PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
CELEIRO DE OUTUBRO
“Em Outubro vai ao celeiro e enche o mealheiro.”
A palavra “celeiro” no sentido real – e aqui só pode ser entendida desta forma - é o local ou casa rural onde, comumente, os agricultores armazenam grãos, assim como outros produtos das suas colheitas e onde também, por vezes, se guardo gado e os veículos ou os utensílios agrícolas. No entanto esta palavra, com este sentido não era utilizada na Fajã Grande, onde aquele o local de guarda do milho com se chamava “estaleiro” e os edifícios onde guardavam quer o milho debulhado, quer os utensílios agrícolas “casas velhas”. Sendo assim, este provérbio, muito provavelmente, terá sido trazido do continente pelos primeiros povoadores, sendo que as pessoas que o utilizavam conheciam perfeitamente o significado da palavra “celeiro”.
Assim a mensagem que pretendiam transmitir com o uso de tal provérbio, era por mais evidente. Sendo em Setembro que se faziam as colheitas, Outubro era mês de abundância, era mês rico, pois muitas pessoa tendo milho em abundância podiam vender o excedente e conseguir algum dinheiro. Decerto que o simbolismo de tudo isto é o facto de noutros tempos, as formas de ganhar algum dinheiro serem muito escassas e raras. Outubro, para os que mais produziam, era uma excepção.
Não parece que existisse nenhum sentido figurado na utilização deste adágio.
Segunda Versão
Um provérbio muito utlizado na Fajã Grande nos anos 50 e com o qual se queria significar que, em termos de quantidade de cereais armazenados, Outubro é, incontestavelmente, o mês mais farto do ano, o que nada é estranho, uma vez que é por esta altura do ano que se recolhia a maior parte dos cereais e muitos outros produtos agrícolas. Na Fajã Grande era em Outubro que os estaleiros escondiam a sua nudez, revestindo-se por completo, por dentro e por fora, com as maçarocas do milho presas em “cambulhões”. No sentido real, o adágio significa que Outubro era um mês abundante e, até, era altura de se ganhar algum dinheiro, vendendo cereais. Aparentemente não terá nenhum sentido figurado.
Estranho é que este provérbio utilize a palavra “celeiro” que não fazia parte do vocabulário fajãgrandense na altura, nem sequer na Fajã Grande se chamava celeiro a qualquer lugar onde se guardassem os cereais. Isto prova afinal que este, como muitos outros, não é um adágio “endémico”, terá sido levado pelos primeiros povoadores oriundos do Norte do país. Assim teria mais sentido dizer-se: “Em Outubro, vai ao estaleiro e enche o mealheiro.” Mas os adágios, são como são e não se mudam, embora por vezes, sejam adaptados e modificados, pois existem muitos que adquirem nuances diferentes, de terra para terra ou de região para região.
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AR DE INVERNO
(POEMA DE ROBERTO DE MESQUITA)
Aves do mar que em ronda lenta
Giram no ar, à ventania,
Gritam na tarde macilenta
A sua bárbara alegria.
Incha lá fora a vaga escura,
Uiva o nordeste aflitamente.
Que mágoa anónima satura
Este ar de Inverno, este ar doente?
Alma que vogas a gemer
Na tarde anémica, de vento,
Como se infiltra no meu ser
O teu esparso sofrimento!
Que viuvez desamparada
Chora no ar, no vento frio
Por esta tarde macerada
Em que a esp’rança se esvaiu!”.
Roberto de Mesquita (1871-1923). Almas Cativas e Poemas Dispersos
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A POPULAÇÃO DA ASSOMADA II PARTE
Mesmo em frente à Fonte e já na entrada da segunda travessa da Assomada ficava a casa de José Pureza, um dos mais abastados lavradores da freguesia e que vivia com a esposa e quatro filhos. Apenas as duas filhas a Mariana e a Evarista residem actualmente na mesma casa, onde viviam outrora, sendo dos poucos habitantes que restam dos 126 que nos anos 50 viviam na rua da Assomada.
Mais um grupo se sete agregados familiares, ainda na Assomada e que se concentravam por ali, perto da Fonte. A segunda transversal da Assomada ficava precisamente no cruzamento que havia junto à Fonte. A Canada da Fonte era a maior de todas as transversais da Assomada, sendo quase tão larga como as restantes ruas, mas, apesar de também ser a mais povoada, lá moravam apenas três famílias.
