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VINTE E DOIS DE JANEIRO DE MIL SETECENTOS E OITO

Domingo, 17.11.13

Francisco António Pimentel Gomes, natural da freguesia da Fazenda, ilha das Flores, publicou, entre outros, dois importantes livros sobre o passado histórico da ilha de onde é natural: “Casais das Flores e do Corvo” (2006) e “A Ilha das Flores” (1996). Estas obras, de grande qualidade e de acentuado rigor histórico, por um lado, contribuem para melhor se conhecer a história da maior ilha do grupo ocidental açoriano e, por outro, para quem estiver interessado em elaborar a sua árvore genealógica, fazer uma interessante pesquisa sobre os seus antepassados e conhecer alguns dos acontecimentos históricos mais importantes em que eles se envolveram e participaram.

O primeiro livro, no caso dos meus antepassados paternos, permitiu-me, circulando de registo em registo, através dos nomes de uns e de outros, identificar os meus avoengos até aos nomes dos pais dos meus penta-avós, os quais terão vivido em pleno século XVIII, sendo o registo mais antigo, o do casamento de um dos meus tetra avós, António de Freitas Fragueiro, natural das Lajes e Ana de Freitas, natural da Fajã. Casaram na igreja paroquial das Fajãs, no lugar da Fajãzinha, em seis de Novembro de 1763.

No entanto, do lado materno foi-me permitido ir mais longe e chegar aos nomes dos meus octoavós, alguns dos quais terão vivido nos finais do século XVII, ou seja por alturas da criação da paróquia das Fajãs, no longínquo ano de 1676. Neste caso o registo mais antigo, por mim encontrado, foi o dos meus heptaavós, Bartolomeu Lourenço e Isabel de Freitas que casaram na Fajazinha em vinte e cinco de Fevereiro de 1725. Segundo o registo deste casamento Bartolomeu era filho de António Lourenço e de Maria de Freitas. Por sua vez Isabel era filha do alferes André Fraga e de Bárbara de Freitas, naturais e residentes na Fajazinha. Estes são, por conseguinte, os meus octoavós. O alferes André Fraga nasceu em 1677, um ano depois da criação da paróquia das Fajãs e faleceu em 1750 e era sobrinho do padre André Álvares de Mendonça, primeiro vigário da paróquia das Fajãs.  

O segundo livro, para além de conter uma informação histórica muito diversificada e completa, é enriquecido, pelo autor, com um anexo que contém 167 documentos históricos, alguns dos quais muitíssimo interessantes. É o caso do documento 39, copiado do “Livro do Tombo da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios” pelo padre António Joaquim Inácio de Freitas. Segundo esse documento, um grupo de “fregueses” acompanhados pelo vigário André Alves de Mendonça, em 1705, solicitaram ao bispo diocesano, D. António Vieira Leitão, autorização para colocar o sacrário para guardar o Santíssimo, na primitiva igreja da paróquia construída havia trinta anos. O bispo, que faleceu alguns anos depois nas Velas, durante uma visita pastoral à ilha de São Jorge, autorizou mas com a condição de haver um grupo de pelo menos vinte paroquianos que assegurassem o dote para o azeite da lâmpada, para as velas e outros acessórios indispensáveis à manutenção do Santíssimo Sacramento numa igreja. Para tal foi lavrada uma escritura de doação e obrigação, no dia 22 de Janeiro de 1708, na primitiva igreja paroquial das Fajãs, situada perto da actual igreja da Fajãzinha e na qual estiveram presentes 131 pessoas, pertencentes aos quatro mais importantes lugares povoados da paróquia: 67 da Fajãzinha, 37 do Mosteiro, 17 da Ponta e 10 da Fajã. Fizeram parte deste grupo de dez pessoas oriundas da Fajã Grande, juntamente com o capitão Domingos Rodrigues Ramos e do seu filho, o também capitão, Gaspar Henriques e a esposa deste, Francisca Rodrigues, os meus octoavós António Lourenço e Maria de Freitas, precisamente os pais de Bartolomeu Lourenço. Por sua vez também integraram a delegação da Fajazinha os meus octoavós, o alferes André de Fragas e Bárbara de Freitas, pais da esposa de Bartolomeu Lourenço, Isabel de Freitas. Acrescente-se que as restantes cinco pessoas que integraram a delegação da Fajã foram: Amaro Carneiro e sua mulher Maria de Freitas, António Jorge e sua mulher Maria de Freitas e Isabel Rodrigues, viúva.

