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A MATANÇA DO PORCO NO DOURO LITORAL

Sexta-feira, 29.11.13

O dia que Mariana mais adorava era o da matança do porco. Nesse dia nem ia à escola. A mãe preparava tudo com muita antecedência. A enorme salgadeira, os alguidares, os caldeirões e as panelas, tudo era muito bem limpo e lavado. Na véspera Mariana ajudava a descascar uma enorme quantidade de alhos, a arranjar os temperos e a preparar as toalhas branquinhas enquanto o pai aprontava o colmo para a chamusca.

Nesse dia, a casa não se enchia de gente como na desfolhada, mas a azáfama era muito diferente e mais divertida do que a da vindima. Não era costume vir nem os vizinhos nem os amigos, porque todos tinham que preparar as suas matanças nesses dias. Apenas vinham os tios, os primos e os avós. De manhã cedo, quando o dia ainda não clareara de todo, chegava o Senhor Joaquim, o matador que o pai contratava todos os anos e que trazia umas facas enormes. Juntamente com o pai e os tios agarravam o cevado, amarravam-lhe as pernas e punham-no em cima duma pequena mesa que se guardava de ano para ano. Mariana de longe, apreensiva e cheia de medo, tapava os ouvidos com ambas as mãos para não ouvir os gritos de aflição que o porco emitia ao ser apanhado. A mãe, de avental novo ao peito, aproximava um alguidar do pescoço do porco e enchia-o com o sangue que se esvaía a jorros do buraco que lhe havia feito a faca certeira do senhor Joaquim. De seguida dividia o sangue em duas partes: uma para coagular e fazer o sarrabulho para a ceia, enquanto juntava à outra metade umas gotas de vinagre e deitava-a num alguidar, para mais tarde a misturar aos bocadinhos da carne da barriga com que se haviam de encher as chouriças. Com a palha do colmo retirada do centeio e transformada em espécies de vassouras, a que ateavam fogo, os homens chamuscavam o porco de uma ponta à outra. De seguida com baldes de água e sabão azul o suíno era lavado e esfregado com pedras e ramos de carqueja até ficar totalmente branquinho e limpo que era um regalo. Depois pegavam-lhe e levavam-no em ombros para a loja de arrumos, onde era amarrado de pernas para o ar, aos tirantes que seguravam o soalho do piso superior. A mãe limpava-o todo com um pano de linho, preparado exclusivamente para este fim e que depois de lavado era novamente guardado para o ano seguinte. O matador, com um enorme facalhão, abria-o de cima para baixo e retirava-lhe o fígado, os bofes, o coração, as tripas e a bexiga. As tripas eram embrulhadas em panos, de maneira a não secarem, a fim de que mais tarde fossem muito bem lavadas no rio. O porco ficava aberto e com umas canas a esticar-lhe a barriga, a fim de que a carne arejasse. Por cima das patas o pai colocava-lhe o redanho como que a simular um manto. E assim ficava até ao dia seguinte, escorrendo em fio um líquido avermelhado e sujo, recolhido numa bacia que lhe era colocada debaixo da cabeça. A mãe já havia preparado e guisado os miúdos com pedacinhos de batata e, com o fígado, fizera umas deliciosas iscas de cebolada. É que o dia começara cedo e a fome apertava. De tarde Mariana acompanhava as tias que iam ao rio lavar as tripas muito bem lavadinhas enquanto a mãe ficava em casa a preparar o unto para fazer o pingue. À noite, todos voltavam a sentar-se à mesa onde as papas de sarrabulho ferviam no velho caldeirão de ferro e exalavam um cheirinho a noz moscada e a cominhos que enchia a casa e, juntamente com o fumo, saía pelos telhados e se propagava pela vizinhança. No dia seguinte voltava o senhor Joaquim com as suas facas para desmanchar o porco. Tirava o redanho para que a mãe o derretesse. Depois extraía a carne da barriga destinada aos rojões, da qual separava as aparas para as chouriças. De seguida, cortava-lhe a cabeça, preparava as orelheiras e dividia o corpo em duas partes, das quais tirava os coelhos. Era com estes que a mãe fazia os melhores salpicões. Depois cortava as pás, tirava as costelas e as tiras da barriga que seriam guardadas na enorme salgadeira. Finalmente cortava os presuntos, que eram colocados juntamente com os salpicões num molho feito de alho, sal, vinho e louro e onde permaneciam durante alguns dias, antes de irem para o fumeiro. De modo semelhante eram temperados os ingredientes com que mais tarde seriam feitas as chouriças. Seguiam-se dias e dias de fumeiro, com a queima de rama verde, para o tornar mais lento e demorado. Depois os presuntos eram passados por vinha-d’alhos e postos em sal. Mariana ajudava a mãe em todas estas tarefas e com ela partilhava uma enorme tristeza quando algum presunto, ou porque o tempo estivesse mais quente ou porque não tivesse curado bem, se estragava.

