PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A POPULAÇÃO DA ASSOMADA – I PARTE
A rua da Assomada tinha a forma de um ípsilon, isto é, no seu cimo, ramificava-se em duas vielas que se prolongavam em caminhos. À esquerda de quem a subia, a Assomada delongava-se pelo início do caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho. Por sua vez e do lado direito continuava através do Caminho da Missa, com destino à Eira da Quada, à Fajãzinha e às outras freguesias e vilas da ilha.
A primeira casa da Assumada, do braço esquerdo do ípsilon, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água era a do João Fagundes, um senhor já de provecta idade, com o nome rigorosamente igual ao de meu progenitor, razão pela qual meu pai assinava o seu nome sempre seguido de Júnior. Assim não havia confusão, não tanto pelas cartas que estas traziam remetente, mas sobretudo pelos avisos amarelos, anunciadores das encomendas da América ou daqueles que eram para pagar dízimas e impostos e que não continham remetente. O senhor João Fagundes era um homem muito respeitado na freguesia, tendo exercido alguns cargos de responsabilidade e era irmão da mãe do José Nascimento. Vivia com a esposa e os dois filhos mais novos, dado que os restantes já haviam casado. O João ingressou na Guarda-Fiscal, deslocando-se, mais tarde, para Santa Cruz, juntamente com a mulher, enquanto a filha casou e partiu para o Canadá.
Na casa seguinte, na curva ao lado do Palheiro do Tomé e enfiada numa espécie de buraco muito abaixo do nível do caminho, morava a Maria José Fragueiro. Era uma senhora muito bondosa mas doente e que vivia pobremente. Para além de não ter terras, nem dinheiro, tinha uma doença incurável, o que se agravava por não ter recursos com que se tratasse: uma das pernas estava, tão inchada, tão inchada que quase ultrapassava em grossura o diâmetro da sua própria cintura. A sua casa era muito pobre, não tinha dinheiro para o petróleo, nem para os fósforos, nem para a farinha, nem para o café, nem para nada, por isso alumiava-se com a luz do lume e alimentava-se com o que cultivava numa pequena courela e do que as pessoas lhe ofereciam. Como eu passava muitas vezes por ali quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande, via-a frequentemente ou sentada sozinha nos degraus da casa ou a juntar garranchos no caminho, derrubados pelo vento ou deixados cair pelos molhos dos transeuntes e com os quais iria acender o lume. Por vezes parava um pouquinho, pois ela conversava muito comigo e olhava-me com tanta doçura e carinho que parecia uma mãe.
Seguia-se a casa de José Jorge que cedo zarpou para o Canadá com a mulher, a Maria Cardoso e duas filhas, sendo a casa ocupada posteriormente por uma família oriunda das Lajes, conhecida pelos “Marcelas”. Neste braço esquerdo do Y e junto ao cruzamento, assinalado numa das paredes com uma cruz, vivia a Maria da Saúde e a mãe já velhinha, juntamente com um homem de nome Corvelo, originário de Santa Maria e que ali se fixara. Este Corvelo faleceu no terrível acidente do Vale Fundo, durante a abertura da estrada, quando colocavam dinamite para rebentar uma pedreira.
No outro braço ficavam apenas duas casas: a da Senhora Estulana, viúva e com três filhos e a do José Garcia, casado com a Senhora Ester e com dois filhos ainda residentes: o Júlio e a Avelina que casou com o João do Gil. Ambas estas famílias abandonaram a freguesia.
Mais abaixo a rua começava o seu braço central com o José Dias, na primeira casa do lado direito. Poucos anos lá viveu, este filho de Tio Manuel Luís, casado com uma filha da Senhora Estulana, com dois filhos, dado que cedo partiram para a América. A casa teve vários moradores até que a comprou o Augusto Mariano.
Presumivelmente seria este o primeiro grupo de famílias a ser enumerado na igreja no dia 3 de Novembro e a cujas almas dos seus defuntos se dirigiam a missa, as preces e os responsos desse dia.
O segundo grupo a ser lembrado, no dia quatro, seria necessariamente o dos moradores daquelas casas da Assomada que ficavam sob as encostas do Pico e localizadas entre o Chafariz do Cimo da Assomada e a Canada de Ti’Antonho do Pico.
