PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PALAVRAS, DITOS E EXPRESSÕES UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (V)
Aqui se transcrevem mais algumas palavras, ditos ou expressões utilizadas na Fajã na década de cinquenta, sendo a maioria citada apenas de memória.
Apoquentar – Inquietar.
Arreganhar a taxa – Rir por tudo e por nada, fazer pouco de outro.
Avantajar – Sacudir os cereais contra o vento para separar o grão da moinha.
Bispar – Observar meticulosamente.
Blica – Pénis.
Cambeiros - Maxilares
Cemenos – Mau.
Chança - Oportunidade
Clauseta – Armário
Dar à trela – Falar sem ser necessário.
De veras – A sério,
Desbragalado – Com as roupas desabotoadas ou abertas no peito.
Enxúndia – Gordura de galinha utilizada outrora nas candeias das cozinhas.
Escaleira – Escada com degraus de pedra de um caminho ou canada.
Estás bem amanhado – Estás metido em problemas graves.
Falsa – Sótão.
Gadanhos – Mãos.
Gaitada – Gargalhada.
Galhos – Cornos, chifres.
Gama – Pastilha elástica.
Guindar – Saltar paredes (especialmente as vacas).
Há um bom padaço – Há muito tempo.
Linheiro - Ninho
Macaquins – Desenhos animados.
Nam t’inchergas – Não te conheces, desconheces a tua maneira de ser.
Nesga – Pouco.
Nisca de gente – Criança ou pessoa insignificante.
Pana – Alguidar de plástico.
Paranhas – Teias de aranha.
Pavia – Pequeno molho de rama de milho ou de um cereal..
Peleijar – Discutir com zanga, ralhar com alguém.
Pinchar – Saltar, pular.
Psinchinho – Muito pequeno
Resminés – Pouco abundante. Quase igual.
Samarra – casaco.
Serrado – Grande terreno agrícola.
Tirante – Trave da casa, solta, onde geralmente se pendura alguma coisa.
Uma pisquinha – Pouco, quase nada
Vento encanado – Corrente de ar.
Wei home – Olá.
Zangaliar – Não estar seguro ou bem fixo.
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TRABALHO DE MENINO
“O trabalho de menino é pouco, mas quem o perde é louco.”
Adágio muito conhecido, outrora, na Fajã Grande, a significar que devemos aceitar sempre todo e qualquer tipo de ajuda por mais pequeno ou insignificante que seja, porque mais cedo ou mais tarde dela havemos de precisar.
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A LENDA DAS SETE CALDEIRAS DAS FLORES (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Domingo, 23 de Junho de 1946
Outra estória que a minha avó contava era esta sobre a maneira como se formaram as lindas lagoas que temos nesta nossa ilha das Flores. Contava ela que havia nesta ilha um homem que tinha um filho que se chamava João, um nome muito usado por aqui. O monço era muito sonhador, mas simples e bom, como era toda esta gente da ilha das Flores.
Ora um belo dia o pequeno caminhou para esses matos, sozinho, carregando duas bilhas de água às costas para dar de beber ao seu gado que tinha lá pra riba. O rapaz tinha ido buscar a água longe, lá prás bandas da Burrinha. Ia sozinho e a sonhar, com os pés na terra e a cabeça na Lua, como é natural na maioria dos rapazes da sua idade. Ao chegar ao mato encontrou, a certa altura, um buraco no caminho e disse em voz alta, para si mesmo:
- Dizem que nas outras ilhas e em muitos lugares por esse mundo fora há lagoas e caldeiras muito bonitas. Porque será que aqui na minha ilha das Flores não as há? Pois eu vou mas é deitar esta água neste buraco pra fazer uma lagoa bem bonita.
Se bem o pensou melhor o fez e aproximou-se do buraco, pegou numa das bilhas de barro que trazia cheia de água e despejou-a no buraco que encontrara no chão. Com a facilidade com que tinha sonhado em fazer as lagoas, logo se formou a primeira caldeira. O monço deu pulos de contentamento e logo pensou: "Sempre que encontrar buracos no chão, vou fazer o mesmo!"
