PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
“Os direitos humanos são violados não só pelo terrorismo, a repressão, os assassinatos, mas também pela existência de condições de extrema pobreza e estruturas económicas injustas, que originam as grandes desigualdades.”
Papa Francisco
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NASCI NAS FLORES
(UM EXCELENTE TEXTO DE JOSÉ DO ESPÍRITO SANTO SILVA)
Nasci na ilha das Flores no ano santo de 1950 por alturas do Pentecostes. Dada a formação religiosa da minha mãe e a matriz profundamente cristã do povo açoriano, era quase inevitável que me tenha baptizado com o nome de José do Espírito Santo. Algumas vizinhas, dadas a crendices e coisas de bruxas arrepiaram-se pois alguns anos atrás tinha-se enforcado um tal José do Espírito Santo, natural das Lajes e a invocação deste Santíssimo nome, em vez de lhes lembrar a Trindade Divina sempre lhes trazia à memória e recordação do suicida e temiam que sobre mim viessem a cair anátemas de perdições e desgraça. Mas com o passar dos anos a lembrança do enforcado foi-se diluindo e o meu nome impôs-se. Como o do meu primo Moisés e dos meus amigos Abraão, Agostinho, Jonas, Job e Noé, entre outros. Nesse tempo nascer numa ilha dos Açores implicava pois, a possibilidade de ter um nome bíblico o que, só por si já diz muito sobre o quotidiano da época. Quase diria que o tempo era mais marcado pelo calendário litúrgico do que pelo calendário gregoriano – Quaresma, Páscoa, Pentecostes, Advento, Natal, Tempo Comum, eram as coordenadas de uma vivência fortemente marcada pelo que se passava no interior dos templos. Fácil é inferir a raiz matricial sobre que assentavam as nossas vidas. Até à morte de Pio XII aquelas intermináveis missas em latim, o conceito de que quase tudo era pecado a enlutar-nos a alma e a consciência, a divulgação de um Deus severo e castigador e as ilustrações horríveis das chamas do Inferno dos velhos catecismos foram bastante castradoras a todos os níveis. Com a chegada de João XXIII à cadeira de Pedro, o Concílio Vaticano II e a entrada nos anos sessenta com Mary Quant cá fora “Where the action is” a inventar a mini-saia, com os novos ritmos como o twist e depois a revolução que foram os Beatles e o Movimento Hippie deu-se uma revolução de mentalidades, até mesmo dentro da Igreja. Os padres passaram a ter um discurso mais aberto, mais voltado para os jovens e Deus passou a ser mais humanizado. Mas as marcas das primeiras catequeses ficaram para sempre com tudo o que isso tem de mau, nomeadamente com a obsessão do pecado, do proibido, da transgressão sobretudo quando chegado à puberdade e à adolescência tanto sonhava com a criada como com generosos decotes de Sara Montiel e a sua voz quente e sensual a interpretar as violetas imperiais.
Para além dos constrangimentos ligados à religião e que já aflorei, muitos outros existiam na época.
As estradas dentro da ilha eram poucas e más tal como os meios de transporte. Só havia telefone até às 20 horas dentro da ilha e para fora da ilha só se podia comunicar por telegrama. De certo modo as crianças e os jovens só interagiam com outros da sua idade dentro do universo limitado da própria freguesia. Exceptuavam-se os “dias de vapor” que vinha de mês a mês (e mais tarde de 15 em 15 dias) e as omnipresentes festas religiosas.
As dificuldades para estudar eram imensas pois sóem Santa Cruzhavia um Externato onde se leccionava até ao 5º ano do Liceu mas das Lajes para lá não havia transportes e aí só lográvamos chegar ao 5º ano com explicações particulares de gente muito amiga e com muito sacrifício pessoal já que, pessoalmente, fiz caminhadas diárias a pé Fazenda-Lajes-Fazenda como quem faz uma via-sacra.
A estreiteza de horizontes, a visão redutora do mundo e das coisas, a dificuldade ou ausência de comunicações a vários níveis criou-me sobretudo um problema posterior e que foi a adaptação à cidade de Lisboa quando para lá fui estudar medicina em 1969. Basta dizer que só no hospital de Santa Maria circulam diariamente mais pessoas do que a ilha das Flores tinha naquele tempo. Mas essa minha dificuldade de adaptação que, agora entendo, se manifestou com muita ansiedade e agorafobia, radicava certamente em questões de temperamento e personalidade de base pois havia muito boieiro semi analfabeto das Flores que vinha a Lisboa acompanhar as vacas no navio e não regressava sem ter ido ver jogar o Benfica, ir ao Jardim Zoológico, ao Aquário Vasco da Gama e outras coisas mais. Fez-me sempre impressão como é que eles se “amanhavam”.
Mas se o nascer e viver nas Flores até aos dezanove anos (excepto o período dos dezassete aos dezanove em que frequentei o 3º ciclo na Horta) criou limitações e constrangimentos, a verdade é que a coisa também teve as suas vantagens ou, melhor dizendo, teve as suas coisas boas.
Apesar de o meu pai ser funcionário público eu inevitavelmente tive uma grande comunhão com as coisas da terra e do mar. Venho do tempo da caça à baleia. Assisti à ansiedade, gritos e imprecações dos vigias, ao lançar da bomba como sinal de “baleia à vista” e, no dia seguinte, via-as serem desmanchadas com golpes hábeis de sopão no meio de grande “pivete” enquanto lá em baixo, no mar pintado de vermelho, a sargalhada e pequenos esqualos repartiam as carnes do cetáceo. Dos pescadores fiquei a saber tudo sobre a faina e do mar ensinaram-me a adivinhar-lhe as fúrias, as ressacas e os remansos. Com os meus primos aprendi a ordenhar uma vaca, vi nascer bezerros e vi os bois fecundarem a vaca à moda antiga e não como agora, artificialmente com esperma conservado em azoto líquido. Com os meus tios aprendi a sangrar um porco, desmanchá-lo, conhecer-lhe a anatomia.
Sozinho vagueando pelos campos com ratoeiras para apanhar tentilhões aprendi quase tudo sobre plantas e ervas, frutos e árvores, aromas e sabores. Com os amigos, tomávamos banho “em coiro” na ribeira sem sombra de pecado ou culpa e sem constrangimentos ou vergonha na exposição cândida dos corpos.
E depois havia uma coisa excelente que era a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian. E uma das formas que tínhamos para combater a pasmaceira da ilha era ler. Ler compulsivamente. Ainda por cima o senhor Luís facultava-me os livros “malditos” (os de cinta vermelha) antes de ter a idade que o Governo de Salazar determinava como razoável. Li Crime e Castigo de Dostoievsky cerca dos 14 anos, o Crime do Padre Amaro um pouco mais tarde mas também Stefan Zeig, Nikos Kazantzaki, Vitor Hugo, Balzac. Os clássicos portugueses todos e alguma poesia. Julgo que essas leituras formataram o meu gosto pela escrita e daí que, desde os quinze anos, escreva para vários jornais. Actualmente vivoem Castelo Branco e tenho uma página quinzenal no semanário Reconquista. Acho que o acto de escrever impôs-me uma disciplina e um domínio do português que me têm sido muito úteis na profissão de médico onde, frequentemente, temos que elaborar relatórios, dar pareceres, fazer conferências, etc. Acho sinceramente que se tivesse nascido numa grande cidade, não teria lido tanto. Ficar-me-ia certamente pelos compêndios da praxe e pelas leituras obrigatórias de acordo com os programas escolares.
Chegado aqui tenho dificuldade em saber se nos pratos da balança onde se pesam as vantagens e constrangimentos de nascer e viver numa ilha para que lado pende o prato. Mais difícil ainda se torna pensar como teria sido em Lisboa, Viseu ou Freixo de Espada à Cinta. Melhor? Pior? Só Deus sabe. Uma coisa é certa. Teria sido diferente. Inclino-me, porém, a acreditar que, tudo espremido, foi bom nascer e viver nas Flores. E sobretudo assistir às enormes transformações e progressos da minha terra nos últimos trinta anos.
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ECO
No eco da vergasta
A memória não se perde,
Apenas se agasta…
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O LUGAR DO MIMOIO
O Mimoio era, sob o ponto de vista agrícola, um dos maiores e mais importantes de todos os lugares não povoados da Fajã, uma espécie de celeiro da freguesia, dado que ali se situavam muitas das melhores e mais produtivas terras de milho, depois dos inconfundíveis e super produtivos cerrados e courelas da beira-mar, nomeadamente os do Areal, das Furnas e do Porto. É verdade que na Fajã, nos anos cinquenta, havia vários lugares com terrenos de produção agrícola com excelente qualidade, mas a maioria deles eram bem mais pequenos em tamanho do que o Mimoio. Na realidade o lugar do Mimóio tinha uma enorme extensão, espalhando-se sobre um amplo planalto, que ia desde a Fontinha até à Ribeira das Casas. Daí que as suas fronteiras fossem a norte precisamente a Ribeira das Casas e o Calhau Miúdo, a sul a Fontinha e o Cruzeiro, a leste a Ribeira e o Alagoeiro e a oeste a Ladeira. Para além das terras de cultivo, onde se semeava o milho e pelo meio deste, se espalhava a erva da casta ou trevo para se amarrar o gado à estaca, lá para mais tarde, nos meses de Abril e Maio, o Mimoio ainda tinha muitas belgas de excelente qualidade para o cultivo de batata-doce, abóboras, feijão e favas, tendo também, sobretudo na zona da Ribeira das Casas, algumas pastagens, também estas de muito boa qualidade. O grande problema do Mimoio era a falta de um caminho largo e acessível por onde pudessem circular carros de bois ou corsões, a fim de se transportarem, mais fácil e suavemente, todos os produtos agrícolas que aquelas produziam. E não eram poucos! Tudo o que trouxesse ou levasse das ou para as terras do Mimoio tinha que ser acarretado às costas. Nem sequer os burros podiam transitar por ali, sobretudo se carregados. É que o acesso às terras do Mimóio fazia-se apenas por três canadas, todas elas de muito estreitas e de má qualidade. A mais importante, porque a mais utilizada era a que partia da Fontinha, junto à casa de Tio José Teodósio e depois seguia até ao centro do Mimóio bifurcando-se, aqui e além, por outras pequenas e ainda mais estreitas canadas ou veredas bem mais apertadas e mais sinuosas, sendo muitas vezes utilizado, como caminho de acesso, o cimo das paredes, onde se haviam guardado as pedras retiradas, em tempos idos, a quando do desbravar dos campos. Desta canada, porém, a partir da altura em que se ela se sobrepunha à Ladeira, desfrutava-se de uma excelente vista sobre uma grande parte da Fajã, uma vez que o Mimoio se situava precisamente num planalto sobranceiro à Tronqueira e à Ladeira. Esta zona era porém muito perigosa, ladeada por uma alta ravina do lado da Tronqueira e por ela não podia passar gado. Outra canada era a que partia da Ribeira das Casas e dava acesso sobretudo às pastagens, chegando também ao centro do Mimoio onde confluía com a canada vinda da Fontinha e com uma terceira que partia do Calhau Miúdo, mas muito pouco utilizada, uma vez que, dado o desnível de ambos os lugares, era quase toda em degraus e de impossível acesso para o gado, que circulava sempre pelo lado da Ribeira das Casas. Era nesta confluência das três canadas, junto ao portal de um cerrado que meu pai ali tinha, que havia um pequeno descansadouro, onde os homens se sentavam à espera da ordenha, na altura em que o gado por ali estava amarrado à estaca, no “oitono”.
Crê-se que o nome Mimóio se teria originado a partir das palavras “meio” e “moio”, evoluindo para “Mimóio”. Esta hipótese, no entanto, parece-me pouco plausível, uma vez que sendo aquelas terras tão produtivos, nunca alguém se teria referido a elas simplesmente por “terras do meio moio”. Assim, uma outra hipótese, jamais apresentada algures, é a de que “Mimóio” também poderia ter tido origem a partir de “mimo” e “moio”. Parece pois mais razoável, sob o ponto de vista fonético e também lógico, uma vez que sendo as terras daquele lugar tão férteis, não dariam apenas meio moio de milho, de trigo, de feijão ou favas, mas muitos, bons e fabulosos moios. Neste caso o topónimo poderia muito bem ter evoluído de “moio mimo”, ou “mimo moio”, ou seja um bom moio, originando o actual “Mimóio”.
