PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O MILAGRE DA CHUVA
(Conto Tradicional)
Era uma vez uma aldeia sem pároco, porque os paroquianos exigiam que só viria para a sua paróquia um padre que fosse capaz de, com as suas orações, fazer um milagre: sempre que os seus campos estivessem ressequidos e necessitassem de chuva, o padre, com as suas preces e orações havia de fazer o milagre de chover, dando assim fertilidade aos seus campos a fim de produzirem boas colheitas.
Ora um dia apresentou-se na aldeia um sacerdote, jurando a pés juntos que seria capaz de fazer o milagre, pois, quando todos eles estivessem de acordo e necessitassem de chuva, a chuva havia de cair de imediato sobre os seus campos, por sua intersecção. O povo acreditou e aceitou-o na paróquia. Dias depois apareceram alguns paroquianos pedindo-lhe chuva pois os seus campos estavam secos e os seus animais morriam à sede. O padre aceitou o pedido mas disse-lhes que teria que reunir todos os paroquianos no dia seguinte, para ter a certeza de que estavam todos de acordo.
Assim fez e, no dia seguinte, explicou perante todos o pedido daquele pequeno grupo de paroquianos. Depois perguntou-lhes se estavam todos de acordo, isto é, se todos queriam a chuva. Se caso estivessem ele ia fazer o milagre no dia seguinte.
Mas de acordo é que os paroquianos não estavam. Uns queriam a chuva uma semana mais tarde, outros, duas, alguns três e outros daí a meses.
O pároco então avisou-os:
- Ponham-se de acordo, pois só quando todos concordarem é que posso fazer o milagre.
O mesmo aconteceu com o segundo pedido, com o terceiro e com muitos outros: os paroquianos afinal nunca estavam todos de acordo quanto ao tempo em que queriam ou não queriam a chuva e assim o pároco, para espanto dos seus colegas vizinhos, permaneceu muitos anos naquela aldeia.
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PORCO E GENRO
“”Ao porco e ao genro só se mostra a casa uma vez.”
Adágio fajãgrandense a revelar o “mau relacionamento” por vezes existente, sobretudo, entre sogra e genro, tentando precaver-se contra o mesmo.
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O DESCANSADOURO DO CIMO DA LADEIRA DO CALHAU MIÚDO
Um dos mais importantes, talvez mesmo o mais útil dos descansadouro da Fajã Grande era incontestavelmente o que se situava no Cimo da Ladeira do Calhau Miúdo. Útil e importante porque era ali que descansavam todos os homens que vinham carregados com os pesadíssimos molhos de erva, ainda molhada e a pingar-lhes pelos ombros abaixo, que todas as madrugadas iam ceifar para as lagoas da Ribeira das Casas, dos Moinhos, do Rego do Burro, das Covas, da Rocha do Vime e até dos lados da Ponta. Eram grupos e grupos de homens que caminhavam em coluna pelo caminho e que depois de subir a íngreme e comprida ladeira do Calhau Miúdo, sentiam uma insaciável necessidade de poisarem os molhos sobre as paredes das terras da Cambada e se sentarem a descansar numas toscas banquetas ali construídas ou nuns calhaus soltos que por ali proliferavam, uns colocados ali de propósito outros caídos das altas paredes circundantes. Para além de útil e importante este descansadouro proporcionava aos que ali se sentavam, usufruir de duas belas vistas: uma a norte com a ampla planície da Ribeira das Casas, do rolo e do Vale do Linho a impor-se lado a lado com o oceano e o Monchique lá ao fundo e as casinhas da Ponta, acolhidas à volta da igreja e como que encastradas no sopé da Rocha; outra a Sul, com a Fajã a servir de cenário muito bem alinhadinha entre o Pico da Vigia e o Outeiro. Simplesmente maravilhoso!
A importância deste descansadouro advinha-lhe também e sobretudo pelo facto de ele se situar no cimo duma ladeira, enquanto quase todos os restantes descansadouros da Fajã se localizavam em terrenos planos ou então em ladeiras como as do Batel, da Silveirinha ou do Espigão mas que os homens, em vez de subir, desciam quando carregados com molhos, cestos ou outras cargas. Ali, no Calhau Miúdo era precisamente ao contrário, isto é, os homens subiam a ladeira carregando tudo o que as terras davam para aqueles lados, pois para além dos encharcados molhos de erva, ainda acarretavam às costas cestos de milho ou de inhames da Ribeira das Casas e do Rego do Burro, molhos de incensos ou de lenha das Covas, sacos de batatas daqui e de além e até as moendas que se iam levar moinho ti Manuel Luís. Além disso era também ali que parava, não apenas para descansar mas até para dar dois dedos de conversa e partilhar novidades e mexericos, muita gente da Ponta, nas suas vindas e idas à Fajã para tratar disto ou daquilo ou até no regresso das suas viagens provenientes de locais mais longínquos, como seja das Lages ou da Vila. O descansadouro do Cimo da Ladeira do Calhau Miúdo até servia às gentes da Ponta como local de espera dos passageiros vindos em dia de Carvalho Araújo.