A primeira casa, um pouco mais retirada e mais encostada ao Pico era a do António Augusto, o Regedor da freguesia e, geralmente, cabeça de festas e do Fio que ali vivia com a esposa, a Floripes Teodósio e com a filha Fátima. O Regedor acumulava simultaneamente as funções de Juiz de Paz e, numa terra onde não havia polícia nem outra autoridade qualquer, excepto o Presidente da Junta, tinha o poder de decidir e, geralmente, era chamado a resolver pequenas contendas e desavenças, de julgá-las ou de resolver partilhas, sancionar heranças e de repreender ou até de prender quem prevaricasse, se julgasse necessário, pese embora nunca o tenha feito, até porque não havia cadeia na Fajã. Era um homem simpático e muito respeitado, um bom comunicador, amigo de todos e de brincar com as crianças. “Metia-se com toda a gente”. Eu chamava-lhe “Shô Rojo” em vez de Senhor Regedor. Durante muitos anos foi ele também o único operário que trabalhou numa pequena fábrica de manteiga, pertencente à Cooperativa de Lacticínios da Fajã Grande e que existia no cimo da Fontinha, num lugar chamado Cruzeiro, um pouco antes do Alagoeiro. Competia-lhe a tarefa não apenas de fabricar a manteiga mas também de a enlatar e colocar as latas em grades de madeira que ali aguardavam até à chegada do Carvalho Araújo que as levaria para Lisboa. Mais tarde foi forçado a exilar-se em Angra, devido a doença grave e crónica da esposa, senhora bondosa e também muito amigo da minha mãe. Nesta transversal ainda moravam dois casais: João Gonçalves, vice-presidente da Junta de Freguesia durante muitos anos, filho da tia Gonçalves, casado com a Maria do Rosário, filha de João Fagundes e o José Fagundes, filho de João Fagundes e casado com uma filha de tia Gonçalves. O primeiro casal tinha dois filhos e o segundo apenas um. As suas casas ficavam no termo da rua, por detrás da minha, confrontando com uma terra que meu pai tinha à porta, como se de uma courela se tratasse.
Voltando à rua da Assomada e logo a seguir ao poço onde as vacas bebiam água moravam as minhas primas e vizinhas Fragueiras. A mais velha e bastante doente, a Marquinhas do Céu, era uma exímia costureira e fazia roupa para fora enquanto a Deolinda trabalhava nos poucos e minúsculos campos que tinha, garantindo assim o sustento da casa. Sempre foram muito nossas amigas e muitas vezes acompanhava a Deolinda aos campos, enquanto ela ia trabalhar ou simplesmente buscar um molho de lenha à Cabaceira. Logo abaixo, mas do outro lado da rua, morava a já muito velhinha tia Lucinda, com os filhos Fernando e Luís. Como estes passassem o dia a trabalhar nos campos e tia Lucinda já não pudesse sair de casa, pedia-me frequentemente que fosse à loja do senhor Roberto comprar-lhe petróleo, mexas, açúcar, café e farinha, dando-me sempre como recompensa dez centavos. Em frente morava a sua filha mais velha, também chamada Lucinda, viúva do Faroleiro. Como a profissão de faroleiro era das poucas remuneradas na Fajã e, consequentemente, uma das profissões mais lucrativas da freguesia, esta família tinha melhores condições de vida do que a maioria das restantes. Morava com uma filha e tinha um outro filho que era padre e professor no Seminário de Angra, mas que frequentemente ia passar férias de Verão à Fajã, durante as quais conversava muito comigo e meus irmãos, nos pátios traseiros e contíguos de nossas casas, contando muitas histórias, cantilenas e ditos. Ouvira-os, em criança, a minha avó paterna, há muito falecida, que morara na casa que agora era de meus pais.
Estes eram os meus vizinhos, dado que encravada no meio destas três casas ficava a de meus pais, onde nasci, cresci e vivi com eles e com os meus cinco irmãos, até que a minha mãe faleceu. Tratava-se de uma casa pequena e pobre, com uma parte superior, constituída por cozinha, sala e um quarto e uma inferior com uma loja para palheiro do gado e outra para arrumos e nitreira. Eram, assim pobres e limitadas a maioria das casas da Fajã, na altura. Meu pai, era conhecido pelo João de Ti’Antonho, era um pequeno lavrador, possuía duas vacas, trabalhava juntamente com a minha mãe e meus irmãos mais velhos as poucas terras que tinha e mais algumas outras que pertenciam aos meus tios que haviam partido para a América, cujas colheitas, juntamente com uma parte do leite das vacas, garantiam o nosso sustento. O único dinheiro que ganhava era o resultante da venda da outra parte do leite à Cooperativa e com que se comprava o petróleo, as mexas, o sabão, o café em grão, um ou outro quilo de farinha de trigo e um pouquinho de azeite doce para nos untar os “galos” que fazíamos ao bater com a cabeça. Havia meses em que a Cooperativa não pagava e, então, não havia dinheiro para nada.
A seguir à minha casa e já quase no limiar da Praça, mas ainda na Assomada, morava mais um grupo de pessoas que, de tão perto que eram as nossas casas, nos tratávamos todos por vizinhos.
