta-feira, 28.11.13

Nos anos cinquenta já eram poucos os agricultores que cultivavam trigo na Fajã Grande, fazendo-o apenas numa ou outra terra, lá para as bandas do Areal, onde os terrenos eram mais arenosos, mais pobres, mais vulneráveis à salmoura e, consequentemente, menos rentáveis para as outras culturas. Em tempos idos, no entanto, não teria sido assim. Na, realidade, no         séc XIX e no primeiro quartel do séc XX, o trigo era rei e senhor na Fajã Grande. Diziam os antigos que no Verão, era bonito de se ver a maioria dos campos da beira-mar vestidos de um amarelo doirado, com caules de trigo a abarrotar de espigas louras, entrecortados, apenas, por um ou outro serrado de milho, ornado, paradoxalmente, com o verde fresco e esperançoso dos folhedos e o branco adocicado das espigas e com algumas courelas atulhados de couves ou de batata-doce, também muito verdes e espevitadas.  

A existência, nos anos cinquenta, na freguesia, de um bom número de eiras era a prova provada do domínio adquirido por aquele cereal durante as décadas anteriores. Acredita-se que o trigo tenha sido o principal cereal que os primeiros povoadores trouxeram para a ilha das Flores e mais concretamente para a Fajã Grande, embora cultivado apenas nos terrenos mais próximos do mar, mais concretamente, nas Furnas, no Areal, no Porto, no Estaleiro e até na Cambada.

O cultivo do trigo era bastante diferente do cultivo do milho e até mais fácil e menos trabalhoso. Depois de preparado o terreno e semeado, o trigo não necessitava de tantos cuidados e trabalhos como o milho e a única razão que terá originado a que, mais tarde, a cultura do milho se sobrepusesse e acabasse por reduzir quase a zero a do trigo foi, muito provavelmente, a de uma melhor adaptação daquele cereal aos terrenos da Fajã, o que acarretava obviamente uma maior e mais rentável produtividade. Além disso, os trabalhos posteriores ao cultivo, no caso do trigo eram bem mais trabalhosos e difíceis do que os do milho. O trigo, uma vez amadurecido, era ceifado e emolhado em grandes “pavias”, amarradas com fios de espadana e colocadas durante alguns dias, junto às paredes dos serrados, a fim de enxugarem e secarem melhor. Depois, as “pavias” eram transportadas para as eiras em carros de bois, se fosse muito, ou às costas dos homens e à cabeça das mulheres, se a produção fosse menor. Nas eiras procedia-se à debulha. O trigo era espalhado no chão da eira, ao redor do malhão, â volta do qual rodava a grade de madeira, puxada geralmente por uma junta de vacas, com os olhos tapados, a fim de que de tanto andar à roda não caíssem de tontas. Antes de iniciar a debulha, as mulheres escolhiam as melhores palhinhas para delas fazerem chapéus e cestinhas. Para que a grade ficasse mais pesada e debulhasse melhor e mais rapidamente o trigo, colocava-se-lhe em cima calhaus, crianças, o condutor do gado e um auxiliar, que devia estar sempre muito atento e que transportava uma vasilha adequada, com o qual tentava “apanhar” os excrementos e a urina do gado. Se o não conseguisse fazer, havia que parar de imediato a debulha, a fim de se retirar o trigo sobre o qual, inadvertidamente, caíra a bosta ou a urina. Terminada a debulha e retirados os animais e a grade, era junta a palha, guardando-se a mais desfeita para encher colchões e travesseiras. Depois, o trigo era “avantajado”, isto é, colocado na joeira ou crivo e joeirado, ou seja sacudido contra o vento, de forma a que os grãos se separassem da moinha, operação que se repetia tantas vezes quantas fossem necessárias para que o trigo ficasse totalmente limpo. O trigo, finalmente, era guardado em sacos até ser moído e a moinha era recolhida e guardada para alimento das galinhas. Apesar de ser um dia de muito trabalho, o dia da debulha era um dia de festa, de alegria, de cantorias, de refeições melhoradas e de ajuda recíproca, como geralmente eram os dias de mais intensa e prolongada actividade agrícola.

