PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
POST MIL
Pico da Vigi 2, substituindo o famigerado Pico da Vigia, foi criado a 31 de Junho de 2013. Para além da divulgação de novos textos, tinha, também, como objectivo recuperar a totalidade de todos os textos publicados, no seu homónimo anterior. Não foi possível fazer a importação massiva dos mesmos. Foi necessário que se fossem publicando, um a um e o Pico da Vigia continha mil cento e dois posts. Assim foi necessário em sete meses colocar grande quantidade de textos o que fez com que, por vezes, num dia, se colocassem mais de dez post.
Neste momento faltam colocar cerca de trezentos posts, tarefa que se espera, esteja completa dentro de dois meses, a parir dos quais a divulgação de posts entrará no seu rimo normal, ou seja um a dois posts por dia.
Os mil textos colocados no Pico da Vigia 2, até ao momento, dos quais cerca de trezentos não existiam no Pico da Vigia anterior, estão distribuídos pelos seguintes tags: - Autores Açorianos 33, Acidentes 4, Açores 15, Actualidade 28, Adágios 23, Alimentos 13, América 4, Alimentos Proibidos 61, Aravias 16, Blogue 9, Brincadeiras 12, Construções 1, Contos tradicionais 25, Corvo 4, Costumes 36, Descansadouros 7, Descritivo 16, Diário de Ti’Antonho 19, Douro 12, Edifícios 5, Estórias 87, Estórias d’alunos 13, Fantasias 1, Festas 8, Ficção 13, Ficção E 60, Filosofia 4, Flores 5, Grotas e ribeiras 3, Gourmet 21, Gracejos 2, Histórico 20, Jogos 5, Lendas 20, Léxico 6, Lírico 15, Lugares 25, Maleitas 4, Naufrágios 6, Outras estórias 11, Outros Autores 50, Pensamentos 20, Pessoas 34, Pico 15, População 11, Pico da Vigia Júnior 1, Pedro da Silveira 32, Rede Viária 15, S. Caetano 9, S. Miguel 5, Seminário de Angra 13, SI 49, Textos orais 8, Tradições 11, Transportes 5, Utensílios agrícolas 7, Utensílios domésticos 13 e Vários 23.
Este é pois o Post Mil, com o qual o Pico da Vigia 2 termina o ano de 2013, iniciando, amanhã, 2014, um novo ano e um novo ciclo.
Um Bom Ano para todos os que lerem este último post de 20
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DEZ CENTAVOS
Era o último dia do ano. Álvaro passara a manhã excitadíssimo à espera de que a tarde chegasse depressa, a fim de ensaiar o que haviam de cantar durante a tarde do dia de Ano Bom. Na véspera, depois de um chorrilho de pedidos, corroborados com inúmeras juras e variadíssimas promessas, o pai cedera. Havia de o deixar ir, pela primeira vez, cantar os “Anos Bons”. É verdade que era impossível entrar nos ranchos dos maiores e que não era fácil ser aceite nos dos mais novos, mas o José Nunes, seu amigo desde há muito, era o chefe de um dos ranchos dos mais pequenos e havia prometido aceitá-lo. Mais, havia já combinado que a tarde do último dia do ano era para ensaios, na sua loja.
Jantou à pressa, apesar dos lamentos da mãe e dos protestos dos irmãos mais velhos que não cessassem de recriminar, atirando-lhe à cara que ninguém queria um badameco daqueles num rancho, vestiu uma froca de angrim que o frio do Inverno não estava para brincadeiras e, pés descalços e mãos a abanar, saiu em louca correria pela porta da cozinha. Para além do Fitas já lá estavam o José Henriques, o Heitor e o Luís. O António Jorge chegou mais tarde e, logo depois o Narciso, novato como ele. Muitas outras vezes ali se haviam reunido, sobretudo nas tardes de chuva, para outras flostrias e brincadeiras. A mãe do Nunes era condescendente e, como não o queria longe de casa, permitia que se acomodassem por ali, pese embora o barulho, a desarrumação, a barafunda e zaragata em que o grupo era pródigo.
O ensaio correu com grande dignidade, concentração e perfeccionismo. O resultado era excelente: cantavam que nem uma cotovia e tocavam que nem a música da Caveira. O Nunes na gaita, o Heitor nos ferrinhos e o Luís no tambor.
Regressou a casa ao lusco-fusco. A noite pareceu-lhe infinita, a manhã quase infindável e a missa nunca mais acabava. Finalmente chegou a tarde. A mãe autorizou-o a que levasse a melhor roupa, “a da missa” e fosse calçado com os sapatos de pele cabra.
Iniciaram a peregrinação pelo cimo da Assomada. Parecia vinha vindimada! Um dos ranchos dos maiores já por ali passara e iam “às casas melhores” às que “davam mais”. Mas começaram a juntar algum. Dez centavos daqui, vinte dacolá e alguns figos passados ou meio cálice de licor, caseiro, “fraquinho”. Chegaram à Praça com noventa centavos na bolsa que o António Jorge ia segurando. A Fontinha deu menos. Moedas brancas apenas duas de cinquenta centavos, na rua Direita. Uma na casa do Senhor Padre outra na da Senhora Dias. A Tronqueira e a Via d’Água consubstanciaram negas contínuas – pouco deram. Ávidos, foram contar o dinheiro para o adro da igreja, atrás da sineira. Três escudos e sessenta centavos. Agora era só dividir por sete. Muito fácil. “Cinquenta centavos a cada um”. – Concluiu o Heitor. Os dez excedentes ficavam para o Nunes que acumulara as funções de chefe, de organizador e de tocador de gaita. Além disso cedera as instalações para os ensaios. Era mais que justo!
Álvaro regressou a casa, felicíssimo. Sentia-se o homem mais rico do mundo. Uma moeda de vinte centavos e três de dez. Abriu a porta num ápice, aproximou-se da mãe que se entretinha a remendar umas calças do pai. Estendeu-lhe a mão que seguravam as quatro moedinhas e exclamou:
- Veja mãe, o que eu ganhei. Olhe, são para si! Todas para si.
A mãe levantou a cabeça do trabalho, olhou de soslaio, sorriu e beijou-o. Depois, num misto de transtorno e inquietação, pegou nas moedinhas deixando-lhe na mão uma de dez centavos.
Expressando no rosto mais alegria, por saber o que poderiam representar para ela os quarenta centavos, Álvaro apressou-se a abrir uma das gavetas da cómoda da sala, de onde tirou uma pequena carteira e onde introduziu a moeda que a mãe lhe devolvera - dez centavos. Cuidava que com ela, em Setembro, havia de comprar um chocolate, na festa da “Senhora da Saúde”.
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ALVORADA SANTA
Oh! Alvorada Santa!
Magno louvor divinal,
Que nesta noite se canta
Ao Deus d’Amor imortal!
Oh! Alvorada Santa!
Aurora resplandecente.
Glória a Deus, hoje se canta
Em laivos d’amor ardente.
Oh! Alvorada Santa!
Flor da bruma imaculada,
Outra glória não se canta
Nesta noite d’Alvorada.
Oh! Alvorada Santa!
Beleza pura, inocente.
Tua honra hoje se canta
Áureo jasmim florescente.
Oh! Alvorada Santa!
Deus Pai seja louvado.
Ao Filho também se canta
E ao Espírito adorado.
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A PACIÊNCIA DE JOB
Era este também um dos muitos contos tradicionais que os nossos antepassados nos contavam aos serões, na Fajã Grande, na década de cinquenta. Neste caso, tratava-se de uma “estória” muito provavelmente inspirada numa passagem da Bíblia, narrada no livro de Job.
Havia, noutros tempos um homem chamado Job, bom, generoso, paciente e temente a Deus. Mas Job também tinha muitos bens, tinha esposa, tinha filhos, tinha criados e tinha muito gado, era muito rico. Certo dia, o Demónio, que tinha inveja daquilo tudo, pediu a Deus que pusesse à prova a paciência e a bondade de Job. Para isso propôs a Deus que o autorizasse a lhe retirar todos os bens e lhos desse a ele, Diabo. Assim Deus havia de ver como a paciência de Job se esgotava, de um momento para o outro. Mas Deus disse-lhe:
- Não, não te dou os bens dele, todos, de uma só vez, mas vai-lhos tirando aos poucos, um a um, conforme entenderes. Assim verás que ele se mantém bom e paciente.
Então, o Demónio que era mau e invejoso, pediu a Deus para retirar a alma de Job. Deus, porém, opôs-se, novamente, dizendo-lhe:
- Isso não. Podes tirar-lhe tudo, menos a alma pois essa, quero-a para mim.
Então, o Demónio, começou a sua tarefa de retirar todos os bens de Job. No primeiro dia tirou-lhe uma filha, matando-a. No dia seguinte matou-lhe a esposa e, de seguida, todos os filhos. Não contente com isso, matou-lhe o gado todo, as vacas, os porcos, as galinhas e até os criados. Incendiou-lhe a casa e, por fim, cobriu-lhe o corpo de feridas e de chagas.
Os vizinhos e os amigos admiravam-se com toda aquela tragédia que atingira Job, mas abandonaram-no porque julgavam que se ele tinha sido assim castigado por Deus, era por ser um grande pecador. Deus só castiga os que praticam o mal. E diziam uns para os outros:
É Deus que o está a castigar! Devem ser muitos e grandes, os seus pecados! – E dirigindo-se a ele com desprezo, perguntavam-lhe:
- Ó Job, o que é que tu fizeste de tão grave para Deus te castigar tanto?
Job, cheio de paciência e de generosidade, respondia sorrindo:
- Deus não castiga ninguém, nem me castigou. Os bens que eu tinha haviam-me sido dados por Ele. Assim Deus mos deu, Deus mos tirou.
Então Deus chamou o Demónio, fez-lhe ver a paciência de Job e exigiu que lhe devolvesse todos os bens que lhe havia retirado. Deu-lhe nova esposa, nova família, deu-lhe nova fortuna mas não permitiu mais que o Demónio se metesse na vida dele, nem pusesse à prova a sua paciência.
E concluíam os contadores da estória: - É esta a razão por que ainda hoje dizemos: “Quem me dera ter um pedacinho da paciência de Job”.
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DISCURSO DE APRESENTAÇÃO DA OBRA DE BERNARDO MACIEL
Ex,mo Senhor Presidente da Câmara Municipal das Lajes, Engº Roberto Silva;
Ex,mo Senhor Presidente da Câmara Municipal de São Roque, Luís Filipe Silva;
Ex.mo Senhor Vice presidente e vereador da Câmara Municipal das Lajes, professor Hildeberto Peixoto:
Ex.ma Senhora vereadora da Câmara de São Roque, Dra Ana Gonçalves;
Ex.ma Senhora doutora Maria de Jesus Maciel:
Minhas Senhoras e meus senhores:
Dar a conhecer a obra literária de Bernardo Maciel foi o objectivo da Doutora Maria de Jesus Maciel, ao elaborar a Edição Crítica d’A Obra Literária de Bernardo Maciel, como ela própria refere no início da introdução. Dar a conhecer, ou se quisermos, apresentar “ A Obra Literária de Bernardo de Maciel” Edição Critica de Maria de Jesus Maciel é o objectivo da minha presença hoje, aqui.
Sempre entendi e entendo que a apresentação de um livro, independentemente do seu conteúdo ou do género literário em que se enquadra, deve ter como objectivo principal, não tanto a sua divulgação ou a sua simples amostra aos leitores, mas antes deverá constituir-se num encontro de comunicação e de partilha, num momento de jactância estimulante e estimuladora, num envolvimento recíproco do autor, apresentador e leitores, que motive os participantes para uma adesão, em termos de leitura, à obra em causa. Por isso mesmo, mais do que dar a conhecer “ A Obra Literária de Bernardo Maciel” Edição Crítica de Maria de Jesus Maciel, pretendo, fundamentalmente, motivar, sensibilizar e talvez até aliciar, diria mesmo provocar ou espicaçar os presentes, se disso ainda necessitarem, para a leitura de uma obra de uma riqueza de conteúdos notável, de um mérito literário indiscutível e de um rigor histórico profundo e genuíno, enriquecida com o, até agora desconhecido, espólio literário de Bernardo Maciel e com a escrita contagiante, apelativa e envolvente da autora.