A primeira casa integrada neste grupo era a do Chico de José Luís, que casou com a Maria das Neves, natural da Ponta e que tinha três filhos: a Fernanda, o Francisco e a Rosália. A casa ficava à esquerda de quem subia, ao lado de um chafariz que existia ali no Cimo da Assomada e era, estruturalmente, bastante semelhante à minha: uma enorme cozinha, a sala onde dormiam as crianças e o quarto para o casal. Em frente e antes da estrada passar, havia um pátio com plantas, pequenos arbustos, flores e o “cepo da lenha”. Imediatamente a seguir e, quase encostada a esta, morava a tia Gonçalves, talvez, na altura uma das pessoas mais velhas da Fajã, com uma casa bastante maior e melhor do que a anterior, em forma de L e por baixo da qual não havia gado. Era viúva, vivia com uma filha também viúva, mas já de idade, uma neta, o marido desta e um bisneto – o Silveira. Por trás destas casas e ao fundo duma canada, num edifício geminado, morava meu tio Cristiano casado com uma filha de Tio José Luís e dois filhos e o Laureano Alexandre, que, apesar de viver sozinho, era uma pessoa muito sociável, alegre, divertida, afável e sempre disposto a assumir cargos de responsabilidade, nomeadamente o de cabeça da Casa de Baixo, cargo que exerceu durante muitos anos. Também era baleeiro. Meu tio Cristiano era alfaiate, mas tal ofício não dava para se sustentar a si e à família, por isso também criava uma vaca, cultivava algumas terras e também chegou a ser baleeiro. A casa dele, para além duma pequena cozinha que edificara atrás, ocupava apenas a sala do respectivo prédio em cuja restante parte vivia o Laureano Alexandre. No entanto como era uma sala muito grande estava dividida com biombos em pequenos cubículos, que eram quarto, sala e atelier de costura.
Voltando à rua, num outro prédio bem maior, também transformado em habitação geminada moravam, na parte de cima o Francisco Inácio e na de baixo o Cabral. Era um prédio alto, bem construído, de dois pisos, implantado na frente da rua, à esquerda de quem a subia. Tinha uma fachada imponente, delimitada por uma faixa, com três portas no piso térreo, com um óculo oval entre as duas portas e uma faixa a dividir as duas moradias. Francisco Inácio, casado com uma filha de tio José Luís e com dois filhos, o José Augusto e a Vitória, morava do lado esquerdo. Tinha-se acesso à moradia, através de um pátio sob o qual ficava uma das poucas cisternas existentes na Fajã. A cozinha tinha uma chaminé monumental. Na parte direita morava o Cabral com a mulher e os filhos, entre os quais o Laurindo. Todos abandonaram a freguesia, assim como os filhos do Francisco Inácio. Este prédio tinha em frente o palheiro dos irmãos José e Manuel Cardoso, o qual teria sido, noutros tempos, residência do Caixeiro e da tia Rosário e a ele estava ligada a célebre “estória” de “As empenas de Cabral”. Contava-se que andando um dia Caixeiro pelos campos, a tia Rosária ficou em casa a cozer bolo. Talvez por descuido ou limitação de recursos, o bolo queimou, mas quando o Caixeiro chegou a Rosaria pô-lo na mesa apesar de queimado, pois não tivera tempo ou recursos para cozer outro. Só que pelos vistos o bolo estava tão queimado, tão queimado que o Caixeiro não o pode ou não o quis comer. Furioso, levantou-se, foi à porta e atirou-o para o outro lado da rua, indo o bolo colar-se ao prédio da frente onde morava o Cabral. A Rosária é que não gostou nada de ser aquele o destino do seu bolo, fruto do seu trabalho e, recriminando-o, disse:
- “Pedaço de mal criado, atiraste com a face do Senhor às empenas de Cabral.”
Ao lado deste palheiro ficava a casa de tio Mateus Felizardo. Ainda me lembro de ver este velhote de longas barbas brancas salpicadas do amarelo do tabaco que mascava. Morava lá o Manuel Machado com a mulher, um filho e com o avô Mateus Felizardo e a avó, ambos já muito velhinhos.
No caminho conhecido por “canada de Ti’Antonho do Pico”, a primeira de três pequenas transversais que tinha a Assomada, orientadas para o lado do Pico, ou seja do lado direito de quem subia, vivia apenas a família de Ti’Antonho do Pico, que exactamente por morar nas encostas daquele minúsculo monte, sobranceiro à Assomada, granjeou tal epíteto. A casa, onde residia com a esposa, com a filha Dolores, com o genro e com um neto, ficava de facto um pouco fora do caminho da Assomada e encravada lá bem para dentro, já nos contrafortes da pequenina montanha. O genro, o Jesuíno, filho do Afonso das Tomásias era um excelente músico, tocava clarinete na Filarmónica Senhora da Saúde, cantava na capela e, mais tarde, fundou e orientou a Tuna Sol e Mar, ainda existente na Fajã Grande.