Nos anos cinquenta, porque rara, a farinha de trigo era utilizada para cozer o pão de trigo apenas nas vésperas das festas, nomeadamente na do Espírito Santo e da Senhora da Saúdes e nos dias de matança do porco. Era também com a farinha deste trigo caseiro que, obrigatoriamente, se faziam as hóstias para a celebração das missas nas igrejas da Fajã e da Ponta. 

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publicado por picodavigia2 às 13:51

O JOÃO DE FREITAS

Quinta-feira, 28.11.13

Por toda a vizinhança e, sobretudo, na minha própria casa correu célere a notícia de que a “Velha do Corvo” tinha vindo visitar a senhora Marquinhas do Rosário, trazendo-lhe outro um menino. Entrei em êxtase. Mais um menino ali, nos arredores, a juntar-se a um já por demais reduzido grupo de ganapada, onde pontificavam eu e o Jaime e, por isso mesmo, cismei de que havia de ir ver o “menino”. A minha mãe já tinha falecido e foi minha irmã que, consciente de que os vizinhos deviam disponibilizar-se e oferecer préstimos uns aos outros nestas alturas, decidiu por fazer-me a vontade. Além disso ela lembrava-se e sabia muito bem que a vizinha do Rosário era uma boa vizinha, muito prestável e amiga e que viera sempre a nossa casa dar uma demão à minha mãe, em situações semelhantes. E lá fomos os dois visitar a nossa vizinha: minha irmã com ar de quem queria disponibilizar ajuda e manifestar reconhecimento, eu com a curiosidade de ver, pela primeira vez, uma criancinha acabada de nascer e com a inequívoca dúvida se havia ou não de “enterrar” definitivamente a mítica “Velha do Corvo”.

Mas pouco vi e muito menos descobri ou concluí. O menino dormia e quando acordava era apenas para chorar e para comer e, além do mais, na altura em que ele mamava eu não podia estar presente. Soube apenas que havia de chamar-se João.

O João cresceu e veio fortalecer o precário pecúlio infantil da Assomada, cada vez mais cerceado pelos que, Carvalho após Carvalho, se iam evadindo para a América ou para o Canadá. As vizinhas diziam que era lindo e que à beleza física se aliava uma extraordinária bondade, uma grandiosa ternura e uma profunda meiguice. Enquanto crianças, pouco brincámos, no maroiço que separava a terra de meu pai da canada do Pico e que já fora o local institucionalizado para folguedos e brincadeiras com o José Gabriel, devido à diferença de idades e porque cedo abandonei a ilha, a Fajã e a Assomada. No entanto, mais tarde, ele havia de seguir-me as pegadas, sendo então e somente nas férias que nos encontrávamos, já não tanto para brincar mas para conversar, reflectir e passear. Desses encontros de verão ficou-me a imagem de um jovem extremamente generoso, muito comedido nas suas ideias, excessivamente responsável pelas suas acções e com uma enorme cultura e defesa de valores morais. Além disso era um excelente aluno, um bom conversador e um óptimo colega.

Quis o destino que, anos mais tarde, seguíssemos caminhos diferentes e não mais nos encontrássemos, Soube, apenas, que casara com a Conceição, que fixara residência em Santa Cruz e que trabalhava no aeroporto das Flores. Soube também que era um pai extremoso e um excelente marido, construindo por si próprio com os seus hábitos, costumes e atitudes, todas as condições necessárias e suficientes para ser feliz, como o era de verdade.

Um dia chegou-me a triste notícia de que o João partira. Partira muito novo, partira repentinamente e partira para sempre, deixando atrás de si, sobretudo para os que conviveram de perto com ele, misturado com uma dor inexaurível, um perene e inextinguível rastro de saudade.

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publicado por picodavigia2 às 12:25

LAILA-DARK

Quinta-feira, 28.11.13

Em frente o cais a abarrotar de pessoas, de carros, de movimentos, de luz e de cores.

O cais, ponto de partida e de chegada.

Para a partida fervilham pequenas embarcações à espera dos que sonham com a aventura de observar baleias ou de golfinhos.

Para a partida carregam-se malas, trocam-se abraços, evadem-se emoções.

Mas já não há homens de albarcas, chapéus de palha e calças de cotim a soltar as amarras perdidas e desgastadas pelo tempo, nem mulheres de avental de chita e lenço de merino, com cestas de fruta à cabeça.