Acrescente-se, no entanto, que o livro ora apresentado, dado o rigor da sua objectividade, a profundidade da sua investigação e abrangência dos seus conteúdos, se constitui mais do que um livro de simples e comum leitura, uma vez que pode e deve estatuar-se como uma verdadeira obra de consulta e de estudo, dado tratar-se de uma edição filológica, cujo objectivo, por parte da autora, foi a reconstituição do texto, preparando-o criticamente e disponibilizando ao público a obra deste poeta e escritor picoense, até agora, quase toda ela, desconhecida. Assim, o livro que agora se apresenta constitui e impõe-se como um documento base, fundamental e único, até ao momento, para qualquer estudo de cariz literário que possa ser feito, no futuro, sobre a obra do poeta e escritor Bernardo Maciel. Na realidade com a edição da Obra Literária de Bernardo Maciel fica aberta aos estudiosos da literatura e de outras áreas humanísticas a obra literária deste homem que, como refere Pedro da Silveira, na sua Antologia da Poesia Açoriana, foi o primeiro poeta da ilha do Pico que deixou registo escrito. E porque, segundo a autora, há na obra de Bernardo Maciel um constante vaivém entre os momentos da sua existência pessoal, dos homens em geral e dos acontecimentos do seu tempo, revelando o sentir, o pensar e o agir de uma época, o longo e exaustivo trabalho, agora tornado público e que armazena e conserva, depois de milagrosamente salvo, o espólio literário de Bernardo de Maciel, constitui, indubitavelmente, uma parte da nossa memória, da nossa cultura e do nosso património.
Urge ainda esclarecer que se trata de uma obra constituída por três partes. Na primeira, a autora delineia a biografia de Bernardo Maciel numa narração simples, motivadora, empolgante, geradora de afectos e provocadora de emoções no leitor. Apesar de rigorosamente histórica mas ataviada de um cunho romanesco e edílico, fruto, em parte, de uma espécie de empatia entre a autora e o poeta e escritor, de quem ainda é familiar e que torna, esta parte do livro, incontestavelmente, mais atraente na leitura, mais delirante na apreciação dos conteúdos e mais envolvente no relacionamento que existe sempre entre o livro e o leitor. Por tudo isso, esta primeira parte, poderia, em minha opinião, e perdoe-me a dra Maria de Jesus Maciel o atrevimento e a ousadia, constituir-se numa obra literária autónoma, única, independente, separada, do género das biografias romanceadas, acessível ao mais simples, humilde e comum dos leitores. A segunda parte é constituída pelos manuscritos de Bernardo Maciel, incluindo a sua correspondência particular, arrecadados num CD room e de que o livro contém apenas alguns exemplares. Finalmente a terceira parte engloba e dá a conhecer praticamente a totalidade dos escritos de Bernardo Maciel, precedidos duma introdução e acompanhados de notas críticas. Em Poesia seis livros – Livro da Alma, Visões Sagradas, Envelhecer, Às Crianças, De Longe e Dispersos –, em Teatro, um livro – a Monja –, e em Prosa, dois livros – Coisas Íntimas e Dispersos e, por fim, a própria Correspondência do escritor. O Livro Dispersos inclui um sermão a Nossa Senhora e um excerto de um outro, supostamente ao Bom Jesus. Num e noutro, está bem patente a excelência da oratória de Bernardo Maciel, bem mais próxima dos sermões do Padre António Vieira do que nas homilias da actualidade. Todo este acervo, com excepção do Livro da Alma, publicado, em 1916, um ano antes da morte do autor, na Calheta, ilha de são Jorge, permaneceu desconhecido do público durante todo o século xx.
Confesso que antes de ler a primeira parte deste livro e de descortinar a biografia de Bernardo Maciel, traçada pela autora, concebia dele uma imagem, talhada, delineada, definida e, sobretudo, influenciada pelos arquétipos dos clérigos do final do século XIX e início do século XX, descritos em muitos dos romances de Camilo Castelo Branco e de Eça de Queirós ou em alguns poemas da “Velhice do Padre Esterno “ de Guerra Junqueiro, nomeadamente “A Sesta do Senhor Abade” e “Como se faz um Monstro” ou, no mínimo, que Bernardo Maciel, embora brilhante, erudito e culto durante o seu percurso académico, como aluno do Seminário de Angra, depois de colocado numa paróquia mais isolada dos Açores, se fosse amarfanhando culturalmente, eclipsando intelectualmente até definhar e fenecer por completo. Exemplos destes eram bastante frequentes, entre nós, há cem ou há cinquenta anos.
Nada disto, porém, aconteceu com Bernardo Maciel. Pelo contrário, a vida deste homem, sacerdote, poeta e escritor, é um hino à dignidade, à beleza, à nobreza de carácter e à excelência de atitudes, para além de encastoada num percurso cultural delineado, construído, aperfeiçoado e enriquecido por ele próprio, pelo seu esforço, trabalho, leitura e escrita. Podemos, na verdade e com razão, considerá-lo, sob o ponto de vista cultural, um verdeiro “self made man”. Nascido a 4 de Junho de 1874, na freguesia de S. João do Pico, Manuel Bernardo Maciel distinguiu-se desde criança e enquanto viveu por uma força muito própria e uma forma de vida singular, revelando desde cedo um olhar atento ao mundo que o rodeava, uma curiosidade crescente, pelos seus trabalhos e festas, um interesse acentuado pelos estudos, um gosto muito particular pela música e pelo canto, sendo já em criança convidado a participar como solista nas cerimónias da Semana Santa da sua igreja paroquial. Concluída a instrução primária, fez o exame de admissão ao Liceu Nacional da Horta em 1888, e no mesmo ano a admissão ao Curso de Preparatórios do Seminário Diocesano de Angra do Heroísmo, onde estudou e se revelou sempre um aluno, brilhante, distinto, já amante das letras, da cultura, da arte e da música. Embora a falta de saúde o fizesse sair por algum tempo do Seminário e passar a aluno externo, esse facto não o impediu de continuar a ter sucesso nos estudos, sendo considerado, mesmo nessa altura, o melhor aluno do Seminário terminando o curso em menos anos do que o exigido nos programas e currículos daquela instituição de ensino. O seu destino, “um dos mais altos espíritos que passaram pelo Seminário de Angra em todos os tempos” segundo o colega Pe. Xavier Madruga, Director do jornal O Dever, foi o extremo longínquo de uma ilha isolada, uma terra de lavradores, a paróquia de Santo Antão do Topo, da ilha de S. Jorge a quem acabará por dedicar toda a sua vida.
Foi nesse obscuro recanto, encastoado entre o mar e as rochas, cravejado de ribeiras e amortalhado de ravinas que ele olhou atenta e criticamente o mundo, que se multiplicou a nível do canto, da oratória e da escrita. O gosto pelo canto que o acompanhava desde a infância, distingue-o ainda enquanto estudante, como professor de cantochão no Seminário, e depois em S. Antão e em toda a ilha de São Jorge. Os jornais locais são disso espelho, dando relevo ao seu talento musical, à sua voz de tenor, chegando o jornal “Ecos Jorgense” a ter a ousadia de afirmar que a sua voz “é tão suave e extensa que não deixaria de ser apreciada no Teatro de S. Carlos”. Bernardo Maciel convidou o músico Francisco Lacerda e foi convidado por ele para participações musicais conjuntas, e o maestro angrense Jácome de Sousa, – violinista da orquestra de São Carlos, em Lisboa, que acompanhava a visita real do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia aos Açores – também foi convidado por Bernardo Maciel para abrilhantar as festas da igreja paroquial de Santo Antão. Mais tarde em Lisboa foi ao S. Carlos, para ouvir música clássica, o mesmo acontecendo noutras cidades europeias. A música popular também o atraiu. Cantou, com o povo, a chamarrita, cantou ao desafio nos bailes de roda, cantou nas fogueiras de S. João e cantou em família canções de embalar e outras que improvisava ao piano acompanhando-se a si próprio.
A oratória foi outra área em que se destacou com competência, excelência e grandiosidade, sendo elogiado por todos, revelando uma intensa actividade como pregador, saltando, permanentemente, de púlpito em púlpito por todas as freguesias de São Jorge. Mas já, nos tempos de estudante, pregou em Angra, em férias fê-lo no Pico e também nos E.U.A granjeando fama de ser um excelente e culto orador, bastante versado em matérias teológicas.
Mas o que mais desponta, enobrece e caracteriza Bernardo Maciel é a escrita. É ele próprio quem confessa no Livro da Alma: “Às vezes escrevia coisas no livro da minha alma. E iam para ali ficando, ficando longamente…” Assim aconteceu até que um dia um colega e amigo, o contista Nunes da Rosa, forçando a oportunidade e o retraimento voluntário do poeta, começou a publicar os seus poemas e artigos em “A Ordem”, o jornal que dirigia, na freguesia das Bandeiros. Mas mesmo sem publicar, Bernardo Maciel escreveu sempre, até que em Março de 1916, como já referi, os amigos jorgenses que sentindo que o seu fim se aproximava, lhe publicaram o seu primeiro livro de versos, o Livro da Alma, nele indicando como concluídas e prontas a imprimir as seguintes obras: Visões Sagradas, Envelhecer, Às Crianças, e De Longe, (Poesia); Monja (Teatro); Coisas Íntimas (Prosa).
Mas Bernardo Maciel, como todos os poetas, era um sonhador. Inúmeros sonhos povoaram a sua vida. Um deles “era ver e viver o Mundo” não só o seu pequeno mundo que povoava o seu quotidiano mas também o grande mundo que ele conhecia através das suas variadíssimas leituras. Eram os grandes centros europeus de cultura e arte que lhe povoavam o imaginário. Na primeira ocasião que se lhe deparou empreendeu a viagem, sempre sonhada, visitando Lisboa, Vigo, Paris, Lurdes, Roma, Florença, Veneza e Nápoles. Daí partiria por mar para a Terra Santa. Mas em Nápoles, enquanto aguardava a partida, foi surpreendido pelo rebentar da I Grande Guerra. Para lhe fugir segue num navio italiano que, sem rota conhecida, o leva a Nova York, sendo forçado a ficar nos E.U.A. cerca de um ano. Viaja e prega em vários lugares e escreve sobre a vida agitada deste Novo Mundo, tão diferente e tão desigual da pacata e humilde freguesia de Santo Antão. Em Julho de 1915, regressa ao Pico, onde os amigos jorgenses o vêm buscar, reconhecendo o que ele sempre fora: um homem bom, sobretudo para com os mais pobres e desfavorecidos e que entre eles ganhara fama de santo. Pouco depois, o seu estado de saúde piorou de tal modo que regressou a São João, onde faleceu, a 21 de Março de 1917. Deixa, segundo Maria de Jesus Maciel, “uma memória viva, uma vida em que procurou o sonho da justiça e da igualdade, em que combateu a ignorância, como fonte do mal, em que chamou a atenção para a educação do povo, pobre e sem instrução. Um homem de cultura, um poeta que deixou no Livro da Alma a indicação de uma obra concluída e pronta a imprimir mas que ficou inédita até hoje”.
É tudo isto e muito mais que, através duma escrita erudita e tonificante, baseada em documentos e testemunhos diversos e nos próprios textos do autor, sobretudo nas muitas cartas escritas aos seus familiares, Maria de Jesus Maciel nos apresenta, nesta obra, onde, delineia a figura simpatiquíssima, deste brilhante e ilustre escritor e poeta picoense, a que junta todo o seu espólio literário.
Não posso, deixar de referir o louvável e meritório, trabalho da dra Maria de Jesus Maciel em “salvar” este espólio literário de Bernardo Maciel, agora divulgado nesta obra, bem como o esforço que despendeu na reconstituição e construção de toda sua obra literária incluindo a correspondência mais íntima, embora, como ela própria o confessa na introdução com o “valioso contributo de diversas pessoas, investigadores, familiares, conterrâneos e paroquianos do Autor”. Trata-se de um esforço gigantesco, duma recuperação notável e valiosa, trazendo para as gerações vindouras, um herança que se desconhecia ou cuidava perdida. Sabemos hoje que muitos espólios literários, supostamente, de grande mérito e valia, quer de autores conhecidos, de que, por exemplo, Nunes da Rosa, acima citado e grande amigo e divulgador da obra de Bernardo Maciel é um protótipo, ou até de outros desconhecidos e que, muito provavelmente se perderam para sempre. Cuida-se hoje, é verdade que em termos mais lendários do que históricos, que o próprio Luís de Camões, no naufrágio de que foi vítima no seu regresso das Índias, salvou a nado os Lusíadas, mas terá perdido para sempre o “Parnasso”, uma outra obra supostamente de igual ou maior grandeza e amplitude. No caso de Bernardo Maciel, o precioso espólio que nos deixou foi miraculosamente recuperado, uma vez que fora parar à Casa Museu Armando Côrtes‑Rodrigues, em Ponta Delgada. Este escritor e poeta açoriano, em 1936, solicitara-o à irmã do poeta, para o editar. Não o conseguiu mas os manuscritos ficaram em seu poder. Mais tarde, o Governo Regional dos Açores, adquiriu o espólio de Amando Cortes-Rodrigues, contendo os papéis de Bernardo Maciel que passaram a integrar a colecção de manuscritos da referida Casa Museu, onde a dra Maria de Jesus Maciel pode, finalmente, encontrar “este precioso acervo documental, que agora torna público. Não se cuide, no entanto, que o trabalho de investigação e pesquisa da autora foi tão simples quanto isto: tratava‑se de um acervo textual totalmente desorganizado e incompleto, que só ao fim de muito tempo e de uma pesquisa intensa e cuidada junto de diversas pessoas e instituições, em Lisboa, nos Açores e até nos E.U.A, conseguiu encontrar, juntando todos os documentos que agora divulga e que foram “protagonistas de histórias várias, envolvendo empréstimos, tentativas de publicação, perdas e achamentos, que tinham começado já em vida do Autor”. Daí a tarefa complexa, árdua, cuidadosa e demorada a de Maria de Jesus Maciel para reunir um acervo textual de poesia, teatro, prosa de carácter religioso e intimista, e ainda a correspondência e que lhe chegou disperso e espaçado no tempo, em forma de manuscrito autógrafo, de cópia apócrifa, ou de impresso. Daí o mérito inquestionável, o contributo imprescindível e o esforço gigantesco de Maria de Jesus Maciel, a fim de que a obra deste grande escritor e homem de letras picoense seja, a partir de hoje, conhecida.