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TI'ANA TENENTA
Ana de seu nome e Tenenta de apelido, Ti’Ana Tenenta vivia numa casa situada numa das canadas da Fontinha, naquela que ficava logo a seguir à Fonte Velha, casa que mais tarde serviu de palheiro para o gado do António Vieira. De avançada idade, portadora de algumas doenças crónicas e outras tantas fortuitas e com uma lucidez bastante limitada, Ti’Ana Tenenta morava sozinha, numa casa muito velha, com escassos meios de vida e, como se isso não bastasse, em condições de extrema pobreza e acentuada precariedade. Também não se lhe conheciam parentes, não tinha amigos e apenas um outro vizinho mais benevolente e compreensivo, lhe abonava uma demão a cortar os garranchos de lenha para acender o lume, lhe oferecia uma cesta de batatas, uma pinguita de leite ou um quarto de bolo. Além disso, quer porque a vida já não lho permitisse, quer porque granjeava poucas simpatias por parte dos vizinhos e porque nem sequer tivesse amigos ou parentes chegados, Ti’Ana Tenenta pouco saía de casa e menos ainda convivia com quem quer que fosse, sendo o seu dia a dia quase ignorado e desconhecido por parte de quantos passavam à sua porta. Se a velha não aparecia a espreitar por dentro da janela, onde já havia mais vidros partidos do que inteiros, era porque estava deitada na enxerga ou sentada numa cadeira a dormitar. Assim a sua ausência de casa nunca era notada por quem quer que fosse.
Certo dia, ao anoitecer, sem que ninguém se apercebesse, Ti’Ana Tenenta saiu de casa, subiu a Fontinha até ao Alagoeiro, tomando rumo na direcção da Ribeira com a denodada intenção de subir a Rocha, com destino a Santa Cruz. Andou, andou, subiu degraus e sentou-se a descansar em todos os apeadeiros e furnas. Bebeu água fresquinha na Fonte Vermelha e chegou ao cimo da Rocha ainda a noite era escura como breu. Voltou a sentar-se e, pouco depois, tomou o rumo do Curral das Ovelhas e da Burrinha, sem nunca se perder. Nem alma viva encontrara ao longo de todo este longo percurso que lhe tolhesse os passos ou a impedisse de percorrer tão cansativa caminhada àquela hora da noite. Já ia a subir o Rochão do Junco quando começou a amanhecer e o dia, lá por trás do Queiroal, começou a clarear, permanecendo, no entanto, no ar uma densa neblina matinal. Pouco depois iniciou a descida da Burrinha, na direcção da caldeira da Água Branca. Já por ali passara muitas vezes, atravessando a caldeira sobre paus de cedro a fim de descansar da longa caminhada e encurtar caminho para a Vila. Naquela manhã porém como não encontrasse por ali perto tronco de cedro ou de outra árvore qualquer que lhe servisse de jangada, decidiu-se por atravessar a pé a caldeira. Já ia a uns bons metros da margem, com a água a dar-lhe pelo peito quando foi avistada por dois homens da Lomba que andavam por ali a juntar gado alfeiro que havia saltado os tapumes e fugido das relvas. Bem chamaram, bem gritaram e ainda melhor berraram mas a velha cada vez mais se enterrava na caldeira, cheia de lodo e de ervas e com a água já a dar-lhe pelo pescoço. Numa correria louca com o intuito de salvar a pobrezinha, os homens dirigiram-se na direcção da caldeira. No entanto e quando se aproximaram da borda da mesma já nenhum vestígio da velhota conseguiram lobrigar. Aflitos, atónitos, sem saber que fazer e cuidando que atirarem-se à caldeira era suicidar-se, pois nunca mais encontrariam a pobre velha e corriam sérios riscos de se afogar pois nenhum deles sabia nadar. Iniciaram então uma desusada correria na direcção da Fajã, com o intuito de chamar alguém que os ajudasse. Passadas algumas horas de descidas e subidas, chegaram à caldeia os primeiros homens da Fajã… mas da velha nem vestígios. Além disso, mesmo que a encontrassem, aquela hora já estaria morta. Esperaram um dia, dois dias três dias, procuram e voltaram a procurar mas o cadáver da velha nunca veio à superfície e nunca foi encontrado, encerrando-se, finalmente, as buscas. Mas os da Fajãzinha é que jamais se calaram. Que não podia ficar ali um cadáver, pois era a água daquela caldeira que alimentava as nascentes da Fajãzinha, nomeadamente as fontes do Rossio, onde todos bebiam e ninguém estava disposto a beber água que viesse de onde estava o cadáver de um ser humano a apodrecer. Tirassem o cavalinho da chuva, os da Fajã: se a velha era deles, eram eles que tinham que a tirar da caldeira! Olaré se tinham! De contrário a questão seria resolvida no tribunal de Santa Cruz. E os da Fajã tiveram mesmo que ir tirar Ti’Ana Tenenta da caldeira da Água Branca. Um grupo de homens equipou-se com garfos de tirar esterco, ancinhos, paus, cabos, cordas e até um caixão e dirigiram-se para a Água Branca. Construíram jangadas, sob as quais percorreram toda a caldeira, pesquisando o fundo com paus, fueiros e aguilhadas, durante dias e dias. Mas nada. Cansados, desanimados, esfomeados e desmotivados, devido ao mais que evidente insucesso da tarefa, decidiram terminar as buscas. Mas os da Fajãzinha? Como se acalmariam e aquietariam? Foi então que resolveram simular o aparecimento do cadáver com grande efusão e naturalidade. Enchendo o caixão com paus e pedras mais ou menos do peso do corpo da velha, conduziram-no aos ombros até ao povoado, simularam um funeral e convenceram os da Fajãzinha de que podiam beber à vontade as águas das suas nascentes, pois o corpo de Ti’Ana Tenenta finalmente tinha sido retirado da caldeira da Água Branca e sepultado com exéquias, missa do terceiro dia, responsos e tudo.
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A POPULAÇÃO DA FONTINHA
Década de cinquenta! No alto da Fontinha, a primeira moradia pertencia a Tio José Teodósio, lavrador um pouco mais abastado, homem generoso e muito solidário com o seu semelhante que emprestava as alfaias agrícolas a quem delas necessitasse, sendo que nem era preciso pedir-lhas, pois o palheiro onde as guardava estava sempre de portas escancaradas. Vivia com a esposa e três filhas, pois os restantes já haviam casado ou abandonado a ilha. Tio José Teodósio também era um bom cantador e fazia parte do grupo de homens que nas terças e sextas da Quaresma iam cantar para o Outeiro.
Um pouco mais abaixo vivia, com a mulher e três filhos, o Tio Britsa, uma irmão da minha avó, pessoa muito simples, inocente e sem maldade. A mulher era irmã das senhoras Mendonças. Tio Britsa, apesar de avançada idade e de ser magro, fraco e doente, trabalhava muito e acarretava enormes molhos às costas. Como a subida da Fontinha era muito íngreme, dizia-se que ele ao subi-la “dava um paço para a frente e dois para trás” e, por isso, demorava uma eternidade a chegar a casa. Mesmo em frente morava um filho de Tio José Teodósio e genro de Tio Britsa, casal jovem e com cinco crianças. Chamava-se Teodósio, acompanhava o pai no cantar no Outeiro, era um exímio tocador de tambor e folião do Espírito Santo e, para além do trabalho nas terras, ia ao Mato duas vezes por dia, ordenhar as vacas, subindo a Rocha, alta madrugada e ao entardecer, carregando, na descida, as latas a abarrotar de leite. Consta que foi o único fajãgrandense a cultivar milho no Mato.
Ao lado vivia, com o pai, já de avançada idade, o José do Pico, que casou com a Leonor do João Bizarro e que logo após a morte de seu pai, o velho Tio José do Pico, partiu com a família para o Canadá.
Ali perto e numa das casas com melhor vista sobre a Fajã, sobre o Porto e sobre o oceano, morava tia Manceba juntamente com uma filha, a Maria do Céu e uma neta, a Maria Antónia. Tia Manceba era de avançada idade pelo que já nem se ausentava de casa. Caracterizavam-na, no entanto, dois interessantes pormenores: utilizava uns óculos com uma lente branca e outra escura, dado ser cega de um dos olhos e possuía um óculo bastante potente, com o qual sentada à janela, apreciava não apenas o que se ia passando pelo parte mais baixa da Fajã mas também observava todos os navios que diariamente por ali passavam, ligando a Europa e os Estados Unidos. Era dali também que em dias de baleia, muitas pessoas assomavam, na tentativa de ver melhor a acção em mar alto dos botes na tentativa de caçar as baleias.
Neste grupo ainda se incluía, por ter casa na mesma recta onde ficava a da tia Manceba e junto a uma outra de tia Gonçalves mas onde na altura não morava ninguém, o António Dias, conhecido por o “Parente”, casado com uma filha do Manuel Dawling e com o filho José, que também partiram para a América.
Um pouco acima da chamada Fonte Velha e numa curva que a rua da Fontinha fazia antes de chegar à recta da casa de tia Manceba, existiam três casas, formando uma espécie de triângulo. No vértice do lado de terra, havia uma muito alta, revelando uma simulada e fingida imponência até porque construída em pedra e não caiada. Mas era muito pobre, como pobres eram os seus moradores, dois irmãos, ambos solteiros e já de avançada idade: José Eduardo e Maria Eduarda. José Eduardo era diabético, já não podia trabalhar, ficando as tarefas da casa e dos poucos e pequenos campos que tinham confiadas exclusivamente à irmã. José Eduardo era dos poucos homens que, na Fajã, naquela altura, ainda “mascava” tabaco em vez de fumar.
Por sua vez, no vértice do lado da Ponta viviam outros dois irmãos, também muito pobres mas pouco considerados na freguesia, denominados por o “Coelho e a Coelha”. A Coelha praticamente não saía de casa, apenas aparecia de vez em quando ou à janela, para peleijar com algum vizinho, ou ao portão, para insultar um ou outro transeunte. O Coelho trabalhava os poucos campos que possuía, tinha ovelhas em vez de vacas, nunca descansava no Alagoeiro nem se sentava à Praça a conviver com outros homens e, vezes sem conta, desafiava este e aquele, mandando-lhes “bocas” pouco simpáticas. Meu pai, que sempre se deu bem conta a gente da freguesia, não falava com ele, por ofensas verbais que, sem razão aparente que o justificasse, lhe havia feito.
No último vértice e ainda na curva vivia o Candonga com a mulher Anina, irmã de João Inácio e dois filhos: o José e a Maria Silvina. Como tinha poucas terras, o Candonga dava dias para fora, era pescador e um dos mais bravos baleeiros da Fajã, mas adoecia com alguma frequência. Certa vez caiu na Rocha, do cimo de uma altíssima verga de pedra, ao lado da Fonte Vermelha e lá ficou uma noite e quase dois dias, sem se alimentar, ao relento, bastante ferido e com uma perna partida. Só no dia seguinte foi encontrado e retirado com enorme dificuldade, dado que o lugar era de difícil acesso. Foi, então, transportado em ombros, numa maca e levado para o hospital de Santa Cruz.
Logo abaixo e na primeira transversal da Fontinha, do lado direito de quem a subia, entrelaçadas com alguns palheiros, existiam duas casas. Uma era a do Vieira, que vivia sozinho, na casa que havia sido do meu bisavô. A outra era a do José Malvina, filho de tio Malvina, que vivia com a esposa, um filho e o sogro, após a morte do qual partiu para o Canadá.
No largo da Fonte Velha e precisamente em frente ao fontanário ficava a casa do “Arionó”, assim chamado porque ao regressar da América usava constantemente a expressão “Are you now”, num inglês extremamente mal pronunciado. O Augusto Arionó vivia com a esposa, a Mariana, filha de um terceiro casamento do meu bisavô, com os filhos: José, Maria, Elisa, Guilherme e Deolinda. Apenas a Maria partiu para a América, após casar com o Ângelo de João Augusto. Os outros irmãos foram dos poucos que sempre por ali ficaram e ainda residem na Fajã, precisamente na mesma casa.
Ao lado da Fonte Velha, ficava uma casa alta, de dois andares, onde morava um outro filho de Tio José Teodósio, o António, casado com uma filha de José Pureza e com alguns filhos. Cedo, porem, abandonou a freguesia, emigrando para os Estados Unidos.
Finalmente a casa de meu avô materno, conhecido por José Batelameiro (uma deturpação de Bartolomeu, nome que herdara do seu avô) e que faleceu ainda na minha infância. Ficou minha avó com sete dos seus treze filhos e que ainda não haviam casado. Era a mordoma das almas e quase todos os dias, sobretudo durante o Verão, à tardinha, sentava-se à janela da sala, virada para o mar, a observar o momento do pôr-do-sol, lá ao longe, no horizonte, não com intuitos de apreciar tão belo espectáculo, mas para acertar o relógio de parede, recorrendo a uma tabela manual que possuía. Mas como estávamos no extremo do fuso horário açoriano, o relógio dela andava sempre atrasado. Os meus tios Luís e o Chico, este era o sacristão, trabalhavam no campo e as minhas tias faziam as lides caseiras, bordavam e teciam, dado que meu avô havia montado numa casa velha que existia em frente daquela onde moravam, conhecida pela “Casa de Tia Fraga”, um dos poucos teares existentes na Fajã. Todos partiram ou para a América ou para o convento.
