PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
SERNANCELHE E A LENDA DO SANTUÁRIO DA LAPA
Com uma área 222 Km2 e 16 freguesias, o concelho de Sernancelhe pertence ao Distrito de Viseu e fica encravado numa zona montanhosa situada entre o planalto da Nave, a ocidente, e a serra de S. Gens, a oriente, sendo atravessado, de sul a norte, pelo rio Távora, afluente do Douro. A vila e região de Sernancelhe têm as suas origens históricas no castro do Monte Castelo, sobranceiro ao rio Medreiro. Espalhados pelo concelho, existem inúmeros vestígios históricos e testemunhos vivos da época castreja, verificando-se, também, uma clara influência da dominação romana em pontes, estradas, cipós (marcos de divisão do território) marcos miliários (marcos de divisão das estradas), restos de cerâmica e muitos outros.
A fundação do município é anterior à Nacionalidade. O primeiro foral remonta a 1124, sendo assinado pelos ricos-homens D. Egas Gosendes e D. João Viegas. Sernancelhe também foi “Honra” de Egas Moniz. Mas foi sobretudo nos séculos XV e XVI que houve grande desenvolvimento da região, durante os quais se foram firmando, importantes locais de culto, dotados de notáveis obras de arte. O mais célebre foi o Santuário da Lapa, ao qual se associou mais tarde o célebre colégio dos jesuítas, onde estudou Aquilino Ribeiro, local de peregrinações a que os fiéis acorriam com ricas e generosas ofertas. Daí que um dos locais de interesse a visitar em Sernancelhe é, entre muitos outros, na freguesia de Quintela, o Santuário da Lapa que guarda, na capela-mor, o rochedo milagroso com a imagem da Senhora da Lapa, cujo altar foi construído precisamente no local onde, segundo a lenda, a pastora Joana encontrou a imagem escondida pelas religiosas, numa gruta ou lapa, no século X. Segundo reza a lenda, Joana era uma criança muda que andava pelos campos a cuidar do rebanho de seus pais. Ao chegar a casa mostrou a imagem à mãe. Esta porém não lhe deu importância e lançou-a à fogueira. Nessa altura a pastora recuperou a fala e a mãe, aflitíssima, atirou-se ao lume e conseguiu recuperar a imagem. A fama deste e doutros milagres espalhou-se por toda a Beira Alta, ganhando grande importância simbólica e religiosa. Dentro do Santuário ainda existe um rochedo com uma fresta bastante apertada, por onde os fiéis devem passar, só conseguindo fazê-lo quem estiver em estado de graça e ainda um enorme crocodilo, pintado de verde, actualmente guardado nas traseiras do templo.
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CALMARIA
(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Verão. Dois velhos
Sentados à Praça.
Lembram casos dos tempos das baleias
E vêem quem passa.
Um vapor que lá vai
Pela linha do pego, lado a lado.
E uma chuva de sol
No mar parado.
Dir-se-á que nada
Acaba ou começa.
Um relógio dá horas.
Devagar. Molemente. Não tem pressa.
Pedro da Silveira In “Primeira Voz”
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O "BANHO" DA SENHORA DA SAÚDE
Desde há décadas, talvez mesmo séculos que a paróquia da Fajã Grande das Flores e as suas gentes prestam uma expressiva e glorificante homenagem à Virgem Nossa Senhora, sob a invocação de Senhora da Saúdem, consubstanciando-a numa das maiores e mais importantes festas da ilha. Outrora celebrada no dia oito de Setembro, dia em que a Igreja Católica comemora a festa litúrgica da Natividade ou do nascimento da Mãe de Deus, a festa passou a celebrar-se, desde há alguns anos, no segundo domingo de Setembro. A actual imagem, que se reporta parcialmente ao início da década de cinquenta, representa a Virgem com uma digna e virtuosa simplicidade: de mãos postas, vestida com uma túnica cor-de-rosa e um manto azul e com uma coroa dourada na cabeça.
