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AS BILHAS DO PETRÓLEO

Quarta-feira, 20.11.13

Na década de cinquenta, o petróleo já era utilizado em quase todas as casas da Fajã, como fonte de energia. O petróleo era necessário, fundamentalmente, para que se tivesse luz em casa ou até fora dela, onde, para além das lanternas, também se podia utilizar os “focses” a pilhas. Também eram utilizadas com alguma frequência algumas gotas daquele inflamável líquido para aspergir os garranchos e a lenha, acendendo-se assim, mais rápida e eficientemente, o lume. Embora algumas pessoas mais pobres ainda utilizassem para iluminação, sobretudo na cozinha, as candeias de ferro fundido, abastecidas com enxúndia de galinha ou com a graxa de fritar o peixe, na maioria das casas, sobretudo quando se fazia serão na sala, também designada por casa de fora, já se usavam os candeeiros a petróleo. Quando se saía de casa em noites escuras e sem lua, para se ir tratar do gado à loja ou ao palheiro ou até para se limpar o esterco dos palheiros ou simplesmente para tirar o leite às vacas a iluminação era efectuada com lanternas também alimentadas a petróleo.

Assim era necessário ir comprar o petróleo às lojas e guardá-lo em casa. O petróleo vinha do continente em bidões, era vendido a retalho aos comerciantes que por sua vez o vendiam ao litro. Um litro de petróleo custava, na altura, oitenta centavos. Mas como se dizia e era crença popular que o dito cujo não havia de ser exposto â luz solar, pois perdia as suas qualidades e enfraquecia, criou-se o hábito de o transportar e guardar em bilhas – as tradicionais bilhas do petróleo. A aquisição de uma bilha, no entanto, não era fácil. O processo mais normal era herdá-la conjuntamente com outros bens de família, o que não era fácil pois a bilha pertenceria por direito próprio apenas ao filho que herdava a casa e o seu recheio. Raramente vinham bilhas fabricadas na Lagoa, em São Miguel e, neste caso comprá-las também não era fácil porque não eram baratas. O processo mais fácil e acessível era pedi-las nas lojas, para onde vinham do continente bilhas de barro cheiinhas de genebra, a qual era vendida, nas lojas, ao copo. Uma vez esvaziadas, as bilhas não tinham nenhuma outra utilidade para os comerciantes que as deitavam fora, sendo as mesmas alvos de cobiça por parte dos pequenos consumidores do petróleo. Eram então que se faziam filas, nas lojas, à espera de que cada qual fosse contemplado com uma bilha de barro para o petróleo.

As bilhas de petróleo eram fáceis de se transportar, pois na pare superior, logo abaixo do gargalo tinham uma pequena asa, a qual se pegava para transporte, mas, por outro lado tinham um inconveniente muito grande, pois se caíssem ao chão desfaziam-se logo em mil pedaços. Lá se ia a bilha e lá se ia o petróleo. Mas verdade é que a bilha do petróleo era uma espécie de ex libris da Fajã Grande e não havia quem a não tivesse, por vezes já sem asa e com o gargalo partido.

                                                 

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publicado por picodavigia2 às 21:19

VIAGEM À ÍNDIA NUMA NOITE (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Quarta-feira, 20.11.13

Segunda-feira, 17 de Junho de 1946                                                              

Uma outra “estória”, que a minha avó me contava era aquela do homem que foi à Índia numa noite num pequeno barco. Contou-ma tantas vezes que jamais a esqueci. Sentada no banquinho de lavar os pés, na cozinha, minha avó contava assim:

Era uma vez um pescador que tinha um pequeno barco, com o qual todos os dias arreava para o mar a fim de apanhar algum peixe para o seu sustento e o da sua família, que era pobre e muito numerosa. Sempre que regressava da pesca, depois de tirar o peixe para terra, lavava o barco, varava-o e guardava-o numa pequena ramada, sem porta, para que secasse durante a noite. No dia seguinte, de madrugada, quando voltava para o mar, o barco estava seco, brilhante e limpo.