Junto à casa da minha avó, na Fontinha, do lado esquerdo de quem subia, havia uma pequena transversal em forma de ladeira ou aclive, onde existiam apenas duas casas de habitação. A primeira pertencia ao João Bizarro, um homem muito alto e esguio, óptimo conversador e com um excelente timbre de voz. Era um lavrador abastado, um bom cortador de carnes nas festas de Espírito Santo, participava habitualmente nos cargos de cabeças das festas e do Fio e era casado com a Glória Jacob, tendo os filhos todos casado e partido para a América, excepto a Adelaide que por ali ficou, com os pais. Mais dentro e no termo da pequena travessa morava o Ângelo do Tesoureiro com a irmã Elvira. Apesar de já ter alguns anos, casou com uma rapariga bastante mais nova a Lídia e teve três filhos. O Ângelo era um bom pescador, tinha um barco de pesca, abastecendo de peixe uma boa parte da freguesia. Contava-se que estando certo dia na loja do senhor Rodrigues, ao chegar à Fajã um novo pároco, que obviamente não conhecia as pessoas, nem muito menos o parentesco entre elas, como o filho estivesse a fazer algumas diabruras, pois era bastante irrequieto, o reverendo, dirigindo-se à criança, aconselhou:
- Senta-te aqui, quietinho, junto ao teu avô.
O Ângelo enfurecido ter-se-á levantado e emendado imediatamente:
- Avô não! Pai sim!
Saindo da travessa em frente à casa da minha avó e voltando novamente à rua da Fontinha, do outro lado, numa casa lá bem no alto, muito desnivelada do caminho, e com umas grandes escadarias de pedra, mesmo junto à Ladeira da Fontinha, vivia o José Gonçalves, com a mulher, filha da minha vizinha Lucinda e três filhas, consideradas das mais bonitas moças da freguesia: a Mariazinha, a Laurinda e a Fernanda, que algum tempo depois casaram e partiram todas para o Canadá. Por baixo das escadas ficava a entrada de acesso a uma loja de arrumos e palheiro, uma espécie de túnel, escuro e estranho, com um portão de entrada em arco de volta inteira. Como ficava num sítio um pouco ermo era com esta entrada que se amedrontavam e ameaçavam as crianças que se portavam menos bem quando por ali passavam e que também servia de esconderijo para muitas brincadeiras e “partidas”, cujo objectivo era amedrontar ou assustar os transeuntes. Ao lado vivia o José Fragueiro com a mulher, filha do Cabral e sem filhos, paredes-meias com a Senhora Fragueira que, algum tempo depois ingressou partiu para o Continente, na demanda de convento. O Fragueiro fez parte do primeiro grupo de músicos da Senhora da Saúde, onde tocava trompa. Mais tarde partiu com a mulher para o Canadá.
Do outro lado da rua e numa casa bastante desnivelada relativamente ao caminho, morava o Tavares, com a mulher e vários filhos. Alguns foram para a guarda, outros para a América. Mais tarde mudou-se para uma outra casa ali ao lado, encravada nos contrafortes do Outeiro. Era a casa mais alta da Fajã, depois da do Chileno e a única com três andares visíveis a partir do caminho. A entrada para o prédio era efectuado por um atalho que dava para a Cruz do Outeiro. Ao lado ficava uma pequenina e pobre casita onde morava um João Raimundo, oriundo das Lajes, com duas filhas e dois netos
Finalmente e já quase à praça, morava o Laureano Cardoso, viúvo e com quatro filhos, tendo, mais tarde, todos partido para a América, excepto a Deolinda que casou com o Abraão, cabo do mar na Horta, trabalhando e fixando residência mais tarde em Angra. O João pertencia ao grupo de homens que iam ao leito ao Mato e tocou clarinete na filarmónica a Senhora da Saúde.
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MÃO MORTA
Mão morta, mão morta
Mão morta, mão morta
Esta é a minha porta
Mão morta, mão morta
Mão morta, mão morta
Vai bater a outra porta.
(Aravia popular fajãgrandense, usada pelas crianças para justificarem dar uma bofetada noutro)
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CASAMENTOS REALIZADOS NA PARÓQUIA DE SÃO JOSÉ DA FAJÃ GRANDE NO INÍCIO DO SÉCULO XX (NO ANO DE 1900)
No início do século XX, mais concretamente no longínquo ano de 1900, realizaram-se, na paróquia de São José da Fajã Grande, os seguintes casamentos:
1900
A 20 de Janeiro – João Furtado Fagundes, de 35 anos, filho de Raulino José Furtado e de Ana Isabel do Coração de Jesus, casou com Maria Fagundes Furtado, de 18 anos, filha de José Joaquim Fagundes e de Ana Laureano de Freitas.
A 21 de Maio – Francisco Rodrigues do Nascimento, de 25 anos, filho de João Rodrigues Coelho e de Maria de Jesus, casou com Ana de Morais Rodrigues, de 21 anos, natural da ilha de Santa Maria, filha de José António Morais e de Ana Jacinta de Braga.
A 25 de Maio – José Francisco Serpa, de 22 anos, filho de Manuel Caetano Serpa e de Maria de Freitas Serpa, casou com Maria Inácia de Freitas, de 22 anos, filha de Manuel Inácio de Freitas e de Isabel Perpétua de Jesus.
A 21 de Junho – Francisco Alves Mendonça, de 39 anos, filho de Jacinto Alves de Mendonça e de Policena Georgina de Mendonça, casou com Maria Morais de Mendonça, de 23 anos, natural da ilha de Santa Maria, filha de José António de Morais e de Ana Jacinta de Braga.
A 28 de Junho – José Lourenço do Nascimento, de 28 anos, filho de Francisco Lourenço do Nascimento e de Ana Laureana da Silveira, casou com Maria da Glória de Freitas, filha de José Cardoso de Freitas e de Maria Leopoldina.
A 2 de Setembro – Manuel José Dowling, de 25 anos de idade, natural de São Vicente, ilha da Madeira, filho de Alexandre Pestana e de Maria Justina de Jesus, casou com Maria da Glória Dowling, de 18 anos, filha natural de Maria Júlia Amorim.
A 16 de Setembro – José Maria de Sousa de 50 anos, viúvo de Maria de Jesus Teodósio, filho natural de Maria de Jesus, casou com Ana Margarida de Sousa, de 29 anos, filha de Francisco de Freitas Branco e de Iria Margarida.
A 19 de Outubro – António José Pedro, de 18 anos, natural de Santa Cruz, filho de Pedro José da Câmara e de Rosália Maria de Andrade, casou com Maria Pereira da Silva, de 20 anos, natural dos Altares, ilha Terceira, filha de Manuel Pereira da Silva e Maria Gertrudes.
A 5 de Novembro – José Mateus Avelar, de 21 anos, filho de Manuel Dias Avelar e de Ana de Jesus da Assunção, casou com Maria José Avelar, de 18 anos, filha de Manuel Luís de Fraga e de Mariana Luisa da Assunção.
A 17 de Novembro – José Inácio Jorge, de 29 anos, filho de José Inácio Jorge e de Maria José da Glória, casou com Maria da Glória Fagundes Jorge, de 18 anos, filha de Francisco Lourenço Fagundes da Silveira e de Maria Luisa da Silveira.
A 29 de Novembro – José Inácio Cardoso de 21 anos, filho de João Inácio Cardoso e de Maria de Jesus, casou com Leopoldina de Freitas Cardoso, de 17 anos, filha de José Fernandes de Freitas e de Maria José Fernandes.
Fonte: - Gomes, Francisco António Nunes Pimentel, Casais das Flores e do Corvo, 2006.
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MIGUEL ALVIM
Miguel Alvim nasceu em Ponta Delgada, ilha de São Miguel a 20 de Junho de1882, falecendo na mesma cidade em 1915. Poeta e jornalista, fez os estudos secundários no Liceu de Ponta Delgada, passou pelo exército como oficial subalterno e acabou por se dedicar ao jornalismo. Fundou e redigiu com Francisco do Carvalhal os jornais Interesse Público e O Arauto. Dirigiu o jornal O Distrito, auto-suspenso após a queda da monarquia e, mais tarde, A República. Também chefiou a redacção do Diário dos Açores.
Cultivou a poesia e a música e esporadicamente o teatro e o conto. A poesia, que constitui a parte mais vultosa da sua obra, encontrava-se dispersa ou inédita à data da sua morte e assim se conserva actualmente. Trata-se duma poesia epigonal do parnasianismo, formalmente cuidada e em que o autor deixou algumas reflexões filosóficas sob a influência de Antero. Para o teatro escreveu a comédia Conselho de Ministro e um entreacto dramático, que a crítica local considerou «um grande exemplo de boa doutrina social», intitulado Duas Dores.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O GALEÃO DE GARCIA GONÇALVES
Chegaram os genoveses,
os flamengos
os bretões
e os florentinos!
Traziam barcos,
- pequenos batéis -
- frágeis caravelas -
navegando à bolina,
norteados pelo vento
guiados pela aventura,
sulcando o destino,
carregados de esperança,
almejando a sorte.
Sem o prever,
aportaram a uma ilha,
alta e esguia
onde, a sul,
havia uma enorme baía,
- uma encantadora enseada
E por trás da baía,
uma encosta,
com chão de lava,
mas soalheira e viçosa.
E os genoveses,
os flamengos
os bretões
e os florentinos,
fixaram-se ali,
na encosta verdejante,
voltada para o mar,
- debruçada sobre a baía -
arroteando,
produzindo,
edificando,
construindo maroiços.
atalhos e veredas,
transformando a lava
em chão doirado.
Também havia um português
- Garcia Gonçalves –
evadido do reino,
a exilar-se na ilha
por dívida
a El-Rei D. João III.
Uniram-se os genoveses,
os flamengos
os bretões
e os florentinos,
e, juntamente,
com o português,
(o tal que tinha uma enorme dívida para com El-Rei D. João III)
e com outros portugueses
(uns que antes, outros que depois)
também haviam demandado a ilha,
com as madeiras da encosta
e com a arte dos genoveses,
construíram uma enorme nau:
- um galeão -
que enviaram de presente a El-Rei D. João III
que, assim,
se apiedou
e perdoou a dívida
ao tal português,
evadido do reino
- Garcia Gonçalves –
E aquele lugar,
encastoado entre a baía e a encosta,
com o chão atapetado de lava florida
e com o mar a espraiar-se como eira,
houve por nome:
- Prainha do Galeão.
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O DESCANSADOURO DA LAJE DA SILVEIRINHA
Ao cimo da Ladeira da Silveirinha, na Fajã Grande, havia um grande largo e nele, do lado esquerdo de quem subia a ladeira, estava cravada uma enorme laje conhecida por “A Laje da Silveirinha”. Era uma pedra monumental, achatada, de forma circular e com a parte superior muito lisa, uma espécie de mesa redonda, embora sem pés e muito baixa, a fazer lembrar um verdadeiro monumento megalítico. A ladeira que começava numa curva do caminho, no sítio em que ele mais se aproximava da Rocha e de onde se desfrutava de uma bela vista da Figueira e de muitas das suas lagoas e levadas, subia íngreme e pedregosa, latejante e desoladora, ao mesmo tempo que se ia alargando até chegar ao cimo e desembocar num amplo e tosco largo, onde pontificava aquela espécie de tampa aparentemente retirada de um dos menires do Cromeleque de Almendres – a Laje da Silveirinha.