 Não deixa de ser interessante o facto de a delegação da Ponta ser bem mais numerosa do que a da Fajã. Creio que isso se deveu ao facto de a Ponta até 1767 pertencer à freguesia de Ponta Delgada, instituída já há alguns anos e a Fajã, na mesma altura, ser ainda um pequeno lugarejo pertencente à paróquia das Lajes. Outro aspecto a realçar é o do facto de a paróquia das Fajãs, à altura, ter mais seis lugares povoados para além destes e nenhum deles se fazer representar, talvez por serem povoados bem mais pequenos do que os outros quatro representados. Esses lugares, nessa altura povoados e hoje sem população fixa, eram Cuada, Caldeira, Ribeira da Lapa, Fajã dos Valadões, Pico Redondo e Pentes.

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publicado por picodavigia2 às 22:04

A CASA DO ESPÍRITO SANTO DE CIMA

Domingo, 17.11.13

Das quatro casas de Espírito Santo que existiam na Fajã Grande e que ainda hoje permanecem como património arquitectónico da mais ocidental freguesia açoriana, a última a ser construída foi a Casa de Espírito Santo de Cima, popularmente conhecida simplesmente como “A Casa de Cima”. A data da sua construção, estampada no frontispício, logo por cima da escultura de uma coroa encastoada entre duas janelas, sobre a porta principal, remonta ao longínquo ano 1886, ou seja cinco anos após a erecção da paróquia da Fajã Grande. Talvez por ser a mais recente, talvez porque a disposição do terreno a isso obrigasse, talvez porque os seus arquitectos e construtores, numa simulada tentativa de valorizar o edifício, pretendessem que a sua entrada principal comunicasse com a Rua Direita, esta casa possui um estilo específico e uma estrutura arquitectónica própria e sensivelmente diferente das outras três casas do Espírito Santo, da Fajã Grande: Cuada, Ponta e Casa de Baixo. Outra diferença arquitectónica significativa era o facto de, por um lado, a porta principal se situar, à maneira das catedrais, igrejas e ermidas, na empena oposta ao altar-mor e por outro, por essa mesma empena ter um estilo diferenciado e ser encimada por uma espécie de torre sineira. Esta torre, porém, era de uma só fachada, tinha uma cruz lá no alto e não possuía sino, o que não impedia, no entanto, que o estilo do seu frontispício se assemelhasse mais a uma capela do que às tradicionais casas do Espírito Santo, dispersas por todas as freguesias da ilha das Flores. Além disso, a própria fachada principal do edifício era arquitectonicamente enriquecida com um formato específico e diferente no que diz respeito quer à porta, quer às janelas, sendo os vidros destas últimas e os que encimam a porta, foscos e coloridos, simulando uma espécie de vitral. Em frente à porta principal e também imitando as igrejas, a Casa de Cima possuía um adro, característica também apenas a esta casa e à da Cuada. O edifício ainda possuía janelas laterais de um e outro lado o que conferia ao seu interior excelente luminosidade, própria dos templos e casas de oração modernos.