Ali ao lado estava outro buraco, ainda mais fundo e o rapaz, com confiança, vazou-lhe dentro a outra bilha de água. Formou-se outra vez uma lagoa, muito funda mas também muito bonita. Cada vez mais animado com o que via o moço voltou atrás e foi de novo encher as bilhas. Levado pelo sonho, foi andando, andando, pela ilha, tendo encontrado mais cinco buracos, onde foi deitando a água das bilhas. Assim se foram formando todas as sete caldeiras da ilha das Flores: a Caldeira Funda das Lajes, a Caldeira Rasa, a Caldeira da Água Branca, a Comprida, a Funda, a da Lomba e a Seca, porque para esta o monço já estava muito cansado e sem forças para ir buscar mais água para deitar no último buraco que encontrou.
Assim nasceram as sete lagoas das Flores, todas elas muito diferentes, mas muito bonitas, de águas limpas e transparentes, como foi desejo daquele rapaz, chamado João, que as sonhou e as fez.
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JOSÉ JACINTO BOTELHO
António Moreno, pseudónimo de José Jacinto Botelho, nasceu em Ponta Garça, ilha de S. Miguel, a dois de Março de 1876 e faleceu nas Furnas, em Abril de 1946. Poeta e orador sacro, usou o pseudónimo literário, por que ficou conhecido, de António Moreno, e, raramente, o de Maria Angelina. Fez ocurso de Teologia no Seminário de Angra do Heroísmo e foi ordenado sacerdote em Braga, chegando a frequentar a Universidade Gregoriana, em Roma, não completando nenhum curso, por motivos de saúde, sobretudo primordialmente causados pelo afastamento da ilha. Amigo íntimo de Armando Cortes Rodrigues, António Moreno passou bastante à margem dos movimentos e escolas do seu tempo. Autor de uma obra dispersa por jornais e sem ambições literárias, foi porém reunida e estudada criteriosamente por Eduíno de Jesus, abrangendo os «livros» Ronda da Saudade, Sete Espadas, Urze do Monte, Ave Maria, Pai Nosso, cujos títulos já são significativos. A poesia de António Moreno, alheia a escolas e movimentos do seu tempo, ocupa-se, fundamentalmente, de temas religiosos, piedosos e mariânicos, em que o culto da saudade, da mãe como entidade protectora, o louvor da Virgem e a recordação da infância e das coisas simples do campo avultam. A preocupação «clássica» com o soneto e a presença insistente de dezenas de quadras ao gosto popular demonstram não só uma disciplina formal de seguimento da tradição e com os esquemas rimáticos, mas também o isolamento geográfico-cultural do vigário das Furnas. Uma linha de simplicidade e reacção religiosa fim de século, que se poderia ir buscar a António Nobre e, no meio micaelense, ao seu amigo Armando Cortes Rodrigues, vem transparecer no poeta furnense numa sensibilidade extremada e quase franciscana. A própria concepção cristã da vida, que lhe impunha a vida sacerdotal, e a sua tendência contemplativa e triste confluem em versos nos quais correm o sentimento da vida breve, da vida como «vale de lágrimas» e das «visões» do passado, as doces recordações da infância quando confrontadas pungentemente com a dureza presente. O conjunto de poemas reunidos sob o título Sete Espadas, apesar do seu caracter descritivo e prosaico relativo à Paixão de Cristo e aos sofrimentos da Virgem, consegue atingir um alto grau de exaltação religiosa e constitui um poema mariânico com certa unidade estrutural. Ao poeta, crítico e professor, Eduíno de Jesus, que se deve um fundamental estudo crítico e de recolha e ordenação da poesia de António Moreno.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O CULTO DOS MORTOS
Assim como a religião, também o culto dos mortos teve e continua a ter um lugar de relevo em todas as civilizações e é, talvez, um dos fenómenos mais estranhos, interessantes e diversificados da História da humanidade. Uma reflexão e um estudo profundo da evolução do pensamento e dos costumes das várias civilizações ao longo dos séculos, desde as épocas mais remotas até aos nossos dias, permite-nos conhecer as ideias, os sentimentos, as emoções, os rituais e as celebrações do homem sobre o mistério da sua própria morte.
Acredita-se que o culto dos mortos tenha sido anterior ao da adoração da divindade, talvez mesmo tenha sido o primeiro que originou o segundo, isto é, foi o homem que celebrando a memória dos seus mortos, pela primeira vez, teve a ideia ou o sentimento do sobrenatural e do divino, acreditando em algo que transcendesse a própria morte.