Na chegada arrastam-se sobre o pedregulho dezenas de barcos que durante a noite se embalaram, ao sabor das ondas, na pesca das abróteas, das garoupas e dos bocas-negras, ou as traineiras que perseguiram pesqueiros mais distantes na busca de bonitos e albacoras.

Mas já não há homens a gritar: “Eh, charro fresco”.

Na chegada também se esperam pessoas e coisas vindas do Faial e quiçá de outras paragens.

Ainda manhã e o cais da Madalena, ali mesmo em frente ao Laila-Dark, a abarrotar de homens, de mulheres e de crianças com raças, nacionalidades diferentes. Uns à espera de partir, outros na ânsia de chegar e alguns apenas a observar aquele amanhecer de partidas e de chegadas, sublime, claro, divinal e bonançoso.

Lá ao fundo o Faial a espreguiçar-se sobre os primeiros raios de luz emanados lá do longe, da ponta dos Rosais.

Atrás a enorme e altíssima montanha do Pico, ravinada de lava, aspergida com salpicos de nuvens e envolvida por um clarão de imponência e singularidade.

No meio, e a separar por momentos, as duas ilhas, o mar, azul, coroado com ondas de sonho e respingos de fascinação.

E lá dentro, do Laila-Dark, sentado numa mesa do café, é possível ver o mundo, no pequeno ecrã de um computador

Como é tão igual e tão diferente este Pico de hoje e o Pico de ontem.

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publicado por picodavigia2 às 09:05

BOA LAVADEIRA

Quinta-feira, 28.11.13

“A boa lavadeira, na ponta do pé lava.”

 

Adágio fajãgrandense, ainda muito utilizado nos anos cinquenta e seguintes, com um duplo significado. Por um lado, era dito de uma para outra mulher, e usado para “elogiar” a qualidade do seu trabalho de lavadeira. Por outro lado, com ele também se pretendia transmitir a ideia de que quem sabe de um ofício executa-o sempre com muita facilidade e perícia.

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publicado por picodavigia2 às 08:55

O MONCHIQUE

Quinta-feira, 28.11.13

Dos inúmeros e variados ilhéus que se situam ao longo de toda a costa da ilha das Flores, o mais emblemático, o mais mítico e o mais exuberantemente simbólico é o Ilhéu de Monchique, uma enorme e altíssima torre basáltica, encravada no meio do oceano, situado a cerca de cinco milhas da Ponta dos Pargos, na Fajã Grande. O interesse, a importância e o significado deste fragmento de lava adormecido no meio do Atlântico, advêm do facto de ele ser o "pedaço de terra" mais ocidental de Portugal e da Europa, servindo, assim, em tempos idos, de marco e de referência a todas as embarcações oriundas, quer das Américas, quer da Europa e da África, tendo também a função de ser um ponto de referência para acertar as rotas e verificar os instrumentos de navegação.

O Monchique, atulhado de cracas, sargaços, algas, lapas e búzios, é um enorme rochedo de sólido basalto, provável resíduo de um cone litoral desmantelado pela erosão marinha. Apresenta uma forma irregular, o que confere aos seus fundos circundantes uma espécie de microrrelevo acentuado. São também essas formas irregulares que, em parte, permitem que seja visto com formas diversas, quando observado de longe e de lugares diferentes, como da Fajã, do Albarnaz, do Corvo ou até do alto da Rocha.

O Monchique também se revela de grande interesse para os biólogos, para os estudiosos da fauna marítima e para os mergulhadores submarinos, uma vez que são numerosas as cavidades submarinas nas suas encostas e no seu sopé e, além disso, está no centro de uma região de grande diversidade biológica, com cerca de uma centena de espécies marinhas identificadas, ao seu redor. Mas a razão principal do seu interesse e importância, advêm-lhe do facto de, na realidade, ele ser o ponto mais ocidental da Europa e disso se orgulha o concelho das Lajes e suas gentes.