Certa manhã, ainda escuro como breu, o pescador dirigiu-se ao porto e verificou que o seu barco estava todo molhado e sujo, como se tivesse sido lançado à água durante a noite. Ficou muito admirado, ainda mais porque, na manhã seguinte, verificou que tinha acontecido o mesmo ao barco, apesar de o deixar bem limpo e seco na véspera. O mesmo aconteceu em todas as manhãs dos dias seguintes. Começou então a pensar na maneira de descobrir quem arreava o seu barco de noite e para onde iam com ele. Por isso, uma noite, pensou esconder-se debaixo da proa, na esperança de descobrir o que realmente acontecia ao barco para aparecer naquele estado todas as manhãs.

Se bem o pensou, melhor o fez e, numa noite, lá foi acaçapar-se bem escondido debaixo da proa. Esperou algum tempo e, por fim, viu aparecer duas mulheres que saltaram para o barco e o arrearam com um à vontade e ligeireza invejáveis.

Sem demoras iniciaram a viagem, na direcção do alto mar, enquanto o pescador, no seu esconderijo, pasmava pois nunca tinha feito uma viagem tão rápida. O pequeno barco parecia que tinha asas e voava. Em breves minutos estavam numa terra. As mulheres, que afinal eram duas feiticeiras, vararam o barco num grande areal e desapareceram. O homem saiu do seu esconderijo e percebeu que estavam na Índia. Decidiu saltar do barco, apanhar um punhado de areia e guardá-lo no bolso do seu casaco. Daí a algum tempo as feiticeiras voltaram para o barco e iniciaram a viagem de regresso. Passados poucos minutos o homem percebeu que tinham chegado ao porto, pois ouviu o cantar dos galos.

Chegaram pois as feiticeiras ao Porto, vararam o barco, meteram-no na ramada e fugiram. O homem saiu do seu esconderijo e foi para casa, ainda estonteado pelo que lhe tinha acontecido.

No dia seguinte contou a toda a gente da freguesia o que lhe tinha sucedido na noite anterior, mas ninguém acreditou, só quando mostrou a areia que pelo aspecto era mesmo da Índia, todos acreditaram que não mentia e que, naquela noite, tinha ido à Índia, no seu barco, juntamente com as duas feiticeiras. Mas para azar do pescador todos ficaram cheios de medo e não mais compraram peixe pescado com aquele barco. Por isso, o pescador teve que desfazer-se do barco, construir um novo e fechá-lo a sete chaves na ramada, todas as noites.

Esta “estória” tem algumas parecenças com a lenda da Cana-da-Índia mas é um pouco diferente.

Era assim que a minha avó a contava.

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publicado por picodavigia2 às 19:13

VIAJADO

Quarta-feira, 20.11.13

“Antes viajado que letrado.”

 

Interessante adágio muito comum na Fajã Grande. Para além de ser a constatação da certeza de que a “experiência é mestra da vida” ou de que mais se aprende vendo, observando, conhecendo e, consequentemente, viajando do que lendo, o uso deste provérbio também poderá significar um grito de revolta contra o isolamento que se vivia não apenas na Fajã Grande mas também em toda a ilha das Flores.

Os que nunca saíam da ilha teriam uma visão muito mais limitada do mundo e das coisas. Pelo contrário os que viajavam até às outras ilhas, ao Continente – entenda-se Lisboa – ou, sobretudo, até à América eram uns privilegiados, pois sabiam e conheciam tudo. Ao regressarem os outros ouviam-nos pasmados. Eram considerados quase heróis, recebidos em festa, ouvidos com respeito e nos primeiros dias, após a chegada, quase nem trabalhavam.

Acrescente-se, no entanto, que o conceito de “letrado”, na Fajã Grande, na década de cinquenta, não era rigorosamente o de quem lia muito, mas do que sabia ler, do que conhecia as letras, embora isso para pouco lhe servisse, uma vez que os livros rareavam, na altura. Daí a supremacia e a maior valorização do viajado, relativamente ao letrado.