As civilizações indo-europeias, ainda antes do aparecimento dos primeiros filósofos, na cidade de Mileto, na Ásia Menor, foram pioneiras da crença na existência duma outra vida para além da vida terrena, considerando que a morte não consistia na decomposição do ser humano, mas sim na sua transformação para uma outra vida, convicções que muitas outras religiões, entre as quais o cristianismo, consagraram nos seus ensinamentos, através dos tempos
Também os gregos e os romanos acreditavam numa segunda existência humana, mas cuidando que a alma iria passar essa segunda vida na terra, junto dos vivos, mas num lugar diferente, chamado Inferno. Exemplo claro disto é a visita de Ulisses, na sua viagem de regresso após a guerra Tróia, aos Infernos, onde vai encontrar a mãe e outras pessoas que já haviam falecido, mas com quem ele fala e convive. Os gregos, no entanto, acreditavam que nesta segunda existência, a alma continuava unida ao corpo, pois este não se desfazia por completo, apenas se transformava, após a morte. Todas estas crenças originaram necessariamente ritos fúnebres muito diversificados, os quais, de alguma forma também mostram claramente que os povos que os celebravam, acreditavam que o falecido sobrevivesse depois da morte, e, por isso, enterravam junto com o morto, roupas, vasos, armas, vinho, comida, até mesmo sacrificavam escravos e cavalos para servi-lo na sepultura, como o haviam feito durante sua vida terrena. Inclusivamente os gregos tapavam os olhos dos mortos com duas moedas com que pagariam ao barqueiro a viagem que fariam entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
De todas estas crenças dos gregos e de outros povos primitivos surgiu a necessidade de sepultar os mortos, pois acreditavam que a alma sem uma sepultura tornava-se perversa, aparecia aos vivos, atormentava-os e provocava-lhe doenças. Mas não bastava apenas enterrar o corpo, era necessário obedecer alguns ritos e realizar cerimónias fúnebres, evocando as almas e fazendo-as até sair, por alguns instantes, do sepulcro. A cerimónia dos mortos, na Grécia Antiga, era uma espécie de comemoração em que as famílias colocavam alimentos sobre o túmulo do seu morto, pronunciavam fórmulas que o convidavam a comer e ninguém podia tocar nestas oferendas pois eram destinadas explicitamente às necessidades do morto.
Como os mortos eram considerados criaturas sagradas, muitos povos antigos veneravam-nos como se fossem deuses e, por isso, diante da sepultura construíam um altar para sacrifícios semelhantes aos que existiam nos templos para oferecer sacrifícios aos deuses.
Os povos da Índia, também homenageavam os seus mortos, fazendo-lhe oferendas, rituais e celebrações diversas em sua memória e, assim como na Grécia, também ofereciam à alma dos mortos alimentos e tratavam-nos como seres divinos, a fim de que as suas almas não fossem atormentadas. Os egípcios também acreditavam na vida para além da morte, mas para permitir o acesso e a continuação nessa vida, era necessário que o corpo estivesse preservado, por isso os embalsamavam os seus mortos e construíam túmulos monumentais, chamados pirâmides, mastabas e hipogeus, onde também colocavam roupas, jóias, cosméticos e móveis para que o defunto utilizasse na sua nova habitação.
Outros povos da antiguidade possuíam crenças estranhas. É o caso dos cultos masdeístas, para quem a terra é sagrada e, por isso, os mortos não podiam ser enterrados por que eram considerados impuro, sendo os cadáveres colocados em torres e em outros lugares altos a fim de serem devorados pelas aves de rapina.
Muitas destas crenças foram adoptadas, depois de sobrenaturalizadas, pelo cristianismo, e perduraram ao longo da Idade Média, sendo que, algumas delas, se mantiveram até aos nossos dias.
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O CULTIVO DO TRIGO NA FAJÃ GRANDE
Nos anos cinquenta já eram poucos os agricultores que cultivavam trigo na Fajã Grande, fazendo-o apenas numa ou outra terra, lá para as bandas do Areal, onde os terrenos eram mais arenosos, mais pobres, mais vulneráveis à salmoura e, consequentemente, menos rentáveis para as outras culturas. Em tempos idos, no entanto, não teria sido assim. Na, realidade, no séc XIX e no primeiro quartel do séc XX, o trigo era rei e senhor na Fajã Grande. Diziam os antigos que no Verão, era bonito de se ver a maioria dos campos da beira-mar vestidos de um amarelo doirado, com caules de trigo a abarrotar de espigas louras, entrecortados, apenas, por um ou outro serrado de milho, ornado, paradoxalmente, com o verde fresco e esperançoso dos folhedos e o branco adocicado das espigas e com algumas courelas atulhados de couves ou de batata-doce, também muito verdes e espevitadas.