Regressando à rua e logo acima da Fonte ficava um pequeno grupo de três casas, onde moravam Tio João Barbeiro, casado com uma irmã da mulher do Tio José Teodósio, com quem vivia, juntamente com a filha Elisa Barbeiro, um neto a quem a mãe falecera no desastre do Corvo e a Olinda. Foi este neto de tio João Barbeiro, o José Cardoso, desde miúdo notável construtor de triciclos e carripanas de madeira que ele próprio conduzia, que comprou o primeiro carro de praça existente na Fajã Grande. Em frente ficava a casa do Augusto Mariano, casado com a Marquinhas de S. João, muita amiga da minha mãe e que tinha dois filhos, o José Lucindo e o Mariano e ainda o António Barbeiro, talvez um dos homens mais inteligentes e cultos da Fajã e que a estas qualidades aliava a de artista primoroso, quer como relojoeiro, a principal actividade que desempenhava e em que era exímio, quer noutras actividades em que se envolvia, nomeadamente na carpintaria e na apicultura, executando todos os trabalhos com uma perfeição invulgar e um zelo excessivo. Acrescente-se, ainda, que na freguesia era a única pessoa capaz de resolver a maioria de um sem número de pequenos problemas quotidianos, como o de consertar uma fechadura, amolar uma tesoura, por um badalo na campainha duma vaca, colocar um vidro ou até por os agrafos num prato partido ou grampos num alguidar quebrado. A fama de que gozava era imensa e granjeara o respeito e admiração geral, dado que quase toda a freguesia recorria com frequência aos seus préstimos. Era viúvo e vivia na companhia de dois filhos, a Alda e o Orlando. Tanto o neto de João Barbeiro, como os filhos do Augusto Mariano e do António Barbeiro abandonaram a ilha, partindo para a América e para o Canadá, excepto o José Lucindo que, tocou requinta na Filarmónica e que após a tropa, entrou para a Marinha.
Ali perto e um pouco mais abaixo moravam duas velhinhas, numa casa pequenina e pobre, com uma cozinha muito velha, com o chão ainda de solo (barro ou terra) e sem forro: Tia Ermelinda e Tia Maria Inácia. A primeira era muito doente e já não saía de casa e estava permanentemente sentada à janela da empena da sala. De manhã rezava, costurava e lia. De tarde ensinava catequese e conversava com quem a visitava. Tia Maria Inácia, apesar de velhinha e doente, era “o homem da casa”. Era ela que ia à lenha à Cabaceira, que a rachava, fendia ou picava com o machado e a guardava debaixo do lar. Era ela que ia buscar erva-santa para as galinhas. Era ela que cozinhava, lavava e limpava a casa. Era ela que fazia tudo.
Junto a esta casa ficava uma outra onde moravam três irmãs, também já de avançada idade, conhecidas pelas senhoras Mendonças. A mais velha enviuvara há muitos anos e era a mãe do poeta e escritor Pedro da Silveira. Apesar da idade eram estas três senhoras que, para além de partilharem as tarefas diárias da casa, trabalhavam os seus campos onde cultivavam milho, batatas e outros produtos necessários à sua alimentação.
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A MALEIRA
Mais veloz do que o vento norte e tão ágil e lesta como as brisas matinais, a Maleira da Fajã partia, duas vezes por semana, com destino traçado às Lajes, com o único objectivo de levar e trazer o correio juntamente com um ou outro recado e com este ou aquele mandalete. Morava na Ponta, logo nas primeiras casas e partia, alta madrugada, a pé e descalça, quando muitos galos ainda não haviam iniciado os seus cocorocós matinais e a escuridão teimava em não se deixar vencer pelos primeiros raios da aurora. Não se furtava às intempéries, não temia os ventos frígidos e fortes, não se abrigava das chuvas por mais intensas e fustigantes que fossem, nem se acobardava a tempestades. Caminhava a passo firme, ríspido, sereno e convincente. Diziam os que com ela, por vezes, faziam viagens, quer nas idas quer nas vindas, que era quase de todo impossível acompanhar-lhe a pedalada. Saía da Ponta, atravessava a Fajã, seguia pelo Caminho da Missa, Ladeira do Biscoito e passava a Ribeira Grande, mesmo em dias de grande caudal, com uma perna às costas. Na Fajãzinha acertavam os relógios à sua passagem e ao amanhecer já subira os Bredos e demandara os Terreiros. Atravessava os matos para encurtar caminhos e antes das oito já estava sentada no muro da igreja das Lajes à espera que o Correio abrisse. Depois era despejar as cartas da Fajã e da Ponta, sobretudo com destino à América, e encher a mala com as que de lá e de outros recantos do mundo vinham. Depressa se despachava e antes das onze, com um bocado de pão e outro de queijo já comidos, regressava à Fajã.