Ora foi precisamente este emblemático e desmedido local, donde também se vislumbrava uma boa parte da freguesia, que os nossos antepassados adaptaram a descansadouro, um dos vários construídos ao longo do caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros. Este era de facto um local que possuía quase todas as condições ideais para um bom descansadouro. Havia uma única excepção: a falta de água, carência, aliás, comum à maioria dos descansadouros, pese embora a Fajã Grande fosse terra de muita água. No entanto, a água bebível mais próxima da Silveirinha, ficava longe dali, mais concretamente nos regos das lagoas da Figueira, situados a uma boa distância, com difícil acesso e dispondo apenas de folhas de inhame como recipiente adaptado para o transporte do precioso líquido. De resto, a Laje da Silveirinha era um local quase perfeito para animais e homens descansarem, aliviando-se durante alguns minutos das pesadas cargas que traziam aos ombros, pois era um espaço bastante largo, com paredes altas e seguras, de um e outro lado do caminho, para colocar molhos, cestos e outros carregos ou para amarrar o gado ou encostar o carro de bois ou o corsão. Para além disso, o Descansadouro da Laje da Silveirinha ainda possuía uma excelente bancada natural. É que a própria laje servia, na perfeição, de assento, pese embora, do lado das Queimadas, tivesse sido construída uma bancada tosca e rústica, feita com pedregulhos grosseiros e achavascados. Neste descansadouro confluíam três canadas. Uma, mesmo ali, junto da Laje e que ligava este caminho ao das Queimadas, outra, um pouco mais acima e do lado oposto do caminho, proveniente do Cabeço da Rocha e, finalmente, ainda mais acima e já quase na Escada Mar, uma terceira canada que servia de acesso às hortas e terras de mato da Silveirinha.
Sendo assim, este descansadouro servia, em primeiro lugar, de descanso sobretudo para quem vinha carregado destas três canadas, uma vez que a maioria dos homens oriundos dos lugares que ficavam a sul da Escada Mar, aproveitava o descansadouro, que ficava um pouco mais acima e era bastante maior e mais largo – o Descansadouro da Escada Mar.
Contava-me minha avó, que este descansadouro foi palco de um dos mais comoventes actos heróicos praticados, outrora, na Fajã Grande. Por ali terá passado Ti’Antonho do Alagoeiro, a arder em febre e com uma hérnia a sair-lhe pela barriga, quando foi, numa correria louca, desde o seu cerrado das Queimadas até ao Cabeço da Rocha, socorrer Pai Cristiano que ali, junto à rocha, agonizava sozinho, lançando angustiantes estertores que, ecoando na Rocha, se transmitiam desalmada e pungentemente pelos vales e outeiros dos arredores. A sangrar e com as tripas de fora Ti Antonho do Alagoeiro ainda carregou às costas o velho, já cadáver, transportando-o até a sua casa, na Fontinha e entregando-o à sua família, que nem sabia o que se havia passado.
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PELO SÃO MARTINHO
“Pelo São Martinho, mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.”
Na Fajã Grande não havia vinho, ou melhor, não se produzia vinho. É verdade que havia algumas videiras, geralmente sobre os maroiços e misturadas com figueiras, mas sem serem trabalhadas e podadas. As uvas que produziam eram utilizadas apenas como alimento. Por isso provérbios relacionados com o vinho e com São Martinho não existiam, nem sequer se dava grande importância a este Santo, à solenidade do dia ou à festividade. Isto não significa que o mesmo não fosse lembrado e dele não houvesse memória, personificada num ou noutro adágio relacionado com o santo bispo.
Um provérbio muito referido, por esta altura, era o que se transcreve em epígrafe: “Pelo São Martinho, mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.” com o qual se pretendia fazer lembrar que em Novembro, se o tempo o permitisse, já se poderiam e deviam realizar alguns trabalhos nos campos e fazer-se algumas sementeiras, como a do trigo, das favas e de que era por esta altura que se podiam plantar as couves, os alhos, as cebolas e o cebolinho. Além disso, o provérbio ainda lembrava que era realmente neste mês que se começava a preparar tudo para a matança do porco que em breve chegaria. Na realidade, muitas pessoas matavam o porco no final de Novembro, talvez porque, como o adágio refere, esta fosse a época do ano mais apropriada às matanças.
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PERSISTENTE
MENU 16 – “PERSISTENTE”
ENTRADA
Esparguete cozido com feijão-verde laminado embebido em creme de queijo ralado e
tirinhas de alface com doce de laranja e figo
PRATO
Lombinhos de porco grelhados, com rodelas de pêssego salteadas e barradas com mel
e rodelas de pepino gratinadas e barradas com creme de queijo fresco.
SOBREMESA
Gelatina de Pêssego.
Preparação da Entrada:
Cozer o esparguete, juntamente com tiras de feijão-verde. Cortar as folhas de alface em tiras, misturar com a colher de doce e o queijo ralado.
Preparação do Prato:
Temperar os bifinhos de lombo, deixá-los marinar. Grelhá-los numa fritadeira barrada com azeite, juntamente com a salsicha. Cortar o pêssego em calda, às rodelas e gratiná-las na gordura dos bifinhos. Cortar o pepino, grelhá-lo juntamente e barrar as rodelas com creme de queijo fresco e as de pêssego com o mel. Dispor os ingredientes.
Preparação da Sobremesa: - Processo tradicional.
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A CASA DA SENHORA ESTOLANA E O RESTAURANTE “CASA DA VIGIA”
A casa da Senhora Estolana era a última do Cimo da Assomada, do lado do Caminho da Missa, ou seja, do mesmo lado e um pouco antes da canada que dava simultaneamente para as terras e relvas do Pico e para a Vigia da Baleia, ou seja para o Pico da Vigia. Era uma casa muito branquinha, com as barras das portas e das janelas pintadas de azul, mas um pouco misteriosa e enigmática, uma vez que quer a Senhora Estolana depois de enviuvar, quer todos os seus filhos e filhas partiram para a América. Daí que a casa ficasse abandonada, isolada, deserta, descaída e envelhecida criando aquele ar tenebroso e de mistério, para quem, como eu, criança, por ali passava, até porque ficava um pouco distante das outras casas da freguesia.
Hoje vejo-a através de imagens da Internet, da mesma forma que era outrora, quando ainda era habitada pela senhora Estolana, branquinha, com as barras de um azul muito claro, mas anunciada de forma muito diferente, ou seja, como sendo um restaurante, denominado por “A Casa da Vigia”, com as indicações de que está localizado apenas a 2 km da Aldeia da Cuada e situada na Fajã Grande, freguesia considerada como “lugar ideal para tomar uns bons banhos no mar”, depois do qual se pode ir ao referido restaurante mimar as papilas gustativas. A “Casa da Vigia” é dirigida por uma senhora italiana e os ingredientes ali servidos, segundo consta das informações recolhidas no site, uns são cultivados e crescem numa horta biológica que existe mesmo ali ao lado da antiga casa da Senhora Estolana, enquanto outros são produtos locais, à excepção dos deliciosos vinhos tintos que são importados da Toscânia, Itália, dado que nem a Fajã Grande nem a ilha das Flores são produtoras do precioso líquido.
Destaque-se ainda para um pormenor interessante: o restaurante “Casa da Vigia” possui no seu terraço uma biblioteca.
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NOVEMBRO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Domingo, 5 de Novembro de 1946
Novembro é o mês do ano de que menos gosto. Nunca me agradou muito. Primeiro porque aqui na nossa ilha das Flores é um mês de muito mau tempo, de muita chuva e de muitas ventanias. Os dias em Novembro são muito pequenos, mesmo que esteja bom tempo, de tal maneira que permita ir trabalhar para os campos, o dia não chega para nada. Mal amanhece daí a pouco é noite escura. Além disso, Novembro parece um mês triste, pois para além de escuro, cinzento, negro, é o mês dos defuntos. É verdade que nos devemos lembrar dos nossos, dos que já morreram, mas os sinos a tocarem a finados logo desde o dia dois, as novenas das almas, as idas ao cemitério, tudo me faz ficar triste, muito triste, lembrando-me dos familiares que já partiram, sobretudo dos meus pais. Novembro é o mês dos finados, da tristeza, da saudade e da dor.
Aqui na nossa freguesia há um costume muito antigo que já meu avô falava que existia no teu tempo de criança. Na igreja, todos os dias à noite fazia-se a novena das almas. A igreja, segundo ele contava, enchia-se de gente como se fosse domingo. Até muitos que nem aos domingos entravam na igreja iam à novena das almas. No cruzeiro da igreja colocavam o catafalco coberto com um pano negro, com uma cruz amarela. Desenhada ao meio. Vestido com uma capa preta, o pároco rezava responsos em latim pelos mortos de todas as famílias, mas com uma certa ordem. Depois de dividir as famílias pelos dias do mês, no dia três começava no Cimo da Assomada, terminando na Via d’Água, no final do mês. No fim da novena rezava por todos os fiéis defuntos uma oração em latim que era mais ou menos assim: "Requiem aeterna dona eis, dona" e o povo respondia: “Et luz perpétua luziat’eius”. No fim o sacerdote concluía: “Anima omnium fidelium defunctorum requiescão in paxe”. Hoje já é tudo muito mais moderno, mas ainda continua a haver novena das almas para lembrar os nossos mortos e rezar pelas suas almas. O povo tinha muita devoção e muito respeito pelas almas do Purgatório. Mas nós, os mais pequenos, até nos assustávamos com aquelas rezas e aquele luto, assim como o virar dos sinos, sobretudo no dia dois em que se fazia o enterro do velho Laranjinho.
Meu avô contava que antigamente, em algumas casas, durante este mês deixava-se desocupada uma cadeira que era o lugar do último familiar que falecera naquele ano e muitas pessoas ofereciam a um pobre a refeição que deveria ser do falecido se ele estivesse vivo. Também, no Dia dos Defuntos, tiravam uma derrama pela freguesia, chamada “Esmola Prás Alma”. Com o dinheiro que se recolhia e com o resultante da venda dos produtos doados, mandavam-se celebrar missas por todos os defuntos da freguesia.
No entanto, em Novembro, se o tempo o permite, já se realizam alguns trabalhos nos campos e, antigamente, faziam-se algumas sementeiras como o trigo que nesse tempo era muito cultivado pois havia pouco milho, semeavam-se as favas, plantavam-se as couves, os alhos e as cebolas. Por isso havia um provérbio na Fajã Grande que dizia “Pelo São Martinho, mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.”
E por falar em porquinho era realmente neste mês que se começava a preparar tudo para a matança do porco que em breve chegará. Isto era o que Novembro tinha de melhor.
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CELEIRO DE OUTUBRO
“Em Outubro vai ao celeiro e enche o mealheiro.”
A palavra “celeiro” no sentido real – e aqui só pode ser entendida desta forma - é o local ou casa rural onde, comumente, os agricultores armazenam grãos, assim como outros produtos das suas colheitas e onde também, por vezes, se guardo gado e os veículos ou os utensílios agrícolas. No entanto esta palavra, com este sentido não era utilizada na Fajã Grande, onde aquele o local de guarda do milho com se chamava “estaleiro” e os edifícios onde guardavam quer o milho debulhado, quer os utensílios agrícolas “casas velhas”. Sendo assim, este provérbio, muito provavelmente, terá sido trazido do continente pelos primeiros povoadores, sendo que as pessoas que o utilizavam conheciam perfeitamente o significado da palavra “celeiro”.
Assim a mensagem que pretendiam transmitir com o uso de tal provérbio, era por mais evidente. Sendo em Setembro que se faziam as colheitas, Outubro era mês de abundância, era mês rico, pois muitas pessoa tendo milho em abundância podiam vender o excedente e conseguir algum dinheiro. Decerto que o simbolismo de tudo isto é o facto de noutros tempos, as formas de ganhar algum dinheiro serem muito escassas e raras. Outubro, para os que mais produziam, era uma excepção.
Não parece que existisse nenhum sentido figurado na utilização deste adágio.
Segunda Versão
Um provérbio muito utlizado na Fajã Grande nos anos 50 e com o qual se queria significar que, em termos de quantidade de cereais armazenados, Outubro é, incontestavelmente, o mês mais farto do ano, o que nada é estranho, uma vez que é por esta altura do ano que se recolhia a maior parte dos cereais e muitos outros produtos agrícolas. Na Fajã Grande era em Outubro que os estaleiros escondiam a sua nudez, revestindo-se por completo, por dentro e por fora, com as maçarocas do milho presas em “cambulhões”. No sentido real, o adágio significa que Outubro era um mês abundante e, até, era altura de se ganhar algum dinheiro, vendendo cereais. Aparentemente não terá nenhum sentido figurado.
Estranho é que este provérbio utilize a palavra “celeiro” que não fazia parte do vocabulário fajãgrandense na altura, nem sequer na Fajã Grande se chamava celeiro a qualquer lugar onde se guardassem os cereais. Isto prova afinal que este, como muitos outros, não é um adágio “endémico”, terá sido levado pelos primeiros povoadores oriundos do Norte do país. Assim teria mais sentido dizer-se: “Em Outubro, vai ao estaleiro e enche o mealheiro.” Mas os adágios, são como são e não se mudam, embora por vezes, sejam adaptados e modificados, pois existem muitos que adquirem nuances diferentes, de terra para terra ou de região para região.