Interesse e significado tem também o Monchique por ser uma espécie de ex-libris da Fajã Grande, por fazer parte da sua história, da sua cultura, dos seus costumes e até dos seus ditos ou falares. Na verdade, consta que alguns dos nossos avós, em tempos muito remotos, dançaram a chamarrita em cima do Monchique, que outrora se realizavam excursões e passeios do Porto da Fajã exclusivamente para o Monchique, a fim de os visitantes poderem observar e ver de perto as suas rochas e encostas, as suas veredas e as espécies marinhas que o revestem e circundam. Entre estas viagens, algumas destinavam-se exclusivamente à apanha de lapas, que as havia por lá grandes e boas, ou até de cracas, embora estas fossem de mais difícil captação e menos rendosas a comer. Muito usada na Fajã Grande era a expressão “por trás das raízes do Monchique”, a significar que algo era muito difícil ou até impossível de ter acesso, ou ainda esta outra “Quem te dera debaixo das raízes do Monchique” a indicar que se não gostava ou não se queria ver alguém.

Para a ganapada miúda de outrora o Monchique entrava em muitas das brincadeiras, pois sempre que se divertiam com barcos de madeira ou de papel, em qualquer pequeno lago, poço ou celha cheia de água, lá estava sempre no meio, uma pedra negra, de plantão, a representar e simbolizar o Monchique. Outras vezes faziam-se apostas, quando um barco surgia no horizonte, a ver quem adivinhava se ele passaria por dentro ou por fora do Monchique.

Monchique, um monumento de lava que natureza caprichou em ali colocar, um marco milenário entre continentes e oceanos, um património que sempre pertenceu à Fajã Grande, uma torre de pedra negra verdadeiramente plantada no fim da Europa e a indicar o início do caminho para a América.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:16

AÇORES DE BRUMA

Quarta-feira, 27.11.13

Vistas lá bem do alto, as ilhas açorianas parecem pedaços de um continente desfeito, mas a abarrotar de cheiro a basalto negro e perfume a madressilva, migalhas sobrantes de um ciclone aniquilado pelo silêncio desesperante das madrugadas cinzentas, pegadas verdes de um gigante lávico a chafurdar num oceano atulhado de brumas e gaivotas, cacos perdidos, aqui e acolá, de um enorme jarrão quebrado, mas colorido e a transbordar de sonhos, de saudade e de um medonho sentimento de cumplicidade recíproca.

Mas as ilhas, apesar de possuírem uma diversidade inexaurível e uma beleza ímpar, excedem-se numa singularidade específica e numa especificidade singular. É que todas são feitas de lava adormecida, todas permanecem embrulhadas numa adocicada e atraente maresia, todas escolheram o verde como estandarte da sua pureza original e todas decidiram, desde os tempos primitivos, ornar-se de brumas e caligens e assim permanecerem até hoje. Todas teimaram em dançar a Chamarrita e cantar o Samacaio e todas, mas mesmo todas, inventaram a sublimidade inequívoca da saudade e o desejo destemido da aventura. Todas construíram casas de basalto negro e todas edificaram moinhos nas suas ribeiras ou no cimo dos seus montes, todas malharam o trigo em eiras e mediram o milho com rasoiras. Todas edificaram maroiços, construíram portos e varadouros, encheram os seus matos de hortênsias floridas, plantaram maravilhosas lagoas no seu interior e transformaram as madeiras das suas florestas nos mais belos botes de baleia. Todas acreditaram, tanto ontem como hoje na grandeza profunda do oceano imenso que as rodeia, todas se atiraram e agarraram ao mar como se ele fosse só seu e todas entenderam e sempre souberam que foi do seio da terra que nasceram e todas se cobriram de espuma e de respingos de maresia e nenhuma se esqueceu nunca que foi o mar que as embalou e que é dele que se recolhem as esperanças e se desbrava a aventura e que é na terra que se plantam os destinos, da terra que se recolhem as flores e os cardos.

Mas se iguais, também todas são diferentes. Umas açambarcaram e escolheram para si as maiores e mais belas cidades, enquanto outras se satisfizeram com a pequenez e simplicidade de uma vila ou meia dúzia de povoadas. Umas construíram estradas de sonho, ornadas de jasmins e safiras, outras rasgaram campos construindo canadas de abrunhos e silvados, atrofiadas e desfeitas pelo tempo. Umas pavonearam-se altivas e sonhadoras, outras reduziram-se ao perene silêncio das manhãs enevoadas. Umas povoaram-se de projectos imponentes e megalómanos, outras reduziram-se à simplicidade da sua pureza original. Umas adocicaram o sabor transcendente dos seus frutos, enquanto outras azedaram com o salpico do mar e transformaram em mosto o perfume adocicado das suas flores. Umas afinaram as suas violas e guitarras pelo canto madrugador dos pássaros, outras apenas e somente enriqueceram o seu simples cantar com o silêncio estupefaciente dos seus morros e penhascos, mas todas são e continuarão a ser sempre “as ilhas de bruma onde até as gaivotas vem beijar o chão”.  