Caminhava bem mais carregadinha no dia seguinte à chegada do Carvalho, em que a mala, de cuja fechadura havia apenas uma chave no Correio da Fajã e outra no das Lajes, vinha mesmo a abarrotar. Na viagem seguinte, embora não tão cheia, lá vinha uma ou outra carta atrasada por descuido de algum funcionário e os célebres avisos amarelos a anunciar as encomendas vindas da América.
Nesses dias, ao regressar, era esperada com grande ansiedade. Mal aparecia no cimo da Assomada, um rancho de gente vinda de todas as ruas e canadas da freguesia acompanhavam-na até ao sagão do José Natal. Aí esperavam uma eternidade, enquanto o homem, lento que nem uma lesma, abria, remexia e sacudia a mala e, de seguida, separava, juntava, amontoava e voltava a separar envelopes e avisos, até se decidir, por entre grande indignação, tumulto, zanga e reclamação dos que ali esperavam estacados, a ler os nomes dos destinatários estampados em cada envelope ou aviso. A essa hora a Viva, como também era apelidada a Maleira, já tinha ido ceifar um molho de erva a uma lagoa que tinha para os lados da Ribeira do Cão, e carregava-o, sob uma rodilha, à cabeça, descalça, com o mesmo saiote que levara para as Lajes, com as pernas repletas de pelos e a escorrerem de água.
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JESUS E AS ANDORINHAS
(Conto Tradicional)
O Menino Jesus quando era pequenino, andava e corria pelos campos, brincando como todas as outras crianças.
Ora certo dia, enquanto o pai fazia uma mesa e a mãe fiava o linho com a roca, o Menino Jesus que brincava ali perto com aparas de madeira, afastou-se um pouco e saiu para o pequeno quintal que ficava junto à casa dos pais. Começou então a brincar com o barro, misturando-lhe um pouco de água, amassando-o e fazendo com ele pequenos passarinhos de asas muito abertas e biquinho pontiagudo, que ele imaginava serem andorinhas. Depois de os fazer poisava-os no chão e enternecia-se a olhar para eles. De imediato passou por ali um homem cruel, sem coração e que não respeitava as brincadeiras das crianças. Ao ver todos aqueles passarinhos que jesus havia feito, começou a dar-lhes pontapés, com intenção de os desfazer e dar cabo de todas as andorinhas que o Menino tinha feito. O Menino Jesus ficou muito triste e aflito e, começou a bater palmas e incentivar as andorinhas para que voassem e fugissem. E, para espanto do homem, as andorinhas de barro transformaram em pássaros de verdade e começaram a voar, sem que o homem as pudesse destruir
Passado algum tempo as andorinhas voltaram e vieram poisar sobre o beiral da casa onde Jesus vivia e, pegando no barro com que tinham sido feitas, construíram os seus ninhos, onde puseram os seus ovos e criaram os seus filhinhos.
As andorinhas ficaram assim sempre, muito amigas do Menino Jesus, acompanhando-o sempre, não só em criança, quando os pais fugiam com ele para o Egipto, mas também durante a sua vida, quando Jesus foi crucificado. E até nesse dia, as andorinhas não abandonaram Jesus, pois enquanto Ele estava pregado na cruz, elas rodearam-no e, com os seus biquinhos, foram-lhe espinhos da coroa que lhe puseram e que tanto magoavam a Sua santa cabeça.
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A ENCOMENDA
O aviso amarelo chegou três dias após o Carvalho ter demandado a ilha e foi recebido, lá em casa, com enorme alarido e desmesurado alvoroço. Vinha aí uma encomenda da América! Ai vinha, vinha!...
Na manhã seguinte meu pai, aviso no bolso, bordão atravessado sobre os ombros, froca a tiracolo, com um parco farnel numa das mangas, partiu, muito cedo, para as Lajes. Tão cedo que ninguém lá em casa deu por isso, a não ser a minha mãe que se levantou para ir à cozinha aquecer um caneco de alumínio, bem cheio de café, sobre o fogão da luz. Bem precisava o meu progenitor de forças para fazer tão longa caminhada!
