Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



ELE ELA E O PICO

Sábado, 23.11.13

Chegaram! E, à semelhança dos primeiros descobridores, saltaram de ilha para ilha, imersos na incerteza do destino, mas imbuídos de uma enorme ânsia de se emaranharem uma irrequieta e turbulenta aventura. Navegaram num mar repleto de veleiros, de brumas, sobrevoado por gaivotas, mas a abarrotar de tranquilidade, de calma, de confiança, de ternura e de mansidão. Um mar, onde o infinito era limitado e onde a noite teimava em ser dia e perdurava numa claridade acariciadora e permanente. Viajaram num barco repleto de ilusões, de sonhos e de esperanças, orvalhando o rosto com o perfume da maresia, saboreando os salpicos esbranquiçados da espuma, divertindo-se com o balancear cadenciado das ondas, soltando os cabelos à porfia com o vento.

E do mar pularam atrevidamente para terra, sem medos e sem receios. Desembarcaram num porto de pedra carcomida pelo tempo, com barcos a arrastarem-se sobre o pedregulho e com moitões já gastos pela pertinência contínua das amarras. E entraram pelo Pico dentro com a expectativa dos primeiros povoadores e abraçaram-se à enorme e imponente montanha como se ela tivesse sido sempre sua, como se fosse a principal herança dos seus antepassados.

Ela mais velha, mais ousada, mais desejosa de tudo ver e sentir. Ele mais novo, mais tímido e hesitante, mais ávido de tudo tactear e querer. O Pico muito alto e esguio, ora banhado de Sol e de vento, ora envolto em nuvens e chuviscos. Mas para os receber paramentou-se de lava e de fascinação, revestiu-se de faias e vinhedos e pediu à Lua que os acompanhasse, ao menos nas primeiras noites. E o silêncio misterioso da montanha e a imensidão inequívoca do mar, cedo, lhes fizeram esquecer os grunhidos roufenhos da cidade de cimento, o burburinho persistente das ruas apinhadas de carros e de gente, as prisões paralisantes do quinto andar, o emaranhado aterrador dos barulhos que desfazem o silêncio.

E o Pico tornou-se para ela e para ele o seu principal brinquedo. E logo descobriram que junto à ilha, a protege-la e a bafejá-la, estava o mar. Viram-no, sentiram-no, quiseram-no e agarraram-se a ele como se fosse o seu brinquedo de sempre. Banharam-se em águas cálidas, perfuraram ondas sibilantes, nadaram com peixes e gaivotas, banharam-se entre algas e caranguejos, saltaram do alto dos rochedos perfurando as profundezas do oceano e até pescaram. E o mar passou a fazer parte do seu quotidiano, transformando-se no epicentro dos seus folguedos e brincadeiras.

Depois descobriram a terra, feita de um chão de lava negra mas a abarrotar de vinhedos, de milheirais, de faias, de canas e de árvores de fruto. A terra que lhes dava o pão, o bolo, o leite, a carne, as batatas e os legumes para a sopa. E procuraram-na, tocaram-na cavaram-na e até a cobriram de mimos e afectos, acariciando-a com as próprias mãos. Semearam, plantaram, alisaram o chão de lava negra e dele extraíram batatas, inhames, cebolas e cenouras. Apanharam flores e colheram frutos. Deliciaram-se com o mosto adocicado das uvas e o sabor agridoce das amoras. Descobriram que este chão é um mar de lava negra e fria, plantado entre escarpas e veredas e que este mar é um chão de espuma dulcificada, imerso em neblinas e caligens. Perceberam que este chão é povoado por homens de chapéu de palha e de mãos calejadas que lavram os campos e sulcam o mar e de mulheres que calçam albarcas, moçoilas robustas que cozem o bolo e amassam o pão de milho, que atrelam os bois ao arado e que aos serões ainda dançam a “Chamarrita” e cantam o “São Macaio”

E à noitinha, quando ela e ele se sentavam sobre os rochedos enegrecidos e agrestes da beira-mar, aguardando, expectantes e ansiosos, o mítico canto das cagarras, ela e ele descobriram que aqui, no Pico, tudo é tão diferente e que até o céu tem mais estrelas

Autoria e outros dados (tags, etc)

tags:

publicado por picodavigia2 às 21:53

FRÁGIL IDADE

Sábado, 23.11.13

(POEMA DE JOSÉ FRANCISCO COSTA)

 

“Não é preciso dizer-te

Que a vida é mais do que um telhado.