Aproveito esta oportunidade para apresentar à doutora Maria de Jesus Maciel os meus sinceros parabéns pelo trabalho realizado, agora estampado neste livro de excelente qualidade e magnífica apresentação, ao mesmo tempo que lhe agradeço a confiança que depositou em mim para hoje e aqui fazer a apresentação desta sua Edição Crítica da Obra Literária de Bernardo Maciel, editada pelo Instituto Açoriano de Cultura, apoiada pela Governo dos Açores e pela Direcção Regional da Cultura, com o patrocínio da Câmara Municipal das Lajes do Pico, da Câmara Municipal de São Roque do Pico e Culturpico, resultado do seu trabalho e pesquisa de mais de vinte anos e que constituiu a sua tese de Doutoramento, apresentada na Universidade Nova de Lisboa, no dia 17 de Janeiro de 2008 e que o Júri avaliou com o resultado de “Muito Bom, com Distinção e Louvor. Por unanimidade.”
Antes de terminar não posso nem consigo deixar de referir alguém que, infelizmente, já não está presente aqui, hoje e que durante uma boa parte destes longos anos em que a dra Maria de Jesus Maciel realizou este trabalho e efectuou esta pesquisa, sempre a acompanhou de perto, incentivando-a e apoiando-a. Trata-se do maestro Emílio Porto, seu companheiro de vida. Com ela traçou este percurso de esforço, de recuperação e conservação de um espólio literário que não podia perder-se. Ele que também marcou a sua presença nesta ilha onde nasceu, pelo grande contributo que deu às letras, à cultura, à sociedade e, sobretudo, à música.
E termino com uma frase do escritor brasileiro Monteiro Lobato: “Um país constrói-se com homens e com livros.” Eu diria: Uma ilha também se constrói com homens e com livros. A ilha do Pico foi-se construindo, desde os primórdios do seu povoamento, com homens agarrados ao foicinho, ao alvião, à rabiça do arado e, como diria Vitorino Nemésio, à cana do leme ou ao báculo, no padroado português do oriente, mas também se construiu com os livros que muitos desses homens foram escrevendo. Hoje, a ilha do Pico, fica duplamente mais rica com a apresentação e a divulgação do livro “A Obra Literária de Bernardo Maciel” Edição Crítica de Maria de Jesus Maciel.
Obrigado pela vossa atenção.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 26/08/12
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AS PALAVRAS
(PEDRO DA SILVEIRA)
Que ninguém lhes toque
se as não sabe amar
como os vivos amam,
VIOLENTAMENTE.
Pedro da Silveia, Poemas Ausentes
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NOVO ENCONTRO NO MUCIFAL
Mucifal é um lugar da freguesia de Colares, pertencente ao concelho de Sintra. Protegido a Sul pela Serra de Sintra, encimada pelo seu emblemático palácio, aqui e além ainda se fazem sentir os perfumes, as cores e os sons descritos por Eça e Ramalho. Bafejado a Oeste pelas Praias Grande e das Maçãs e a Leste por Nafarros, Mucifal é um local repleto de simbolismo e de serenidade, onde ainda parece reflectir-se os tons do verde colorido da Serra, onde ainda se se sente projectar-se os respingos da espuma azulada do oceano, onde o cantar dos pássaros ainda atulha as madrugadas e até o Sol, ao pôr-se, se tinge de um azul amarelado. Um local onde os ventos ainda chegam carregadinhos de perfume duma abrupta e descarada maresia.
Graças à disponibilidade, ao acolhimento e à hospitalidade do Agostinho Simas – um picoense, ex-aluno do Seminário de Angra da década de cinquenta - aqui se têm realizado, desde há mais de vinte anos, variadíssimos e sistemáticos encontros que congregam e reúnem antigos mestres e alunos daquela instituição de ensino, muitos deles fazendo-se acompanhar por familiares.
Para o próximo sábado, dia 3 de Novembro está agendado mais um destes encontros os quais, geralmente, unem e reúnem não apenas os antigos alunos residentes no continente, mas também muitos outros vindos, expressamente, dos Açores, da América e de outras paragens. Em cada encontro aguarda-se a chegada de mais um debutante, que é sempre recebido com uma enorme alegria e uma grande satisfação. Todos os que ali afluem, de modo muito especial os que frequentaram o Seminário de Angra - aquele “astro a sorrir de bonança” – sentem o perfume, a fragrância e o carinho, a amizade, a boa disposição e disfrutam não só de uma excelente organização mas também degustam os sabores mágicos e deliciosos da pantagruélica cozinha da responsabilidade da esposa do Manuel Agostinho. Mas mais importante é o convívio, o irmanarmo-nos, o desfilar de histórias e aventuras de outros tempos, o a relembrar os que ali não estão mas trazidos pela memória e amizade dos presentes, o recordar de acontecimentos, de vivências e memórias e, sobretudo, o cantarmos, porque era isso talvez o que de mais belo fazíamos, recordando momentos mágicos de amizade recíproca, de companheirismo, de ternura partilhada e de esperanças renascidas. É tudo isto que se desfruta no Mucifal, recordando-se também, com mágoa e saudade, os que já partiram.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 28 de Outubro de 2012
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NÃO PERCA A PERCA
Em viagem do Porto para o Pico, fiz uma escala, deliberadamente programada, no aeroporto de Ponta Delgada, onde cheguei, já noite escura. No dia seguinte, fui, inevitavelmente, apanhado nas teias da greve geral, o que obviamente, me trouxe alguns transtornos. No entanto, a SATA não se poupou em cuidados e atenções, disponibilizando, como mandam as normas europeias, alimentação, dormida e táxi. Assim dei comigo, inadvertidamente, hospedado num dos (em número de estrelas) melhores hotéis de Ponta Delgada, onde havia de pernoitar e fazer as refeições.
No entanto, de manhã, enquanto aguardava decisões e esclarecia procedimentos, dei umas voltas pela cidade. Como gosto de apreciar os produtos da “ilha verde”, sempre tão fresquinhos e viçosos, entrei no Mercado da cidade. Para além dos belíssimos produtos agrícolas que a ilha produz, encontrei a peixaria a abarrotar de uma enorme diversidade de espécies de peixe em que as águas açorianas são abundantes. Além disso todo ele muito fresquinho e com um preço acessível: abróteas, garoupas, meros, chernes, vejas, moreias, chicharro, cavalas, sargos, pargos, etc., etc. Uma maravilha!
Regressei ao hotel, para o almoço, com “o olho cheio”. A SATA, logicamente, condicionara a escolha do menu, “obrigando-me” a comer peixe. Nada me custou a determinação, antes me alegrou, vindo-me logo à ideia, a excelência daquela variedade de peixe açoriano que havia observado no Mercado, sonhando que, decerto, me havia de deliciar, com algum dele, mesmo que fosse um chicharro frito, um carapau grelhado ou um filete de cavala assada.
Qual não foi o meu espanto, quando me puseram na frente um prato de peixe, sim senhor, conforme o anunciado, mas perca do Nilo. É evidente que comi, até porque vinha muito bem apresentado – gourmet – com batata e legumes, mas ficou-me, ao longo da tarde, um sabor perdido, aliado a uma interrogação permanente: Por que motivo numa terra com tanto peixe nas suas águas, se serve, nos melhores restaurantes, perca do Nilo? Por isso, agora, ainda “aportado” à Terceira, entre chuva e vento, à espera de voo para o Pico, apetece-me gritar aos quatro ventos um interessante “slogan” que talvez possa incentivar o turismo nas ilhas:
- “Se visitar São Miguel não perca a perca”.
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APRESENTAÇÃO DA OBRA LITERÁRIA DE BERNARDO MACIEL” EDIÇÃO CRÍTICA DE MARIA DE JESUS MACIEL
No passado dia 22 de Agosto, integrando o programa da Semana dos Baleeiros, foi apresentado no Auditório Municipal das Lajes do Pico, o livro a “Obra Literária de Bernardo de Maciel Edição Critica de Maria de Jesus Maciel”. Trata-se de uma obra que, dado o rigor da sua objectividade, a profundidade da sua investigação e abrangência dos seus conteúdos, se constitui mais do que um livro de simples e comum leitura, uma vez que pode e deve estatuar-se como uma verdadeira obra de consulta e de estudo, dado tratar-se de uma edição filológica, cujo objectivo, por parte da autora, foi a reconstituição do texto, preparando-o criticamente e disponibilizando ao público a obra deste poeta e escritor picoense Bernardo Maciel, natural da freguesia de São João do Pico, até agora, quase toda ela, desconhecida.
O excelente e amplo trabalho da Dra Maria de Jesus Maciel, constitui, indubitavelmente, um documento base, fundamental e único, até ao momento, para qualquer estudo de cariz literário que possa ser feito, no futuro, sobre a obra do poeta e escritor Bernardo Maciel. Na realidade com a edição desta obra fica aberta aos estudiosos da literatura e de outras áreas humanísticas a obra literária deste homem que, como refere Pedro da Silveira, na sua Antologia da Poesia Açoriana, foi o primeiro poeta da ilha do Pico que deixou registo escrito. E porque, segundo a autora, há na obra de Bernardo Maciel “…um constante vaivém entre os momentos da sua existência pessoal, dos homens em geral e dos acontecimentos do seu tempo, revelando o sentir, o pensar e o agir de uma época, o longo e exaustivo trabalho, agora tornado público e que armazena e conserva, depois de milagrosamente salvo”, o espólio literário de Bernardo de Maciel, constitui, indubitavelmente, uma parte da nossa memória, da nossa cultura e do nosso património.
Trata-se de uma obra constituída dividida em três partes. Na primeira, a autora delineia a biografia de Bernardo Maciel numa narração simples, motivadora, empolgante, geradora de afectos e provocadora de emoções no leitor. Apesar de rigorosamente histórica mas ataviada de um cunho romanesco e edílico, fruto, em parte, de uma espécie de empatia entre a autora e o poeta e escritor, de quem ainda é familiar e que torna, esta parte do livro, incontestavelmente, mais atraente na leitura, mais delirante na apreciação dos conteúdos e mais envolvente no relacionamento que existe sempre entre o livro e o leitor. Por tudo isso, esta primeira parte podia constituir-se numa obra literária autónoma, única, independente, separada, do género das biografias romanceadas, acessível ao mais simples, humilde e comum dos leitores. A segunda parte é constituída pelos manuscritos de Bernardo Maciel, incluindo a sua correspondência particular, arrecadados num CD room e de que o livro contém apenas alguns exemplares. O CD room contém ainda, dada a dificuldade da sua apresentação em texto, devido à sua extensão, as introduções a cada uma das obras de Bernado Maciel, bem como as notas críticas. Finalmente a terceira parte engloba e dá a conhecer praticamente a totalidade dos escritos de Bernardo Maciel, precedidos duma introdução e acompanhados de notas críticas. Em Poesia seis livros – Livro da Alma, Visões Sagradas, Envelhecer, Às Crianças, De Longe e Dispersos –, em Teatro, um livro – a Monja –, e em Prosa, dois livros – Coisas Íntimas, Dispersos e, por fim, a própria Correspondência do escritor. O Livro Dispersos inclui um sermão a Nossa Senhora e um excerto de um outro, supostamente ao Bom Jesus. Num e noutro, está bem patente a excelência da oratória de Bernardo Maciel, bem mais próxima dos sermões do Padre António Vieira do que nas homilias da actualidade. Todo este acervo, com excepção do Livro da Alma, publicado, em 1916, um ano antes da morte do autor, na Calheta, ilha de são Jorge, permaneceu desconhecido do público durante todo o século xx.