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publicado por picodavigia2 às 19:11

O DESASTRE DA RIBEIRA DAS CASAS

Quarta-feira, 20.11.13

Na Fajã Grande chovia com muita frequência e intensidade, pelo que não era necessário regar os campos com a água das nascentes ou das ribeiras, umas e outras a proliferar pela freguesia e a alagar escarpas e veredas. Se por vezes não chovia o necessário, o que acontecia, excepcionalmente, apenas nos meses de verão, faziam-se “rogações” e normalmente Deus atendia as rituais orações do pároco e as fervorosas preces do povo, concedendo a chuva tão desejada e necessária para os campos.

Assim a água que nascia lá do fundo da terra, sobretudo, no Mato e na Rocha e que escorria, em belas cascatas, pelas grotas e ribeiras daquele altíssimo alcantil, sobranceiro à freguesia, era aproveitada apenas e exclusivamente para alimentar os moinhos e para drenar lagoas, ou seja, os terrenos pantanosos onde a erva crescia substancialmente e era ceifada e acarretada para os palheiros para alimento do gado, ou simplesmente servia para lavar roupas e tripas, nos pequenos lagos que se formavam, sobretudo na Ribeira das Casas e na Ribeira, os cursos de água mais próximas do povoado.

Mas para que a água corresse na direcção dos moinhos e movimentasse os seus engenhos com a sua força motriz era preciso controlar o seu caudal, desviá-la do seu curso regular e conduzi-la por regos e levadas, na direcção dos moinhos. A principal ribeira que alimentava moinhos na Fajã Grande, para além da Ribeira do Cão lá para os lados da Ponta, era a Ribeira das Casas.

Orientar e canalizar as suas águas no espaço que ela percorria cá em baixo, perto do povoado e em terreno chão, serpenteando por entre relvas e campos de milho, a ligar o mítico Poço do Bacalhau ao Rolo, onde tinha a sua foz, era tarefa relativamente fácil e nada perigosa. Mas fazê-lo lá no alto, por cima da Rocha, já no Mato, na zona do Bracéu, onde ela corria, altiva e volumosa através de um leito crivado de pedregulhos e com as margens rodeadas de silvados, de calhaus e de bardos de hortênsias era bem mais difícil e perigoso. Mas a tarefa tinha que ser efectuada pelos donos dos moinhos ou pelos seus familiares.

Certa tarde, o moinho do Engenho, situado na margem direita da Ribeira das Casas, logo abaixo das Águas, parou de repente, sem que ninguém o esperasse. Cuidaram os seus proprietários que tal paragem se devia a um inesperado corte de água, lá para cima, no Mato, possivelmente devido a alguma ovelha morta, caída no Caldeirão e que ali encalhara, a alguma ribanceira que se tivesse despenhado, entulhando o caudal ou a outro motivo qualquer. Assim, era imperioso que a ribeira retomasse o seu curso normal e a sua água chegasse ao moinho. O Antonino de José Luís e o Francisco de José Francisco, de imediato, se prontificaram junto dos pais para resolver o imbróglio. Decidiram caminhar os dois para o Mato, com destino ao lugar do Bracéu, nas margens da Ribeira das Casas, precisamente na tentativa de recuperar, orientar e coordenar as suas águas, no sentido de que elas voltassem a alimentar o moinho que não poderia continuar parado. Sem que nada o fizesse prever, enquanto se baixavam para chafurdar nos lodos, arrancar leivas, retirar pedregulhos e troncos de árvores ali encravados pelas enxurradas, a fim de abrir espaço por onde a água voltasse a deslizar, um enorme calhau despenhou-se do alto, atingindo mortalmente o Francisco. Perante o corpo inanimado do amigo, o Antonino começou a fazer sinais alarmantes e a gritar na direcção do povoado, a fim de informar o que se passava e ser enviado auxílio. Foram alguns velhotes que estavam sentados na banqueta da Casa de Espírito Santo de Baixo, a descansar, que deram pelo rebate. Logo grupos de homens partiram lestos para o local enquanto familiares, amigos e praticamente toda a população da Fajã gritava, chorava, clamava e berrava prevendo que enorme desgraça acontecera. No entanto uns homens da Ponta que andavam pero dali, na Rocha, para os lados das Covas, ouvindo os gritos e apercebendo-se da tragédia, adiantaram-se e subindo pela rocha do Vime, chegaram, mais cedo, ao local. Nem eles nem os da Fajã que demandaram o local pouco depois, puderam fazer o que quer que fosse para salvar o Francisco. Na realidade o Francisco estava morto e o Antonino em estado de choque. Desceram a Rocha, com o cadáver às costas e o Antonino aos ombros, por entre os choros e os lamentos de toda a freguesia. O féretro foi colocado na casa velha do Laureano Cardoso, à Praça, aguardando a chegada do Padre Pimentel que alguém fora chamar à Fajãzinha, para onde o reverendo se havia deslocado, a fim de participar na Festa do Patrocínio.