Por estes dias procurei o descansadouro do Cimo da Ladeira do Calhau Miúdo, ali mesmo ao lado da casa do Manuel Branco. Procurei mas não o encontrei, por uma razão muito simples: porque ele simplesmente já não existe, nem sequer uma única pedra dele ali se pode ver, a não ser alguma que eventualmente esteja escondida debaixo dos muros de cimento que actualmente ladeiam grande parte da rua da Tronqueira, no local onde outrora existiu o mais importante e mais útil e um dos mais belos descansadouro da Fajã Grande.
O descansadouro do Cimo da Ladeira do Calhau Miúdo é hoje um mito perdido no tempo, talvez apenas guardado na memória de alguém que também por ali passou, outrora, carregado com um pequeno molho de erva a pingar-lhe por todo o corpo, cansado, desgastado, molhado e desfeito, ansioso por ali colocar o pesado fardo que trazia aos ombros e dele aliviar-se durante alguns minutos, sentando-se, de seguida, não apenas para descansar mas também para conversar com algum amigo
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VACAS DE MADEIRA
Quando eu era criança, a minha principal brincadeira eram as vacas. Tentando imitar a actividade quotidiana dos adultos, fazia-as com o material mais diversificado e de todos os tamanhos, formas, cores e feitios. Umas vezes construía-as com todo e qualquer objecto que se lhes assemelhasse, desde os sabugos de milho às vagens das favas, outras, simplesmente, imaginava-as. Mas foi precisamente quando o meu tio Luís reconstruiu e assoalhou a sua casa na Via d’Água, que o meu pueril e jocoso pecúlio, em termos de bovinos enriqueceu substancialmente e o meu currículo recreador se transformou, melhorando a olhos vistos.
Das pontas das tábuas que sobraram do soalho, havia eu de encontrar um pequeno rectângulo de madeira. Como tudo o que via se me assemelhava a vaca ou a algo que nela se transformasse, aquele minúsculo toro permitiu-me logo concluir que, depois de devidamente trabalhado, transformar-se-ia numa linda vaquinha e, assim, eu havia por termo definitivamente a sabugos, favas e a vacas virtuais. Para facilitar o meu trabalho, o pedacinho de madeira era de criptoméria e, consequentemente, muito mais dúctil e fácil de trabalhar com um pequeno e frágil canivete.
Mal tinha começado a executar o plano arquitectado, quando meu tio se apercebeu das minhas intenções. Vendo que eu não atava nem desatava, aproximou-se de mim, olhou o pequeno paralelepípedo e perguntou-me:
- O que queres fazer com isto?
- Uma vaca. – Respondi, de imediato.
Então meu tio, sem dizer palavra e cheio de paciência, tirou-me das mãos aquele pedacinho de criptoméria e com uma navalha, bem melhor do que o meu canivete, e com outras ferramentas que o carpinteiro ali deixara, cortou, falquejou, aplainou, arredondou, raspou, alisou e em breve o transformou no corpo de um bovino com cabeça e tudo. Depois fez-lhe quatro buraquitos na barriga, espetou-lhes outros tantos pauzinhos a fazer de pés e pregou-lhe duas tachas na cabeça a simular os cornos com as respectivas cabeças a parecerem ponteiras. Para que a obra ainda ficasse mais perfeita, bela e completa pregou-lhe um pedacinho de corda fina, na parte de trás a fazer de rabo. Uma perfeição suprema! Uma obra de arte! Uma vaca como eu nunca imaginara possuir. Coloquei-a no chão. Só lhe faltava andar. Agora concluía que era realmente o fim da era dos sabugos, das favas e das vacas virtuais.
Regressei a casa feliz e guardei muito bem a minha “Formosa”, pois era assim que ela se havia de chamar. Fiz-lhe um palheiro, com manjedoura, rego, poça e tudo.
Mas uma vaca era pouco para as minhas brincadeiras quotidianas. Necessitava pelo menos de duas e um ou dois bezerros. É verdade que arranjei umas tiras de madeira, mas duras e pouco adequadas. É verdade que fiz dois ou três bezerros e uma vaca, mas esta saiu-me um autêntico “cramilhano”. Feia, magra, mal feita, quase não se aguentando em pé. Parecia realmente uma autêntica vaca velha, sobretudo porque ao lado da outra, da “Formosa” que era nova e bonita. Mas eram ambas as minhas vacas de madeira com as quais brinquei tantos anos e que hoje gostava muito de voltar a possuir
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PELO SINAL
Pelo sinal
Do pico real
Comi toucinho
Não me fez mal nenhum
Se mais tivesse
Mais comia
Adeus senhor padre
Até outro dia.