 

C.F. texto retirado do conto “Mariana” e elaborado com a colaboração da Srª Dona Augusta Ribeiro, auxiliar de acção educativa na E. B. 2/3 de Paredes

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publicado por picodavigia2 às 21:15

UM ATAQUE DE PIRATAS (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Sexta-feira, 29.11.13

Uma outra “estória” que meu avô contava era a de que há muitos anos, ali para os lados do Canto do Areal, por fora da Poça das Salemas, muito antes da Barca Bidarta ali se afundar, ancorou um navio muito grande e estranho. O povo percebeu logo que se tratava de um navio de piratas e ficou muito alarmado porque todos sabiam que eles queriam roubar e levar consigo tudo o que pudessem.

As pessoas começaram a fugir para o mato, levando o que podiam e deixando o resto para os piratas. Era sempre bom deixar alguma coisa de valor, batatas, milho, hortaliças, alguma cabra ou ovelha, ou alguns porquinhos, até porque não podiam levar consigo ou esconder tudo o que possuíam. As pessoas sabiam que se os piratas não ficassem satisfeitos com o que encontrassem, destruíam tudo, lançando fogo às casas, matando quem apanhassem pela frente.

O povo ainda mais se assustou quando ouviu o navio disparar, na direcção da rocha, tiros de canhão. Os malditos dos piratas tinham percebido que as pessoas fugiam para se esconderem e protegerem lá no alto e, por isso, começavam a atirar. As pessoas lá foram subindo a rocha, de maneira que não fossem vistas, escondendo-se nas furnas e nas abas das paredes, mas os piratas insistiram nos tiros e arriaram de bordo alguns botes conduzindo um grupo de piratas armados para terra, os quais desembarcaram mesmo junto à Poça das Salemas. Bem armados, entraram pelas casas, destruíram muitas e largaram fogo a outras, antes porém tiraram e roubaram tudo o que lhes interessava. E o povo, escondido, lá em cima, a ver destruído e saqueado tudo o que era seu e sem poder fazer nada. Meu avô contava que tinham entrado em todas as casas, a certificarem-se de que não havia ninguém e pilharam, à vontade, e levaram tudo o que as pessoas tinham deixado, ao fugirem para o mato. As pessoas, muito caladas e cheias de medo, espreitavam lá de longe por entre os ramos das árvores. As mães acalentavam os bebés ao colo para eles não chorarem. Os homens, furiosos, de não lhes poder resistir, rogavam pragas terríveis aos piratas, “diabos vos levem”,” “raios vos partam”,“bandidos”! “Um fogo vos abrase”! Só os cães é que não se calavam, ladravam como danados, rosnavam, latiam.

E ninguém tinha coragem de descer a rocha e aproximar-se das casas, ou de se expor à violência dos malditos piratas.

Depois de darem a volta ao povoado e de entrarem em todas as casas, os piratas voltaram ao navio e foram, buscar várias vasilhas e sacos. Voltaram a terra, juntaram muitos animais, sobretudo as galinhas dos currais e muito do que havia nos campos o milho dos estaleiros, as batatas, o feijão e as cebolas guardadas nas lojas e até foram aos moinhos roubar os sacos de farinha que lá estavam à espera que os donos os fossem buscar. Depois levaram tudo para o navio. Meu avô contava que não ficou uma única galinha viva.

As pessoas esperavam que à noitinha, o navio de piratas se fosse embora, a fim de poderem regressar às suas casas, pelo menos às que não tinham sido destruídas ou incendiadas. Mas isso não aconteceu. O navio ficou ali toda a noite, pois os piratas esperavam que as pessoas descessem, ao anoitecer, para durante a noite atacar de surpresa e matá-las. Por isso mesmo, só na tarde do dia seguinte, depois de o navio desaparecer no horizonte, por de trás do Monchique, as pessoas desceram à povoação. Primeiro soltaram os cães que desceram correndo, a ladrar, depois desceram os homens, e por fim os velhos e as mulheres com as crianças. E o povo começou, então, a trabalhar na reconstrução das suas casa e muitos tiveram que construir outras novas, pois muitas tinham sido incendiadas e totalmente destruídas.