Após ser ungido com a Santa Unção, o corpo do Francisco foi transportado numa simples escada, até à casa dos pais, na Tronqueira, onde foi velado, sendo sepultado no dia seguinte.

Um trágico acontecimento que atingiu drasticamente uma freguesia inteira. O Francisco, um jovem na flor da vida, era muito respeitado e querido, amigo de todos e tinha o seu casamento marcado, precisamente com uma irmã do amigo que o acompanhou em momento tão trágico.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:53

FONTE SACRA

Quarta-feira, 20.11.13

Conta uma antiga lenda, que um dia,

Em zelo pastoral, santo prelado,

Suspendeu sacrossanta romaria

Morto de sede, perdido e cansado

 

Medrava a sede e um tórrido calor,

Assombrava-lhe os passos benfazejos!

Nenhuma fonte havia ao redor

Mas d’água lh’aumentavam os desejos.

 

Sentou-se o bom prelado, já sentindo

Aproximar-se a morte e o juízo.

E à Senhora da Guia foi pedindo

Lhe guardasse lugar no Paraíso.

 

Eis se não quando, olhando para o lado,

Da terra viu brotar uma nascente.

Então, matando a sede, o prelado

Agradeceu a Deus - Pai omnipotente!

 

Por pensar que milagre ali houvera.

O povo crente, humilde e piedoso,

- Houve por bem chamar àquela terra

Fonte Sacra. – Lugar maravilhoso!

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publicado por picodavigia2 às 09:51

O DESCANSADOURO DA CASA DE BAIXO

Quarta-feira, 20.11.13

A Casa do Espírito Santo de Baixo situava-se praticamente no centro da Fajã, na rua Direita, um pouco abaixo da igreja. Um lugar ideal para se transformar em descansadouro, não apenas para repouso e convívio dos que moravam por ali perto mas também como local de descanso para os que atravessavam a freguesia de lés-a-lés, carregando molhos, sacos e cestos. Paralela à rua, a casa possuía no seu exterior uma espécie de bancada, de apenas um degrau, mais alto, a noroeste, do lado da casa do Guarda Furtado e cuja altura ia diminuindo ao longo da casa, de norte para sul, terminando, no lado oposto já “remines” com o caminho.

Era precisamente esta bancada, com o apoio dos degraus das duas portas, que fundamentalmente servia de assento a quem quisesse ali descansar, até porque, ficando voltado a leste, aquele espaço beneficiava de uma sombra magnífica e acolhedora durante toda a tarde. Quando a lotação desta bancada ficava sobrelotada havia um muro relativamente baixo, do outro lado da rua, paredes meias com a máquina de baixo e em frente à casa do senhor Nunes, que funcionava como bancada complementar, embora beneficiasse de sombra apenas a partir de meio da tarde. Para além disso este descansadouro precisamente por ficar entre as casas e por ter mais semelhanças com uma praça, era muito diferente dos que se situavam entre os campos de cultivo, relvas e terras de mato. Entre essas diferenças havia uma que se destacava. É que tinha a excelsa vantagem de possuir água, pois na empena sul da casa de Espírito Santo de Baixo havia um chafariz, com uma fonte onde quem quisesse e necessitasse podia ali saciar a sede.