Por sua vez o interior era formado por um amplo e rectangular salão assoalhado, divido no fundo por uma grade a isolar uma espécie de capela-mor, onde existia um altar “versus pópulo”, em tudo semelhante aos das igrejas e em cujo pequeno trono, pintado a ouro, se colocavam as coroas dos dois impérios: a da Casa de Cima e a de São Pedro. Em dois nichos, encastoados um em cada lado do altar, estavam colocadas as imagens de São Pedro e da Rainha Santa Isabel. Ao lado duas portas que comunicavam com duas pequenas “clausetas”, uma para as bandeiras, tambores e utensílios vários e a outra para arrumos.

A Casa do Espírito de Santo de Cima, situada bem no centro da Fajã, quase no cruzamento do Caminho de Baixo com a rua Direita, a dois passos da igreja, para além de ser amplamente usada durante as festas de ambos os impérios, (São Pedro e Casa de Cima) ainda funcionava, na altura, como uma espécie de salão “multi usos”. Servia para a celebração da missa sempre que a mesma não podia ter lugar na igreja paroquial, quando esta estava em obras. Mas tinha ainda muitas outras funcionalidades quer religiosas quer civis. Era lá que, nas visitas pastorais, o senhor bispo se paramentava para iniciar o cortejo processional até à igreja paroquial, rra lá que se benziam os ramos e se organizava a procissão que precedia a missa no Domingo de Ramos e era lá que se recolhia a coroa da Cuada quando esta se deslocava à Fajã, nos domingos a seguir à Páscoa. Por outro lado, também era lá que se juntava o povo para receber o Governador Civil ou outra entidade, era lá que se reuniam os cabeças com os homens da freguesia para preparar o dia de Fio e arquitectar as estratégias para recolher as ovelhas e foi lá que durante muitos anos a Filarmónica “Nossa Senhora da Saúde” teve a sua sede, sendo lá também que fazia os seus ensaios. Finalmente acresce dizer-se que a Casa do Espírito Santo de Cima ainda funcionou, nas décadas de quarenta e cinquenta, como sala de teatro e até de cinema, servindo, muitas vezes, para sala de reuniões e de convívio da população e até para sala de jantar em dias de casamento, quando o número de convidados dos noivos era tão grande que estes não cabiam na casa de um ou de outro.

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publicado por picodavigia2 às 14:54

RETRETES E CASINHAS

Domingo, 17.11.13

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, havia apenas uma habitação ou duas que gozavam do privilégio de dispor de quarto de banho e ficávamos por aqui, em termos de instalações sanitárias. Daí as parcas e limitadíssimas condições de higiene e as consequências gravosas que eventualmente tinham quer na saúde individual quer na pública.

No que concerne à higiene pessoal, todas as casas tinham, geralmente na cozinha, uma lavatório que servia apenas para lavar as mãos e a cara, embora com o senão de a água, regra geral, não ser renovada com muita frequência. Estes lavatórios, na maioria dos casos, eram de ferro forjado, com sítios anexos para neles se fixar um espelho, pendurar uma ou duas toalhas e, nalguns casos, colocar um jarro para a água. As bacias destes lavatórios, assim como os jarros, quando os havia, nas casas mais pobres, eram de esmalte e nas mais ricas de louça ou cerâmica, sendo algumas ornamentadas com pinturas e sempre acompanhadas pelo respectivo jarro com o mesmo estilo ou desenho. Estes lavatórios assim como as respectivas bacias, sobretudo as de louça, são actualmente muito procurados como peças de adorno com o seu cunho de singularidade histórica e de antiguidade.

Para lavar os pés, limpeza obrigatória diária para a maioria dos que habitualmente andavam descalço antes de se deitarem, havia umas celhas de madeira, designadas precisamente por “celhas se lavar os pés”, acompanhadas quase sempre de um respectivo banquinho, feito de madeira de criptoméria. Geralmente era esta celha que servia também para se tomar uma espécie de banho geral, mas às prestações, nas vésperas de festa, no dia de exame da quarta classe, da comunhão solene, do casamento ou no dia em que se ia à inspecção para a tropa ou se levava a bandeira do Senhor Espírito Santo.