A Edição Crítica da Obra Literária de Bernardo Maciel, editada pelo Instituto Açoriano de Cultura, apoiada pela Governo dos Açores e pela Direcção Regional da Cultura, com o patrocínio da Câmara Municipal das Lajes do Pico, da Câmara Municipal de São Roque do Pico e Culturpico, é uma obra notável, resultado de um árduo trabalho de investigação e pesquisa de mais de vinte anos e que constituiu a tese de Doutoramento da autora, apresentada na Universidade Nova de Lisboa, no dia 17 de Janeiro de 2008 e que o Júri avaliou com o resultado de “Muito Bom, com Distinção e Louvor. Por unanimidade.”
Estiveram presentes na apresentação da obra, para além de muito público, os senhores presidente da Câmara Municipal das Lajes, Engº Roberto Silva, presidente da Câmara Municipal de São Roaque, Luís Filipe Silva, o vice-preidente e vereador da Câmara Municipal das Lajes, professor Hildeberto Peixoto e a vereadora da Câmara de São Roque, Dra Ana Gonçalves.
Recorde-se que durante a referida semana foram apresentados, para além do Roteiro cultural dos Açores – Personalidadees; Dias de Melo, mais quatro livros: “A Freguesia de São João Baptista da Ilha do Pico na Tradição Oral dos seus Habitantes” de :. Alexandre Madruga, “Homens de Olhos Encovados e Outras Estórias de Homens do Mar” de Francisco Andrade de Medeiros, “Silveira Sintra Picoense” de João de Brum e e “Daniel e os Caçadores de Baleias”.
Texto publicado no Pico da Vigia, em Agosto de 2012
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ENCONTRO DE ANTIGOS ALINOS DO SEA
Nos primeiros dias de Julho reencontraram-se, em Angra, mais concretamente no Seminário Diocesano, cerca de meia centena de antigos alunos que, nos anos 50 e 60, do século passado, frequentaram e fizeram, se não toda, pelo menos uma boa parte da sua formação académica e humana naquela prestigiosa instituição de ensino. Com um programa recheadíssimo, onde houve tempo para reapresentar, para reflectir, para recordar e, de modo muito especial, para prestar homenagem, os antigos seminaristas que se formaram nas duas primeiras décadas da segunda metade do século passado tiveram uma oportunidade única e inequívoca de reencontrar antigos colegas e professores, bem como de percorrer os espaços onde, ao longo de doze anos, viveram o seu dia-a-dia e fizeram a sua formação. Do programa elaborado pela equipa coordenadora, ressaltaram momentos importantes e inesquecíveis, como a recepção e o acolhimento no Hotel Angra, para os que não se reencontravam há quase meio século, a visita ao Seminário, situado na rua do Palácio, a apresentação de fotografias antigas, textos e testemunhos e o jantar, precisamente no refeitório do Seminário.
O segundo dia foi dedicado à recriação e à reflexão, iniciando-se com um passeio pelas ruas de Angra, por onde outrora, nas tardes de quintas e domingos, transitavam os seminaristas, vulgarmente alcunhados por estorninhos, com destino ao Monte Brasil, ao Relvão, Pátio da Alfandega e Jardim da Cidade. Seguiu-se um jogo de futebol, no velhinho campo onde outrora, diariamente, se disputavam renhidas partidas. De tarde realizaram-se dois fóruns, o primeiro com as palavras do Dr. Álvaro Monjardino –“ A influência da Instituição (SEA) na cidade de Angra e na Região Açores, nas décadas de 50 e 60” e um segundo, com a intervenção do Dr. Artur Cunha de Oliveira, sobre o tema – “O Concílio Vaticano II e a reacção da Igreja Açoriana na década de 60.” Seguiu-se um animado e interessante debate. À noite, realizou-se uma espécie de réplica dos Saraus Musico-Literários, que tiveram, na altura grande impacto no meio cultural e artístico angrense, sendo todos os poemas declamados da autoria de antigos alunos do Seminário.
Na manhã do último dia, foi prestada homenagem à Instituição, aos professores e alunos, através do descerramento de uma placa evocativa do momento. No próximo número, o Dever divulgará o texto, proferido, na altura, por um antigo aluno. Após esta efeméride foi celebrada, na própria capela do Seminário, uma missa em memória dos professores e alunos falecidos. No momento da homilia foi lido o testemunho de Manuel Emílio Porto, falecido em 12 de Abril, mas que havia programado a sua presença naquele encontro.
O encerramento, na tarde de domingo, culminou num passeio de autocarro pela ilha Terceira, com passagem pelo Monte Brasil, Silveira, São Mateus, Cinco Ribeiras, Serreta e Praia da Vitória, com regresso a Angra. À noite houve um jantar de encerramento no Hotel Angra.
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INVERNO E NATAL
“Três semanas antes do Natal, inverno geral.”
Lógico adágio fajãgrandense. Na realidade, celebrando-se o Natal, no Inverno e numa ilha frequentemente assolada pelo temporal, este adágio vem alertar para os cuidados a ter, a fim de se precaver do péssimo estado do tempo que antecede a festa do Nascimento de Jesus. Assim todos se poderiam preparar a tempo, sobretudo recolhendo dos campos o que necessitavam para a Ceia de Natal.
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RECORDANDO EMÍLIO PORTO
Todos os que lidaram de perto com ele, sobretudo nos últimos tempos, de certo que ainda se sentem atordoados com o seu repentino desaparecimento, com a sua morte súbita e inesperada. Emílio Porto faleceu, no passado dia doze, durante um ensaio do Grupo Coral das Lajes do Pico, por ele fundado em 1983, e do qual sempre foi maestro e o principal responsável pela organização de todas as suas actividades musicais. A sua morte deixou na maior apreensão e nostalgia a família, os seus amigos mais próximos e todos aqueles que, de perto ou de longe, com ele conviveram e trabalharam.
Conheci o Emílio Porto, quando em Setembro de 1960, demandei, pela primeira vez, o Seminário de Angra. Recordo-me de o ver assomar à janela do seu quarto, voltada para os “miúdos”, sempre sério e pensativo, a descer os degraus dos teólogos, a correr para a sala seis, a fim de chegar a tempo à aula de Teologia, a jogar voleibol no campo junto à cozinha, a percorrer as ruas de Angra, com passagem pelo pátio da Alfândega e, sobretudo, a reger, com mestria, elegância e emoção, a capela do Seminário. Frequentava o décimo primeiro ano e eu, o terceiro. As normas de um regulamento interno, rígido e rigoroso, impediam a comunicação diária entre os alunos das três prefeituras, quebrada apenas, nas manhãs de Natal, nos dias de Festa, nos ensaios do orfeão e pouco mais. Não era de muitas falas, nem se metia em graçolas ou brincadeiras com os mais pequenos. Tinha, no entanto, um ar alegre, prazenteiro, solene, digno, concentrado e trabalhador, revelando já dotes extraordinários e inexauríveis, a nível da formação musical.
Anos mais tarde, embora em tempos diferentes, cruzei-me com ele em São Caetano do Pico, substituindo-o, nas inúmeras actividades em que ele ali se envolvera e a que procurei dar continuidade e prosseguimento. Em São Caetano do Pico, Emílio Porto, para além de granjear o respeito, a consideração e a estima de toda a população, deixou uma obra notável. Dedicado à juventude, que acompanhava em todas as actividades e com quem se envolvia em todos os acontecimentos, com destaque especial para a música e também para o teatro, Emílio Porto fundou o boletim paroquial “Presença”, criou o Grupo Desportivo de São Caetano, tendo adquirido o terreno e construído dois campos para a prática do futebol, um nos Cabeços e outro na Terra do Pão, reestruturou a Tuna Musical da Terra do Pão, um e outro destinados sobretudo à ocupação dos jovens, renovou o Grupo Coral, e adequou as celebrações litúrgicas, de forma brilhante e digna, às reformas protagonizadas pelo Concílio Vaticano II. Dedicou os seus anos de trabalho naquela freguesia, ao serviço da comunidade e dos outros, nomeadamente, dos velhos, dos doentes e dos jovens. Se algo descuidou, foi em prol de si próprio, porquanto viveu, durante quatro anos, acompanhado familiares, em precárias e degradadas condições de habitabilidade.
Mais tarde serviu o exército português no ultramar, durante a guerra colonial, realizando duas comissões de serviço em Angola. A forma como o fez, estabelecendo a amizade como estandarte da guerra e a verdade como lema de vida, granjeou-lhe o respeito, a consideração e a estima de quantos com ele conviveram. A atestá-lo os variadíssimos testemunhos de quantos acompanhou naquelas missões e os encontros regulares que, passados quarenta anos, ainda mantinha com os seus camaradas de guerra.
A partir de então, perdi-lhe as pegadas. Sei, no entanto, que, quer como homem, quer como cidadão ou professor e ate como político, teve sempre um comportamento digno, nobre e exemplar, pautado por um empenhamento honesto, por uma competência fluente, por uma dignidade desmedida e por uma humildade transparente, que nem o Grau de Comendador, com que foi agraciado pelo presidente Jorge Sampaio em 2008, nem a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico que a Assembleia Regional dos Açores lhe atribuiu, haviam de desfazer.
Quis o destino que nos reencontrássemos, há uns anos, no Mucifal. A partir de, então, restabelecemos uma amizade recíproca, íntima, sã e enternecedora, a nível individual e familiar. Não apenas em encontros frequentes, que agora podíamos fruir, mas também no “Alto dos Cedros” e no “Pico da Vigia”, dia após dia, íamos fazendo deslizar memórias de um passado que, afinal, tinha muito em comum.
Na madrugada do passado dia doze, fui fulminado, com a notícia empírica e real da sua morte. Emílio Porto falecera na véspera, durante um ensaio do seu Grupo Coral. Nesse dia, algumas horas antes, havíamos conversado e programado a sua visita ao Norte do país e que ele próprio já anunciara através da Internet. Na noite do dia seguinte, eu havia de o ir esperar à estação de Campanhã, no Porto.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 23/04/12
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OS CARRINHOS DAS OVELHAS
Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, ainda havia quem criasse ovelhas à porta, fazendo-o, no entanto, em pequena quantidade, isto é, criava-se geralmente uma ou duas ovelhas juntamente com um carneiro e nada mais
O objectivo primordial desta minúscula criação de ovinos, em contraste com os grandes rebanhos de ovelhas que pastavam no mato, na chamada zona do concelho, e que eram recolhidas e tosquiadas apenas nos dias de “Fio”, era, regra geral, o de entretimento e ocupação das crianças que, assim, se iam habituando e preparando para, mais tarde, tratar e cuidar dos animais. Mas, por outro lado, a criação de ovídeos junto de casa também proporcionava a utilização, quer da lã, quer da carne, com uma maior regularidade. Na Fajã o leite de ovelha nunca foi utilizado na alimentação humana, a não ser em tempos muito recuados, destinando-se, naquela altura, exclusivamente, à alimentação das crias. Sendo assim eram as crianças que cuidavam e tratavam das ovelhas, trazendo-lhes comida dos campos ou levando-as a pastar em pequenos currais ou ainda amarrando-as à estaca, no “oitono”, neste caso em conjunto com as vacas que também aí estavam amarradas.
No entanto, muitos fajãgrandenses, retiravam outro provento da criação dos ovinos à porta, pois utilizavam as ovelhas ou, eventualmente, um carneiro, para puxar minúsculos carros, no transporte de cargas mais leves e pequenas, aliviando-se de trabalhos e canseiras, evitando serem eles próprios a acarretar esses carregamentos às próprias costas. Foi assim que nasceram os carrinhos das ovelhas, que, em tempos antigos, muito provavelmente, terão sido usados com muita mais frequência e em maior número.
Os carrinhos das ovelhas, puxados apenas por um só ovino, eram autênticas miniaturas dos carros de canguinha, puxados por uma vaca. Na realidade não era costume encangarem-se juntas de ovelhas, como se fazia, no caso das vacas ou dos bois. As ovelhas atrelavam-se sempre uma a uma e, por isso mesmo, os carros que elas puxavam, a canga que se lhes enfiava no pescoço e até os tamoeiros que as prendiam ao cabeçalho, tudo, mas mesmo tudo, era rigorosamente igual aos carros de canguinha, mas em ponto pequeno. Autênticas e verdadeiras miniaturas.
Com a tampa superior encastoada entre os dois cabeçalhos laterais, os carrinhos de ovelhas tinha as rodas mais simples, feitas geralmente duma peça única, enfiadas num eixo que encaixava nos “queicões”, presos ao tampo e com uma canga de canguinha muito semelhante às das vacas. Além disso, também tinham fueiros e sebe, embora esta, geralmente fosse feita com tábuas de madeira.