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AR DE INVERNO
(POEMA DE ROBERTO DE MESQUITA)
Aves do mar que em ronda lenta
Giram no ar, à ventania,
Gritam na tarde macilenta
A sua bárbara alegria.
Incha lá fora a vaga escura,
Uiva o nordeste aflitamente.
Que mágoa anónima satura
Este ar de Inverno, este ar doente?
Alma que vogas a gemer
Na tarde anémica, de vento,
Como se infiltra no meu ser
O teu esparso sofrimento!
Que viuvez desamparada
Chora no ar, no vento frio
Por esta tarde macerada
Em que a esp’rança se esvaiu!”.
Roberto de Mesquita (1871-1923). Almas Cativas e Poemas Dispersos
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A POPULAÇÃO DA ASSOMADA II PARTE
Mesmo em frente à Fonte e já na entrada da segunda travessa da Assomada ficava a casa de José Pureza, um dos mais abastados lavradores da freguesia e que vivia com a esposa e quatro filhos. Apenas as duas filhas a Mariana e a Evarista residem actualmente na mesma casa, onde viviam outrora, sendo dos poucos habitantes que restam dos 126 que nos anos 50 viviam na rua da Assomada.
Mais um grupo se sete agregados familiares, ainda na Assomada e que se concentravam por ali, perto da Fonte. A segunda transversal da Assomada ficava precisamente no cruzamento que havia junto à Fonte. A Canada da Fonte era a maior de todas as transversais da Assomada, sendo quase tão larga como as restantes ruas, mas, apesar de também ser a mais povoada, lá moravam apenas três famílias.
A primeira casa, um pouco mais retirada e mais encostada ao Pico era a do António Augusto, o Regedor da freguesia e, geralmente, cabeça de festas e do Fio que ali vivia com a esposa, a Floripes Teodósio e com a filha Fátima. O Regedor acumulava simultaneamente as funções de Juiz de Paz e, numa terra onde não havia polícia nem outra autoridade qualquer, excepto o Presidente da Junta, tinha o poder de decidir e, geralmente, era chamado a resolver pequenas contendas e desavenças, de julgá-las ou de resolver partilhas, sancionar heranças e de repreender ou até de prender quem prevaricasse, se julgasse necessário, pese embora nunca o tenha feito, até porque não havia cadeia na Fajã. Era um homem simpático e muito respeitado, um bom comunicador, amigo de todos e de brincar com as crianças. “Metia-se com toda a gente”. Eu chamava-lhe “Shô Rojo” em vez de Senhor Regedor. Durante muitos anos foi ele também o único operário que trabalhou numa pequena fábrica de manteiga, pertencente à Cooperativa de Lacticínios da Fajã Grande e que existia no cimo da Fontinha, num lugar chamado Cruzeiro, um pouco antes do Alagoeiro. Competia-lhe a tarefa não apenas de fabricar a manteiga mas também de a enlatar e colocar as latas em grades de madeira que ali aguardavam até à chegada do Carvalho Araújo que as levaria para Lisboa. Mais tarde foi forçado a exilar-se em Angra, devido a doença grave e crónica da esposa, senhora bondosa e também muito amigo da minha mãe. Nesta transversal ainda moravam dois casais: João Gonçalves, vice-presidente da Junta de Freguesia durante muitos anos, filho da tia Gonçalves, casado com a Maria do Rosário, filha de João Fagundes e o José Fagundes, filho de João Fagundes e casado com uma filha de tia Gonçalves. O primeiro casal tinha dois filhos e o segundo apenas um. As suas casas ficavam no termo da rua, por detrás da minha, confrontando com uma terra que meu pai tinha à porta, como se de uma courela se tratasse.
Voltando à rua da Assomada e logo a seguir ao poço onde as vacas bebiam água moravam as minhas primas e vizinhas Fragueiras. A mais velha e bastante doente, a Marquinhas do Céu, era uma exímia costureira e fazia roupa para fora enquanto a Deolinda trabalhava nos poucos e minúsculos campos que tinha, garantindo assim o sustento da casa. Sempre foram muito nossas amigas e muitas vezes acompanhava a Deolinda aos campos, enquanto ela ia trabalhar ou simplesmente buscar um molho de lenha à Cabaceira. Logo abaixo, mas do outro lado da rua, morava a já muito velhinha tia Lucinda, com os filhos Fernando e Luís. Como estes passassem o dia a trabalhar nos campos e tia Lucinda já não pudesse sair de casa, pedia-me frequentemente que fosse à loja do senhor Roberto comprar-lhe petróleo, mexas, açúcar, café e farinha, dando-me sempre como recompensa dez centavos. Em frente morava a sua filha mais velha, também chamada Lucinda, viúva do Faroleiro. Como a profissão de faroleiro era das poucas remuneradas na Fajã e, consequentemente, uma das profissões mais lucrativas da freguesia, esta família tinha melhores condições de vida do que a maioria das restantes. Morava com uma filha e tinha um outro filho que era padre e professor no Seminário de Angra, mas que frequentemente ia passar férias de Verão à Fajã, durante as quais conversava muito comigo e meus irmãos, nos pátios traseiros e contíguos de nossas casas, contando muitas histórias, cantilenas e ditos. Ouvira-os, em criança, a minha avó paterna, há muito falecida, que morara na casa que agora era de meus pais.
Estes eram os meus vizinhos, dado que encravada no meio destas três casas ficava a de meus pais, onde nasci, cresci e vivi com eles e com os meus cinco irmãos, até que a minha mãe faleceu. Tratava-se de uma casa pequena e pobre, com uma parte superior, constituída por cozinha, sala e um quarto e uma inferior com uma loja para palheiro do gado e outra para arrumos e nitreira. Eram, assim pobres e limitadas a maioria das casas da Fajã, na altura. Meu pai, era conhecido pelo João de Ti’Antonho, era um pequeno lavrador, possuía duas vacas, trabalhava juntamente com a minha mãe e meus irmãos mais velhos as poucas terras que tinha e mais algumas outras que pertenciam aos meus tios que haviam partido para a América, cujas colheitas, juntamente com uma parte do leite das vacas, garantiam o nosso sustento. O único dinheiro que ganhava era o resultante da venda da outra parte do leite à Cooperativa e com que se comprava o petróleo, as mexas, o sabão, o café em grão, um ou outro quilo de farinha de trigo e um pouquinho de azeite doce para nos untar os “galos” que fazíamos ao bater com a cabeça. Havia meses em que a Cooperativa não pagava e, então, não havia dinheiro para nada.
A seguir à minha casa e já quase no limiar da Praça, mas ainda na Assomada, morava mais um grupo de pessoas que, de tão perto que eram as nossas casas, nos tratávamos todos por vizinhos.
A primeira casa pertencia ao Manuel Dionísio. Situava-se logo a seguir à casa do Senhor Faroleiro, era surdo-mudo e vivia sozinho. A casa era baixa e térrea geminada com a do Catrina. O Manuel era pobre e alimentava-se do que lhe davam e do pouco que produzia; uma pequena terra nas traseiras da casa e uma horta na Cabaceira, onde ia buscar lenha, maçãs e inhames. Num pequeno curral colado à empena da casa tinha duas ou três galinhas. Passava as tardes à janela da sala que ficava voltada para o caminho, a dormitar calma e tranquilamente. Como só comunicava por gestos e apenas balbuciava um som “Biga-Biga” era conhecido pelo Manuel Biga-Biga.
Na casa geminada com a do Biga-Biga morava o João da Catrina, com a mulher, um filho e uma cunhada doente mental e que pouco saia de casa. O pai e o filho, o José da Laura, eram, na Fajã, considerados, pelas suas conversas, talvez os maiores opositores ao salazarismo e acérrimos defensores do regime comunista, então vigente na União Soviética, liderado por Estaline e, a partir de 1953, por Kruchtchev, personagens sobre os quais falavam com alguma frequência, dado serem das poucas pessoas que na freguesia tinham acesso aos noticiários da rádio. Mais tarde o Catrina seria o grande divulgador, na Fajã, das “Crónicas de Angola de Ferreira da Costa”. O filho, o José Rodrigues na sua maneira de falar e de opinar tinha aspecto de pensador ou de filósofo e caracterizava-se também por fazer uma enorme pausa antes de dizer o que quer que fosse, como se estivesse sempre a pensar no que iria dizer, proferindo uma chavão, muito conhecida na altura, de que tinha a patente: “Sim, bem se sabe…” Era um bom carpinteiro, pese embora nunca tivesse pressa para nada e era ele que fabricava as caixas em que eram empacotadas as latas da manteiga da Cooperativa.
Na casa em frente vivia Mestre Jorge, com a mulher e quatro filhos e que era o sapateiro da terra, embora a mulher e os filhos se dedicassem ao cultivo dos campos, dado que esta profissão, como todas as outras, não dava para sobreviver sem a agricultura e a criação de gado. Para além de consertar o calçado, Mestre Jorge fazia sapatos, galochas e foi ele que fez as “botas” de futebol de todos os jogadores, do então vigoroso Atlético Clube da Fajã Grande, o clube de futebol existente na Fajã, na altura, e que defrontava em pequenos torneios e aguerridos jogos, no Campo das Furnas, o “Rádio Naval” das Lajes, a “Académica da Fazenda, o “Sporting” e o “União”, ambos sedeados em Santa Cruz. Na casa ao lado e paredes-meias com a “Maquina de Cima” ou seja, o posto de desnatar o leite pertencente à firma Martins e Rebelo, morava o Alfredo Fagundes, ainda meu primo e casada com a Marquinhas do Céu.
Do outro lado da rua e no cruzamento da última transversal da Assomada, esta sem casas, morava o Antonino de Tio Francisco Inácio, também meu primo, casado com a filha mais velha do Faroleiro e com um filho, o Jaime – o meu maior amigo de infância. O Antonino era simultaneamente barbeiro e latoeiro. A primeira actividade exercia-a apenas aos domingos, antes e depois da missa, mas a segunda ocupava-lhe bastante mais tempo, ao longo da semana, dado que para além de reparar e soldar todas as latas da freguesia tinha que fabricar os recipientes em que era enviada para o Continente a manteiga produzida pela Cooperativa e de as fechar depois de cheias de manteiga. Como tinha pouco tempo para as lides agro-pecuárias e como meu pai era bastante pobre, celebraram uma espécie de contrato em que eu tinha que ir levar-lhe e buscar as vacas, todos os dias, ao Outeiro Grande, tendo em contrapartida e como obrigação por parte dele, cortar-nos o cabelo e soldar-nos as latas de graça
De todo este grupo de famílias, apenas esta última emigrou para o Canadá. No entanto, actualmente na Fajã residem apenas alguns dos filhos de Mestre Jorge.
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RETORNO DO HORIZONTE
Um fluxo excelso,
mesclado,
(uma espécie de vento forte)
caiu sobre o oceano
e desfez o horizonte.
O firmamento,
agastado por uma força telúrica,
invisível,
desabou, lentamente,
sobre o chão agreste
misturando-se com uma agitação,
amedrontada,
do mar.
Depois escureceu.
A noite envolveu a terra,
agrilhoando-a,
espremendo-a
numa imensa indefinição…
Mas uma nova aurora,
amanhã,
há-de restituir
e selar
um novo dia.
E o horizonte, ora desfeito,
retornará,
sem tumulto
e sem vento!
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A POPULAÇÃO DA ASSOMADA – I PARTE
A rua da Assomada tinha a forma de um ípsilon, isto é, no seu cimo, ramificava-se em duas vielas que se prolongavam em caminhos. À esquerda de quem a subia, a Assomada delongava-se pelo início do caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho. Por sua vez e do lado direito continuava através do Caminho da Missa, com destino à Eira da Quada, à Fajãzinha e às outras freguesias e vilas da ilha.
A primeira casa da Assumada, do braço esquerdo do ípsilon, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água era a do João Fagundes, um senhor já de provecta idade, com o nome rigorosamente igual ao de meu progenitor, razão pela qual meu pai assinava o seu nome sempre seguido de Júnior. Assim não havia confusão, não tanto pelas cartas que estas traziam remetente, mas sobretudo pelos avisos amarelos, anunciadores das encomendas da América ou daqueles que eram para pagar dízimas e impostos e que não continham remetente. O senhor João Fagundes era um homem muito respeitado na freguesia, tendo exercido alguns cargos de responsabilidade e era irmão da mãe do José Nascimento. Vivia com a esposa e os dois filhos mais novos, dado que os restantes já haviam casado. O João ingressou na Guarda-Fiscal, deslocando-se, mais tarde, para Santa Cruz, juntamente com a mulher, enquanto a filha casou e partiu para o Canadá.