A antiga imagem, no que respeita à sua forma, aspecto ou desenho, era rigorosamente igual à actual, sendo, no entanto, muitíssimo diferente no que à sua pintura diz respeito, Tratava-se de uma bela, artística e valiosíssima imagem, bastante semelhante à actual Senhora do Rosário, que ainda existe num dos altares laterais da igreja paroquial, mas sem rosário e sem o Menino, pintada a ouro em estilo barroco. Uma autêntica e verdadeira obra de arte, ou seja uma imagem com um notável valor histórico.
No início da década de cinquenta, por indicação de algumas pessoas mais importantes ou com maior influência na freguesia e mais afectas à igreja e com o apoio económico de um ou outro americano, o pároco da freguesia, na altura, entendeu que se tratava duma imagem “velha, estragada e sem graça nenhuma”. Muitos paroquianos partilhavam a mesma concepção e apoiaram a ideia do pároco. Havia pois que mudá-la, torná-la moderna e, sobretudo, mais bonita. Comprar uma nova não era fácil e o povo podia não gostar. Por isso a solução foi dar-lhe uma espécie de “banho” e reciclá-la ou seja mandar pintá-la com umas cores alegres, garridas que toda a gente gostasse, o azul celeste e o cor-de-rosa, o primeiro, simbolicamente, puro e o segundo, caracteristicamente, feminino. E lá seguiu Nossa Senhora da Saúde, muito bem embalada, dentro de um caixote, protegida com trapos velhos e papelões a bordo do Carvalho Araújo, com destino a Braga, para regressar uns meses depois, bonitinha, airosa, pintadinha de fresco, com as tais cores alegres, garridas, bonitas puras e femininas que ainda agora ostenta.
A mim não me repugna imaginar que o pintor a quem foi destinado aquele trabalho de pintar a imagem com cores modernas, ou alguém por ele, tivesse a sensibilidade artística necessária e suficiente para entender o valor artístico daquela imagem e, em vez de a pintar ou melhor de destruir a pintura primitiva, a tivesse guardado nalgum museu de arte sacra ou vendido para algum coleccionador de arte antiga, limitando-se a fazer uma outra imagem “fac símile”, pintando-a com as cores desejadas e que remeteu para a Fajã Grande como se fosse, de facto, a verdadeira imagem da Senhora da Saúde.
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HUMBERTO BETTENCOURT
Humberto de Bettencourt Medeiros e Câmara nasceu na cidade de Ponta Delgada, em 31 de Janeiro de 1875, tendo falecido na mesma cidade em 23 de Dezembro de 1963. Depois de adquirir o bacharelato em Direito pela Universidade de Coimbra, regressou à sua cidade natal, desistiu da advocacia, seguindo uma carreira de professor do ensino secundário no Liceu de Ponta Delgada e na Escola Normal. Jornalista, nos últimos anos da Monarquia, dirigiu o Correio Micaelense, órgão do Partido Progressista. Foi o primeiro presidente da direcção do Instituto Cultural de Ponta Delgada e seu fundador com outros.
Ainda estudante do liceu, em 1894, fundou com outros alunos a revista Exoterismos, órgão dos simbolistas e depois, em Coimbra, acamaradou com Afonso Lopes Vieira, Eugénio de Castro e Carlos Mesquita. Acabou por se afastar do simbolismo e, regressado a S. Miguel, converteu-se ao neogarretismo e, mais tarde, ao nacionalismo literário. A sua obra manteve-se dispersa por muitos anos, acabando o próprio autor por recolhê-la, numa antologia, em 1955 - A Ilha Nova e Outras Rimas Esparsas.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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FONTE VERMELHA
Encravada na rocha,
a abarrotar frescura,
vertendo,
sem cessar
um fio cristalino,
diáfano,
ornado
com o perfume
do poejo
e o sabor
da nêveda.
Encravada na rocha,
a ejacular
em bica
- um tufo negro
fofo e macio
onde os pássaros pousam
sem temor –
a essência doce
das flores selvagens
e dos bosques refrescantes.