No que às necessidades fisiológicas dizia respeito, umas casas tinham retretes e outras, as mais ricas, as casinhas. Quarto de banho, apenas o da residência do senhor padre. As retretes situavam-se geralmente numa loja de arrumos que ficava no primeiro andar da habitação e eram constituídas por uma ou duas canecas de madeira, geralmente isoladas num canto da loja e separadas por um biombo, por um pano ou por um “taipau” de tábuas velhas, remendadas com tiras dos caixotes de sabão. As canecas tinham, por vezes, uma tampa, mas na maioria dos casos estavam destapadas à espera das moscas varejeiras. Quando rigorosamente cheias tinham que ser transportadas às costas ou à cabeça e eram levadas geralmente para um terreno, não muito longe de casa, de preferência onde houvesse couves ou caseiras. Por sua vez, a limpeza do rabiosque era feita, algumas vezes com sabugos, outras com casca de milho ou feitos secos e, a maioria das vezes, com um pano velho que ia sendo usado por uns, por outros e por todos e que, por fim, ficava tão borrifado, tão atafulhado e tão cheio de sujidade, assemelhava-se a uma espécie de mapa da Polinésia, que já não havia ponta por onde se lhe pegar, nem muito menos sítio para limpar o dito cujo. Por sua vez, nas casas mais ricas havia, geralmente ao lado das mesmas um pequeno cubículo, chamado “casinha”, coberto com telha ou com cimento, onde se colocavam as respectivas canecas, sendo os restantes procedimentos idênticos aos das retretes, tendo apenas a vantagem de ser um local um pouco mais limpo e arejado, impedindo também que os cheiros e os odores se infiltrassem pelo soalho acima e atingissem a moradia, onde as pessoas dormiam, descansavam, cozinhavam e se alimentavam.

Acrescente-se, no entanto, que os campos, sobretudo as terras de mato ou as de milho quando este já estava crescido, possuíam recantos bastante encobertos e muito adequados ao largar da “poia”, constituindo, assim, uma sustentável alternativa às retretes e casinhas.

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publicado por picodavigia2 às 11:54

QUADRAS SOLTAS II

Domingo, 17.11.13

Não tragas tristeza ou dor,

Nem também nenhuma prenda,

Traz apenas teu amor,

Vem comer nossa merenda.

 

Enquanto os ricos petiscam,

Os pobres nadam em fome.

Não há tormento no Mundo,

Que mais me dói e consome.

 

Não me calei por medo,

Nem tão pouco por azia.

Apenas fiz uma pausa,

P’ra ganhar nova energia

.

Olha lá! Gastas teus passos

Indo à Luz, ver o Benfica,

Pois são tantos os fracassos

Que até triste agente fica

 

A “moral” não pode ser

Mafiosa ou bolorenta.

Pois, só julga, não condena

E com pouco se contenta.

 

Não preciso lar ou forno,

P’ra  comer um bom assado.

Amarante… Dom Rodrigo…

Venho de lá consolado.

 

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publicado por picodavigia2 às 11:53