A existência, nos anos cinquenta, na freguesia, de um bom número de eiras era a prova provada do domínio adquirido por aquele cereal durante as décadas anteriores. Acredita-se que o trigo tenha sido o principal cereal que os primeiros povoadores trouxeram para a ilha das Flores e mais concretamente para a Fajã Grande, embora cultivado apenas nos terrenos mais próximos do mar, mais concretamente, nas Furnas, no Areal, no Porto, no Estaleiro e até na Cambada.
O cultivo do trigo era bastante diferente do cultivo do milho e até mais fácil e menos trabalhoso. Depois de preparado o terreno e semeado, o trigo não necessitava de tantos cuidados e trabalhos como o milho e a única razão que terá originado a que, mais tarde, a cultura do milho se sobrepusesse e acabasse por reduzir quase a zero a do trigo foi, muito provavelmente, a de uma melhor adaptação daquele cereal aos terrenos da Fajã, o que acarretava obviamente uma maior e mais rentável produtividade. Além disso, os trabalhos posteriores ao cultivo, no caso do trigo eram bem mais trabalhosos e difíceis do que os do milho. O trigo, uma vez amadurecido, era ceifado e emolhado em grandes “pavias”, amarradas com fios de espadana e colocadas durante alguns dias, junto às paredes dos serrados, a fim de enxugarem e secarem melhor. Depois, as “pavias” eram transportadas para as eiras em carros de bois, se fosse muito, ou às costas dos homens e à cabeça das mulheres, se a produção fosse menor. Nas eiras procedia-se à debulha. O trigo era espalhado no chão da eira, ao redor do malhão, â volta do qual rodava a grade de madeira, puxada geralmente por uma junta de vacas, com os olhos tapados, a fim de que de tanto andar à roda não caíssem de tontas. Antes de iniciar a debulha, as mulheres escolhiam as melhores palhinhas para delas fazerem chapéus e cestinhas. Para que a grade ficasse mais pesada e debulhasse melhor e mais rapidamente o trigo, colocava-se-lhe em cima calhaus, crianças, o condutor do gado e um auxiliar, que devia estar sempre muito atento e que transportava uma vasilha adequada, com o qual tentava “apanhar” os excrementos e a urina do gado. Se o não conseguisse fazer, havia que parar de imediato a debulha, a fim de se retirar o trigo sobre o qual, inadvertidamente, caíra a bosta ou a urina. Terminada a debulha e retirados os animais e a grade, era junta a palha, guardando-se a mais desfeita para encher colchões e travesseiras. Depois, o trigo era “avantajado”, isto é, colocado na joeira ou crivo e joeirado, ou seja sacudido contra o vento, de forma a que os grãos se separassem da moinha, operação que se repetia tantas vezes quantas fossem necessárias para que o trigo ficasse totalmente limpo. O trigo, finalmente, era guardado em sacos até ser moído e a moinha era recolhida e guardada para alimento das galinhas. Apesar de ser um dia de muito trabalho, o dia da debulha era um dia de festa, de alegria, de cantorias, de refeições melhoradas e de ajuda recíproca, como geralmente eram os dias de mais intensa e prolongada actividade agrícola.
Nos anos cinquenta, porque rara, a farinha de trigo era utilizada para cozer o pão de trigo apenas nas vésperas das festas, nomeadamente na do Espírito Santo e da Senhora da Saúdes e nos dias de matança do porco. Era também com a farinha deste trigo caseiro que, obrigatoriamente, se faziam as hóstias para a celebração das missas nas igrejas da Fajã e da Ponta.