Deixa que o tempo concerte

O que está desconcertado.

 

Vão-se as casas; e o passar

Da vida é tão de repente…

O gosto do céu e do mar

É o que resta da gente.

 

Compra telhas de alegria,

- Que a vida é coisa bem séria.-

E vai sorrindo, Maria,

Aos buracos da miséria.

 

José Francisco Costa

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 21:51

JOÃO LIZANDRO E ESTRADA DA PONTA DA FAJÃ

Sábado, 23.11.13

No lugar da Ponta da Fajã vivia antigamente um homem já de idade avançada, chamado João Lizandro. Casado e pai de um filho, apesar de constar pela freguesia de que teria muito dinheiro, vivia, no entanto com aspecto de pobre. Mas tinha bom coração o João Lizandro e era tão religioso que até mandou construir, a expensas suas, uma pequenina capela, em madeira, bem junto à Rocha e dedicada à Senhora de Fátima. Cuidava, o devoto senhor, que se os que subiam a Rocha invocassem a protecção da Virgem, haviam de ser livres de quedas, derrocadas e outros perigos, que ali eram frequentes.

O João Lizandro vestia sempre a mesma roupa, andava habitualmente descalço e com a barba por fazer, locomovendo-se amparado a um enorme e grosso bordão, apesar de o fazer ainda com bastante agilidade. Mas o que mais caracterizava esta enigmática figura era o interesse que colocava continuamente na defesa dos interesses da localidade onde vivia, ou seja, da Ponta. Esta enorme vontade de defender a sua terra de tudo e de todos, de lutar pelo seu progresso e pelo bem-estar da sua população, levou-o, segundo se dizia, a iniciar uma série de troca de correspondência com Salazar. Pelos vistos o Chefe do Governo Português da altura, possivelmente através de algum secretário, respondia-lhe sempre e João Lisandro foi adquirindo aos poucos, a fama e o estatuto de defensor-mor da dignidade, da verdade e da honestidade, junto do Presidente do Conselho de Portugal. Uma espécie de bastião na luta contra a corrupção, pois sempre que necessário, por este ou por aquele motivo, escrevia a Salazar.

Quando o Almirante Américo Tomás, no início da década de sessenta, visitou a ilha das Flores, deslocou-se também à Fajã Grande, acompanhado do ministro da Obras Públicas, engenheiro Arantes Oliveira, do Governador Civil da Horta, Freitas Pimentel e de todas as autoridades políticas, militares e religiosas da ilha. Acompanhado de toda esta comitiva, Sua Excelência apeou-se à Praça, onde o esperava muito povo. Desceu a rua Direita, toda engalanada e com os sinos a repicar, a Senhora da Saúde a tocar, abanando a uns e sorrindo a outros, terminando o percurso pedestre em frente ao portão do Gil, junto à Casa do Espírito Santo de Baixo. Foi então que João Lizandro, descalço e com a roupinha toda rota e remendada, de bordão na mão e casaco ao ombro, furou a segurança e aproximou-se do mais alto magistrado da nação. Alguns elementos da guarda-fiscal ainda tentaram impedi-lo, mas sem sucesso, dado que Américo Tomás, talvez impressionado pelo aspecto original e genuinamente popular daquele ancião, já o chamara para junto a si, cumprimentando-o. João Lizandro estendeu a mão suja e calejada ao presidente e, sem demoras, apontando para Rocha da Ponta, solicitou-lhe:

- O sinhô tá a vê aquela rocha. Pois eu e mais de cem pessoas moramos ali debaixo daquela desgraça e nam temos sequer ua estradinha pra lá chegar, temos que vir a pé prá qui pa depois apanhá um carre prá vila ou prás lajes. E os doentes tem que sê carregados às costas. O sinhô, por alma dos seus, mande fazer uma estradinha prá gente da Ponta.