Mas as ovelhas não eram tão dóceis, nem tão obedientes, nem tinham tanta facilidade em aprender a trabalhar como as vacas. Eram mesmo umas desajeitadas. Daí que fosse preciso muito tempo e bastante paciência para as habituar à canga, tarefa que geralmente era confiada aos mais novos, mais pachorrentos, mais disponíveis, que assim se iam esquivando de acarretar os molhos às costas. Um carrinho de ovelhas transportava, muito à vontade, um grande molho de lenha ou de incensos, um pesado saco de batatas ou um grande cesto de inhames
Os carrinhos das ovelhas eram de fácil e simples fabrico, por isso qualquer habilidoso podia construí-los. Tinham a vantagem de serem utilizados quando se pretendia acarretar pequenas cargas, não o querendo fazer às costas. Além disso arrumavam-se facilmente, cabiam em qualquer caminho e se a ovelha “desse as couves” (1) o dono podia muito bem substituí-la, puxando o carro pelas suas próprias mãos.
Havia, no entanto, muitos homens na Fajã que diziam “não ter paciência para estas criancices”. Na realidade conduzir um carrinho de tão minúsculo tamanho, puxado por uma ovelha ou por um carneirinho, mais se assemelhava a uma brincadeira de criança do que propriamente a uma tarefa de adulto.
Confesso que tive a sorte, em criança de ter uma ovelha, mansa, meiga e que me seguia para todos os lados como se fosse um cãozinho. Era eu que ia buscar comida e lha dava, a levava a pastar ao Outeiro ou ao curral das Águas e lhe fazia a cama com feitos secos, mas nunca consegui, apesar de o pedir insistentemente, que meu pai me arranjasse um dos tais carrinhos.
(1) Na Fajã Grande dizia-se que um animal “dava as couves” quando ficava tão cansado e estafado que já não conseguia trabalhar mais.
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CRENDICES FAJÃGRANDENSES
Muitas eram as crenças ou crendices existentes entre a população da Fajã Grande, nos anos cinquenta. Tratava-se, naturalmente, de espécies de sentenças muito antigas, algumas trazidas muito possivelmente pelos primeiros povoadores e que se foram transmitindo de geração em geração. Aqui se recordo algumas, sendo que se trata apenas de meras citações de memória
“Atirar o dente de leite para cima do forno e dizer a oração – Maião, Maião, pega lá o meu dente podre e dá-me um são - tornava os dentes fortes e saudáveis.”
“Colocar o dente de leite, depois de extraído, debaixo do travesseiro, dava sorte.”
“Apontar uma estrela fazia nascer verrugas no dedo que apontasse.”
“Saltar por cima duma criança impedia-a de crescer.”
“As raparigas não deviam comer ovos de duas gemas, pois teriam gémeos.”
“Encontrar ou cruzar com um gato preto, na rua, dava azar.”
“Sol com chuva, casavam-se as viúvas”.
“Uma vassoura atrás da porta espantava as visitas.”
“Quando o arco-íris virasse de pernas para o ar seria o fim do mundo.”
“No ano dois mil acabava o mundo.”
“Não se devia cantar durante a Quaresma.”
“Comer salsa em jejum ajudava a desenvolver a memória.”
“Uma cruz feita em cima da massa do pão, acompanhada da oração – São João t’afermente e Santo Antonho t’acrescente – fazia levedar o pão mais depressa.”
“Sexta-feira 13 era dia de azar.”
“Agosto era mês de desgosto “.
“A língua do porco não se devia comer, devia ser oferecida pelas almas do purgatório”.
“Assobiar à meia-noite chamava o diabo.”
“Atirar sal para o lume espantava o azar.”
“Quem passasse por debaixo do arco-íris tornava-se mula-sem-cabeça.”
“Na Sexta-Feira Santa era bom comer funcho. Nossa Senhora também comera a caminho do Calvário.”
“Passar debaixo duma escada dava má sorte.”
“Quebrar um espelho, dava sete anos de azar.”
“As crianças que se portassem mal seriam assentadas no Boiceiro, uma cadeira com o fundo do assento repleto de pregos virados com o bico para cima.”
“Quem trabalhasse no primeiro dia do ano trabalhava todos os dias.”
“Era pecado cuspir depois de comungar.”
“Assistir à missa, confessar-se e comungar em nove sextas-feiras seguidas era garantia de não se morrer em pecado mortal.”
“Fazer uma cruz de cuspo no peito do pé melhorava o pé dorido.”
“Quando fazia relâmpagos deviam-se esconder ou tapar os espelhos.”
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JUNTAS DE BOIS
Na Fajã Grande, na década de cinquenta, havia poucas juntas de bois. A maioria dos agricultores, para puxar o carro, o corção ou o arado, utilizava vacas de leite ou gueixas alfeiras que eram criadas para mais tarde delas se fazerem vacas, substituindo as mais velhas que assim “eram emaladas” para Lisboa. Apenas quem dava dias para fora, ou seja quem ia lavrar as terras de outrem, sobretudo dos que não tinham gado ou queriam poupar as suas vacas para que dessem mais leite, tinha junta de bois, utilizando-a também, obviamente, para lavrar as suas próprias terras e fazer todos os outros serviços agrícolas e carregamento de todos os produtos, quer os que os campos produziam quer o estrume e o sargaço para adubar as colheitas.
Na Fajã Grande, apenas o Francisco Inácio e o Raulino Fragueiro tinham juntas de bois para trabalhar. Dos restantes agricultores, somente um ou outro tinha um e, muito raramente, dois touros, mas à engorda, isto é, fechados dia e noite no palheiro, poupados ao trabalho, às intempéries dos campos e aos dias de chuva e frio, alimentados com muita e boa comidinha para que, quando vendidos ou embarcados, pesassem muito e dessem bom dinheiro. Meu pai chegou a criar um boi nestas condições.
Quer o Francisco Inácio quer o Raulino Fragueiro, no entanto, tinham geralmente belas, valentes e bem tratadas juntas de bois. O Francisco Inácio tinha dois bois avermelhados e fuscos, de raça menos comum na ilha das Flores, mas muito mansos, bem tratados, com o pelo sedoso e luzidio e muito bem habituados à canga e ao trabalho. Dava dias para fora, sobretudo lavrando as terras daqueles que não tinham gado para o fazer. O mesmo acontecia com o Raulino Fragueiro, embora, neste caso, fossem os filhos que trabalhassem com os bois, também estes eram muito mansos e bem tratados, habituados ao trabalho, mas de raça “austina”, caracterizada pela cor lavrada de preto e branco. Num e noutro caso estes bois, depois de muitos anos de trabalho, também eram postos à engorda e embarcados ou vendidos para abate.
Estes bois de trabalho eram guardados permanentemente nos palheiros, excepto quando trabalhavam, pois assim estavam sempre disponíveis para qualquer tipo de trabalho que fosse solicitado aos seus donos, pois eram eles que realizavam a grande maioria das tarefas agrícolas: lavravam os terrenos para as sementeiras, carreavam as lenhas e os produtos agrícolas e puxavam o corsão. Eram geralmente estas juntas de bois que também acarretavam as mercadorias dos comerciantes, desde os Terreiros até à Fajã Grande, antes de ser aberta a estrada, chegando mesmo a levarem mercadorias da Fajã para as Lajes, nos dias em que o Carvalho fazia serviço no porto da Fajã Grande. Por vezes, também eram contratados para acarretar lenha para quem necessitasse dela e não tivesse meios de o fazer e até acarretavam pedras e outro material para construção de casas. Eram uma espécie de assalariados rurais, estas juntas de bois,
Em ambos os casos estes bois eram animais muito mansos e pachorrentos, conhecendo bem o dono, que os tratava pelos seus nomes que eles conheciam e que, na Fajã Grande, geralmente, eram: Damasco, Gigante, Trigueiro e Lavrado. Os donos conduziam-nos com uma aguilhada, cuidavam e tratavam muito bem deles, limpando-os e enfeitando-os com ponteiras de metal nos chifres e campainhas de meia laranja e afinados sons penduradas ao pescoço, com “estrape” e fivela. A campainha com o som mais baixo devia ser usada pelo boi que trabalhava pela esquerda e a de som mais agudo, no do lado direito, sendo que as fivelas deviam ficar sempre do lado de fora. Os bois conheciam muito bem o seu dono, o lado em que eram encangados, assim como os caminhos em que circulavam e as propriedades que trabalhavam. Além disso, lavravam sem ninguém diante, obedecendo e respeitando as ordens e orientações do dono que falava com eles como se fossem pessoas e companheiros de j
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FESTA DA ASSUNÇÃO EM SÃO CAETANO DO PICO
Com o mar a estender-se-lhe em frente e a assumir-se como tapete natural, de um azul aveludado, tingido de bruma e, aqui e além, a salpicar-se de espuma e maresia, e com a montanha atrás, como baluarte de sonhos, de emoções mas também como enigma duma rusticidade evolutiva e retumbante, a freguesia de São Caetano já mais se esquiva à celebração do 15 de Agosto – A Senhora da Assunção. É verdade que a confirmar-se o dogma, estabelecido para clarear o mistério, a Senhora que se assumiu ao Céu em corpo e alma não se arroga, na sua plenitude aparentemente mais convencional, o estatuto de padroeira, que o orago da freguesia desde os primórdios do povoamento da ilha e por influência de colonos italianos, foi, incondicionalmente, atribuído ao Santo que lhe deu nome. Na verdade é crença comum, talvez com ornamentos lendários, que os primeiros colonizadores desta zona situada numa das maiores baías do Sul do Pico, seriam muito devotos de São Caetano, sacerdote de Vicenza, Itália, pelo que o elegeram como padroeiro da localidade, dando, mais tarde, nome à freguesia. Mas com o rodar do tempo e o passar dos séculos, com imposições não litúrgicas e muito menos não teológicas, a festividade da Senhora da Assunção sobrepôs-se à de São Caetano, apagando-a, enfraquecendo-a, quase mesmo a eclipsá-la, ombreando, no entanto, lado a lado com a do Espirito Santo, esta aureolada com costumes e tradições ancestrais, muito sui géneris, e acabou por tornar-se uma espécie de “ex-libris” da freguesia, uma jactância paradigmática e fulgurante, um folguedo religioso, mas amedrontado e retumbante, a marulhar num quotidiano estático e quiescente, em que a freguesia se enraizou e onde floresce.
E a festa mais uma vez desabrocha, na sua simplicidade genuína e pura, sem grandes euforias ou alaridos, anunciada pelos toques tímidos e hesitantes dos sinos. É a festa constituir-se numa espécie de solenidade não solene, causticada, este ano, por intempéries climatéricas, ventos e chuvas que cerceiam o giro habitual da procissão e impedem a “Recreio dos Pastores de São João” de atirar aos quatro ventos os seus acordes, devidamente ensaiados e preparados. Com ela vai-se uma parte do povo, os menos fiéis, os pouco arreigados em costumes e tradições
A chuva tem o condão de alegrar os campos ressequidos mas também de reduzir o percurso processional e alagar os santos, a isto puco habituados. É o descalabro festivo, o desmoronar-se de um projecto, é verdade que ocasional e pouco duradouro, mas emoldurado no sonho sombrio e constante, mas mais uma vez frustrado, de se fazer este ano mais e melhor do que no ano transacto. Acresce à frustração do extermínio festivo, a despedida do pároco – Paulo Areias - que agora se vai entrincheirar em acções pastorais, em terras distantes, no norte da Alemanha, paredes meias com a Bélgica. A substituição implicará, no mínimo, “dois ramos de flores”. E havia de acontecer logo em plena crise.
E no silêncio de uma tarde sem acordes musicais, apenas os choros infantis do Samuel ao sentir sobre a nuca a gélida água lustral ecoaram pelas encostas da montanha silenciosa e coberta de um nevoeiro peçonhento e incomodativo, quebraram o estigma da desolação. O próprio reboliço das favas, dos caranguejos, das bifanas de albacora a solicitarem o sabor do mosto já fermentado de um tinto nascido de entre estas pedras negras e perfumado com o enxofre deste magma basáltico, num cubículo para tal talhado, ali ao lado, se perde entre lamentos de deslumbramento e frustração:
- Este tempo deu-nos cabo da festa!
- Não admira, aqui em São Caetano e por todo o Pico, Agosto é o primeiro mês do Inverno!