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publicado por picodavigia2 às 17:16

A VISTA DO MIRADOURO DO PORTAL OU PEDAÇO DA NATUREZA DESABADO DO CÉU

Sexta-feira, 29.11.13

Fascinante, soberba, maravilhosa, encantadora, sublime, deslumbrante, espectacular! São poucos e muito limitados os adjectivos com que se pode descrever a vista que se observa do miradouro do Portal - um pedaço da natureza desabado do céu.

Este miradouro, um dos muitos existentes na ilha das Flores, situa-se lá bem no alto, no cimo da Rocha dos Bredos, ali mesmo logo a seguir aos Terreiros, no cruzamento da nova estrada do Mosteiro com a do interior da ilha e um pouco à frente da chamada Cruz da Caldeira, sobranceiro, portanto, à freguesia da Fajãzinha.

A paisagem que dali se pode observar é transcendentemente bela. O grande círculo das Fajãs rodeia-se a leste, embora de forma irregular, por uma alta e imponente rocha, ora fendida por penhascos e quedas de água ora revestida de um verde com tons diferenciados, a provocar calafrios ou ainda sustentada por inúmeros rochedos a abarrotar de um negrume basáltico. Uma rocha de magma basáltica, recheada de verdura e de água e que os séculos foram enrijecendo e transformando num verdadeiro e mítico oásis de beleza, num estranho monumento de imponência e graciosidade. A oeste o mar, azul e anilado, como que a fechar o círculo com os seus salpicos levantados pelo vento e com as suas ondas a desfazerem-se junto aos rochedos lávicos do baixio, a bafejar courelas, serrados, belgas e outeiros. Depois as casas branquinhas entrelaçadas com outras de pedra negra e os tradicionais palheiros também negros, de portadas abertas, espalhados no meio das relvas ou plantados em cima de “maroiços”, aparentemente atafulhados de silêncio, de abandono e de solidão. São as pequenas povoações da Fajã Grande, Fajãzinha, Ponta e Cuada, formando e constituindo os pequenos povoados por ali dispersos, separadas por ribeiras onde deslizam as águas caídas das encostas e por montes e outeiros revestidos do verde dos incensos, das faias, dos sanguinhos e dos paus-brancos ou por pequenos planaltos, onde proliferam os campos de erva, de mato ou serrados de milho, as courelas de couves e abóboras e as belgas de batata-doce.

Em primeiro plano e logo ali debaixo a Fajãzinha a balancear-se sobre veios e levadas, a evadir-se em água, em verde, em pequenez e sobretudo em silêncio, com as suas casas dispostas ao redor do Rossio, a formar uma espécie de rendilhado, onde se excede a sua monumental e vetusta igreja matriz. A Fajãzinha, um pequeno oásis de singeleza, um recanto de serenidade perene e um manancial de frescura esverdeada. A Ribeira Grande, mais além, encostada à ladeira do Biscoito e a servir de sopé ao enorme planalto onde se alojam as velhas e negras, mas agora recuperadas, casas da Cuada. Apesar de se aproximar do oceano, o seu caudal ainda corre veloz e galopante, ora se quedando e desaparecendo por entre pedregulhos e fráguas, ora formando pequenos lagos encastoados entre o verde das ravinas e o azulado da penedia. Além e junto à rocha, aparando a água que cai com veemência das cascatas de um sem número de grotas e ribeiras, o Poço da Alagoinha, um recanto de beleza inigualável e de sublimidade absoluta. As suas águas, calmas, serenas e tranquilas, reflectem o verde dos andurriais, o negro dos penhascos, o acastanhado dos troncos dos álamos e o colorido das flores da cana roca.

Entre a Rocha e o mar, num planalto encastoado ente a Fajã e a Fajãzinha, a Cuada, um recanto de sublimidade silenciosa e de beleza histórica, actualmente recuperada e modernizada, mantendo, contudo, o negro basáltico das paredes, as vielas calcetadas de pedra já gasta por homens e “corsões”, com a mítica Casa do Espírito Santo, lá ao fundo, no início do caminho que antigamente conduzia à Fajã. Ontem como hoje, a Cuada é aquele recanto de graciosidade e singeleza, aquele paraíso de mistério e sublimação, aquele pântano de simplicidade e mistificação.