Américo Tomás ouviu, atentamente, mantendo a mão do velho Lizandro apertada pela sua e, quando ele terminou, olhou de soslaio para o ministro Arantes Oliveira que logo fez um gesto assertivo com a cabeça, enquanto Freitas Pimentel, furioso, batia com o pé no chão, dizendo:

- Querem uma estrada?! Então já não têm aqui uma, bem nova e bem boa!?

O Presidente entrou para o automóvel e seguiu até ao Porto, onde parou, junto ao farol, para apreciar o mar, a rocha, as quedas de água e o verde dos socalcos e andurriais. De seguida partiu para as Lajes.

Passado algum tempo foi construída a estrada para a Ponta. Se foi ou não devido ao pedido do João Lizandro nunca se saberá. Mas o facto é que na altura, na freguesia, todos acreditavam que a estrada se construiu graças ao pedido que João Lizando fizera ao senhor Presidente da República, quando ele visitou a Fajã.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 20:16

ENCONTRO

Sábado, 23.11.13

Vieram,

(A maioria, de longe)

Cavalgando sombras despedaçadas,

Atiçando labaredas incandescentes,

Na demanda, 

Dos ecos que nunca se perderam,

Dos fragmentos que nunca se estilhaçaram

Do perfume que nunca se evaporou

E da amizade que nunca feneceu.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

tags:

publicado por picodavigia2 às 20:11

RENASCER

Sábado, 23.11.13

Reformara-se novo porque começara a trabalhar ainda garoto. Passava parte das manhãs e as tardes arrastando-se pelos carcomidos bancos dos jardins e avenidas. Apenas entrava num ou noutro café, a seguir ao almoço e entretinha-se, durante algum tempo, a passar os olhos pelo jornal. Depois circulava pelas ruas apático e indiferente, abstraído de sentimentos e absorto em indignação. A vida era vazia de sentido e a cidade parecia-lhe um circo povoado de fantasmas, de arquétipos imbecis e de abantesmas que teimosamente tentavam sobrepor-se à aniquilante solidão que o dominava - um espaço abstruso, quase repugnante e até mesmo inútil, conjugado com um tempo infinito, indeterminado e inaudito. Por vezes, inconscientemente, seguia pela rua da Lapa, virava na do Salgueiros e, cortando à direita, entrava na do Monte Cativo. Estava, assim, vezes sem conta, quase sem se aperceber, em frente à porta de entrada da Semilhas L.da, onde encontrava o Almeida e outros antigos companheiros de trabalho, a quem, na hora do almoço, dava sempre dois dedos de conversa.

Pouco depois afastava-se e recomeçava a caminhar só. O burburinho da rua e o circular constante de transeuntes e veículos davam-lhe uma sensação de imobilidade inútil. Os olhos cravavam-se nos reclames florescentes que teimavam indefinidamente em propagar a sua luminosidade na enorme pertinácia da luz solar. Olhava para as janelas dos prédios onde um ou outro vulto de mulher jovem aparecia e, em sua imaginação, como que se demorava a contemplá-lo. Entrava em mais duas ou três ruas e regressava à Avenida, sentando-se num banco, onde se entretinha-se a atirar umas migalhas aos pombos, ensaiando intermináveis e frustradas tentativas de os contar.

À enigmática insignificância das manhãs e das tardes, misturava-se a pertinente solidão das noites e a tristeza das madrugadas que não floresciam. A viuvez antecipara-se à reforma e ambas se conjugavam, agora, numa conspiração destruidora de projectos e sonhos. Carregava sobre si o estigma duma sociedade cada vez mais industrializada, individualista e competitiva, preocupada, sobretudo, com o consumo e galvanizada pelo avanço tecnológico.

Numa tarde de verão, em que encontrou o Almeida na Baixa, depois de tomarem um café, o Abílio, na tímida tentativa de lhe revelar o tédio enfadonho que continuamente o assombrava, desabafou:

- Sinto-me um subproduto nesta sociedade miserável, caracterizada por uma complexidade evolutiva cada vez maior, onde reina a solidão, o anonimato e o carácter superficial das relações humanas e que rejeita os que já não constituem força de trabalho. Pertenço ingloriamente a uma civilização que transforma os seus membros em consumidores famintos e em abutres desenfreados.