Este descansadouro, na realidade, funcionava mais como uma espécie de “praça” que os homens procuravam mesmo quando não acarretavam molhos, cestos ou sacos e onde, nas calorentas tardes de verão e aos domingos, se sentavam a descansar e sem fazer coisa alguma a não ser fumar, falquejar, conversar, combinar isto e aquilo, mexericar e meter-se na vida de uns dos outros. Os que utilizavam aquele local para descanso da carga que traziam às costas, colocavam os molhos, os sacos e os cestos sobre os muros do Gil e de Tio José Luís. Eram sobretudo homens da Assomada e das Courelas que vinham das Covas e das Ribeiras das Casas com pesadíssimos molhos de erva, toda encharcada, com o pescoço e a cabeça forrados com sacos de serapilheira para se protegerem da água a pingar-lhes pelo lombo abaixo ou os da Via d´Água e da Tronqueira que vinham do Pocestinho e da Cabaceira, banhados em suores e vergados a pesados cestos de inhames ou molhos de lenha. Mas era sobretudo à tardinha, quando os sócios da Cooperativa ou os seus familiares vinham trazer o leite à máquina e esperavam pelos funcionários e pelo toque do búzio gigante, ali se sentavam a descansar, deliciando com o fresco da tarde, que o descansadouro da Casa de Baixo se enchia quase por completo. Mas como povo atraía povo, muitos outros que por ali passavam também paravam em frente à casa e, se houvesse lugares vagos, sentavam-se associando-se ao descanso e à cavaqueira de fim de dia, transformando aquele local numa espécie de ágora do mexerico, da coscuvilhice e da má-língua.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:49

O BEM E O MAL

Quarta-feira, 20.11.13

O garoto saiu de casa espavorido. Era imperioso regressar com algum. Atravessou o largo de mãos nos bolsos, chutando lata aqui, pedregulho acolá, como quem se revolta contra a indefinição exagerada do destino. Percorreu, titubeante, uma rua escura, esburacada, sem pessoas, sem passeios, sem flores e sem alegria. Chegou ao parque e sentou-se num banco à espera que passasse o primeiro que ostentasse aspecto merecedor da sua ousadia de pedinte. O rosto, salpicado de sujidade, reflectia, simultânea e enigmaticamente, desconfiança e hesitação. Os olhos azulados, mas sem brilho e sem fulgor, revelavam a desesperante inconformidade de esperar nada ou coisa nenhuma. Do nariz escorria-lhe um monco mefítico e escurecido, estancado de vez em quando com as costas da mão. As pernas, integradas num corpo esquelético, balouçavam, aceleradamente, exasperando uma confusa revelia.

A manhã avançava, embora lentamente, mas cerceava as possibilidades de exercitar uma mendigação eficiente e rentável. O sol surgira na máxima força e o calor ameaçava provocá-lo. Procurou outro banco. Por um lado, beneficiava da sombra e por outro parecia-lhe colocar-se em posição mais estratégica.

Tinha razão. Não demorou muito, surgiu o primeiro candidato. Hesitou à primeira, mas aventurou-se... Levantou-se e apenas estendeu a mão... Para quê palavras, a esclarecer um gesto já institucionalizado? Acertouem cheio. Ohomem levou imediatamente a mão ao bolso: cinco escudos. Aparecessem mais como este e regressaria a casa, liberto das contrariedades inerentes ao voltar de mãos vazias.

Os clientes seguintes, no entanto, consubstanciaram autênticos fracassos. Apenas um mocinho, pela sua idade, sem ele entender bem porquê, entrou com cinquenta centavos. A fome começava, no entanto, a fazer-se sentir. Já passava do meio-dia. Empregados, operários, estudantes, regressavam, apressadamente, a casa. Dirigir-se a estes era tempo perdido. Voltar para casa, apenas com aquele dinheiro? Impossível... Não chegava para nada e sujeitava-se a uns valentes tabefes...