(Aravia popular fajãgrandense)
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A ORIGEM DOS ERROS
“Metade dos nossos erros, na vida, nascem do facto de sentirmos quando devíamos pensar e pensarmos quando devíamos sentir.”
(J. Collins)
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HOJE
Passaram-se anos, muitos e muitos anos. Mas enfim! Hoje foi possível regressar à Fajã e voltar a ver, lá bem no alto, o “Pico da Vigia”, dos meus tempos idos, mas ainda hoje a manter-se como que coroado com a pequenina vigia da baleia e observar o seu companheiro de sempre, paralelo na direcção do mar, o “Outeiro”, encimado com uma enorme e altiva cruz, cuja origem se desconhece porque perdida no tempo. Por entre um e outro continuam a desfilar, destemida e ousadamente, as pequenas mas sorridentes, casas da Assomada, umas brancas de neve outras velhas, escuras e abandonadas e até a esmoronarem-se de tão antigas e desertificadas. Mas muitas, mesmo muitas das que por ali proliferam são novas, estranhas, desconhecidas, a substituir os antigos milheiras das pequenas mas férteis terras circundantes. Outras, mas mesmo muitas outras, lá para baixo, a transformarem em bairros os amplos e produtivos cerrados do Porto, do Estaleiro, do Calhau Miúdo, das Furnas e até do Areal, ou simplesmente a entrelaçarem-se por entre as velhinhas moradias da Tronqueira e da Via de Água, muito bem demarcadas e delineadas mas a confundirem sentimentos e a desfazerem memórias. A Fajã das sete ruas com duas casas no Porto e uma no Alagoeiro, esfumou-se no tempo, desapareceu. E hoje, ao lado das vivendas de ontem, dos obsoletos e decrépitos palheiros, agora recuperados e transformados em cafés e restaurantes e das casas velhas ou de arrumos recicladas e a abarrotar de uma graciosidade estranha e de um tradicionalismo inexaurível, surge uma gama de novas e estranhas moradias. E lá ao fundo, o mar permanece azulado e roufenho e o baixio, outrora negro e empedernido a abarrotar de lapas e sargaços, agora surge mais calmo e tranquilo, com os seus caneiros, baías e portos transformados em piscinas naturais, quais redutos de água salgada, rodeada de muralhas de cimento que foram aniquilando a sua pertinente e intrínseca negrura e desfazendo o seu brilho lávico e bassáltico. Campos de milho a abarrotar de cizânias e junquilho, courelas de batata-doce atulhadas de feitos e heras, pastagens transformadas em campos de cana roca e incensos esguios. Canadas obstruídas por ervas e silvados, veredas desfeitas e a abarrotar de pedregulhos soltos, caminhos tapados com calhaus e penhascos e descansadouros perdidos na memória dos mortais. Até as altas, rústicas e estranhamente arquitectadas paredes da ladeira do Batel, a própria laje da Silveirinha e o Calhau das Feiticeiras se transformaram em mitos, desfeitos pelo tempo e calcificados pela memória de muitos mas que, apesar de tudo, ainda espreitam teimosamente um ténue regresso à memória dos vindouros. Já não se ouve o tilintar das campainhas das vacas, o chiar dos carros de bois ou o arrastar das alabaças dos corsões sobre as lajes calejadas dos caminhos, apesar de ainda haver cangas e tamoeiros a ornamentar as paredes dos snak-bares. Já não há vergas na rocha, nem moinhos impulsionados pela força jactante das águas, já não se pescam vejas, nem enchovas ou bicudas na ponta do Cais, mas no Porto Velho e na Coalheira ainda há respingos de salmouro e vagas revoltas com os ventos do oeste. Até na igreja paroquial, Santa Teresinha foi colocada no fundo do transepto, o Coração de Jesus mudou de altar e a Senhora do Carmo foi engavetada na sacristia. Nas ruas apenas um ou outro rosto de outrora. É uma Fajã, ora desfeita, ora alterada, ora teimando em manter-se nas roupagens e costumes de antanho mas a querer banhar-se nas exigências duma modernidade cerceada pelos imperativos do isolamento, da desertificação e do abandono.