Depois é a Fajã, ora entrincheirada, muito tímida e envergonhada entre o Pico da Vigia e o Outeiro, ora a despejar-se arrogante e sem pejo sobre uma enorme planície debruçada sobre o mar, a acalentar o rugido das ondas, os sussurros das montanhas e o soprar do vento norte. A Fajã é um manto verde, branco, amarelado, negro e multicolor a estender-se e a prolongar-se sobre o mar, deixando lá ao fundo, a descoberto, uma ponta negra e firme – o Monchique.

Finalmente a Ponta, aninhada debaixo da Caldeirinha, juntamente com a igreja da Senhora do Carmo, no sopé da rocha, a emanar um silêncio desértico e uma beleza mistificada. Por trás a rocha umas vezes terna e meiga, a proteger, a salvar, a ajudar, a alimentar, outras a atirar-se sem dó nem piedade sobre o povoado destruindo casas, pessoas e colheitas.

A encimar tudo isto um céu ora muito claro ora ofuscado por nevoeiros e caligens, mas a reflectir o azulado do oceano, a serenidade dos vales e planaltos, o verde adocicado dos montes, o sussurro transparente das ribeiras e a simplicidade contagiante das pessoas.

O miradouro do Portal! Uma paisagem de sonho, desenhada sobre uma imponente e desértica singularidade, edificada sobre uma estranha plataforma de magma verde e envolvida por um misterioso manto de silêncio!

 

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publicado por picodavigia2 às 14:29

ENSAIO

Sexta-feira, 29.11.13

No ensaio…

Há sempre

Alguém que desafina

Que se perde na pauta,

Ou não encontra um lá sustenido

Ou um fá bemol.

 

E o maestro,

Sábio,

Pachorrento

E dócil,

Corrige,

Repete,

Ensina

E afina.

 

E, por fim, chega a harmonia.

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publicado por picodavigia2 às 09:56

TRÊS OVINHOS

Sexta-feira, 29.11.13

Ele era o benjamim da família e o “Ai Jesus” da mãe. Quando nasceu já os irmãos mais velhos acarretavam molhos de incensos e de lenha da Cabaceira e as irmãs iam lavar roupa à Ribeiradas das Casas, sozinhas. Por isso mesmo, açambarcava, em regime de exclusividade, todos os desvelos e carinhos maternais e conjugava com a benevolência excessiva do pai uma fuga contínua e pertinaz a trabalhos, sacrifícios e canseiras. Como consequência, à robustez e corpulência físicas, o petiz aliava uma personalidade maleável, um temperamento acarinhado e uma desenvoltura fragilizada. Amigos e colegas de escola, apercebendo-se da débil e instável personalidade do garoto, cedo se apressaram a ripostar com gracejos às suas atitudes, a macerar com vitupérios as suas intervenções e a desfazer-lhe sonhos e desejos com graçolas e gozo.

Sufocado pelo excessivo proteccionismo maternal e atordoado pelas exprobrações e pelo burlesco a que os amigos o expunham, lá foi sonhando que um dia havia de mostrar e provar a todo o mundo de que também era de fibra rija como eles, tão capaz como os outros de subir a Rocha, de mergulhar da ponta do Cais, ou de trepar à mais alta árvore da Fajã para ir tirar os ovos dum ninho.

Mas pensou melhor. Subir a Rocha era perigoso e afinal nenhum da sua idade o fazia sozinho. Mergulhos na ponta do Cais, que tirassem o cavalinho da chuva que só os rapazes pouco antes de irem às sortes o faziam. Agora subir uma árvore para tirar os ovos de um ninho era tarefa comum e generalizada entre os da sua idade e por isso mesmo havia de conseguir. A mãe empalideceu quando lhe adivinhou o desejo primordial: “Que não senhor! Que nem pensasse tal coisa! Ovos, tinha ela muitos em casa, e grandes.” Mas o projecto já estava delineado e em curso na sua mente. Ele até já sabia que o ninho estava na terra do Espigão, no cimo de um pau-branco muito alto e esguio. Havia de subi-lo, havia de retirar de lá o ninho e até os da quarta classe iriam ficar com a boca aberta, ao ver os ovos. Ai se iam!