A RUA DA ASSOMADA

Domingo, 17.11.13

Encastoada entre duas colinas, a do Pico e a do Outeiro, a rua da Assomada beneficiava duma aconchegada e agradável protecção dos ventos quando sopravam do norte e do sudoeste. As noites e os dias de forte temporal que fustigavam a Fajã, nos meses do Inverno, com os terríveis ventos nórdicos que sopravam acutilantes e frigidíssimos do cimo da rocha da Ponta, na realidade pouco se faziam sentir na maioria das casas da Assomada. Era pois uma rua de casas abrigadas dos temporais, rodeada de campos, belgas e courelas férteis e verdejantes. Nela moravam, no início da década de cinquenta,  cento e vinte e seis pessoas cujas moradias se estendiam ao longo duma faixa quase rectilínea, sem ladeiras ou declives notórios, apenas entrecortada por uma ou outra canada, ou dotada de um pequeno largo. Possuía a Assomada trinta e três casas habitadas, não havendo, na altura, nenhuma casa de habitação desabitada, excepto a casa de José Pureza, a seguir ao palheiro do Maurício, que se destinava apenas à dormida de alguns dos seus familiares. Havia também na Assomada, logo no início e a fazer esquina com a Praça, uma loja de Comércio, pertencente à firma Martins e Rebelo, gerida pelo Senhor Roberto e, ao lado, a Máquina de Cima, destinada também a receber e desnatar o leite de quem o vendia ao Martins e Rebelo. Além destas construções, a rua ainda tinha oito casas velhas, sem condições de habitabilidade e doze palheiros, num total de cinquenta e cinco edifícios, o que realmente fazia da Assomada a maior rua da Fajã, quer em extensão, quer em número de edifícios, querem população. Haviaainda ao longo da rua dois chafarizes, um deles, o mais antigo, em frente à casa das Senhoras Mendonças, mãe e tias do poeta e escritor Pedro da Silveira e um outro quase no Cimo, logo a seguir à casa do Chico de José Luís. Havia ainda e logo abaixo da primeira fonte, um poço do gado beber água, o qual também possuía uma torneira de água corrente.

A Assomada começava à Praça e seguia para Sul, paralela ao Outeiro, desenhando logo no início das primeiras casas uma pequena curva, formada pela antiga casa de mestre Jorge, o qual tinha, numa das lojas, uma pequena oficina de sapateiro. Esta casa foi demolida a quando da construção da nova estrada, dado que forçava a uma curva muito apertada e estreita, sendo construída uma nova moradia, um pouco mais atrás, num terreno que ali tinha. Assim como esta casa muitos pátios foram destruídos e substituídos por novos, outros foram truncados e reconstruídos com outros muros enquanto outros, como o da casa de meus pais, pura e simplesmente desapareceram, tudo isto em função do alargamento da rua e do desenvolvimento da freguesia. O piso, na altura também era totalmente diferente, sendo do tipo calçada romana, onde existia no meio a chamada “pedra mestra” à volta da qual eram colocadas e apertadas outras mais pequenos. Este piso, com a construção da estrada, também foi totalmente destruído e substituído pelos chamados “paralelos”, ou sejam pedras rectangulares em forma de paralelepípedos, partidas e aparadas no Calhau Miúdo e que eram dispostas em cima duma camada de areia, colocadas em espinha, alinhadas com fios, muito bem apertadas e ligadas e posteriormente batidas com uma maça de madeira, enchendo-se, finalmente, com areia os espaços excedentes entre elas. As casas da Assomada eram quase todas de dois pisos com o inferior para loja de gado, arrumos e retrete. Dispunham-se ao longo da rua, excepto as das três canadas existentes e havia poucos espaços sem casas, a não ser lá mais para o cimo da rua, onde esta se bifurcava, no Caminho da Missa e no dos Lavadouros. Recebendo o seu nome precisamente por ser a primeira rua que se via ou a que se “assomava”
ao vir da Fajãzinha, das Lajes e de Santa Cruz, a Assomada, devido à sua situação geográfica e ao seu aconchego entre as colinas do Pico e do Outeiro, provavelmente terá sido a primeira rua da Fajã a ser povoada e era incontestavelmente a mais importante de todas as ruas periféricas que desembocavam na central e aristocrática Rua Direita.

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publicado por picodavigia2 às 09:55

A POPULAÇÃO DAS COURELAS

Domingo, 17.11.13

Para que fique completo mais um grupo de sete famílias regressaríamos ao chafariz da Rua Direita, onde do lado contrário, ficava a Rua das Courelas, nome que lhe advinha do facto de ali, como aliás em quase toda a freguesia, todas as casas terem a seu lado um pequeno terreno ou “courela”, onde semeavam e plantavam os produtos mais necessários à alimentação quotidiana: couves, feijão, cebolinho, abóboras e batatas. Era, também, na courela que geralmente se fazia o “canteiro” da batata-doce e onde se edificava o estaleiro.