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O JOÃO DE FREITAS
Por toda a vizinhança e, sobretudo, na minha própria casa correu célere a notícia de que a “Velha do Corvo” tinha vindo visitar a senhora Marquinhas do Rosário, trazendo-lhe outro um menino. Entrei em êxtase. Mais um menino ali, nos arredores, a juntar-se a um já por demais reduzido grupo de ganapada, onde pontificavam eu e o Jaime e, por isso mesmo, cismei de que havia de ir ver o “menino”. A minha mãe já tinha falecido e foi minha irmã que, consciente de que os vizinhos deviam disponibilizar-se e oferecer préstimos uns aos outros nestas alturas, decidiu por fazer-me a vontade. Além disso ela lembrava-se e sabia muito bem que a vizinha do Rosário era uma boa vizinha, muito prestável e amiga e que viera sempre a nossa casa dar uma demão à minha mãe, em situações semelhantes. E lá fomos os dois visitar a nossa vizinha: minha irmã com ar de quem queria disponibilizar ajuda e manifestar reconhecimento, eu com a curiosidade de ver, pela primeira vez, uma criancinha acabada de nascer e com a inequívoca dúvida se havia ou não de “enterrar” definitivamente a mítica “Velha do Corvo”.
Mas pouco vi e muito menos descobri ou concluí. O menino dormia e quando acordava era apenas para chorar e para comer e, além do mais, na altura em que ele mamava eu não podia estar presente. Soube apenas que havia de chamar-se João.
O João cresceu e veio fortalecer o precário pecúlio infantil da Assomada, cada vez mais cerceado pelos que, Carvalho após Carvalho, se iam evadindo para a América ou para o Canadá. As vizinhas diziam que era lindo e que à beleza física se aliava uma extraordinária bondade, uma grandiosa ternura e uma profunda meiguice. Enquanto crianças, pouco brincámos, no maroiço que separava a terra de meu pai da canada do Pico e que já fora o local institucionalizado para folguedos e brincadeiras com o José Gabriel, devido à diferença de idades e porque cedo abandonei a ilha, a Fajã e a Assomada. No entanto, mais tarde, ele havia de seguir-me as pegadas, sendo então e somente nas férias que nos encontrávamos, já não tanto para brincar mas para conversar, reflectir e passear. Desses encontros de verão ficou-me a imagem de um jovem extremamente generoso, muito comedido nas suas ideias, excessivamente responsável pelas suas acções e com uma enorme cultura e defesa de valores morais. Além disso era um excelente aluno, um bom conversador e um óptimo colega.
Quis o destino que, anos mais tarde, seguíssemos caminhos diferentes e não mais nos encontrássemos, Soube, apenas, que casara com a Conceição, que fixara residência em Santa Cruz e que trabalhava no aeroporto das Flores. Soube também que era um pai extremoso e um excelente marido, construindo por si próprio com os seus hábitos, costumes e atitudes, todas as condições necessárias e suficientes para ser feliz, como o era de verdade.
Um dia chegou-me a triste notícia de que o João partira. Partira muito novo, partira repentinamente e partira para sempre, deixando atrás de si, sobretudo para os que conviveram de perto com ele, misturado com uma dor inexaurível, um perene e inextinguível rastro de saudade.
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LAILA-DARK
Em frente o cais a abarrotar de pessoas, de carros, de movimentos, de luz e de cores.
O cais, ponto de partida e de chegada.
Para a partida fervilham pequenas embarcações à espera dos que sonham com a aventura de observar baleias ou de golfinhos.
Para a partida carregam-se malas, trocam-se abraços, evadem-se emoções.
Mas já não há homens de albarcas, chapéus de palha e calças de cotim a soltar as amarras perdidas e desgastadas pelo tempo, nem mulheres de avental de chita e lenço de merino, com cestas de fruta à cabeça.
Na chegada arrastam-se sobre o pedregulho dezenas de barcos que durante a noite se embalaram, ao sabor das ondas, na pesca das abróteas, das garoupas e dos bocas-negras, ou as traineiras que perseguiram pesqueiros mais distantes na busca de bonitos e albacoras.
Mas já não há homens a gritar: “Eh, charro fresco”.
Na chegada também se esperam pessoas e coisas vindas do Faial e quiçá de outras paragens.
Ainda manhã e o cais da Madalena, ali mesmo em frente ao Laila-Dark, a abarrotar de homens, de mulheres e de crianças com raças, nacionalidades diferentes. Uns à espera de partir, outros na ânsia de chegar e alguns apenas a observar aquele amanhecer de partidas e de chegadas, sublime, claro, divinal e bonançoso.
Lá ao fundo o Faial a espreguiçar-se sobre os primeiros raios de luz emanados lá do longe, da ponta dos Rosais.
Atrás a enorme e altíssima montanha do Pico, ravinada de lava, aspergida com salpicos de nuvens e envolvida por um clarão de imponência e singularidade.