Na casa seguinte, na curva ao lado do Palheiro do Tomé e enfiada numa espécie de buraco muito abaixo do nível do caminho, morava a Maria José Fragueiro. Era uma senhora muito bondosa mas doente e que vivia pobremente. Para além de não ter terras, nem dinheiro, tinha uma doença incurável, o que se agravava por não ter recursos com que se tratasse: uma das pernas estava, tão inchada, tão inchada que quase ultrapassava em grossura o diâmetro da sua própria cintura. A sua casa era muito pobre, não tinha dinheiro para o petróleo, nem para os fósforos, nem para a farinha, nem para o café, nem para nada, por isso alumiava-se com a luz do lume e alimentava-se com o que cultivava numa pequena courela e do que as pessoas lhe ofereciam. Como eu passava muitas vezes por ali quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande, via-a frequentemente ou sentada sozinha nos degraus da casa ou a juntar garranchos no caminho, derrubados pelo vento ou deixados cair pelos molhos dos transeuntes e com os quais iria acender o lume. Por vezes parava um pouquinho, pois ela conversava muito comigo e olhava-me com tanta doçura e carinho que parecia uma mãe.
Seguia-se a casa de José Jorge que cedo zarpou para o Canadá com a mulher, a Maria Cardoso e duas filhas, sendo a casa ocupada posteriormente por uma família oriunda das Lajes, conhecida pelos “Marcelas”. Neste braço esquerdo do Y e junto ao cruzamento, assinalado numa das paredes com uma cruz, vivia a Maria da Saúde e a mãe já velhinha, juntamente com um homem de nome Corvelo, originário de Santa Maria e que ali se fixara. Este Corvelo faleceu no terrível acidente do Vale Fundo, durante a abertura da estrada, quando colocavam dinamite para rebentar uma pedreira.
No outro braço ficavam apenas duas casas: a da Senhora Estulana, viúva e com três filhos e a do José Garcia, casado com a Senhora Ester e com dois filhos ainda residentes: o Júlio e a Avelina que casou com o João do Gil. Ambas estas famílias abandonaram a freguesia.
Mais abaixo a rua começava o seu braço central com o José Dias, na primeira casa do lado direito. Poucos anos lá viveu, este filho de Tio Manuel Luís, casado com uma filha da Senhora Estulana, com dois filhos, dado que cedo partiram para a América. A casa teve vários moradores até que a comprou o Augusto Mariano.
Presumivelmente seria este o primeiro grupo de famílias a ser enumerado na igreja no dia 3 de Novembro e a cujas almas dos seus defuntos se dirigiam a missa, as preces e os responsos desse dia.
O segundo grupo a ser lembrado, no dia quatro, seria necessariamente o dos moradores daquelas casas da Assomada que ficavam sob as encostas do Pico e localizadas entre o Chafariz do Cimo da Assomada e a Canada de Ti’Antonho do Pico.
A primeira casa integrada neste grupo era a do Chico de José Luís, que casou com a Maria das Neves, natural da Ponta e que tinha três filhos: a Fernanda, o Francisco e a Rosália. A casa ficava à esquerda de quem subia, ao lado de um chafariz que existia ali no Cimo da Assomada e era, estruturalmente, bastante semelhante à minha: uma enorme cozinha, a sala onde dormiam as crianças e o quarto para o casal. Em frente e antes da estrada passar, havia um pátio com plantas, pequenos arbustos, flores e o “cepo da lenha”. Imediatamente a seguir e, quase encostada a esta, morava a tia Gonçalves, talvez, na altura uma das pessoas mais velhas da Fajã, com uma casa bastante maior e melhor do que a anterior, em forma de L e por baixo da qual não havia gado. Era viúva, vivia com uma filha também viúva, mas já de idade, uma neta, o marido desta e um bisneto – o Silveira. Por trás destas casas e ao fundo duma canada, num edifício geminado, morava meu tio Cristiano casado com uma filha de Tio José Luís e dois filhos e o Laureano Alexandre, que, apesar de viver sozinho, era uma pessoa muito sociável, alegre, divertida, afável e sempre disposto a assumir cargos de responsabilidade, nomeadamente o de cabeça da Casa de Baixo, cargo que exerceu durante muitos anos. Também era baleeiro. Meu tio Cristiano era alfaiate, mas tal ofício não dava para se sustentar a si e à família, por isso também criava uma vaca, cultivava algumas terras e também chegou a ser baleeiro. A casa dele, para além duma pequena cozinha que edificara atrás, ocupava apenas a sala do respectivo prédio em cuja restante parte vivia o Laureano Alexandre. No entanto como era uma sala muito grande estava dividida com biombos em pequenos cubículos, que eram quarto, sala e atelier de costura.
Voltando à rua, num outro prédio bem maior, também transformado em habitação geminada moravam, na parte de cima o Francisco Inácio e na de baixo o Cabral. Era um prédio alto, bem construído, de dois pisos, implantado na frente da rua, à esquerda de quem a subia. Tinha uma fachada imponente, delimitada por uma faixa, com três portas no piso térreo, com um óculo oval entre as duas portas e uma faixa a dividir as duas moradias. Francisco Inácio, casado com uma filha de tio José Luís e com dois filhos, o José Augusto e a Vitória, morava do lado esquerdo. Tinha-se acesso à moradia, através de um pátio sob o qual ficava uma das poucas cisternas existentes na Fajã. A cozinha tinha uma chaminé monumental. Na parte direita morava o Cabral com a mulher e os filhos, entre os quais o Laurindo. Todos abandonaram a freguesia, assim como os filhos do Francisco Inácio. Este prédio tinha em frente o palheiro dos irmãos José e Manuel Cardoso, o qual teria sido, noutros tempos, residência do Caixeiro e da tia Rosário e a ele estava ligada a célebre “estória” de “As empenas de Cabral”. Contava-se que andando um dia Caixeiro pelos campos, a tia Rosária ficou em casa a cozer bolo. Talvez por descuido ou limitação de recursos, o bolo queimou, mas quando o Caixeiro chegou a Rosaria pô-lo na mesa apesar de queimado, pois não tivera tempo ou recursos para cozer outro. Só que pelos vistos o bolo estava tão queimado, tão queimado que o Caixeiro não o pode ou não o quis comer. Furioso, levantou-se, foi à porta e atirou-o para o outro lado da rua, indo o bolo colar-se ao prédio da frente onde morava o Cabral. A Rosária é que não gostou nada de ser aquele o destino do seu bolo, fruto do seu trabalho e, recriminando-o, disse:
- “Pedaço de mal criado, atiraste com a face do Senhor às empenas de Cabral.”
Ao lado deste palheiro ficava a casa de tio Mateus Felizardo. Ainda me lembro de ver este velhote de longas barbas brancas salpicadas do amarelo do tabaco que mascava. Morava lá o Manuel Machado com a mulher, um filho e com o avô Mateus Felizardo e a avó, ambos já muito velhinhos.
No caminho conhecido por “canada de Ti’Antonho do Pico”, a primeira de três pequenas transversais que tinha a Assomada, orientadas para o lado do Pico, ou seja do lado direito de quem subia, vivia apenas a família de Ti’Antonho do Pico, que exactamente por morar nas encostas daquele minúsculo monte, sobranceiro à Assomada, granjeou tal epíteto. A casa, onde residia com a esposa, com a filha Dolores, com o genro e com um neto, ficava de facto um pouco fora do caminho da Assomada e encravada lá bem para dentro, já nos contrafortes da pequenina montanha. O genro, o Jesuíno, filho do Afonso das Tomásias era um excelente músico, tocava clarinete na Filarmónica Senhora da Saúde, cantava na capela e, mais tarde, fundou e orientou a Tuna Sol e Mar, ainda existente na Fajã Grande.
Regressando à rua e logo acima da Fonte ficava um pequeno grupo de três casas, onde moravam Tio João Barbeiro, casado com uma irmã da mulher do Tio José Teodósio, com quem vivia, juntamente com a filha Elisa Barbeiro, um neto a quem a mãe falecera no desastre do Corvo e a Olinda. Foi este neto de tio João Barbeiro, o José Cardoso, desde miúdo notável construtor de triciclos e carripanas de madeira que ele próprio conduzia, que comprou o primeiro carro de praça existente na Fajã Grande. Em frente ficava a casa do Augusto Mariano, casado com a Marquinhas de S. João, muita amiga da minha mãe e que tinha dois filhos, o José Lucindo e o Mariano e ainda o António Barbeiro, talvez um dos homens mais inteligentes e cultos da Fajã e que a estas qualidades aliava a de artista primoroso, quer como relojoeiro, a principal actividade que desempenhava e em que era exímio, quer noutras actividades em que se envolvia, nomeadamente na carpintaria e na apicultura, executando todos os trabalhos com uma perfeição invulgar e um zelo excessivo. Acrescente-se, ainda, que na freguesia era a única pessoa capaz de resolver a maioria de um sem número de pequenos problemas quotidianos, como o de consertar uma fechadura, amolar uma tesoura, por um badalo na campainha duma vaca, colocar um vidro ou até por os agrafos num prato partido ou grampos num alguidar quebrado. A fama de que gozava era imensa e granjeara o respeito e admiração geral, dado que quase toda a freguesia recorria com frequência aos seus préstimos. Era viúvo e vivia na companhia de dois filhos, a Alda e o Orlando. Tanto o neto de João Barbeiro, como os filhos do Augusto Mariano e do António Barbeiro abandonaram a ilha, partindo para a América e para o Canadá, excepto o José Lucindo que, tocou requinta na Filarmónica e que após a tropa, entrou para a Marinha.
Ali perto e um pouco mais abaixo moravam duas velhinhas, numa casa pequenina e pobre, com uma cozinha muito velha, com o chão ainda de solo (barro ou terra) e sem forro: Tia Ermelinda e Tia Maria Inácia. A primeira era muito doente e já não saía de casa e estava permanentemente sentada à janela da empena da sala. De manhã rezava, costurava e lia. De tarde ensinava catequese e conversava com quem a visitava. Tia Maria Inácia, apesar de velhinha e doente, era “o homem da casa”. Era ela que ia à lenha à Cabaceira, que a rachava, fendia ou picava com o machado e a guardava debaixo do lar. Era ela que ia buscar erva-santa para as galinhas. Era ela que cozinhava, lavava e limpava a casa. Era ela que fazia tudo.
Junto a esta casa ficava uma outra onde moravam três irmãs, também já de avançada idade, conhecidas pelas senhoras Mendonças. A mais velha enviuvara há muitos anos e era a mãe do poeta e escritor Pedro da Silveira. Apesar da idade eram estas três senhoras que, para além de partilharem as tarefas diárias da casa, trabalhavam os seus campos onde cultivavam milho, batatas e outros produtos necessários à sua alimentação.
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A MALEIRA
Mais veloz do que o vento norte e tão ágil e lesta como as brisas matinais, a Maleira da Fajã partia, duas vezes por semana, com destino traçado às Lajes, com o único objectivo de levar e trazer o correio juntamente com um ou outro recado e com este ou aquele mandalete. Morava na Ponta, logo nas primeiras casas e partia, alta madrugada, a pé e descalça, quando muitos galos ainda não haviam iniciado os seus cocorocós matinais e a escuridão teimava em não se deixar vencer pelos primeiros raios da aurora. Não se furtava às intempéries, não temia os ventos frígidos e fortes, não se abrigava das chuvas por mais intensas e fustigantes que fossem, nem se acobardava a tempestades. Caminhava a passo firme, ríspido, sereno e convincente. Diziam os que com ela, por vezes, faziam viagens, quer nas idas quer nas vindas, que era quase de todo impossível acompanhar-lhe a pedalada. Saía da Ponta, atravessava a Fajã, seguia pelo Caminho da Missa, Ladeira do Biscoito e passava a Ribeira Grande, mesmo em dias de grande caudal, com uma perna às costas. Na Fajãzinha acertavam os relógios à sua passagem e ao amanhecer já subira os Bredos e demandara os Terreiros. Atravessava os matos para encurtar caminhos e antes das oito já estava sentada no muro da igreja das Lajes à espera que o Correio abrisse. Depois era despejar as cartas da Fajã e da Ponta, sobretudo com destino à América, e encher a mala com as que de lá e de outros recantos do mundo vinham. Depressa se despachava e antes das onze, com um bocado de pão e outro de queijo já comidos, regressava à Fajã.
Caminhava bem mais carregadinha no dia seguinte à chegada do Carvalho, em que a mala, de cuja fechadura havia apenas uma chave no Correio da Fajã e outra no das Lajes, vinha mesmo a abarrotar. Na viagem seguinte, embora não tão cheia, lá vinha uma ou outra carta atrasada por descuido de algum funcionário e os célebres avisos amarelos a anunciar as encomendas vindas da América.