Lá bem no fundo e já no Caminho do Areal morava a tia Cristóvão juntamente com uma familiar de avançada idade, que, no entanto, já nem saía de casa. Pelo contrário a tia Cristóvão, porque muito religiosa e devota, frequentava diariamente a igreja, participava em todas as novenas e vias sacras e visitava assiduamente muitas das casas da Fajã, colaborando assiduamente na proliferação e consolidação dos habituais e tradicionais mexericos, próprios dos lugares pequenos e isolados. Contava-se que estando certa vez de visita a uma casa teria aparentemente desmaiado. Trouxeram-lhe um copo de água. Ao aperceber-se de que era água que lhe estavam a dar, apesar de desmaiada, ripostou:

- Água não me faz bem! Tragam-me antes chá. Quero é chá.

Ali perto, numa casa alta e estrategicamente muito bem situada, envolvida por um cenário paisagístico de sonho, com o Pico da Vigia de um lado e o mar do outro, vivia o José Ti’Ania, com a irmã e um sobrinho, o João Luís, filho de mestre Jorge e que alguns anos mais tarde casou com a Maria Mateus e emigrou.

Mais acima e já em plena Courelas morava o João Cardoso, casado com a Deolinda Rafael e com um filho. A Deolinda para além da vida da casa trabalhava muito no campo, acompanhando sempre o marido em todas as tarefas agrárias e de tratamento do gado. Esta família também cedo deixou a Fajã, emigrando para os Estados Unidos.

A maioria das famílias que moravam no extremo das Courelas ou seja na parte mais afastada da Rua Direita e mais próxima do Areal, partiu para a América ou para o Canadá.

Se não vejamos. Ali ao lado da casa do João Cardoso morava o Francisco Gonçalves, com a mulher, uma filha de Tio Domingos da Tronqueira e os filhos. Toda a família emigrou. Numa transversal que havia imediatamente a seguir à casa do Francisco, num edifício construído naquela época, morava o António do Raulino, casado com uma filha de Tio Antonho de Melo. Este casal, embora não tendo filhos, também abalou para o Canadá. Mais acima, o mesmo aconteceu com o João de Tio Francisco Inácio que partiu para a América com toda a família.

Logo a seguir e no edifício sob o ponto de vista arquitectónico mais emblemático e imponente das Courelas e entre os mais interessantes da freguesia, morava o Lourenço, com a mulher e uma filha. Esta, depois de casar, também partiu para a América. O Lourenço era um lavrador abastado e um homem muito calmo, forte e alto. Também criava gado que ele próprio, todos os dias conduzia, já pelo avançado da noite, a umas relvas que tinha no Vale de Linho, para os lados da Ponta, mas fazendo o trajecto de ida e volta sempre pela Via d’Água, apesar de ser mais longe do que pela Tronqueira e Calhau Miúdo. Geralmente ocupava cargos de responsabilidade, como cabeça de festas e do Fio, director da Sociedade e, quando o António Augusto partiu para Angra, foi nomeado seu substituto como Regedor e Juiz de Paz. Contava-se que as enormes lojas da sua casa teriam sido, em 1915, uma espécie de hospital de campanha aquando do naufrágio da barca Bidart, dado que teria sido lá que os náufragos foram alojados, alimentados e onde teriam recebido os primeiros tratamentos.

Em frente ficava a casa do Vítor, filho do Faroleiro e casado com uma filha de um meu tio paterno que por ali morava. Tinha vários filhos e contígua à sua casa havia um edifício na altura a servir de casa de arrumos e palheiro, mas com algum suposto interesse histórico. É que uma das pedras das portadas deste edifício que supostamente outrora havia sido casa de habitação, tinha assinaladas cruzes, datas e outros sinais de índole religiosa. Como este prédio era contíguo à igreja, cuidava-se que teriam sido pedras pertencentes à primitiva capela, existente antes de igreja paroquial e que provavelmente não teriam sido utilizadas na construção desta, por inadequadas.