Talvez por isso mesmo e juntamente com o Pico da Vigia e o com Outeiro, ainda lá, mais no alto, esteja a rocha, altiva e imponente, a ufanar-se com a Fonte Vermelha e a pavonear-se da Furna do Peito, com inúmeras quedas de água a banharem-lhe penhascos e ravinas e a irradiar uma beleza, uma imponência e uma sublimidade contagiantes. Também ainda lá está o mar com o Monchique bem escarrapachado no meio, com a Baixa-Rasa ao lado, a Poça das Salemas a abarrotar de lapas e caranguejos e o Rolo à espera da chegada do sargaço. Também ainda há torresmos, morcela, linguiça e inhames, mas confesso a minha tamanha estupefacção por estranhamente me ter banqueteado com eles, ali, no abandonado palheiro do João Fragueiro, em frente à Casa do Espírito Santo de Baixo, onde funcionava a escola primária e que servia de latrina a quantos a frequentaram na década de cinquenta.
Texto publicado no Pico da Vigia em 4/9/11
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A ÚLTIMA GANHOA A PARTIR
O mar mudou de cor
e entristeceu-se.
Partiu mais uma ganhoa,
mascarada de vento,
na penumbra duma procela.
Apenas a imagem
- uma sombra trémula -
ficou desenhada no chão do cais,
pétreo e deserto!
Depois partiu outra
e mais uma outra…
Tantas…
O mar sempre a transtornar-se
e o cais pejado de sombras trémulas.
Partiu a última ganhoa!
Chegou o inverno
e tudo se vestiu
de ausência
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A MINHA CASA
A minha casa, ou melhor a casa onde eu nasci, era ali na Assomada, (na Fajã Grande) à beirinha do caminho, muito pobre e pequenina, mas desvanecedora e alegre, rodeada de minúsculos campos onde floresciam girassóis misturados com milheirais e de courelas onde cresciam batatais intercalados com couves e abóboras, circundada por muitas outras casas também pobres e pequeninas, semelhantes à minha e onde moravam as minhas vizinhas, agastadas por trabalhos e canseiras, com o xaile a cobrir-lhes o cocuruto, mas sempre prontas a ajudar, a aconselhar, a disponibilizar préstimos, a conceder favores e muito amigas da minha mãe. A casa onde eu nasci tinha as paredes carcomidas pelo tempo, soalho esburacado e telhas levantadas pelo vento, mas tinha as janelas voltadas para o mar e as portas abertas para a madrugada. A minha casa tinha um quarto onde, junto à cama de meus pais, balouçava um berço, atávico valhacouto da nossa meninice, que nos ia embalando para a vida, uns após os outros. E também tinha uma sala muito ampla, mas com cadeiras a desfazerem e caixas onde se guardavam as roupas que vinham da América e as colchas tecidas no tear, mas que era muito clara e arejada. A minha casa tinha uma cozinha, esconsa e de paredes tisnadas, a abarrotar de fumo e cheiro a leite e pão de milho. A minha casa tinha uma loja onde dormia a Benfeita, a Trigueira e os seus filhotes. A minha casa tinha um pátio onde eu brincava, onde minha mãe punha a roupa a “coarar” e onde ela assomava, vezes sem conta, para dar dois dedos de conversa às vizinha ou para lhes pedir umas folhinhas de salsa. A minha casa era a minha casa, mas muito minha, toda minha, pois foi nela que nasci, brinquei, cresci e entendi que mesmo sendo pobre e pequenina era a minha casa.
E quatro décadas de tempo desfizeram a minha casa toda, de uma ponta à outra e do alto a baixo! Lançaram sobre ela um temível vendaval que a transformou, que a desfez por completo, ocultando-a de meus olhos, destruindo sonhos, emoções e desejos. Mas, mesmo desfeita, transformada, a minha casa ainda lá está, no mesmo sítio, à beirinha do caminho. Mas na minha casa já não há berço, nem cadeiras velhas, nem claridade, nem portas abertas para as madrugadas, nem janelas a abrirem-se para receber refolgos de maresia. Na minha casa já não há paredes carcomidas, nem chão esburacado, nem cheiro a bolo quente e a queijo fresco. A minha casa já não tem pátio, nem loja, nem Benfeita, nem bafo dos animais ou o tilintar das suas campainhas. Ao redor da minha casa já não existem campos repletos de milheirais a sorrirem como os girassóis floridos, nem bardos de faias do norte a separar os campos e protegê-los do vento norte. Ao redor da minha casa já não há vizinhas, nem velhinhas a visitar a minha mãe e disponibilizar-lhe préstimos e ajuda. Pior do que isso: a minha casa tornou-se uma espécie de chão deserto, um catafalco vácuo, um mistério petrificado, um enigma indecifrável e, como se isso ainda não bastasse, a minha casa até deixou de ser a minha casa.