Nesses dias, ao regressar, era esperada com grande ansiedade. Mal aparecia no cimo da Assomada, um rancho de gente vinda de todas as ruas e canadas da freguesia acompanhavam-na até ao sagão do José Natal. Aí esperavam uma eternidade, enquanto o homem, lento que nem uma lesma, abria, remexia e sacudia a mala e, de seguida, separava, juntava, amontoava e voltava a separar envelopes e avisos, até se decidir, por entre grande indignação, tumulto, zanga e reclamação dos que ali esperavam estacados, a ler os nomes dos destinatários estampados em cada envelope ou aviso. A essa hora a Viva, como também era apelidada a Maleira, já tinha ido ceifar um molho de erva a uma lagoa que tinha para os lados da Ribeira do Cão, e carregava-o, sob uma rodilha, à cabeça, descalça, com o mesmo saiote que levara para as Lajes, com as pernas repletas de pelos e a escorrerem de água.
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JESUS E AS ANDORINHAS
(Conto Tradicional)
O Menino Jesus quando era pequenino, andava e corria pelos campos, brincando como todas as outras crianças.
Ora certo dia, enquanto o pai fazia uma mesa e a mãe fiava o linho com a roca, o Menino Jesus que brincava ali perto com aparas de madeira, afastou-se um pouco e saiu para o pequeno quintal que ficava junto à casa dos pais. Começou então a brincar com o barro, misturando-lhe um pouco de água, amassando-o e fazendo com ele pequenos passarinhos de asas muito abertas e biquinho pontiagudo, que ele imaginava serem andorinhas. Depois de os fazer poisava-os no chão e enternecia-se a olhar para eles. De imediato passou por ali um homem cruel, sem coração e que não respeitava as brincadeiras das crianças. Ao ver todos aqueles passarinhos que jesus havia feito, começou a dar-lhes pontapés, com intenção de os desfazer e dar cabo de todas as andorinhas que o Menino tinha feito. O Menino Jesus ficou muito triste e aflito e, começou a bater palmas e incentivar as andorinhas para que voassem e fugissem. E, para espanto do homem, as andorinhas de barro transformaram em pássaros de verdade e começaram a voar, sem que o homem as pudesse destruir
Passado algum tempo as andorinhas voltaram e vieram poisar sobre o beiral da casa onde Jesus vivia e, pegando no barro com que tinham sido feitas, construíram os seus ninhos, onde puseram os seus ovos e criaram os seus filhinhos.
As andorinhas ficaram assim sempre, muito amigas do Menino Jesus, acompanhando-o sempre, não só em criança, quando os pais fugiam com ele para o Egipto, mas também durante a sua vida, quando Jesus foi crucificado. E até nesse dia, as andorinhas não abandonaram Jesus, pois enquanto Ele estava pregado na cruz, elas rodearam-no e, com os seus biquinhos, foram-lhe espinhos da coroa que lhe puseram e que tanto magoavam a Sua santa cabeça.
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A ENCOMENDA
O aviso amarelo chegou três dias após o Carvalho ter demandado a ilha e foi recebido, lá em casa, com enorme alarido e desmesurado alvoroço. Vinha aí uma encomenda da América! Ai vinha, vinha!...
Na manhã seguinte meu pai, aviso no bolso, bordão atravessado sobre os ombros, froca a tiracolo, com um parco farnel numa das mangas, partiu, muito cedo, para as Lajes. Tão cedo que ninguém lá em casa deu por isso, a não ser a minha mãe que se levantou para ir à cozinha aquecer um caneco de alumínio, bem cheio de café, sobre o fogão da luz. Bem precisava o meu progenitor de forças para fazer tão longa caminhada!
Na véspera, meu pai deixara uma boa parte do dia planeado e todas as tarefas muito bem definidas: - O António e eu íamos buscar a Benfeita e os bezerros à Pedra d’Água, enquanto o José limpava o palheiro. Minha mãe tirava o leite à vaca e a Maria ia levá-lo à máquina. Terminada a escola iam todos sachar o milho da Fontinha, que ele havia de chegar quando terminassem.
Embora executando as tarefas com entusiasmo e competência, nenhum deixou de pensar na encomenda, durante todo o dia, por um único momento que fosse. Por isso, despachamo-nos do milho da Fontinha e, cedo, viemos esperar meu pai, sentadinhos na soleta da porta da sala. Uma encomenda da América era de se lhe tirar o chapéu e cada um já se imaginava com um vestido ou uma camisa nova, uns alvarozes, com uma froca, umas calças de angrim, um beltro, um caneta e, quem sabe, talvez um brinquedo e muitos candis. Bem desejávamos ir esperar meu pai ao Cimo da Assomada, à Eira da Cuada ou, se pudéssemos, à Ribeira Grande mas… a minha mãe não deixou.
Finalmente, quase ao fim da tarde, meu pai chegou e trazia às costas uma enorme saca branca, com o seu nome escrito a letras azuis, muito grandes, com muitos selos, etiquetas verdes, carimbos pretos e roxos e com a direcção muito certinha. Era remetida de Turlock, pelo tio Francisco. Atiramo-nos a ela que nem Santiago aos mouros, perante os protestos da minha progenitora que com a tesoura da costura tentava, com dificuldade, abrir o saco sem o danificar, pois daria muito jeito e serviria perfeitamente para levar a moenda ao moinho de tio Manuel Luís. É que o saco usado, já tinha mais remendos do que lona original. De seguida, com cuidado e perante a nossa exasperada agitação, minha mãe foi tirando as peças de roupa, uma por uma. No fundo do saco, dois pares de sapatos, muito velhos e gastos mas que serviriam ao meu pai, para usar aos domingos. Dentro destes, umas canetas que já nem escreviam, vários lápis usados, borrachas e outras bugigangas, estendendo tudo pelo chão, de maneira que cada um agarrasse no que quisesse, no que lhe apetecesse ou simplesmente no que os outros deixassem. A sala exalava agora aquele cheirinho tão típico da roupa americana. Parecia que dentro da saca se havia derramado um frasco de perfume. Nós embrenhados não apenas ma escolha e na prova mas sobretudo na pesquisa. É que nos bolsos dos casacos e das calças, ou embrulhados em lenços mas muito bem escondidinhos, vinham sempre “candis”, “pinotes”, rebuçados, chocolates, canivetes, sabonetes e frascos de perfume, alguns até vazios. Mas cheiravam tão bem! Uma vez tudo virado e revirado, vasculhado e apalpado, chegou a hora de dividir o tesouro. Primeiro seleccionaram-se as roupas que serviam, com mais ou menos rigor, em cada um e poucas eram. A partir daí a ordem era cada qual ficar com o que quisesse e lhe apetecesse. Mas a minha mãe havia de supervisionar tudo. Foi um ver se te avias: pega, puxa, larga, tira, deixa, mostra e toma. Foi tal escolher e, de seguida, fazer a prova. Sobre as ordens e orientação da minha progenitora, cada qual ficou com o que melhor lhe serviu, embora desajeitadamente.
Depois de tudo acertado e dividido e da minha mãe se retirar para a cozinha, decidimos que cada um havia de vestir o que lhe ficasse melhor e iriamos à Fontinha, mostrar à avó e às tias aquelas maravilhas da alta-costura americana. O José vestiu um saiote, que lhe arrastava pelos pés, a Maria um vestido muito largo e comprido, apertado à cintura com um cinto preta, o António umas calças verdes tão largas que tinha que as segurar constantemente com ambas as mãos e eu com um vestido de menina e uma camisa de seda cor-de-rosa por cima. Lá fomos todos vaidosos e contentes com tão adequadas e estéticas vestimentas, todos muito felizes, juntinhos e de mãos dadas. Ao rodar à Praça havíamos de encontrar o Maurício que ao ver aquele quadro estapafúrdio desata numa enorme gargalha e a fazer pouco de nós.
A Maria não esteve com meias medidas e, aproximando-se dele, atirou-lhe à cara:
- Estas a rir porque estás roído de inveja!
E seguimos o nosso caminho, muito felizes.
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SOBREVOANDO A MONTANHA DO PICO
Quem embarcar no aeroporto da Horta e fizer uma viagem na Sata Air Açores entre o Faial e S. Miguel, se tiver a sorte de a dita cuja acontecer num dia de bom tempo, ou melhor num dia em que o céu esteja totalmente limpo de maneira a que não haja nuvens sobre o Pico, terá uma oportunidade quase única de observar um espectáculo maravilhoso, encantador e deslumbrante. É que os pilotos da Sata, nestas viagens, adivinhando os anseios e aspirações dos passageiros, voam pelo sul da ilha de Pico, contornando assim, com algum cuidado e exagerada intenção de obter um excelente vista, aquela imponente e vetusta montanha açoriana. Trata-se de um majestoso, enigmático e altíssimo cone vulcânico, truncado quase no topo, formando uma enorme cratera com um pequeno cone no interior, o chamado Pico Pequeno, resultante de uma erupção vulcânica posterior àquela que originou o seu suporte e donde emanam ainda algumas fumarolas, que no entanto só são visíveis e sentidas localmente, isto é, por quem se aventura a escalar a íngreme e sinuosa encosta. Tudo isto se pode observar através de uma janelinha do avião, melhor do que de qualquer outro local. No início e logo ao levantarmos voo do Faial, surge-nos na frente a enorme mancha esverdeada e negra, imponente e altiva da montanha, donde escorrem encostas verdejantes, ondeadas e repletas de manchas umas multicolores outras esbranquiçadas e algumas escuras, tudo ladeado por uma faixa negra e magmática de baixio. Mais adiante são os contrafortes da montanha que surgem do alto, como se fossem uma ampla planície, que se vai desfazendo e como que diluindo à medida que o Pico se afunila naquele amontoado de lava basáltica, revestida parcialmente de ervas e arbustos. A determinada altura, a simulada planície desfaz-se mesmo por completo, como que se identificando com os contrafortes rochosos da montanha. Depois evapora-se por completo e transforma-se ora em verdejantes prados onde pastam bovinos ora em terrenos separados por bardos de hortênsias onde proliferam os incensos, as faias, a urze, os fetos e a cana roca, entrecortadas por algumas manchas de criptomérias. Mais além e com o ultrapassar da montanha e já debaixo da aeronave, as vinhas verdejantes, como que prisioneiras nos currais e anunciadoras do delicioso verdelho, ladeadas e protegidas por dezenas e dezenas de paredes de basalto negro e maroiços encaracolados e também negros, tão negros como se tivessem sido tisnados por labaredas de lava viva. Ao lado, nas encostas mais a sul, dezenas de montículos em forma de pequenos cones vão-se ordenando na direcção do mar, a entrecortarem-se num maior de que houve nome o lugar do Monte. A montanha agora pode observar-se em plenitude com a sua cratera como que aberta e bronzeada, ostentando-se desavergonhadamente aos olhares curiosos dos passageiros que se atropelam sobre os bancos do avião para ver e observar de perto tão deslumbrante espectáculo, naquele sítio paradisíaco, onde pontificam a negritude e o silêncio, reveladores de uma calma e de uma serenidade que só se encontra no cume das grandes montanhas. No outro lado, o horizonte, onde o mar que envolve a ilha é rei e senhor e um azul inebriante que lentamente vai mudando de tonalidade.
A montanha aos poucos vai-se distanciando, ficando para trás, mas o dorsal verde e magmático da ilha continua a manifestar-se, ostentando a beleza inconfundível de pequenas montanhas emparelhadas com planaltos onde se encravaram algumas lagoas. É a pureza e a simplicidade das freguesias que se vão desenrolando umas atrás das outras, junto ao mar com os seus estreitos caminhos, as suas veredas sinuosas e os seus pequenos portos, sempre misturadas com os campos lavrados, semeados e a florir, ladeados por paredes e maroiços, por veredas e canadas que ao longo de mais de quinhentos anos os picarotos foram construindo, com sangue, suor e lágrimas, lutando contra as investidas do mar, do tempo, dos ataques dos piratas e sobretudo das erupções vulcânicas e dos abalos de terra.
Candelária, Mirateca, Campo Raso, Areeiro, Relvas, Gingeira, São Mateus, São Caetano, Caminho de Cima, Terra do Pão, São João, Silveira e a vila das Lajes, cerceada por uma enorme baía. Depois tudo volta aos montes, aos matos e à ilha deserta para logo surgir Santa Bárbara, Ribeiras, Pontas Negras, Ribeira Grande, Ribeira Seca, Fetais, Foros, Calheta do Nesquim, Piedade e a Manhenha – a Ponta da ilha, da ilha que agora se vai distanciando cada vez mais até se perder no infinito, cinzento, indefinido e mordazmente inquietante.