Do outro lado da rua ficava a casa do único irmão de meu pai que não se havia esquivado para a América. Meu tio António Joaquim, vivia ali com a tia Adelina e dois filhos. No entanto, como era bastante mais velho do que meu pai, já pouco trabalhava. Passava os dias sentado à Praça a descansar e a cavaquear. Tinha o apelido de “Grota” e como dois dos outros companheiros com quem habitualmente ali se juntava também tinham apelidos começados pela letra G – “Gadelha e “Galinhola”, - este grupo tornou-se célebre, sendo alcunhado pelo “3 Guês”. Raramente ia a casa do meu tio, mas bem me lembro de lá ver um lindo candeeiro a petróleo, com o vidro ornamentado com cores variadas e que se dizia ter tido origem nos destroços do Slavónia, naufragado para os lados do Lajedo em 1909.

A última casa das Courelas era do João Augusto, homem simplório, humilde e bondoso mas, aparentemente, pouco inteligente. Por isso, por vezes, era motivo de chacota e zombaria dos outros. Era o coveiro da freguesia, mas como o negócio não era muito rentável, pois numa população pouco numerosa, apenas morria alguém de vez em quando, também era agricultor e criador de gado, tarefas em que era ajudado pelos dois filhos. A filha Aldina foi das poucas jovens que na altura abandonou a ilha para estudar, fazendo o Curso Geral dos Liceus, no Colégio de Santo António, na Horta.

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publicado por picodavigia2 às 09:48

O ?ONTA DELGADA

Domingo, 17.11.13

Com o desastre do Arnel, encalhado no Baixio dos Anjos, na ilha de Santa Maria, em 19 de Setembro de 1958, poucas horas depois  de ter iniciado mais uma das muitas viagens que realizava entre aquela ilha e a de São Miguel, surgiu a necessidade urgente, por parte da Companhia Insulana de Navegação, de se construir um novo navio que emparceirasse com o Cedros no serviço de transporte de passageiros e carga entre as ilhas. Impunha-se, de facto, um acréscimo de viagens que satisfizesse as exigências da população insular. Se bem o pensou melhor o fez a Insulana. Assim, aquela empresa, que na altura detinha o monopólio do transporte de pessoas e mercadorias entre as ilhas açorianas, mandou de imediato construir um novo navio, o qual foi baptizado com o mesmo nome da maior e mais importante urbe açoriana - “Ponta Delgada”.

O Ponta Delgada foi construído em Lisboa pela construtora NAVALIS, por encomenda da Empresa Insulana de Navegação, destinando-se, de facto, a substituir o Arnel, no serviço de transporte de pessoas e mercadorias nos Açores. O contrato de construção foi assinado a 10 de Março1960. A quilha foi assente em Novembro do mesmo ano, o casco lançado à água em 3 de Abril do ano seguinte e o navio foi dado como pronto e entregue à Insulana em Dezembro seguinte, sendo seu primeiro comandante o capitão Armando Gonçalves Cordeiro. Depois de visitado pelo Ministro da Marinha, almirante Fernando Quintanilha e registado na capitania do porto de Lisboa, o novo navio de passageiros entre as ilhas saiu da capital com rumo a São Miguel, ancorando na doca de Ponta Delgada, em Janeiro do longínquo ano de1962. Apartir de então deu início a viagens regulares entre as ilhas, largando de Ponta Delgada ou para Santa Maria ou para as ilhas do Grupo Central. Na segunda viagem que fez ao Faial, o navio rumou às Flores e Corvo, passando assim a assegurar o serviço de passageiros entre todas as ilhas dos Açores, nomeadamente para as Flores, onde intercalava as viagens com as do Carvalho Araújo, alternando-as mensalmente com o Cedros, permitindo deste modo que a ilha fosse visitada por um navio de quinze em quinze dias. Durante os vinte e dois anos em que navegou nos mares açorianos, servindo as nove ilhas, o Ponta Delgada apenas numa das suas viagens, enquanto veio a Lisboa para reparação, foi substituído por um navio grego, o Aquileus IV, alugado para tal, pela empresa responsável.