O Almeida, apesar de não o entender muito bem, ouviu-o com atenção. Por fim atirou-lhe de chofre:

- Homem, isto não pode continuar assim! Ainda dás em doido. Tens que dar outro rumo à tua vida... A esperança nunca pode morrer. Não podemos ser nós a acabar com a nossa própria vida, a destruirmo-nos a nós próprios, a não a deixar que os outros nos aniquilem. No fim do mês parto de férias. Tu vens comigo. Isto não é um convite, é uma ordem. Tenho uma casa em Dardavaz perto de Tondela, lá para os lados de Viseu. É para lá que vamos!

A insistência do Almeida foi tanta que, passado algum tempo produziu efeitos.

Circulando pelo IP 5, o Porto, agora, diluía-se numa mais que fragilizada imaginação. À sua frente, bem real, a mais caracterizadamente lusitana das províncias portuguesas - a Beira Alta. Pararam, num miradouro. Para trás ficara Oliveira de Frades e Vouzela. A nascente já se avistava São Pedro do Sul, onde entre casas e arvoredos, proliferavam campos agrícolas e pastagens. Ao redor sobressaíam imponentes, altivas e escuras, um conjunto de montanhas que ora se afundavam ora se erguiam, até se diluírem em lombas de suaves declives ou degenerarem em pisos e fragas abruptas. Lá ao fundo, mais para sul, começavam a desenhar-se os contrafortes da Estrela, que, vista de longe, parecia um monstro baço e obscuro. Misturada com o horizonte, apenas se clarificava pelas suas formas fragosas, abstrusas e opacas. A poente, um maciço, menos agreste e de lombas menos declivosas ia, aos poucos, como que se desfazendo e transformando numa enorme planície interposta entre as montanhas e o mar.

- Ultimamente o concelho de São Pedro do Sul tem-se desenvolvido muito, graças à estância termal, já explorada pelos visigodos, pelos romanos e pelo próprio D. Afonso Henriques, que, segundo se diz, ali terá vindo refugiar-se para se curar duma ferida obtida em combate – explicava o Almeida, que se revelava cada vez mais um perito em questões beirãs.

Viseu surgiu pouco depois. A cidade impunha-se altiva e orgulhosa. Guardiã de testemunhos duma intensa vivência histórica e pré-histórica, Viseu estava ali, como cidade paradigma de um contraste entre o passado e o desenvolvimento moderno, fundamentado na riqueza agrícola, pecuária, vinícola, industrial, comercial e até turística, que toda a região beirã e muito especialmente a sub-região do Dão encerra. Uma visita, embora rápida, deu ao Abílio uma visão da magnífica cidade, com paragens obrigatórias na Sé, monumento dos tempos da nacionalidade. Um magnífico templo de três naves, com as duas imponentes torres românicas, ladeando um frontispício seiscentista, onde se acolhiam as imagens dos quatro evangelistas, de Santa Maria da Assunção e a de São Teotónio, padroeiro da cidade. Em frente, a igreja da Misericórdia e o lado o museu Grão Vasco. Apesar de fechado o Almeida bem explicou que ali, no que fora o antigo Paço Episcopal dos Bispos de Viseu, se encontrava agora um valioso acervo de pinturas, com destaque para alguns painéis quinhentistas, da autoria do patrono. Depois um périplo pela cidade, passando em frente à casa onde nasceu D. Duarte e pelas principais ruas e pelo recinto do Fontelo e da Feira de S. Mateus. O Almeida referiu ainda muitos outros locais de interesse, na cidade e arredores. Ficaria para uma próxima oportunidade. Pacientemente esclarecia o Abílio:

- Existem muitos vestígios históricos nesta região: as antas de Mamaltar do Vale das Fachas, em Rio de Loba e as da Lameira do Fojo, na freguesia do Couto de Cima, o pelourinho de Pevolide, a estrada romana ainda existente em Lordosa. O artesanato também é rico: são as flores de papel de Fragosela, os estanhos de Bodiosa, os linhos de Calde, as rendas de bilro de Torredeita e a latoaria, o ferro forjado e a cestaria de Viseu.