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publicado por picodavigia2 às 22:49

A RUA DA VIA D'ÁGUA

Quarta-feira, 27.11.13

A Rua da Via d’Água, também designada simplesmente por Via d’Água como se de um lugar se tratasse, tinha o seu início à boca da Tronqueira e, aparentemente, constituía uma espécie de prolongamento ou continuação da Rua Direita, situando-se entre esta e o Porto. O seu trajecto, logo a seguir à casa de J oão Lourenço, iniciava.se com uma íngreme e bem inclinada ladeira, a única existente nas ruas da freguesia, com excepção dos dois aclives que constituíam a parte mais alta da Fontinha e de um pequeno e raso enladeirado que era o Cimo da Assomada. Esta ladeira, em frente à casa do António Maria, era bastante utilizada pela criançada da freguesia para o lançamento dos toscos triciclos, das desengonçadas e bicicletas e outros desajeitados veículos, construídos de madeira geralmente pelo próprio utilizador, muitos dos quais se desfaziam parcialmente durante as corridas deslizantes ou por defeito e deficiência de fabrico ou por aselhice dos condutores embatendo forte e desalmadamente nos muros dos pátios circundantes, provocando muitos “mamulos” na testa e inúmeros arranhões pelo corpo, chegando mesmo a abrir uma ou outra cabeça. Depois da ladeira a rua seguia até uma enorme curva frente à casa do José Furtado, provocada pela casa do Senhor Arnaldo, que emergia exageradamente de todas as outras e que foi demolida, mais tarde, aquando da construção da estrada entre o Porto da Fajã e a Ribeira Grande. A seguir a esta curva iniciava-se uma nova recta, a maior e a mais plana da Via d’Água. Era nela que, entre outras, se situava, à esquerda de quem descia, a casa do Chileno, o maior, o mais alto e a mais emblemático edifício da Fajã, depois da igreja, uma espécie de ex-libris da freguesia. Nova curva se seguia em frente à casa da Mariana Felizarda, cujo pátio, assim como muitos outros, foi destruído, aquando da construção da estrada, a fim de que a rua se tornasse mais larga e acessível a automóveis e camionetas. Depois a Via d’Água terminava com uma nova recta que se estendia até ao Matadouro onde se situavam apenas duas casas: do lado direito a de Ti Malvina e, do esquerdo, uma outra que pertencera a Ti Narciso, mas à altura, desabitada.

Como as restantes ruas da freguesia, a Via d’Água também possuía alguns becos ou vielas transversais. Do lado direito de quem descia, logo a seguir à casa de José Padre, ficava uma estreita mas longa canada que dava para casa da senhora Xavier e que mais tarde, por doação daquela senhora, pertenceu ao senhor Arnaldo, o faroleiro da freguesia. Lá no fundo, a seguir à casa da Mariana Felizarda uma outra canada, mais larga e curta do que a anterior e que dava para as casas do Cardosinho, do Cristóvão e para alguns palheiros e casas velhas. Do lado esquerdo, apenas uma transversal também pequena, onde se situavam a casa da Genoveva e um ou outro palheiro de gado. Para além de vinte casas de habitação a Via d’Água ainda possuía algumas casas velhas, um ou outro palheiro e dois chafarizes: um muito antigo e com estrutura semelhante ao da Fonte Velha, na Fontinha e um outro bem mais moderno. O primeiro situava-se na curva, em frente à casa do Arnaldo e o segundo, bastante mais abaixo, junto à casa do Serpa da Ponta, junto ao qual também havia um enorme poço para o gado beber,

A rua da Via d’Água, uma das maiores da freguesia, era muito movimentada, pois dava acesso às terras do Porto e do Estaleiro e constituía como que circuito obrigatório e mais curto para quem se quisesse deslocar para junto do mar, ou seja para o Cais e para o Porto Velho, para pescar, para nadar, para embarcar para as Lajes, para a Vila ou para Ponta Delgada ou simplesmente para dar um belo passeio até ao farol.