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FERNANDINHO
Fernandinho foi ao vinho
Partiu a jarra no caminho
Ai da jarra, ai do vinho
Ai do rabinho
Do Fernandinho.
(Aravia popular fajãhrandense)
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A CANADA DO PICO E DO PICO DA VIGIA
Subindo a Assomada, bem lá no seu termo, onde a rua se bifurcava, se seguíssemos para sul, entrávamos no Caminho da Missa. Logo no início do mesmo e depois de ultrapassar as duas únicas casas existentes, do lado direito de quem subia, a última das quais pertencia à senhora Estulana, andávamos mais um pouco e, do mesmo lado, encontrávamos uma canada, que dava para as terras e relvas do Pico e também para o Pico da Vigia. A canada iniciava-se com uma comprida mas estreita recta, ladeando algumas terras de cultivo, ainda em pleno Vale da Vaca e seguia, depois, na direcção do mar, ou seja para Oeste. Terminada a recta e, deixando para trás o Vale da Vaca para se entrar já nos contrafortes do Pico, iniciava-se uma enorme subida, com degraus feitos de pedras rústicas, encaixilhadas umas nas outras, continuando na direcção leste mas deixando para trás a planície, a encosta e as terras de cultivo. Agora era um arvoredo baixo, seco e raquítico, misturado com fetos e um ou outro incenso anão que ia ladeando as bordas da canada, até chegar lá ao alto, no sítio onde ela se bifurcava. Aí, uma vereda estreita e sinuosa afastava-se da canada-mãe e seguia, por entre um denso mas pouco alto arvoredo, na demanda do cume do Pico, onde se situava a casota da Vigia da Baleia. A canada, porém, como que esquecida da sua bifurcação, continuava na senda da sua matriz primitiva, agora lá bem no alto, na crista do Pico, ladeada de algumas relvas e uma ou outra terra de batata-doce. Atingido o cume desta parte mais baixa do monte podia ver-se a oeste o mar e toda a orla da Fajã, desde o Canto do Areal à Ponta, onde se cravavam as terras das Furnas, do Areal e do Porto, o baixio, o cais, o rolo, o Porto Velho e o Novo, enfim quase toda a Fajã e a Ponta, com as suas igrejas e o seu emaranhado de casas, de ruas e vielas. Uma paisagem admirável que logo mais adiante desaparecia porque a canada, aos poucos, se ia afunilando até desaparecer por completo, terminando precisamente no portal duma relva que pertencia a meu pai,
Apesar de íngreme e sinuosa as vacas desciam e subiam esta canada, caminhando em fila ao longo da crista do Pico e até se davam ao luxo de petiscar um ou outro galho de incenso das terras de mato que ladeavam a enigmática Canada do Pico. Quanto a mim que as ia lá levar ou buscar, na viagem oposta, ou seja quando subia ou descia sem o gado, nunca o fazia por aquela canada. Antes, para encurtar caminho saltava para uma terra que pertencia à Senhora Ester e vinha desembocar à porta da cozinha da sua casa ou descia por uma estreita e meandrosa vereda que existia mais a norte e vinha dar junto à Casa do Francisco Inácio, trocando assim inadvertidamente e graças à minha imatura sensibilidade estética, aquela beleza paisagística por um trajecto alternativo em que apenas a rapidez tinha primazia sobre o belo, o maravilhoso e o transcendente a que, aparentemente, nem sequer os animais ficavam alheios ou indiferentes
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ASSOMADA
A rua onde eu nasci, plantada em comba,
Tortuosa na forma e chão possante,
Tem girassóis floridos. Sibilante,
Ágora de murmúrios, vale, lomba,
Cheia de gente, ao dia, alva de pomba!
À noitinha adormece refrescante,
Banhada num crepúsculo delirante.
Em laivos de silêncio se arromba!
As casas são de neve e as janelas,
Vigias sobre o mar. Doce visão:
- Auroras de marés, rastros de velas!
Das cozinhas, emanam, em cachão,
Um lufa-lufa amargo de panelas,
E um mísero perfume de mangão!
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A FAJÃ GRANDE OU A EXCELÊNCIA DA RUA DIREITA
Na Idade Média, os burgos ou cidades tinham uma estrutura influenciada, por um lado, pela enorme força e poder da Igreja e, por outro, pelo feudalismo reinante, caracterizado por uma forte ligação e dependência da propriedade agrícola ou da terra, cuja posse significava não só riqueza mas também poder. Assim os tradicionais burgos medievais organizavam-se à volta da catedral, onde pontificava e governava o bispo e para ela se orientavam todas as ruas e vielas. Era também ao redor da Sé e do Paço Episcopal que se concentravam as habitações mais ricas e luxuosas, pertencentes aos senhores de “pendão e caldeira”, ou seja aos nobres ou ricos homens, donos das terras e do povo, que assim, sobretudo por interesses políticos, se agregavam e associavam ao poder episcopal. À medida que se afastavam da catedral e já na periferia da cidade ficavam os casebres dos mais pobres, pertencentes ao povo, onde se incluíam os artesãos, os almocreves, os feirantes e os prestadores de outros serviços e, já nos arrabaldes, ou até fora das portas da urbe, ficavam os paupérrimos tugúrios dos servos da gleba, ou seja dos pobres camponeses que trabalhavam os campos dos nobres como escravos e a quem as portas da cidade apenas se abriam para irem levar os géneros agrícolas aos seus senhores ou para se defenderem em tempo de guerra, dado que a isso os nobres eram obrigados.
Recordando a estrutura geográfica da Fajã Grande, nos anos 50, é fácil constatar que a disposição das habitações era, de algum modo, semelhante à dos burgos medievais, ou seja, a igreja estava situada precisamente no centro do povoado e à sua volta, formando a Rua Direita, as casas maiores e mais luxuosas, se é que se poderia falar em luxos, pertencentes às pessoas mais ricas ou com mais propriedades. É curioso verificar que, embora muitos dos seus moradores possuíssem gado e tendo as casas primeiro andar e rés do chão, ou até lojas anexas, nenhum habitante da referida rua, contrariamente à maioria dos das outras, tinha integrado na habitação, nem sequer ao lado, o palheiro onde guardava o seu gado. O André, o Mancebo e Trancão tinham os seus palheiros na Assomada. O José Tomé e o David na Fontinha. O Mateus Felizardo lá para trás de casa, quase na Tronqueira. Apenas o Josezinho Fragueiro tinha o palheiro das vacas na rua Direita, mas separado da casa onde vivia e também já quase no início da Tronqueira. Notava-se também que a “grandiosidade” dos edifícios ia decrescendo à medida que se afastavam da igreja. A existência de palheiros de gado quer isolados quer no rés-do-chão da própria habitação, só se verificava logo no início de cada uma das restantes ruas: na Assomada, o Antonino Cardoso, na Fontinha o Augusto, na Courelas o António Fagundes, na Tronqueira José Cardoso e na Via dÁgua o José Mariano. A partir daqui, os palheiros de gado seguiam-se em catadupa, por todas as ruas.
Outro facto sintomático e dissimétrico era o de na rua Direita, morarem em geral as pessoas consideradas mais importantes, “os senhores Fulano e Sicrano”, cuja prole era designada por “filhos ou filhas do senhor ou da senhora…” enquanto nos arrabaldes da freguesia, ou seja, na Assomada, Fontinha, Alagoeiro e noutras ruas e lugares, moravam, salvo raras excepções, os “Ti’Antonhos”, os “Ti’Aninas”, os “Sapateiros”, os “Manéis Brancos”, os “Grotas”, os “Chingados” e os “Josés das Mariquinhas”, etc, etc, sendo os seus descendentes tratados por “monços do…”. Eram ainda os moradores daquela artéria que regra geral e em primeiro lugar eram escolhidos ou se impunham por eles próprios, para cargos de responsabilidade na freguesia, como presidente de Junta, cabeças das festas de Espírito Santo e do Fio, ou eram designados para as comissões das festas, para dirigir a Corporativa, ou os que vestiam opas vermelhas para levar o pálio nas procissões do Santíssimo ou o andor nas da Senhora da Saúde.
Era também na rua Direita que se situavam todos os estabelecimentos comerciais da freguesia, num total de seis: quatro mercearias e dois botequins. Era ainda na rua Direita que morava o pároco, que se situavam as duas casas de Espírito Santo e os Correios, sendo, curiosamente, a única rua da freguesia onde havia um chafariz com duas bicas, embora os seus moradores não suplantassem em número os da Fontinha, Assomada, Tronqueira ou Via d’Água.
Era ainda e apenas na rua Direita que passavam as procissões, para baixo e para cima, desde o cimo da Via d’Água até à Praça. A única excepção era a das “Rogações”, nas têmporas de Setembro.
Tudo isto lhe concedia uma excessiva excelência ao ponto de até aparecer como protagonista em representações teatrais e ser cantada por poetas populares, que lhe faziam versos, como os que a seguir se transcrevem:
Rua Direita em que eu hoje moro,
É ela que enfeita a Fajã que adoro.
Novos e velhinhos tem que a passar
E até os parezinhos que vão a casar.
Passam nela namorados,
Sempre contentes, sorrindo.
Passam os sonhos dourados
Das almas que vão sorrindo.
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AUTO DA BENÇÃO DA ANTIGA ERMIDA DE SÃO JOSÉ DA FAJÃ GRANDE NO ANO DE 1757
“Assento do dia mês e ano em que se benzeu a Ermida do Senhor São José sita no lugar da Fajan-Grande desta freguesia de Nossa Senhora dos Remédios do lugar da Fajãzinha.
Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e cinquenta e sete neste lugar da Fajan-Grande desta freguesia de Nossa Senhora dos Remédios em os vinte e quatro dias do mês de Maio do dito ano de manhã em presença do Reverendo Vice Vigário João Rodrigues Ramos e do Reverendo Padre Cura Alexandre Pimentel e dos Reverendos Padres Frei Francisco de Santa Maria e Frei Francisco de Santa Ana Religiosos Franciscanos e do Capitão António de Freitas Henriques, e de António Silveira, e de Bartolomeu Lourenço, e de Manuel Lourenço, e de Francisco Lourenço, e de todo o povo desta freguesia da Fajãzinha benzeu o Rev. P.e Agostinho Pereira de Lacerda Vigário em Matriz de Santa Cruz desta ilha das Flores e Ouvidor eclesiástico desta dita ilha e da do Corvo a Ermida do Senhor São José sita neste lugar da Fajã Grande onde se diz o serrado do Licate – com todas as solenidades do Direito e cerimónias do Ritual Romano por autoridade e licença in escripis do Ex.mo Senhor Bispo D. Frei Valério do Sacramento que lhe apresentou o Rev. P.e Francisco de Freitas Henriques administrador da dita Ermida como também apresentou Pedra de ara, Caliz, Patena, Colherinhas para água, Galhetas, Missal, quatro Mesas de Corporais, Castiçais de pau bem formados, Paramentos de todas as cores digo de todas as quatro cores de que usa a Igreja Romana, cada um com sua Alva, Amito, Estola, Manípolo, e Cordão de que fica a dita Ermida ornada além das toalhas do altar, e com duas imagens novas, uma do Senhor São José orago da dita Ermida e outra do senhor São Miguel; e adeante se hão-de transladar os títulos do Património em fé do que assinamos em o sobredito dia 24 de Maio de 1757 = Agostinho Pereira de Lacerda = O P.e Francisco de Freitas Henriques = Frei Francisco de Santa Maria = O Vice vigário João Rodrigues Ramos = Frei Francisco de Santa Ana = O Cura Alexandre Pimentel Rodrigues.”
Este importante e curioso documento acima transcrito está registado no “Livro do Tombo da Igreja Paroquial de Nossa senhora dos Remédios”. Dele, em boa hora, o padre António Joaquim Inácio de Freitas, pároco da Fajãzinha entre 1942 e 1991, fez uma cópia, a qual este registada, em anexo, no livro de Francisco António Nunes Pimentel Gomes, intitulado “Ilha das Flores, Da Descoberta à Actualidade (Subsídios para a sua História)”. Edição da Câmara Municipal das Lajes das Flores, 1977. (Cf. Op. Ct. pág. 467 e seg., doc. 53).
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GUERRA NA CAPOEIRA
Acordou a capoeira toda alvoraçada
A franga poedeira com crista encarnada
Achou uma espiga de milho encarnada
Vem de lá o galo e dá-lhe uma bicada
O pato marreco dá-lhe uma patada
Fica a capoeira toda alvoraçada
E assim se faz uma guerra por causa de nada.
(Aravia popular fajãgrandense)