- E a gastronomia? – Interrogava o Abílio – Já ouvi dizer que é de se lhe tirar o chapéu.

- Sim, sim - acrescentava o Almeida – há por aqui umas coisitas jeitosas para acompanhar o Dão. O rancho à moda de Viseu, o arroz de carqueja e o de feijão, o entrecosto com grelos, trutas de escabeche, bacalhau na brasa, a vitela assada, o cabrito assado, os rojões com morcela e batata cozida, não esquecendo os doces como as castanhas de ovos de Viseu, pão-de-ló, arroz doce, leite creme, doces de ovos, enfim, é um nunca mais acabar.

- Isso apenas em Viseu ou em toda a região da Beira Alta? – Interrogava o Abílio.

- Estou a referir-me apenas a Viseu e aos arredores da cidade. Se passarmos a Mangualde, Nelas, Oliveira de Frades, Sátão, Penalva do Castelo, Aguiar da Beira, Castro Daire, tudo se diversifica e aumenta, quer no aspecto histórico, quer no artesanal e no gastronómico.

- Esqueceste Tondela – acrescentou o Abílio? – Será modéstia da tua parte?

- Não, não é modéstia. Tondela é mais do que todas as outras, Tondela é tudo para mim, mas quero que sejas tu a descobrir com os teus próprios olhos. É surpresa, por isso, nada te conto.

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 15:26

A POPULAÇÃO DA VIA D'ÁGUA

Sábado, 23.11.13

A Via d’Água era a rua da Fajã mais próxima do mar. Casas haviam, lá ao fundo, que ficavam paredes-meias com o Oceano Atlântico. Por outro lado, era através dela que circulavam todas as pessoas, corções, carros de bois e outras viaturas que se deslocavam para as terras do Porto, do Estaleiro e do Cantinho ou que tinham como destino a orla marítima desde do Respingadouro até ao Pesqueiro de Terra. Este facto, não apenas lhe dava o nome mas também e sobretudo fazia da rua da Via d’Água a única e exclusiva forma de acessibilidade ao mar.

A Via d’Água começava no fim da rua Direita e no cruzamento com a Tronqueira e iniciava-se com uma ladeira bastante íngreme e sinuosa, frente à casa de José Padre, mas que, sobretudo depois da construção da estrada, tinha todas as condições necessárias e ideais para nós miúdos ensaiarmos as corridas de toda a espécie de carripanas feitas de madeira, de canas ou até de milheiros, arquitectadas e construídas por nós próprios e muitas vezes a esquartejarem-se no meio de todas aqueles salientes pedregulhos de calçada romana, mas que nela deslizavam com uma velocidade estonteante. Muitos galos na cabeça, variadíssimos “mamulos” na testa, um sem fim de arranhões nos braços e nas pernas e muitas negras a cobrirem-nos o corpo todo… Tantas maleitas se conquistavam ali, quando uma ou outra das geringonças em que se descia, por vezes, a velocidade vertiginosa e estonteante, ou se desfazia ou, depois de se despistar na curva lá ao fundo, ia enfiar-se nos muros do Furtado ou emborcar-se nos pátios da Catrina.

No cimo da ladeira, à esquerda de quem descia, morava um irmão da minha avó, o António Maria, casado com uma irmã de José Inácio e Jorge e com uma filho e uma filha, tendo esta falecido, ainda muito jovem. Os pais partiram para América com o filho e venderam a casa ao Roberto, natural de Santa Cruz, casado na Ponta e que era responsável por uma loja que existia à Praça, pertença da firma Martins e Rebelo. Paredes-meias ficava a casa dos filhos de Mestre Mariano, os quais também partiram para a América.