Na véspera, meu pai deixara uma boa parte do dia planeado e todas as tarefas muito bem definidas: - O António e eu íamos buscar a Benfeita e os bezerros à Pedra d’Água, enquanto o José limpava o palheiro. Minha mãe tirava o leite à vaca e a Maria ia levá-lo à máquina. Terminada a escola iam todos sachar o milho da Fontinha, que ele havia de chegar quando terminassem.
Embora executando as tarefas com entusiasmo e competência, nenhum deixou de pensar na encomenda, durante todo o dia, por um único momento que fosse. Por isso, despachamo-nos do milho da Fontinha e, cedo, viemos esperar meu pai, sentadinhos na soleta da porta da sala. Uma encomenda da América era de se lhe tirar o chapéu e cada um já se imaginava com um vestido ou uma camisa nova, uns alvarozes, com uma froca, umas calças de angrim, um beltro, um caneta e, quem sabe, talvez um brinquedo e muitos candis. Bem desejávamos ir esperar meu pai ao Cimo da Assomada, à Eira da Cuada ou, se pudéssemos, à Ribeira Grande mas… a minha mãe não deixou.
Finalmente, quase ao fim da tarde, meu pai chegou e trazia às costas uma enorme saca branca, com o seu nome escrito a letras azuis, muito grandes, com muitos selos, etiquetas verdes, carimbos pretos e roxos e com a direcção muito certinha. Era remetida de Turlock, pelo tio Francisco. Atiramo-nos a ela que nem Santiago aos mouros, perante os protestos da minha progenitora que com a tesoura da costura tentava, com dificuldade, abrir o saco sem o danificar, pois daria muito jeito e serviria perfeitamente para levar a moenda ao moinho de tio Manuel Luís. É que o saco usado, já tinha mais remendos do que lona original. De seguida, com cuidado e perante a nossa exasperada agitação, minha mãe foi tirando as peças de roupa, uma por uma. No fundo do saco, dois pares de sapatos, muito velhos e gastos mas que serviriam ao meu pai, para usar aos domingos. Dentro destes, umas canetas que já nem escreviam, vários lápis usados, borrachas e outras bugigangas, estendendo tudo pelo chão, de maneira que cada um agarrasse no que quisesse, no que lhe apetecesse ou simplesmente no que os outros deixassem. A sala exalava agora aquele cheirinho tão típico da roupa americana. Parecia que dentro da saca se havia derramado um frasco de perfume. Nós embrenhados não apenas ma escolha e na prova mas sobretudo na pesquisa. É que nos bolsos dos casacos e das calças, ou embrulhados em lenços mas muito bem escondidinhos, vinham sempre “candis”, “pinotes”, rebuçados, chocolates, canivetes, sabonetes e frascos de perfume, alguns até vazios. Mas cheiravam tão bem! Uma vez tudo virado e revirado, vasculhado e apalpado, chegou a hora de dividir o tesouro. Primeiro seleccionaram-se as roupas que serviam, com mais ou menos rigor, em cada um e poucas eram. A partir daí a ordem era cada qual ficar com o que quisesse e lhe apetecesse. Mas a minha mãe havia de supervisionar tudo. Foi um ver se te avias: pega, puxa, larga, tira, deixa, mostra e toma. Foi tal escolher e, de seguida, fazer a prova. Sobre as ordens e orientação da minha progenitora, cada qual ficou com o que melhor lhe serviu, embora desajeitadamente.
Depois de tudo acertado e dividido e da minha mãe se retirar para a cozinha, decidimos que cada um havia de vestir o que lhe ficasse melhor e iriamos à Fontinha, mostrar à avó e às tias aquelas maravilhas da alta-costura americana. O José vestiu um saiote, que lhe arrastava pelos pés, a Maria um vestido muito largo e comprido, apertado à cintura com um cinto preta, o António umas calças verdes tão largas que tinha que as segurar constantemente com ambas as mãos e eu com um vestido de menina e uma camisa de seda cor-de-rosa por cima. Lá fomos todos vaidosos e contentes com tão adequadas e estéticas vestimentas, todos muito felizes, juntinhos e de mãos dadas. Ao rodar à Praça havíamos de encontrar o Maurício que ao ver aquele quadro estapafúrdio desata numa enorme gargalha e a fazer pouco de nós.
A Maria não esteve com meias medidas e, aproximando-se dele, atirou-lhe à cara:
- Estas a rir porque estás roído de inveja!
E seguimos o nosso caminho, muito felizes.