Texto publicado no Pico da Vigia, em 15/08/12
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CONSISTENTE
MENU 21 – “CONSISTENTE”
ENTRADA
Fettuccine cozido em caldo de legumes, borrifado com mel
Nozes embebidas em creme de queijo fresco com ervas aromáticas
e polvilhado com queijo parmesão ralado
PRATO
Migas de brócolos e feijão verde salteadas em azeite e alho e temperadas com vinagre
Salsicha de soja grelhada recheada com queijo creme fresco, simples e polvilhada com salsa e ervas aromáticas
Tiras de pimento
SOBREMESA
Pera e geleia de ananás.
Preparação da Entrada:
Cozer a massa num pouco de caldo dos brócolos ou outro. Ainda bem quente borrifá-lo com uma colher de mel e misturar. Coloca-lo no prato ladeado por pedaços de nozes, passadas pelo queijo creme. Polvilhar com queijo parmesão ralado
Preparação do Prato:
Separar os o feijão verde e os brócolos em raminhos, lavá-los e cozê-los em água a ferver temperada com alho, durante cerca de 10 minutos. Escorrer e temperar com um pouco de vinagre, esmagar bem e reservar. Cortar pedacinhos de miolo de pão e escaldá-los com água de cozer os brócolos, a ferver. Deixar absorver a água.
Descascar e esborrachar os dentes de alho e salteá-los num tacho com o azeite. Juntar o pão, previamente espremido e os brócolos esmagados e misturar de forma homogénea.
Grelhar a salsicha aberta, barrá-la com o queijo creme e ornar com tiras de bróculos.
Preparação da sobremesa:
Tradicional.
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O DESCANSADOURO DO BATEL
O descansadouro do Batel era, de todos os descansadouros existentes na Fajã Grande, na década de cinquenta, o que se situava num local de maior beleza e de mais plena graciosidade. Na realidade do local onde aquele descansadouro se situava, desfrutava-se de uma das mais belas vistas sobre a Fajã Grande, dado que se encastoava num lugar alto, sobranceiro ao Alagoeiro, a grande parte da freguesia, ao mar e a toda a orla marítima e ainda a uma grande parte da zona além do povoado, desde a Ribeira das Casas até à Rocha da Ponta e à das Covas. Tinha pois o descansadouro do Batel um posicionamento privilegiado, invejável, uma colocação, paisagisticamente, fabulosa, perfilando-se altivo e ufano, sobre quase toda a área da Fajã Grande, com a rocha escabrosa e imponente a servir-lhe de tapume e protecção, com o Monchique e a Baixa Rasa, lá ao fundo, no alto mar e com a extraordinária e rendilhada orla costeira, onde proliferavam baías, caneiros e enseadas, desenhados sobre o baixio negro e lávico, com rendilhados de todas as formas e feitios, transformando-o numa espécie de ex-libris de todos os descansadouro fajãgrandenses.
Este descansadouro situava-se no cimo da ladeira do Batel, no cruzamento com uma canada que ligava o Batel à Bandeja, num sítio de relvas e de algumas terras de cultivo de milho, de forrageiras e de batata-doce, o que, consequentemente, não dificultava nem obstruía a possibilidade de quem ali se sentasse para descansar, para conversar, para fumar um cigarro, desfruísse da paisagem de sonho e de magia que dali era possível observar.
Na realidade, estrategicamente bem localizado, no alto de uma encosta, no cimo duma ladeira e num sítio bastante alto e largo, onde se iniciava uma canada que dava para a Bandeja, o descansadouro do Batel fora edificado pelos nossos antepassados, sabia-se lá há quantos anos. Mas tratava-se de um descansadouro maravilhosamente belo, enigmático, um espaço rectangular, apenas com uma parede a Sul, junto à qual havia sido construída, através dos tempos, uma ampla bancada feita de pedras soltas, encostadas e encavalitadas umas nas outras. Os homens que ali se sentavam a descansar, quando carregados com molhos, cestos ou sacos, colocavam-nos sobre as paredes do caminho circundante, precisamente do lado em frente ao do descansadouro. Muitos, porém, colocavam os seus carregamentos sobre a própria parede que servia de abrigo ao descansadouro. No entanto, se o vento soprasse de Norte ou de Oeste era praticamente impossível utilizar aquele local para descansar.
O descansadouro do Batel servia os homens que vinham de todas as terras do Sul, na direcção do Alagoeiro e da Fontinha, nomeadamente, Lavadouros, Alagoinha, Mateus Pires. Paus Brancos, Pico Agudo, Pocestinho, Escada Mar e ainda os que vinham da Rocha dos Paus Brancos e do cabeço da Rocha.
Como praticamente todos os outros descansadouros da Fajã, este, actualmente, também se perdeu no tempo e talvez mesmo nas memórias. Dada a sua especificidade e, sobretudo, tendo em conta a vista de que usufruía, poderia muito bem ter sido preservado ou recuperado, mantendo-se, assim, como uma espécie de miradouro, mas também e sobretudo, como testemunho vivo e verdadeiro dos trabalhos, das canseiras, dos carregamentos, dos sacrifícios de todos os nossos antepassados que outrora ali se sentavam a descansar, a conversar, a fumar e, quando tinham disposição e o cansaço lhes permitia, a observar a vista maravilhosa que dali realmente ainda hoje se desfruta.
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O AEIOU DE OUTROS TEMPOS
Muitos dos nossos antepassados e uma boa parte das pessoas que na nossa infância eram de avançada idade, na Fajã Grande, por alturas dos anos cinquenta, sabiam ler e escrever, sendo que alguns deles até liam em voz alta, com alguma qualidade, acentuado rigor e boa dicção e escreviam, sem erros e com excelente caligrafia. No entanto, a maioria não tinha chegado sequer a fazer o exame final. É que este, na altura, correspondendo à antiga terceira classe e ao actual terceiro ano de escolaridade, só poderia ser realizado em Santa Cruz, a maior e mais importante vila da ilha das Flores, naqueles tempos. Apenas lá existiam as estruturas necessárias e adequada e o júri competente e capaz de presidir e realizar tão importante acto, confirmativo da qualidade das aprendizagens efectuadas e das competências adquiridas, pelos alunos, nas escolas das suas freguesias. Assim, nas últimas décadas do século XIX, bem como nas primeiras do século passado, estava interdito à maioria das crianças da Fajã Grande, apesar de devidamente preparadas e com a devida capacidade, realizar o exame final. Para além das despesas que implicava uma estadia tão prolongada em Santa Cruz, a pagar comida e cama a uma criança e a um acompanhante adulto, eram quatro dias de trabalho que se perdiam: dois para realizar os exames, um escrito e outro oral e, outros tantos dias, para as viagens de ida e volta. Assim, as crianças ficavam com as competências, com a sabedoria, com as aprendizagens adquiridas, mas sem o exame, o qual, bem vistas as coisas e para a maioria dos pais, até de muito pouco ou de nada servia.
Muitos conhecimentos e muita sabedoria nos transmitiram os nossos antepassados. Não apenas a adquirida nas aprendizagens escolares mas sobretudo aquela que foi aprendida com trabalho, ou seja, aquela que foi adquirida com a experiência ao longo da vida. E foi sobretudo essa sabedoria e esses conhecimentos, que eles nos transmitiram.
Das aprendizagens, ficaram retalhos interessantes como aquela cantilena com que, na primeira classe, aprendiam e decoravam o AEIOU e que tantas vezes, quando éramos crianças, eles nos repetiam:
“A mãezinha leva já. A,
Belo leite com café, E,
P’ra merenda da Lilí, I,
Que está em casa da avó, O,
A Brincar com a Lulu, U.
A E I O U”.
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ADDENDUM (O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR J. MACHADO LOURENÇO – AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU)
POR ONÉSIMO ALMEIDA
Não era preciso ser adivinho para prever o que iria acontecer com esta homenagem. Decidi enviar o texto a três dúzias de amigos e antigos colegas, hoje espalhados pelo mundo, e ele despoletou uma cadeia de reacções carregadas de afecto por esse nosso antigo professor, e trazendo-me estórias adicionais. Outras foram-me contadas na minha passagem por Angra, aquando da sessão de homenagem do IAC, bem como no dia seguinte, em Ponta Delgada, num encontro de colegas do meu curso que resolveram assinalar com um convívio os cinquenta anos da nossa entrada para o Seminário Menor naquela cidade, em 1958. Tendo sabido da sessão em Angra, pediram-me que relatasse o que ali se passara e recontasse algumas das estórias que contara na minha intervenção. Obviamente que choveram as lembranças de cada um e o carinho pela pessoa do Monsenhor Lourenço ficou refrão na corrente de sentimento dessa noite de nostálgica alegria.
De Lisboa, onde trabalha na comunicação social, um e-mail do cónego António Rego como que deu o mote: “Fui transportado a um mundo fantástico”, revelando o quanto aqueles idos anos sessenta pertencem a um passado que não só é de outro século como de outro milénio. Optei por, além das estórias novas, reproduzir as passagens que ao Monsenhor se referem pois isso dará uma dimensão mais representativa e alargada da justeza desta homenagem do IAC.
Da sua actuante livraria Culsete, em Setúbal, Manuel Pereira de Medeiros enviou-me um e-mail que, não sendo exactamente sobre o Monsenhor Lourenço, ajuda a criar um enquadramento importante, desenhando uma espécie de contexto temporalizado que permitirá ao leitor compreender melhor a auréola mítica que envolve estes anos 60 (no caso, também ainda fim da década de 50) nuns Açores remotamente isolados do mundo:
Marcou muito o meu curso. O tal curso que marcou muita coisa, como ainda agora foi possível perceber na reunião de 15 de Junho p.p.. Regressado à Terceira estávamos no 5.º ano, fôramos os primeiros alunos de Coelho de Sousa em Português no 3.º e 4.º. No 5.º Português, Inglês e História com Mons. Lourenço. Antes de no 6.º a Literatura com o Cónego José Augusto Pereira. E também no 6.º Filosofia com José Enes e Grego com Cunha de Oliveira. Vês a sequência e a sorte? Percebes o que de mim veio a mim desta sequência? Há mais. Especialmente Simão Bettencourt, de difícil intimidade mas comigo desde o primeiro ano até à sua morte uma grande e riquíssima amizade.
Tenho que ter mão em mim para não encher a tua caixa de correio!!
Vê lá se não há na tua memória atribuída a Mons. Lourenço alguma piada que já andava no ar das aulas n.º 4, 3 ou 10 antes de lá ele entrar...
Do Carlos Sousa, antigo Chefe dos Serviços de Emprego nos Açores e director do muito conhecido grupo musical Belaurora:
Mal recebi o teu e-mail, abri imediatamente o texto e li-o com sofreguidão. Acabei com lágrimas nos olhos. De alegria e de comoção. Bendita a hora em que se lembraram de Monsenhor Lourenço, para o homenagear. […] Também em mim, Monsenhor deixou gravados indelevelmente pedaços de sabedoria, (a pouquinha que tenho foi somatório do tanto que daquele tempo ficou). E, como "a memória é a faculdade de esquecer", espero que em mim só se apaguem no ponto final da vida.
O Januário Pacheco, que durante muitos anos leccionou no Luxemburgo, reagiu num e-mail, enviado creio que de Lisboa:
[…] Tenho muitas saudades do Mons. Lourenço e tenho muita pena de não ter fixado muitos dos seus ditos e anedotas cheias de humor e de sabedoria, como dizes. Nas férias ia muito a casa dele. Era muito simples, acolhedor para todos os vizinhos e familiares. Estou a vê-lo sentado, a saborear o seu cachimbo, entre os seus livros desarrumados. Depois, os afazeres e a revolução fizeram esquecer o muito que o Monsenhor dizia e sabia. Foi pena.
[…] O seu modo de estar com todos, e os pequenos factos que contas no texto definem a sua personalidade melhor do que tudo. E era uma pena as novas gerações ficarem sem os conhecer. Depois de assim escritas e relembradas, vão perdurar.
Até pensei ir à Terceira também para assistir as essas homenagens. Ainda não sei se vou. Vamos ver.
De um e-mail do Nuno Álvares Vieira, que na sua aposentação lecciona no Stonehill College em Massachusetts, e de quem já citara no meu texto um e-mail anterior, retiro a seguinte passagem:
Ainda a respeito do Monsenhor, uma coisa que aprendi dele foi "a arte de se poder falar positivamente de alguém, mesmo quando não haja muito de positivo para se dizer". Sabes onde aprendi isso? Através das recensões que ele fazia de livros na Atlântida. Sem escrever nada de negativo, dava margem suficiente para o leitor se aperceber do calibre de obras de menos qualidade. Assim era a índole bondosa e carinhosa do velho Monsenhor.