Em frente e do outro lado da rua morava a viúva de José Padre, com duas filhas e dois filhos, o Albano e o José Santos, ambos tocadores na Filarmónica Senhora da Saúde. Uma das filhas, a Ana, estudou no Faial fez o Curso do Magistério e era professora do ensino primário, tendo dado aulas na já então escola mista da Fajã Grande, que funcionava no edifício da Casa de Espírito Santo de Baixo, precisamente no ano em que eu frequentei a primeira classe. Dela guardo as melhores recordações como excelente pessoa e óptima professora, tendo inclusivamente aceitado que eu entrasse para escola em Abril do ano anterior ao que devia entrar, precisamente na altura em que fiz sete anos, pese embora não estivesse matriculado.

Numa pequena casa logo a seguir e separada por uma canada que dava para a residência da Tia Xavier, ficava a moradia de João Inácio, um homem pobre mas bom e generoso. Era da idade de meu pai e muito amigo dele. João Inácio trabalhava muito, apesar de sofrer de uma enorme anomalia corporal que lhe dificultava o andar e que por vezes e juntamente com algumas contrariedades de ordem emocional eram objecto de uma injusta e ingrata chacota por parte de espíritos mais atrevidos e trocistas.  Era casado com uma senhora bastante mais nova do que ele e não tinham filhos. Por sua vez a Tia Xavier era oriunda da Quada, irmã do “Baigoret” e era, segundo se dizia, muito rica e dona de muitas terras. Foi ela que fez papel ao Arnaldo, o faroleiro, depois de a casa onde morou com a mãe ser destruída, a quando da abertura da estrada para o Porto.

Na primeira transversal da Via d’Água e do lado esquerdo de quem descia morava o José Pureza, casado com uma filha da irmã do Jos´Tia’Anina e mais um filho. Na mesma travessa e numa casa que pertencia ao farol, ainda viveu, algum tempo, o Arnaldo que era o faroleiro e consequentemente pessoa rica pois era das poucas que recebiam um ordenado. Casara em segundas núpcias com uma filha de tia Gonçalves. Mais tarde foi viver para a casa da Tia Xavier que lhe fez papel e da qual herdou a casa, as terras e o dinheiro.

Nessa mesma travessa ainda moravam os filhos da Genoveva. Eram um grupo de irmãos todos solteiros dos quais se destacava o Albino, notável pela sua capacidade de negociar, de ajudar em tudo e a todos e ser um dos grandes colaboradores em todas as festas e actividades realizadas na freguesia. Era pela festa da Senhora da Saúde que ele montava uma enorme barraca onde para além de vender bebidas, chocolates e “pinotes”, tinha dois jogos muito procurados por todos os forasteiros: o do “boneco” e o da “pesca à cerveja”. Quanto ao primeiro, tratava-se de um boneco de madeira suspenso num balouço a quem, por cinquenta centavos, se atiravam cinco bolas de pano com o objectivo de levar o boneco a dar uma cambalhota, obtendo nesse caso um prémio – um chocolate ou uma bebida. Por sua vez o da “pesca à cerveja” tinha como objectivo de entre seis jogadores a quem era entregue uma cana com um fio e uma argola na ponta, conseguir ser o primeiro a enfiar a argola no gargalo de uma cerveja. Nesse caso o prémio era a própria cerveja ou uma laranjada ou chocolate. O Albino que passava horas e horas a orientar e acompanhar estes jogos, no fim entregava rigorosamente todo o dinheiro à igreja, para as despesas da festa.

Finalmente numa enorme curva que havia ali a meio da Via d’Água e em frente ao fontanário, numa das melhores casas da Fajã morava a mãe do Arnaldo com a neta e filha do primeiro casamento do filho, até à altura em que foi construída a estrada. A casa teve então que ser demolida para desfazer a enorme curva que ali existia.

Antes da abertura do troço da estrada que ligava o Porto da Fajã à Ladeira do Pessegueiro, a meio da Via d’Água havia um chafariz que ficava numa curva junto à primitiva casa do Arnaldo e um pouco antes da do Chileno. Ao redor do chafariz situavam-se várias casas. Antes da curva e à direita de quem descia havia um prédio geminado onde moravam duas famílias: numa a Catrina com uma irmã e na outra um filho do Raulino Fragueiro, o João que ali vivia com a mulher e um filho, tendo os três, também, emigrado.