Um dia a mãe teve que ir à Ponta. O pai ceifava “feitos” no Pocestinho. O fedelho, vendo-se só, aproveitou e zarpou a caminho do Espigão. As pernas tremiam-lhe como varas verdes e vezes sem conta sentiu uma enorme vontade de voltar para casa. Mas uma voz interior mandava-o seguir em frente. Depressa chegou ao Espigão, saltou o portal e entrou na terra. Deu mais uns passos e aproximou-se da árvore. Um susto enorme dominou-o, desfazendo-lhe sonhos e bloqueando desejos. Afinal nada de grave! Era o pássaro que, ouvindo ruído ali próximo, escapulira do ninho. Se disparassem um tiro de espingarda não fugiria mais rápido. Mas pode ver, para espanto e gáudio seu, que era uma galinhola. A coragem redobrou, a força renasceu e restaurou-se-lhe uma enorme capacidade de subir a árvore e retirar os ovos, até porque ovos de galinhola não era qualquer um que os conseguia.

Abraçou-se à árvore, olhou para o alto e, confiante, iniciou a subida. Era longe, muito longe, lá bem no alto, nos últimos galhos já muito frágeis e maleáveis. As mãos ardiam-lhe e os pés pareciam-lhe fugir. Mas, de nó em nó, já ia a meio e agora era impossível regressar ao chão. Dentro em pouco, teria os ovos na mão. De repente estremeceu e quase se desprendeu das frágeis vergônteas: “E se o ninho não tivesse ovos? E se a galinhola ainda lá não os tivesse posto? Todo aquele esforço seria em vão.” Esqueceu a dúvida, desfez o susto e continuou a subir. E tanto se agarrou, tanto se prendeu, tanto se segurou e tanto subiu que lá chegou. Estava junto do ninho. E o ninho, para gáudio seu, tinha ovos, três ovinhos de galinhola.

A alegria da conquista, a satisfação do sucesso e o contentamento da vitória fizeram-lhe esquecer o perigo da descida. Agora sim! Sonhava que havia de mostrar a toda a gente aquele troféu conquistado com a sua força, com a sua coragem e com ele havia de provar aos da quarta, à Senhora Professora, à própria mãe e a todos que era tão corajoso, tão destemido, tão capaz de conseguir o que queria e de atingir o que desejava, como todos os da sua idade e até como muitos mais velhos do que ele.

Cheio de alegria, exasperando felicidade, regressou a casa, colocando os ovos nas palmas das mãos, gritando em alto e bom para que todos vissem e ouvissem:

- “Olhem! Olhem! Três ovinhos! Três ovinhos de galinhola!

E é verdade que perante toda a garotada da freguesia ganhou fama de forte, robusto e corajoso, recuperou o estatuto de valente, desenrascado e destemido mas não se livrou de conquistar e ficar para sempre com o indelével e estranho apelido de  o “Três Ovinhos”

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publicado por picodavigia2 às 09:36

O INCÊNDIO DA CUADA

Sexta-feira, 29.11.13

Glória era uma das filhas de José Maria de Sousa e Maria José Teodósio, naturais e residentes na Cuada e que casaram na igreja paroquial da Fajã Grande, no dia 8 de Julho de 1877. Quis o destino que Maria José falecesse muito nova e José Maria, passados alguns anos, voltasse a casar, doando os filhos que tivera do primeiro casamento a famílias da Fajã que os criaram e educaram, com excepção de Glória que continuou a viver na casa de seus pais, no pequenino e isolado lugar da Cuada, freguesia da Fajã Grande.

Com muito trabalho e não menos sacrifício, lutando contra a fome e contra a pobreza, vencendo obstáculos e suplantando limitações, conquistando a sua vida por si própria, Glória cresceu, tornou.se moçoila saudável e robusta. Mulher feita ainda jovem, casou com Francisco, recentemente regressado das Américas. Mas, assim como a de Glória, a vida de Francisco não tinha sido fácil. Tal como muitos outros rapazes da Fajã, encafuados entre trabalhos e misérias, debaixo daquelas rochas e penhascos, Francisco também sonhou com a América e, um dia, para lá decidiu partir. Escondeu-se, à noitinha, nas margens da Ribeira das Casas e de madrugada atirou-se à aventura, navegando num pequeno batel que o conduziria a bordo de uma Escuma americana, ancorada nas redondezas do Monchique, carregada de água, verduras, carne, marinheiros e mais dois clandestinos. A guarda do forte da Castelhana, apercebendo-se da fuga e do embuste, atirou a matar sobre o batel. Francisco, temendo ser alvejado ou preso e impedido de fugir, atirou-se ao mar, nadando na direcção da Escuma, por entre os tiros da guarda cada vez mais intensos e certeiros. Francisco escapou e, passados alguns meses, chegou à Califórnia, prometendo, no meio da sua aflição, um jantar em honra do Senhor Espírito Santo, do “Portal ao Risco”.