O Ponta Delgada tinha cerca de sessenta e dois metros de cumprimento e dez de largura máxima, tendo capacidade para o transporte 400 passageiros e mais de mil toneladas de carga. Com o casco pintado de azul escuro e a restante parte de branco, o navio desfrutava apenas duas classes de passageiros com beliches, mas possuía, na parte traseira um enorme salão, com bancos. Assim aos viajantes mais pobres, era possível abdicar de viajar em primeira ou segunda classe com preços muito caros e optar pela compra de um bilhete de viagem bastante mais barato, na categoria de salão, sem direito nem a beliche nem a alimentação. Quem fizesse esta opção teria que se apressar e, atempadamente, conseguir um lugar no salão para passar a noite, o que por vezes era muito difícil, uma vez que o mesmo se encontrava, geralmente, sobrelotado e, pior do que isso, a abarrotar de vómitos e de cheiros nauseabundos. No entanto, viajar no Ponta Delgada, tinha uma vantagem, pois uma vez que não transportava gado e, dado que o volume de carga era reduzido, as viagens das Flores à Terceira eram bem mais rápidas do que as do Carvalho, demorando geralmente duas noites e um dia.

O Ponta Delgada, que até durante os anos em que serviu os Açores, chegou a fazer alguns cruzeiros ao Continente, cessou a sua actividade transportadora nas ilhas no ano de 1985, sendo, pouco tempo depois, fretado para ser efectuada a bordo a rodagem de um filme. A partir daí e após algumas obras de restauro e modernização, passou apenas a ser utilizado para a realização de pequenos cruzeiros entre Lisboa e o Algarve, efectuando no entanto, anos mais tarde, uma viagem a Moçambique, país onde foi utilizado também com meio de transporte de passageiros. Após esta sua aventura africana, o Ponta Delgada regressou a Lisboa e atracou ao cais do Poço do Bispo, onde permaneceu treze anos, abandonado, marginalizado, destruído e apodrecido, acabando por afundar-se em 3 de Junho de 2001. Triste fim, este do “nosso saudoso” Ponta Delgada, tão útil e tão querido dos açorianos e sobretudo dos florentinos que, familiarmente, o tratavam simplesmente por “ Pontalgada”.

O Ponta Delgada, nas suas viagens às Flores, fez serviço por diversas vezes na Fajã Grande e dele se contam inúmeras aventuras e “estórias”, sendo a mais célebre aquela em que numa noite de temporal o navio, abandonou a doca do Faial e partiu para as Flores. Ao longo da viagem, o estado do tempo piorou substancialmente e a umas boas milhas de distância do Faial, o comandante perdeu o controlo do leme, ficando o barco à deriva, assolado por ventos muito fortes e por ondas altíssimas. Todos entraram em pânico, incluindo o comandante que revelava enormes dificuldades na orientação e comando do navio. Uma onda mais forte provocou-lhe um rombo na borda do casco. Era o fim! A tragédia total” Foi então que um experiente marinheiro do Pico, aclimatado a ventos e tempestades ainda mais fortes, decidiu tirar o leme das mãos do comandante, assumindo ele próprio a condução do navio e em poucas horas conseguiu fazê-lo regressar ao Faial, onde foi recebido por todos com enorme alegria. Os passageiros e a tripulação estavam todos salvos, apenas o navio sofrera graves prejuízos.

 

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