No meio, e a separar por momentos, as duas ilhas, o mar, azul, coroado com ondas de sonho e respingos de fascinação.
E lá dentro, do Laila-Dark, sentado numa mesa do café, é possível ver o mundo, no pequeno ecrã de um computador
Como é tão igual e tão diferente este Pico de hoje e o Pico de ontem.
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BOA LAVADEIRA
“A boa lavadeira, na ponta do pé lava.”
Adágio fajãgrandense, ainda muito utilizado nos anos cinquenta e seguintes, com um duplo significado. Por um lado, era dito de uma para outra mulher, e usado para “elogiar” a qualidade do seu trabalho de lavadeira. Por outro lado, com ele também se pretendia transmitir a ideia de que quem sabe de um ofício executa-o sempre com muita facilidade e perícia.
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O MONCHIQUE
Dos inúmeros e variados ilhéus que se situam ao longo de toda a costa da ilha das Flores, o mais emblemático, o mais mítico e o mais exuberantemente simbólico é o Ilhéu de Monchique, uma enorme e altíssima torre basáltica, encravada no meio do oceano, situado a cerca de cinco milhas da Ponta dos Pargos, na Fajã Grande. O interesse, a importância e o significado deste fragmento de lava adormecido no meio do Atlântico, advêm do facto de ele ser o "pedaço de terra" mais ocidental de Portugal e da Europa, servindo, assim, em tempos idos, de marco e de referência a todas as embarcações oriundas, quer das Américas, quer da Europa e da África, tendo também a função de ser um ponto de referência para acertar as rotas e verificar os instrumentos de navegação.
O Monchique, atulhado de cracas, sargaços, algas, lapas e búzios, é um enorme rochedo de sólido basalto, provável resíduo de um cone litoral desmantelado pela erosão marinha. Apresenta uma forma irregular, o que confere aos seus fundos circundantes uma espécie de microrrelevo acentuado. São também essas formas irregulares que, em parte, permitem que seja visto com formas diversas, quando observado de longe e de lugares diferentes, como da Fajã, do Albarnaz, do Corvo ou até do alto da Rocha.
O Monchique também se revela de grande interesse para os biólogos, para os estudiosos da fauna marítima e para os mergulhadores submarinos, uma vez que são numerosas as cavidades submarinas nas suas encostas e no seu sopé e, além disso, está no centro de uma região de grande diversidade biológica, com cerca de uma centena de espécies marinhas identificadas, ao seu redor. Mas a razão principal do seu interesse e importância, advêm-lhe do facto de, na realidade, ele ser o ponto mais ocidental da Europa e disso se orgulha o concelho das Lajes e suas gentes.
Interesse e significado tem também o Monchique por ser uma espécie de ex-libris da Fajã Grande, por fazer parte da sua história, da sua cultura, dos seus costumes e até dos seus ditos ou falares. Na verdade, consta que alguns dos nossos avós, em tempos muito remotos, dançaram a chamarrita em cima do Monchique, que outrora se realizavam excursões e passeios do Porto da Fajã exclusivamente para o Monchique, a fim de os visitantes poderem observar e ver de perto as suas rochas e encostas, as suas veredas e as espécies marinhas que o revestem e circundam. Entre estas viagens, algumas destinavam-se exclusivamente à apanha de lapas, que as havia por lá grandes e boas, ou até de cracas, embora estas fossem de mais difícil captação e menos rendosas a comer. Muito usada na Fajã Grande era a expressão “por trás das raízes do Monchique”, a significar que algo era muito difícil ou até impossível de ter acesso, ou ainda esta outra “Quem te dera debaixo das raízes do Monchique” a indicar que se não gostava ou não se queria ver alguém.
Para a ganapada miúda de outrora o Monchique entrava em muitas das brincadeiras, pois sempre que se divertiam com barcos de madeira ou de papel, em qualquer pequeno lago, poço ou celha cheia de água, lá estava sempre no meio, uma pedra negra, de plantão, a representar e simbolizar o Monchique. Outras vezes faziam-se apostas, quando um barco surgia no horizonte, a ver quem adivinhava se ele passaria por dentro ou por fora do Monchique.
Monchique, um monumento de lava que natureza caprichou em ali colocar, um marco milenário entre continentes e oceanos, um património que sempre pertenceu à Fajã Grande, uma torre de pedra negra verdadeiramente plantada no fim da Europa e a indicar o início do caminho para a América.