A primeira casa pertencia ao Manuel Dionísio. Situava-se logo a seguir à casa do Senhor Faroleiro, era surdo-mudo e vivia sozinho. A casa era baixa e térrea geminada com a do Catrina. O Manuel era pobre e alimentava-se do que lhe davam e do pouco que produzia; uma pequena terra nas traseiras da casa e uma horta na Cabaceira, onde ia buscar lenha, maçãs e inhames. Num pequeno curral colado à empena da casa tinha duas ou três galinhas. Passava as tardes à janela da sala que ficava voltada para o caminho, a dormitar calma e tranquilamente. Como só comunicava por gestos e apenas balbuciava um som “Biga-Biga” era conhecido pelo Manuel Biga-Biga.
Na casa geminada com a do Biga-Biga morava o João da Catrina, com a mulher, um filho e uma cunhada doente mental e que pouco saia de casa. O pai e o filho, o José da Laura, eram, na Fajã, considerados, pelas suas conversas, talvez os maiores opositores ao salazarismo e acérrimos defensores do regime comunista, então vigente na União Soviética, liderado por Estaline e, a partir de 1953, por Kruchtchev, personagens sobre os quais falavam com alguma frequência, dado serem das poucas pessoas que na freguesia tinham acesso aos noticiários da rádio. Mais tarde o Catrina seria o grande divulgador, na Fajã, das “Crónicas de Angola de Ferreira da Costa”. O filho, o José Rodrigues na sua maneira de falar e de opinar tinha aspecto de pensador ou de filósofo e caracterizava-se também por fazer uma enorme pausa antes de dizer o que quer que fosse, como se estivesse sempre a pensar no que iria dizer, proferindo uma chavão, muito conhecida na altura, de que tinha a patente: “Sim, bem se sabe…” Era um bom carpinteiro, pese embora nunca tivesse pressa para nada e era ele que fabricava as caixas em que eram empacotadas as latas da manteiga da Cooperativa.
Na casa em frente vivia Mestre Jorge, com a mulher e quatro filhos e que era o sapateiro da terra, embora a mulher e os filhos se dedicassem ao cultivo dos campos, dado que esta profissão, como todas as outras, não dava para sobreviver sem a agricultura e a criação de gado. Para além de consertar o calçado, Mestre Jorge fazia sapatos, galochas e foi ele que fez as “botas” de futebol de todos os jogadores, do então vigoroso Atlético Clube da Fajã Grande, o clube de futebol existente na Fajã, na altura, e que defrontava em pequenos torneios e aguerridos jogos, no Campo das Furnas, o “Rádio Naval” das Lajes, a “Académica da Fazenda, o “Sporting” e o “União”, ambos sedeados em Santa Cruz. Na casa ao lado e paredes-meias com a “Maquina de Cima” ou seja, o posto de desnatar o leite pertencente à firma Martins e Rebelo, morava o Alfredo Fagundes, ainda meu primo e casada com a Marquinhas do Céu.
Do outro lado da rua e no cruzamento da última transversal da Assomada, esta sem casas, morava o Antonino de Tio Francisco Inácio, também meu primo, casado com a filha mais velha do Faroleiro e com um filho, o Jaime – o meu maior amigo de infância. O Antonino era simultaneamente barbeiro e latoeiro. A primeira actividade exercia-a apenas aos domingos, antes e depois da missa, mas a segunda ocupava-lhe bastante mais tempo, ao longo da semana, dado que para além de reparar e soldar todas as latas da freguesia tinha que fabricar os recipientes em que era enviada para o Continente a manteiga produzida pela Cooperativa e de as fechar depois de cheias de manteiga. Como tinha pouco tempo para as lides agro-pecuárias e como meu pai era bastante pobre, celebraram uma espécie de contrato em que eu tinha que ir levar-lhe e buscar as vacas, todos os dias, ao Outeiro Grande, tendo em contrapartida e como obrigação por parte dele, cortar-nos o cabelo e soldar-nos as latas de graça
De todo este grupo de famílias, apenas esta última emigrou para o Canadá. No entanto, actualmente na Fajã residem apenas alguns dos filhos de Mestre Jorge.
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RETORNO DO HORIZONTE
Um fluxo excelso,
mesclado,
(uma espécie de vento forte)
caiu sobre o oceano
e desfez o horizonte.
O firmamento,
agastado por uma força telúrica,
invisível,
desabou, lentamente,
sobre o chão agreste
misturando-se com uma agitação,
amedrontada,
do mar.
Depois escureceu.
A noite envolveu a terra,
agrilhoando-a,
espremendo-a
numa imensa indefinição…
Mas uma nova aurora,
amanhã,
há-de restituir
e selar
um novo dia.
E o horizonte, ora desfeito,
retornará,
sem tumulto
e sem vento!