O tempo, porém, tornava-se mais quente e sufocado. A tarde avançava e já ia a mais de meio. Uns escudos daqui e outros de acolá e já lhes perdera a conta. Levantou-se. Circundou junto à montra do café e entrou. Era arriscado. Já fora muitas vezes escorraçado dali, mas era local rentável. O primeiro nada. O segundo insultou-o, por entre dentes. Arriscou o terceiro e teve sorte: uma moeda de dez escudos. Saiu apressadamente e veio colocar-se num canto escondido da rua a contar mas sem sucesso. Acertou nas moedas mas errou no dinheiro.

Voltou à montra do café e olhou o cartaz dos gelados. A fome e o calor tentavam. Hesitou... Analisou, demoradamente, a situação... Entrou, saiu e voltou a entrar, aproximando-se do balcão. O homem dos dez escudos já lá não estava. Assim, era mais fácil, pois o seu benemérito não compartilhava a clandestinidade do investimento.

O dono do café, com ar desconfiado e ameaçador, indagou:

- O que queres, pá?

O miúdo apontou timidamente para o gelado pretendido:

- Quero este.

- Tens dinheiro?

Tímido e hesitante, levou a mão ao bolso e colocou em cima do balcão um punhado de moedas. O homem contou-as, pacientemente, uma por uma. Depois, foi buscar o gelado e, quando lhe ia a dar as moedas que sobravam, como visse que o rapaz já se escapulira, nem chamou por ele. Meteu-as na registadora murmurando:

- “Se calhar foram roubadas.”

Cá fora, porém, o garoto iniciava-se, sofregamente,em delícia. Pararafora da porta do café e saboreava sofregamente o gelado.

Mal iniciara o bródio, surge-lhe pela frente o homem dos dez, em tom ameaçador

- Ah! Seu grande tratante! Foi para isso que te dei os dez paus!?

Logo um coro de impropérios organizado por alguns circundantes se formou, em defesa do benemérito traído:

- Estes tipos sabem-na toda!

- Dar-lhe mas era um ponta pé no rabo.

- Falta de trabalho é que é.

- Vadios! Ainda se fosse comida!

Ao longe, uma vizinha acrescia a confusão:

- É para isso que tua mãe te manda? Vais ver, quando chegares a casa!...

A confusão avolumava-se.

Finalmente um polícia que por ali passava, ávido de impor a autoridade, estabelecer a ordem pública e contribuir para a defesa e o bom nome dos cidadãos honrados, interveio com ar arrogante e autoritário:

- Onde é que foste roubar isso, pá?

Como o rapaz não respondesse, acrescentou, agarrando-o pelo braço e apertando sem dó nem piedade:

- Não respondes, pá? Não sabes que te posso prender? Diz lá: onde roubaste essa merda?

Como o garoto permanecesse calado, esboçando contínuas mas frustradas tentativas de libertação das garras do agente da autoridade, este, perdendo a paciência, apertou-lhe o braço com mais violência e sacudiu-o. O gelado caiu no chão, desfazendo-se  por completo.

O grupo dos circundantes dividiu-se, de imediato. Uns, liderados pelo homem dos dez, consideravam que assim é que se impunha a ordem e o respeito, que era preciso acabar com a malandragem e que, se o senhor guarda não tivesse procedido desta forma, o rapaz amanhã faria ainda pior. Outros, associando-se a um velhote que desde o início se mantivera calado, observando a cena, intervieram, condenando radicalmente o guarda, apregoando em alto e bom som, que aquilo não se devia fazer a quem quer que fosse, muito menos a uma criança indefesa.

O miúdo, sem que ninguém desse por isso, aproveitou a confusão reinante para se por na alheta. De vez em quando, de longe, olhava para trás, com ar revoltado e apreensivo. Deambulou pela cidade, lamentando a sua sorte. O desânimo penetrara tão profundamente no seu espírito que decidiu por termo à pedincha.