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publicado por picodavigia2 às 15:35

QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE - I

Quarta-feira, 27.11.13

Em frente,

Mar.

Para trás

rochas a pique

Vedam todos os caminhos.

 

Vem o Inverno

Vem o Verão.

 

Na loja vazia o dono boceja.

A grapuada joga ao pião.

Um carro de bois chia.

 

E é tudo tão igual,

Tão encharcado de solidão

Que a gente às vezes já nem sabe

se vive.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 14:39

A LENDA DO PÃO QUE NÃO LEVEDAVA

Quarta-feira, 27.11.13

Conta-se que havia, outrora, na Ponta, um homem que tinha muita fé no Divino Espírito Santo. Como a sua mulher estava para ter um filho mas sentia-se bastante doente, com o desejo de que o nascimento da criança se desenrolasse da melhor forma e a sua mulher não morresse, o homem prometeu matar o seu boi e dar um jantar em louvor do Divino Espírito Santo a todas as casas de Ponta, se tudo realmente corresse bem e a criança nascesse saudável e a mãe sobrevivesse ao parto.

Passaram-se alguns meses, o parto correu muito bem, a criança nasceu saudável e, poucos dias depois a sua mulher levantou-se e começou a fazer a sua vida normal. Algum tempo depois, quando chegou o dia de matar o animal para a festa, o homem arrependeu-se do que havia prometido porque o boi fazia-lhe muita falta para lavrar os campos e carrear os produtos agrícolas. Assim inventou uma desculpa e veio falar com a mulher que estava a amassar pão. Convenceu-a de que afinal já não iam dar o jantar e, por isso, não foi buscar o boi à relva para o matar.

A mulher não ficou muito satisfeita, mas lá continuou a amassar o pão, pensando que se não dava a carne ao menos havia de dar o pão em louvor do Senhor Espírito Santo. Botou-lhe o fermento, deu-lhe mais umas “mexidelas” e benzeu-o, como sempre costumava fazer. Pôs um abafo por cima do alguidar e, para a massa não arrefecer muito, pôs o alguidar sobre o lar ao pé do calor do forno.

 O tempo foi passando mas o pão não havia maneira de levedar. A mulher olhava para ele a ver se via uma “arregoazinha”, tocava-lhe com a ponta do dedo indicador, mas nada: o pão estava empresado.

 - Deve ser do fermento que não era bom! Vou buscar fermento a casa da vizinha, que ela tem fermento fresco! - Disse a mulher, enquanto punha o xaile pelos ombros.

Saiu, trouxe o fermento e misturou-o no pão, esperançada que daí a pouco tempo já estaria a modo de ir para o forno. Foi esperando, esperando, mas nada. A massa continuava como a tinha deixado.

Entretanto o boi que se tinha saltado da relva e viera ter a casa, berrava fora da porta. A mulher já estava muito preocupada com o que se estava a passar e tinha o pressentimento de que tudo aquilo era por causa da promessa que o marido não tinha pago. Chamou por ele e disse-lhe que o que era prometido era devido e que não se devia brincar com o Senhor Espírito Santo. O marido, vendo-a assim preocupada, acedeu e disse-lhe:

 - O jantar vai dar-se. O boi vai ser morto e oferecido em louvor do Espírito Santo!

Para espanto dos dois, logo que o marido tomou esta decisão, o pão começou a crescer e transbordou pela borda do alguidar, ficando pronto para, de imediato, ir para o forno.

O homem pagou a promessa que tinha feito, o filho nasceu bem e cada vez mais aumentou a fé do povo no Divino Espírito Santo.

 

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publicado por picodavigia2 às 11:39

INHAMES

Quarta-feira, 27.11.13

Na década de cinquenta, na Fajã Grande, o inhame, paralelamente à batata branca e à doce, era um dos alimentos mais utilizados como acompanhamento do conduto. Comia-se inhame ao meio-dia e, por vezes, até à noite, a acompanhar os torresmos, a linguiça, o peixe frito, uma torta de ovo ou, nos dias de Espírito Santo, de São José e da Senhora da Saúde, carne guisada, umas vezes de galinha, outras de vaca. Considerado um bom alimento e de cultivo fácil, os inhames existiam, na Fajã, em grande quantidade e eram de excelente qualidade. Uns, os chamados inhames de água, abundavam nos terrenos alagadiços das Covas, das Águas, da Rocha do Vime, da Figueira, dos Paus Brancos e junto às margens de quase todas as ribeiras e grotas, enquanto os outros, os inhames de seco, se cultivavam nas hortas e terras de mato, juntamente com as árvores de fruto, nas belgas e terrenos mais soalheiros. Eram famosos os inhames do Delgado, da Cuada, da Lombega, da Cancelinha, do Moledo Grosso e de muitos outros lugares.