Mesmo ao lado do chafariz e no vértice da curva, com um pátio sempre a abarrotar de sécias, azáleas, cubres e  de outras flores a separá-la do caminho, ficava a casa de José Furtado, um homem muito inteligente, sabedor e sobretudo um artista de vários ofícios. Ali vivia com a esposa, uma filha e uma irmã, a Marquinhas Furtado, senhora de uma simpatia e ternura admiráveis. O Furtado, dizia-se, tinha “jeito para tudo”, embora nem sempre tivesse muita paciência para com os que o procuravam na demanda de favores. Uma vez fui pedir-lhe emprestada uma chave de fendas. Ele assomou à porta, com uma calma descomunal e um sorriso cínico e perguntou-me apenas: “Quem sabes se queres uma talhadinha de melão!” Chave!? Nem vê-la! Dei maia volta e regressei como chegara – sem nada. Mas foi ele quem, quando o padre Pimentel visitou à América e comprou um motor para a igreja, uma vez que ainda não havia electricidade na freguesia, montou não só o motor mas toda a instalação eléctrica dentro e fora da igreja, esta por altura das festas. Era ele ainda, sempre que necessário, quem punha o motor a trabalhar, lhe mudava o óleo e fazia a respectiva manutenção. Também “arreou” à baleia, sendo o maquinista da Santa Teresinha. Além disso era músico pois fez parte do primitivo elenco de músicos da senhora da Saúde, tocando saxofone, durante muitos anos. O Furtado, no entanto, aborrecia-se e zangava-se por tudo e por nada. Para o arreliar, e dado que se chamava apenas José Furtado, perguntavam-lhe, de vez em quando:

- O senhor só tem Furtado?

Furioso resmungava em voz baixa com um ou outro palavrão:

- Desculpe, - acrescentava o gozador – é que eu pensava que o Senhor só tinha Furtado.

 E ele que nem uma barata!

Do outro lado da Fonte morava o Roberto de José Padre, casado com uma filha da Maria da Ponta e com dois filhos, o Luís e o José. O José faleceu bastante jovem. Andava a pescar sozinho e sem saber nadar, na Poça das Salemas, caiu ao mar e morreu afogado. Contava-se que andando certo dia o Roberto a lavrar uma terra ali para os lados do Cimo da Assumada, como as vacas trabalhavam mal a mulher tinha que “andar à frente” a fim de as conduzir pelo sítio certo. A determinada altura a mulher perguntou-lhe para que lado queria que voltasse. Já muito aborrecido porque a lavra não lhe estaria a correr de feição, o Roberto parou, veio postar-se em frente à mulher de braços abertos, dizendo: “Por onde a minha menina quiser”. O Roberto foi a terceira vítima do acidente do Vale Fundo, embora sofrendo apenas ferimentos ligeiros.

Ao lado desta casa, e em frente à interessantíssima casa do Chileno, numa outra pequenina morava a Irene Cardoso, juntamente com a mãe, uma senhora já de avançada idade e que já não saía de casa. Por sua vez e do outro lado da rua, mas mesmo ali ao lado da casa do chileno, morava a Irene Sapateira, a única mulher da Fajã assumidamente mãe solteira, embora na altura tal estatuto não granjeasse grande respeito e admiração. A Irene tinha vários filhos e vivia na companhia do tio o “Lajone”, que se dedicava à pesca para ajudar a alimentar os sobrinhos, tendo também sido baleeiro, durante muitos anos. O epíteto de Lajone advinha-lhe do facto de alguém ao regressar da América se ter dirigido a ele e saudando-o por: “Olá, Jonh.”

Finalmente e para terminar o penúltimo grupo de famílias cujas almas dos defuntos seriam lembradas na novena das almas nos últimos dias de Novembro, falta acrescentar a Mariana Felizarda, que morava ali em frente à Irene Sapateira. Ficara viúva muito nova, granjeando assim mais notoriedade e vivia numa casa que foi parcialmente demolida para alargamento da estrada, ali mesmo já quase no Porto. O filho Rafael fez parte do elenco primitivo de músicos da Senhora da Saúde, tocando trombone.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado por picodavigia2 às 09:16





mais sobre mim

foto do autor


pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Novembro 2013

D S T Q Q S S
12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930