Continuou, no entanto, a deambular até se perder. Penetrou numa rua de prédios altos, novos e desertos. Transbordava à sua volta um silêncio enigmático e assustador. Aterrava-o o penetrar contínuo e decidido na solidão. Mas quanto mais avançava, mais sentia a abstracção inequívoca do que lhe acontecera. Já não via casas, carros, pessoas… Já não via nada, nem coisa nenhuma.

Chegou, finalmente, a um jardim. Um lago e uma esplanada! Era o princípio do fim da tarde. Clientes, poucos. Apenas sobressaía, bem escarrapachada, numa mesa sobranceira ao lago, uma senhora de idade avançada. Óculos na ponta do nariz, cabelo em estilo rococó, sombrinha esbranquiçada a proteger-se do sol, a velhota vigiava, cuidadosamente, um garoto sentado ao seu lado, muito bem vestido, comendo um enorme gelado de copo, ornamentado com tons de colorido tropical. Perante os protestos da velhota, o rapaz aproximou-se do lago subjacente à esplanada e, num ápice, atirou aos peixinhos o gelado, exasperando mimosamente:

- Eu não gosto deste, avó... Tem gosto a canela... Quero outro... Dá-me outro, avó!...

A velhota ainda ensaiou algumas formas de oposição que, de imediato, esbarraram com a impertinência do garoto. O empregado trouxe novo gelado, em tudo semelhante ao primeiro. O rapaz mimado começou a comê-lo, mas dirigiu-se de novo para a beira do lago, enquanto a avó, cuidando que o segundo gelado teria o mesmo destino do primeiro, corria apressadamente atrás dele, gritando:

- Pedrinho, não voltes a deitar o gelado fora! Ouviste?

A esplanada ficou deserta. Empregado e patrão entretinham-se a contar os trocos na registadora. Em cima da cadeira a velha do penteado rococó deixara a sombrinha esbranquiçada e a mala semiaberta, onde se podiam vislumbrar algumas notas de cem escudos e uma de quinhentos.

O garoto de monco no nariz viu e tremeu... Hesitou e voltou a tremer ainda mais... Mas não teve tempo para reflectir. Ali, à mão!... Era só pegar!... Resolveria o seu problema e ninguém daria por nada. Culpado?! Culpados seriam a mãe, o polícia, o homem dos dez, o dono do café e todos os que o tinham insultado.

Aproximou-se, sorrateiramente, da mesa e tirou uma nota de cem, escapulindo dali com tal rapidez que mais ninguém lhe pôs a vista em cima.

 A velhota, orgulhosa da sua vitória sobre o neto, regressou ao seu lugar, não cessando de vituperar as diabruras do garoto. Nada viu, nem de nada se apercebeu. Sentada de novo, ocupava-se a responder às respeitosas e conspícuas saudações de alguns transeuntes:

- Como tem passado a senhora dona Francisca?

- Senhora dona Francisca, os meus respeitosos cumprimentos!

- Como está senhora dona Francisca? O senhor doutor, seu filho, tem passado bem?

- Ai dona Francisquinha! Há tanto tempo que a não via! Está óptima!...

Longe dali, o garoto de monco no nariz cheio de fome entrou num bar e comeu uma sanduíche de queijo e bebeu um sumol, trocando a nota de cem. Mais adiante, entrou numa pastelaria e comprou um bolo e um pacote de leite achocolatado, pagando com a nota de cinquenta que recebera de troco. Juntou as moedas resultantes de ambas as transacções e fez cinco montinhos mais ou menos idênticos. Ao chegar a casa entregou um à mãe, escondeu os restantes e decidiu tirar férias por cinco dias.

 

*****

O Telejornal das oito, nesse dia, entre a inauguração de um troço de autoestrada e a abertura de uma campanha eleitoral, anunciava mais um caso de corrupção e facturas falsas. Era a firma “Melo & Saraiva L.da”, de que era gerente e principal accionista, o doutor Pedro Lucas Saraiva de Melo. Essa a razão por que a velhota de penteado rococó e sombrinha esbranquiçada não deixou, nessa noite, que o Pedrinho visse televisão.

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publicado por picodavigia2 às 00:08





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