O José Luis da Costa Rodrigues, antigo professor de música e maestro de coro num Liceu de Genebra, Suiça, conta:
O Mons. Lourenço interrogava um aluno. Como este não soubesse nada, a chamada consistia em perguntas do Monsenhor. O aluno levantava a cabeça para ouvir a questão, olhava para o livro, levantava a cabeça e saía com o que tinha lido. Nova pergunta mesmo procedimento. A todas as interrogações era um mergulho no livro e uma cabeça que se levantava com uma resposta ao lado. Para acabar com o manejo o Mons. pergunta ao aluno: - Sabe o que tem de comum uma galinha e um aluno que não estuda as suas lições? – Mmm... - Os dois aplicam a palavra do Salmo: De torrente in via bibet, propterea exaltabit caput. Consulta feita: último versículo do Salmo 109.
Na sua gramática inglesa o Monsenhor Lourenço alternava regras em português e regras em inglês. As primeiras destinadas aos alunos do primeiro ano de inglês eram ditas as regras para os "menores de 18 anos" (alusão à proibição de certos filmes aos menores de 18 anos). No segundo ano era abolida essa proibição; daqui em diante tínhamos acesso às regras em inglês como quem pode ver todos os filmes graúdos...
No refeitório dos "superiores" não sei se o Padre Coelho, o Dr. Cunha, ou o Dr. Enes, um deles, tinha feito um poema que só falava em cruzes. O autor pergunta ao Monsenhor: O que pensa do meu poema? - Penso que estamos diante de um cemitério...
[…] temos todos muitas recordações do Mons. Lourenço cujo humor era contínuo mas sem ofender.
Artur Goulart, antigo Director do Museu de Évora, bem como antigo Chefe de Redacção de A União, partilhou comigo um importante dado para se conhecer melhor o que se passou num período particularmente duro da vida cultural angrense:
[…] uma bela homenagem [a uma pessoa] de quem tenho óptimas recordações, embora o não tenha querido acompanhar n' A União quando ele foi nomeado director. Achei que me devia solidarizar com o dr. Cunha de Oliveira e, pese embora o pendor humanístico e honesto do Monsenhor, a abertura a outros ventos não se compadecia. Apesar disso, sempre tivemos excelentes relações, como professor, como colega (?), grande companheiro de bridge, de humor fino e inteligente, de inúmeras histórias dos orientes. […] Julgo que também é dele a dos "quatro reis de Israel, que eram três, Esaú e Jacob". E aquela belíssima em latim, que procurei ontem nos meus papéis e não encontrei, referente aos cónegos, e que ele contava mesmo depois de ter sido nomeado tal, que deves conhecer e que acaba por afirmar, uma vez que basta um cónego para constituir um Cabido, que "quanto menor é o número, maior é a besta". Tem piada é em latim.
Do Urbano Bettencourt, poeta e professor na Universidade dos Açores, chegou-me o seguinte:
[… o teu] contributo para o perfil de JMLourenço, uma espécie de retrato em composição avulsa ou fragmentária, que dá conta de um homem cujo mundo, aparentemente, não era daquele reino sorumbático e pesadão do Seminário. O teu elenco é bastante vasto, afinal tiveste-o como professor em três disciplinas. Só o tive em Inglês, para mais naquela idade idiota dos 13-15 anos, mas lendo o teu texto lembrei-me de dois comentários dele. O primeiro possivelmente terá ocorrido também contigo, pois deves ter estudado Inglês pelo mesmo livro ...azul : quando estudávamos o humor de Three men in a boat, de Jerome K. Jerome, ele "dava-se ao trabalho" de traduzir para português... o nome do autor, Jerónimo Kapa Jerónimo, acrescentando logo: quem capa um capa dois.
Numa aula em que andávamos a contas com o "My bonnie is over the ocean / My bonnie is over the sea", um dos meus colegas, já não sei qual, foi encarregado de ler e talvez levado pela pronúncia de "ocean" foi no balanço e, em vez de "over the sea", leu "over the she". Comentário imediato de Monsenhor Lourenço: "Ora, ora, em cima dela não!"
Tanto um como outro comentário eram coisas altamente improváveis de serem ditas numa aula "eclesiástica" naquela primeira metade dos anos 60. Mas acho que me têm servido também de modelo para algumas "quebras" inesperadas no ambiente das aulas.
João Esaú Dinis, que foi Director da Escola Superior de Tecnologia de Saúde de Lisboa, acrescentou esta estória:
Dele retive o caso de, no Concílio de Mâcon, se ter discutido, duvidado ou, pior, afirmado que as mulheres não teriam alma. Face ao desconforto da história, lá foi [o Monsenhor] explicando: “Pois, os padres da Igreja, num intervalo das sessões, enquanto passeavam para trás e para a frente, pelos corredores, terão comentado entre si do seguinte modo: “Pela maneira como tentam o homem, até parece que as mulheres não têm alma como nós”.
E com tal amenidade, parecia incólume a infalibilidade conciliar.
De Brampton, Canadá, o Eduardo San-Bento Couto, depois de um e-mail apressado, enviou-me no dia seguinte um outro, comovente, em que acrescenta mais algumas estórias pessoais, de diálogos tidos com o Monsenhor Lourenço:
Ontem, a compreensão foi resultado de velocidade de leitura; hoje, foi de meditação. Chorei sem querer, tal a realidade presente dos ditos e situações. Embora tu e eu não compartilhássemos da maioria das aulas com Mons. Lourenço, revi-me em quase tudo o que testemunhaste.
Mas, porque penso que este é o tempo oportuno, ou nunca o será, aqui vão alguns aspectos do Monsenhor, os quais me tocaram e sobre os quais, como tu, ainda reflicto frequentemente:
1. O seu pasmo perante a pluralidade e relatividades das religiões.
Visitei o Oriente pela primeira vez em 1972; ainda estava bem viva em mim a experiência das vivências de Mons. por aquelas paragens. E então percebi o significado da sua luta romana monolítica perante o monolitismo hindu e budista, e respectivo pragmatismo.
Assim me respondera Mons. com seu algo de sarcasmo perante a minha procura gélida da veracidade:
«Senhor Couto, o baptismo não faz mal a ninguém do mesmo modo como não faz mal o banho da vaca santa ou a refeição nirvânica da última hora» ; respeitar as três visões é um investimento seguro sem consequências negativas».
Aquilo escandalizou-me, embora no fundo tivesse gostado muito da resposta.
2. O seu entendimento profundo dos símbolos religiosos. Repara nesta:
«Senhor Couto, o que é mais fácil de aceitar? Comer e beber Deus ou lavar-me na urina de uma vaca? A última é muito mais simples e menos horripilante».
3. O cuidado com que lidava com excepções. (Método científico aplicado à pedagogia).
Como eu nunca senti que tivesse liberdade de ter notas baixas, lá ia tentando também exceder-me no inglês.
Nota frequente do Mons. no papel dos 'exercícios': «17 valores. Tudo certo. Deves ter copiado.»
No princípio, eu ripostava; mas Mons. respondia-me: «Não ligues a isso; 17 significa tudo certo; e se copiaste, tanto melhor para ti».
Outros teriam aberto um inquérito...
Onésimo, desculpa-me o arrazoado. Mas és o culpado porque me fizeste reviver coisas bonitas em fim de ano.
Vários outros e-mails me chegaram dos mais diversos pontos do globo. Recordo, com receio de esquecer nomes, os de Manuel Quaresma (professor na Catholic University of America, Washington, DC ), Olegário Paz (que durante décadas leccionou em Lisboa), António da Silva Cordeiro (antigo professor no Seminário, há décadas residente em New Jersey, EUA), Octávio Ribeiro de Medeiros (Vigário Episcopal e professor na Universidade dos Açores), Gualter Dâmaso (da Açortravel), José Gabriel Ávila (ex-RTP-Açores e bloguista), todos em Ponta Delgada, e Afonso Carlos Rocha (Reims, França) . O jorgense José Manuel Melo (gerente bancário aposentado, também em Ponta Delgada), evocou o seu “antigo e sempre recordado professor”, acrescentando que numa festa de S. Tomás de Aquino foi declamador de um poema de Mons. Machado Lourenço – “’Ao Anjo das Escolas’ – escrito de pronto para o acontecimento” . De Toronto, o José Carlos Rodrigues, advogado e antigo maestro do Orfeão Edmundo Oliveira, de Ponta Delgada, fez também uma emocionada evocação de J. Machado Lourenço num e-mail que por acidente perdi. De Oakland, Califórnia, uma carta do Fr. Joe Ferreira refere a memória benquista do saudoso Mons. Lourenço, de quem guardo as melhores recordações, sobretudo pelo incentivo que me dispensou nas minhas inclinações jornalísticas”.
Um autêntico gentleman, bondoso e com um fino senso de humor. Tive sempre por ele a mais profunda admiração.
Na sequência da longa conversa com o Heriberto Brasil, pedi-lhe que passasse à escrita as estórias que me contou. Fez o favor de aceder ao meu pedido e, de um e-mail seu, seu extraio as que se seguem:
Quando Monsenhor Lourenço chegava à sala de aula, após a oração inicial (Hail Mary, full of grace…), ia-se sentando vagarosamente. Era o momento esperado ansiosamente pela turma porque, geralmente, saía estória ou dito humorístico.
As estórias ou ditos que se se seguem foram contados por ele no início de algumas aulas.
Certa vez, estavam Monsenhor Lourenço e o Sr. Cónego Jeremias Simões a pescar no porto das Cinco Ribeiras. Nisto, o Sr. Cónego Jeremias sente uma “ferrada” no anzol e levanta o caniço com tanta violência que o peixinho, que vinha mal preso, desprendeu-se e caiu ao mar.
O Sr. Cónego Jeremias, entre o entusiasmo e a frustração, volta-se para o Monsenhor Lourenço e exclama:
- Viu! Viu!
Ao que o Monsenhor respondeu:
- Vi, vi, o seu caniço vir sem nada para cima!
O Cónego Jeremias não achou piada nenhuma, enquanto o Monsenhor se fartava de rir.
Depois que o Senhor Padre Roberto, pároco de Santa Bárbara, herdou (de forma considerada um tanto ou quanto manhosa) os bens do Senhor Padre Joaquim, pároco de São Bartolomeu – caso que estava sendo muito comentado – Monsenhor Lourenço despeja esta, com um sorrisinho de malícia:
- Ora, ora. O Pe. Roberto herdou o Pe. Joaquim. Mas a mim na’m’herda [nada]!
Certo dia, após o momento de humor inicial, levámos muito tempo para serenar e estávamos a pisar o risco.
Logo o Monsenhor Lourenço admoestou:
- Ora, ora. Eu gosto de contar estas coisas para criar um ambiente alegre. Mas depois quero toda a gente em silêncio e com atenção. Porque eu já tenho dito que dou um nove a rir, um oito a rir muito e um sete a chorar de rir.
Numa certa aula, dissertando sobre o comportamento que devíamos ter quando fôssemos padres, afirmou:
- Sim, porque havia um indivíduo que costumava dizer: “Há uma classe de pessoas que só merece pancadas. É a classe que usa saias – mulheres e padres”.
E acrescentou:
- E olhem que tinha certa razão!
Uma das estórias que contou, do seu inesquecível Oriente, foi esta:
- Eu fui acompanhar o Dom José da Costa Nunes, como secretário dele, numa das suas visitas a uma diocese sufragânea de Goa. Como estava um calor insuportável, o Dom José não levava calças por debaixo da batina. Íamos numa carroça. De repente, o cavalo dá uma guinada e o Dom José cai de costas, no fundo da carroça, ficando a espernear, sem calças.
E ria muito, recordando o ridículo da situação.
O Padre Cipriano Franco lembrava-se de uma narrativa que o Monsenhor fizera do naufrágio de um barco em que viajava. A grande maioria dos passageiros saltou para a água, mas José Machado Lourenço não. E justificava-se:
- Se hei-de ir acabar na água, ela que venha ter comigo!
O Carlos Joaquim Fagundes, há décadas a leccionar no Norte de Portugal (Paredes), enviou-me um longo e-mail com estórias adicionais, que alguma delas indesculpavelmente eu omitira. Ele escreve:
Recordo-me praticamente de tudo o que referes na tua alocução, excepto daquele do D. Pedro V, em que sou protagonista. Lembro-me sim uma aula de História da Igreja, em que ele abordou o papado de Alexandre VI. Eu lera na Biblioteca (infelizmente ia lá poucas vezes, mas para tal também não era motivado), algo sobre esse período, e perguntei-lhe: - Monsenhor, não nos vai falar do “Baile das Castanhas”? Ele sorriu muito simpaticamente, como era seu hábito e respondeu: - Bem, isso fica para a aula de Ballet. – e continuou a lição.
Entre os célebres silogismos dele, lembro-me de um outro que não referes: “A água mata a sede; o peixe salgado tem água, logo… o peixe salgado mata a sede.”