Os inhames, também chamados cocos nalgumas das outras ilhas açorianas, são desconhecidos na Europa, mas existem noutras partes do globo, nomeadamente no Brasil e na África. A sua raiz é a única parte comestível da planta e tem a forma de um tubérculo, cujo tamanho varia, desde os que se assemelham a pequenas batatas de apenas alguns centímetros de diâmetro até inhames gigantes, embora os da Fajã não fossem nem muito grandes, nem muito pequenos. A pele do tubérculo é áspera e pelosa, difícil de raspar, provocando, por vezes, graves alergias aos que executam a sua preparação, tornando-se difícil descascá-los e ainda mais raspá-los, tarefa necessária antes de os cozer em caldeirões de ferro, durante horas e horas. Antes da chegada à Fajã das panelas de pressão, os inhames geralmente eram cozidos em gigantescos caldeirões de ferro e em grandes quantidades, quase um cesto de cada vez. É que o tempo que demoravam a cozer e a lenha que gastavam não permitiam que se cozinhassem em pequenas quantidades. Os inhames também se comiam fritos, às rodelas, mas sempre depois de cozidos.

Em fresco, quando cortado, o inhame expele uma seiva viscosa e irritante para a pele e mucosas, devido aos ráfides de oxalato de cálcio que contêm. Depois de cozido, o seu interior é farinhoso e a superfície exposta ao ar enegrece rapidamente por oxidação. A porção comestível do inhame é a polpa, que sendo esbranquiçada, depois de cozida fica com uma cor diferente, nuns casos acastanhada, noutros rosada ou roxa e, nos inhames de água, ligeiramente esbranquiçada. Esta cor ainda era mais avermelhada, na chamada carapeta, ou seja, na parte inferior do inhame, geralmente menos saborosa e mais aguada do que a parte contrária. Quando a carapeta do inhame ou até algum inhame na totalidade era “rum” isto é, quando o inhame era muito aguado e pouco gostoso, era utilizado como alimento dos porcos. Havia também quem os tivesse em excesso e alimentasse os porcos com inhames crus mas de boa qualidade. A plantação do inhame faz-se de forma inédita mas simples: tiram-se as folhas e uma boa parte do caule, corta-se o tubérculo na parte superior e planta-se. As folhas do inhame, sobretudo as maiores e mais resistentes, também conhecidas por “orelhas de elefante” eram muito usadas, na Fajã Grande, para transporte de água, quando os homens andavam a trabalhar em terras perto de nascentes e, nos anos sessenta, até houve, nos Açores, mais concretamente na ilha de São Miguel, uma tentativa para as secar e com elas fazer cigarros, substituindo assim o tabaco e evitando a nicotina. Este projecto, no entanto abortou, pois os cigarros para além de possuírem fraca qualidade, desfaziam-se facilmente e eram intragáveis.

Devido ao seu exótico e excelente paladar para a maioria dos humanos e possuindo um valor nutricional muito bom e utilizando-se numa gama variada e diversa de composições culinárias em que pode ser incorporado, o inhame é considerado uma cultura de alto valor, sendo hoje cultivado em todas as regiões tropicais e subtropicais e em algumas regiões temperadas não sujeitas a geadas, como acontece nas ilhas açorianas. Nos Açores e na ilha das Flores, o inhame tornou-se num alimento de luxo, sendo cultivado em grande escala para ser servido na restauração, sobretudo no acompanhamento de produtos regionais como os torresmos, a linguiça, a morcela e a molha de carne.

Em finais do século XVII, nos Açores, uma tentativa de alteração das regras de cobrança do dízimo sobre o inhame levou a um levantamento popular conhecido como a “Revolta dos Inhames”, com o epicentro na ilha de São Jorge, o qual foi somente debelado após do envio de tropas do continente que chegaram a todas as ilhas.

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