Mas a vida de Francisco na América não foi fácil, nem a sorte o bafejou, regressando, algum tempo depois à Fajã, pobre, triste e acabrunhado. Foi então que casou com Glória, fixando residência na Cuada e com ela trabalhou, cavou, lavrou, ceifou, adquiriu uma ou outra terra e morreu, ainda novo, deixando onze filhos órfãos, a promessa por pagar  e Glória viúva. Glória chorou-o com dor, lembrou-o com saudade mas decidiu que tinha que ser forte e que havia de ser ela sozinha a criar e educar os seus filhos.

Ainda mal o luto se havia levantado, o dos filhos, porque o seu, Glória havia de guardá-lo para sempre, e nova tragédia havia de acontecer. A casa onde moravam, situada no único largo existente na Cuada e onde o caminho que seguia da Fajã se bifurcava para a Eira da Cuada e para o Vale Fundo, possuía, na parte inferior, duas lojas. Uma delas estava destinada ao gado enquanto a outra servia para guardar, juntamente com as rudimentares alfaias agrícolas, a rama seca, destinada ao alimento dos bovinos no inverno. Uma das filhas, inadvertidamente, numa noite escura, deslocou-se à loja e acendeu um fósforo num sítio onde havia a rama seca e, de um momento para o outro, sem que ninguém se apercebesse ou pudesse fazer o que quer que fosse, o fogo propagou-se pela rama, pelas madeiras e pelos pobres recheios da casa, incendiando e queimando, em instantes, tudo o que ali existia, provocando um enorme alarido em toda a Cuada. Os vizinhos acorreram com baldes e latas de água, chegaram pessoas da Fajã para ajudar, mas já era tarde. A casa ficou totalmente destruída, assim como todo o seu recheio. Glória e os filhos ficaram apenas com a roupa que vestiam no momento.

Mas Glória não desistiu e voltou a arregaçar as mangas. De toda a ilha e da América chegaram roupas e ajuda. Reconstruíram a casa e reorganizaram a vida, embora aquele terrível incêndio deixasse, para sempre, marcas horrorosas e indeléveis na memória e na mente daquelas crianças, algumas das quais, mais tarde e já adultas, acabaram por ser vítimas de doenças mentais com agravados desgastes emocionais e com acentuados desequilíbrios da sua personalidade. Glória, porém, manteve-se sempre firme vigorosa, acompanhando-os, amparando-os e confortando-os nas doenças e tendo ainda que superar os vitupérios e as injúrias de algumas mentes maliciosas e ingénuas que insinuavam que o incêndio teria sido “castigo” do Senhor Espírito Santo porque a promessa do jantar não fora paga.

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publicado por picodavigia2 às 09:22

ARRAIAL NAS ILHAS

Sexta-feira, 29.11.13

Luzes trémulas

semeiam,

sobre a noite vacilante,

uma claridade frouxa,

mas comunicativa.

e serena.

 

No ar,

um perfume desusado

e, do coreto carcomido,

descem acordes

que agregam olhares

e amortizam emoções.

 

Gritos cruciantes

avolumam arrematações:

- bolos, massa sovada, suspiros, frutos da terra… e um galo. -

Promessas de primícias!

 

Lá ao fundo,

encastoada entre os recantos da igreja,

sobre tábua besuntada:

- copos, favas, bifanas… e guloseimas -

a tasca

onde se estuporam dissabores:

 - desejos (efémeros) saciados,

 - consolações (falsas) conseguidas!

 

A igreja é um deserto.

Os sinos,

uma montanha de silêncio.

E até os foguetes

que, de tarde,

anunciavam eflúvios e orações,

afrouxaram o seu estralejar!

 

Grupos de pessoas

trocam alvoroços!

Os velhos

jazem em recordações,

os novos

navegam em assombros.

E há um homem a cambalear,

sozinho,

por entre chacotas sufocados.

 

Em breve,

chegará a noite,

densa e vigorosa

- a noite de todos os silêncios -

sem luzes,

sem música,

sem arrematações

sem alvoroços

sem emoções,

sem petiscos,

sem guloseimas

sem nada.

Apenas o homem

continuará a cambalear,

sozinho…

simplesmente, sozinho.

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publicado por picodavigia2 às 00:04





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