Encravada na rocha
à espera
que cada caminhante,
cansado
e sequioso
a demandasse
e nela,
definitivamente,
saciasse a sua sede
Fonte Vermelha!
Um mito perdido no tempo.
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OS TRABALHOS, AS CANSEIRAS E O FIM DA MINHA BENFEITA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
13 de Novembro de 1946
“Que saudades eu tenho da minha Benfeita. Era o meu “ai Jesus”. Era uma vaca lavrada de preto e branco, com um pelo muito luzidio e um andar muito elegante. Boa de leite e sempre pronta a puxar o arado ou o corção.
Nasceu e foi criada no meu palheiro. A sua mãe era uma vaca toucada que tive durante muitos anos e o pai, um belo touro de meu compadre Mateus. Bem cedo percebi que daquela bezerra se havia fazer uma boa vaca de leite. Não me enganei. Apanhou cria muito nova e logo na primeira vez que pariu, deu-me a lata grande de 12 litros, a transbordar de leite.
Coitadinha! É que cedo, ainda era bezerrinha, meti-lhe a canga e habituei-a ao trabalho. A valente nunca me virou a cara às sementeiras, ao lavrar dos campos ou ao puxar o “corsão” de canguinha, bem carregado, umas vezes de lenha, outras de milho e outras de feitos e cana roca. Ainda nem tinha um ano e já calcorreara o cerrado do Areal três vezes. A primeira faina era a mais árdua e desgastante. A terra estava coberta duma camada de estrume que ela havia carreado, dias a fio. Tornava-se muito rija com os rigores climatéricos do Inverno, por isso tinha que ser lavrada com o arado de ferro, muito mais pesado e com umas aivecas gigantes que perfuravam a terra em grandes sulcos. Mas aquela valente tinha que o puxar de canguinha. Ela lá ia pacientemente, lutando contra a força opositora dos regos sulcados pelo arado e contra os impropérios, insultos, ameaças e, por vezes vergastadas que lhe dava. Pobre coitada! Agora bem me arrependo. Eram horas e horas de trabalho, de esforço e canseiras. No fim estava exausta. Da boca escumava-lhe uma baba esbranquiçada que lhe caía em fios sobre a terra fresca, o corpo cobria-se-lhe de suores, sentia vertigens, quase desfalecia. É verdade que no fim lhe passava a mão pelo lombo, lhe anafava os pelos, lhe fazia uns carinhos e lhe dava umas maçarocas de milho, o que servia de lenitivo para o enorme desgaste e sofrimento. Sim, porque os animais também sofrem e não se queixam. Depois seguia-se o puxar da grade, tarefa não menos árdua do que a anterior, embora bastante mais rápida. É que a terra não podia ficar assim cheia de leivas e torrões, a aquecer ao Sol. Amarrava-a então à uma grade, cravejada de enormes bicos de ferro de um dos lados. Do outro lado colocava-lhe enormes pedregulhos a fim de que os dentes de ferro penetrassem na terra e a alisassem. Passados dois ou três dias a Benfeita voltava ao serrado do Areal. Agora era encangada ao arado de madeira muito mais leve e com uma pequena aiveca de madeira com uma luzidia ponteira de ferro que ia abrindo pequenos regos destinados à sementeira do milho. Eu voltava a atrelá-la ao arado e ela, sozinha e sem ninguém diante, traçava regos paralelos e simétricos de uma extremidade à outra do serrado. A minha Maria seguia atrás de nós e, retirando punhados de milho de uma cesta que levava enfiada no braço, atirava os grãos com tanta agilidade e perícia que eles caiam direitinhos no rego, muito bem alinhados uns à frente dos outros. A Benfeita parava quando era preciso alisar algum torrão com a aguilhada e virava no fim de cada rego que se fechava com o abrir do seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. No fim voltavam os mimos e as maçarocas de milho pois esperava-a, mais uma vez, a grade. A terra tinha que ser de novo gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos e assim germinassem mais facilmente.