Era também muito frequente nele, perante qualquer postulado não aceitável, a expressão “ ou isto ou aquilo é assim ou então a lógica é uma batata”. Frequentemente, perante uma negativa que alguém tinha ou por outra qualquer contrariedade que lhe era referida, ele tentava acalmar o sofredor, com este dito: - “A meu pai nunca morreu nenhuma vaca. Ele não as tinha.”
Uma questão de “alta metafísica” que ele levantava muitas vezes, era a do “ovo”: - “Uma galinha põe um ovo no Pico. O ovo vem para a Terceira onde nasce o pinto. Donde é natural o pinto? Do Pico ou da Terceira? Creio que se referia a isto porque ele próprio ou alguém da família dele fora concebido no Pico e nascera na Terceira.
Deves recordar-te de um outro episódio muito interessante. Antes da aula começar, ficávamos todos em pé. Ele rezava, em Inglês, a Ave Maria e nós, em coro, retorquíamos com a Santa Maria, também em Inglês. No fim ele dizia: Mother of God. Nós respondíamos: - Pray for us. Só então o Monsenhor dizia: Sit down, please! e nós sentávamo-nos de imediato. Certo dia, o Monsenhor esqueceu-se da invocação à Mãe de Deus e, a seguir à Ave-Maria, disse Sit down, please! Todos nós permanecemos em silêncio, excepto o José Maria Bettencourt, que estava distraído e muito convicto, retorquiu: - Pray for us. - Amen. – respondeu Monsenhor com uma tranquilidade e uma simpatia desusadas.
Também me lembro que contava muitas histórias do padre Himalaia, das suas experiências e invenções. Numa outra aula alguém estava a mascar chiclet. O Monsenhor muito sério e sempre a olhar para o livro assim que teve oportunidade, com voz indecisa como quem não sabia ler: - “… mascando… mascaaaaannnnnndo… Ah! Mas quando….” (e continuou serenamente a leitura).
Certo dia saiu-se com esta: - O sacristão da minha freguesia tem ideias muito avançadas sobre a Eucaristia.” Alguém lhe perguntou “porquê” e o Monsenhor respondeu: - Então não é que o outro dia eu ia celebrar missa e tinha-se acabado o vinho. Eu perguntei-lhe: - Então e agora? Como vai ser? Ao que ele respondeu: - Não há problema. Vou ali ao botequim do Mendes e trago-lhe um copo de bagaço.”
Era de facto uma simpatia e confesso que tive sempre uma enorme admiração por ele, sobretudo pela sua cultura e pelos seus dotes literários.
No final da sessão no IAC, o Padre João de Brito Carmo, que tem dedicado tanto do seu tempo ao estudo do folclore terceirense, lembrou-me uma história que se tornara, aliás, proverbial entre nós. Numa aula de inglês, o Monsenhor fazia exercícios de retroversão com os alunos do seu curso. Pediu então ao hoje Padre José Constância que traduzisse para inglês a frase: Eu amo-o. O Constância avançou: I love… mas, titubeante, estacou. O Monsenhor insistiu no complemento directo: Eu amo-O! E o Constância: I love… you.
O Monsenhor: - A mim não que já estou muito velho!
No referido encontro em Ponta Delgada, o José Adriano Borges Carvalho, advogado na Praia da Vitória, recordou uma que também se tornou famosa. Era comum o Monsenhor pedir que enunciássemos os verbos, sobretudo os irregulares: - To be? - To be - was - been. - To do? - To do - did – done. - To go? - To go - went - gone. - To set? - To set - set - set. De uma vez, voltou-se para um aluno e pediu-lhe a enunciação do verbo to put. O aluno, reflectindo a nossa dificuldade em pronunciar o u suave, exagerou e pronunciou algo como To pât – pât –pât.
O Monsenhor corrigiu: - Não tenha medo de dizer put, que em inglês não quer dizer nada!
O José Francisco Costa, professor no Bristol Community College, em Fall River, onde dirige o LusoCentro, recordou a hilariante cena do Monsenhor Lourenço numa aula em que lhe vimos sair fumo do peito. Tinha posto na algibeira do casaco o cachimbo, seu companheiro habitual, mas sem estar completamente apagado. O José Costa fez entretanto acompanhar a evocação desse divertido episódio de um poema que aproveitarei para fechar este memorial como mandam as regras – isto é, com chave de ouro -, se bem que naturalmente ainda muitas outras lembranças e estórias vão surgir à medida que esta homenagem for chegando ao conhecimento de outros antigos alunos . Eis então o poema:
Naquele meu tempo, “Monsenhor”
só rimava com “Lourenço”.
Sábio. Terno. Avô universal,
a mim em tanto tão igual
que até fumava de um cachimbo que, um dia,
em plena aula, se reacendeu por dentro do casaco…
E ficou-me, indelével imagem,
um rosto de serenidade,
perfil de natureza humilde,
olhar inclinado entre a terra e o céu.
Sem pressa para viver mais,
ou acabar os dias mais cedo.
Monsenhor Lourenço, mestre
de quem aprendi a maior lição:
saborear a memória dos que me ensinam a vida.
(Em “Matinas”, depois de ler as “Laudes” do Onésimo)
Onésimo Teotónio Almeida
Providence, Rhode Island 31 de Dezembro de 2008
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O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR J. MACHADO LOURENÇO – AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU
POR ONÉSIMO ALMEIDA
Começarei esta minha intervenção expressando o prazer muito especial que para mim foi receber este convite. Poderá parecer estranho se lhes disser que não gosto muito de escrever. Costumo mesmo dizer que gosto sim é de ter coisas escritas. Mas quando me chegou este convite do IAC aceitei-o com júbilo. Na verdade, há muito que pensara registar por escrito as estórias do Monsenhor Lourenço fazendo-lhe assim a minha homenagem de antigo aluno perpetuando-lhe a memória em registo de ficar. Palavras leva-as o vento, como todos bem sabemos. Nas suas aulas ele lançou muitas ao vento, mas não poucas ficaram na memória dos alunos. Eu queria fazer a minha parte: pô-las no papel. Daí o júbilo ao surgir-me esta ocasião.
Fica implícito neste meu parágrafo introdutório que não venho fazer qualquer balanço nem biográfico do saudoso Monsenhor Lourenço, nem sequer um balanço literário da sua vasta obra, que aqui apenas referirei de passagem. Pura e simplesmente procurarei servir de intermediário, mero gravador que ouviu da sua boca estórias e apartes, comentários irónicos fora-de-página que me parece não se dever perder. Marginália pura. Obviamente que não esconderei a intenção ou a tentativa de procurar revelar uma faceta não-transparente para quem não conheceu o Monsenhor Lourenço de perto e que dele tem agora apenas os seus escritos. Destas minhas recolecções sairá naturalmente um retrato, que reconheço parcial. Antecipo-me a frisar que não pretende ser mais. Direi mesmo: é um retrato captado da oralidade das aulas, já que me sentei muitos anos nos bancos de aluno com ele como professor tanto de Inglês como de História Universal e História Eclesiástica.
Aliás, um magnífico e sintético retrato do Monsenhor foi elaborado com mestria por um outro aluno seu, meu antigo colega e hoje companheiro de diáspora, o florentino Nuno Álvares Vieira. Quando lhe disse que viria a Angra com esta missão, respondeu-me com o seguinte e-mail:
Encheu-me de emoção saber que tu ias ou vais falar numa homenagem ao Mons. Lourenço. Ainda mais emocionado fiquei por saber que tal homenagem estaria nas tuas mãos, pois sei através dos teus escritos que tu és um admirador do velho sábio - intelectual diversificado, historiador, teólogo sem ser de grandes beatices - batia uma só vez, de mão leve no peito, para dizer "mea culpa", escritor, poeta (até as musas o inspiraram a escrever versos bonitos à rainha das festas da cidade), bom terceirense (amigo da sua terra), humorista, calmo, observador, bom medidor das proporções, compreensivo, altamente humano, etc. etc. Mais do que alguém poderia pensar - nada lhe passava desapercebido. Nada! Não te esqueças de quando dizia que os ministros do antigo governo asseguravam o povo de manter as suas petições debaixo de olho: sentavam-se sobre elas.[1]
Tivesse eu o talento de James Boswell e escreveria, aposto, uma versão moderna de The Life of Samuel Johnson, tantas são as estórias que ao longo dos anos os seus alunos foram acumulando na memória. Não fiz qualquer pesquisa entre os colegas para esta ocasião. Socorro-me apenas da minha memória e, nalguns casos, das minhas sebentas, pois fosse eu pesquisar entre todos os seus antigos alunos e veriam que não exagero comparando-o com Johnson.
O Monsenhor Lourenço repetia, aliás com muita frequência: As minhas aulas são de cultura geral. E tanto assim era que delas foi o que melhor se me colou na mente: os seus ditos, as suas estórias tão cheias de sabedoria, a que ao longo dos anos tenho recorrido para ilustrar as mais diversas ideias. Há um livro americano intitulado Everything I Needed to Know in Life I Learned in Kindergarden, pois sem desprimor para o magnífico corpo docente que tive a sorte de me acompanhar no Seminário de Angra, poderia também eu dizer que muito do que necessitava na vida aprendi nas aulas do Monsenhor. Na verdade, os seus ensinamentos eram, mais do que dados, factos, ou peças epistémicas (para usar o jargão corrente), autênticas pérolas de sabedoria – e por sabedoria aqui eu refiro-me à mais clássica sofia dos gregos. Assim o avaliámos desde cedo e, por isso, quando a propósito do Centenário do Seminário em 1962 eu escrevi uma paródia parcial d’ Os Lusíadas em que figuravam como deuses do olimpo todos os professores do Seminário, escolhi para o Monsenhor Lourenço a figura de Saturno. No final do panfleto, numa “Tabela dos deuses”, eu explicava: “Saturno: Monsenhor Lourenço – Paz e abundância na idade de ouro”.[2]
Era assim que o entendíamos, uma espécie de avô livre e magnânimo que ensina os netos sobre a sua experiência com uma atitude livre, uma dose de candura e uma certa bonomia que se fixam indelevelmente na memória deles, colando-se-lhes também ao coração.
Aludi à obra literária do Monsenhor Lourenço e adverti que não me iria debruçar sobre ela. Não é de facto essa a minha intenção. Conheço-a e posso dizer que a li toda nos anos sessenta. Mas ela é do domínio público e prefiro aproveitar esta oportunidade para complementá-la com uma faceta da obra não escrita. No entanto, constato que não posso deixar completamente de referir também a escrita, cujos títulos recordo na íntegra quase por ordem de publicação, porque cada livro trazia a lista das obras publicadas e eu, que sempre tive, não sei porquê, uma pecha para os livros (escrevi sobre isso uma crónica intitulada “O meu último fetichismo”[3]), admirava a produtividade do meu professor, mesmo se já naquela altura os versos de À Mãe do Amor, Aleluias da Alma, ou Lusa Estrela e, mais tarde, de Benedicite, me pareciam demasiado datados no mundo clássico em que o Monsenhor sempre gostou de viver, e o fez assumidamente, nunca escondendo as suas preferências políticas de católico, apostólico, português (para mais monárquico) e, em literatura, poeta da velha escola. Nunca isso, porém, deu azo a que fosse ostracizado ou hostilizado por uma juventude que vivia fascinada com o novo e voltada toda para o mágico e revolucionário futuro.
A sua novela Vitória era assim como que um rito de passagem obrigatório. Lia-o quem começava a entrar nos dilemas da idade de se descobrir o outro sexo. Conta a vida de um seminarista do Seminário de S. José de Macau, com estórias muito parecidas às nossas de Angra. Por lá os seminaristas não eram conhecidos por “melros pretos”, como em Angra, mas a sua situação era semelhante. De uma vez, num jornal local, apareceu um comentário de um anticlerical referindo o facto de num jardim da cidade só ter visto suínos e seminaristas. Reagindo em verso, alguém que parece ser o próprio Machado Lourenço, pergunta: se àquele jardim só iam suínos e seminaristas e o autor daquele comentário não era seminarista, então era o quê? Mas nessa novela o clímax era a descrição de uma ida do protagonista (o autor? seria autobiográfico esse livro? nunca o pudemos apurar) a Hong Kong para consultar um dentista especializado e que na viagem de barco se reencontra com uma jovem que por ele vivia apaixonada mas até ali sem ele saber. A tensão dramática adensa-se e, perto do final, há uma castíssima cena de beijo, na altura de tão explosivo efeito que os mais velhos e sabidos, os que nos recomendavam a leitura, esperavam pela nossa reacção: - Já chegaste à página… não sei qual agora, que para aqui trago tudo do saco da memória dos anos sessenta sem consulta aos livros que infelizmente perdi nas múltiplas andanças da vida.[4]
Li também as obras de etnografia: O Romance de um Malaio e Por Terras do Sagrado Ganges, bem como o Beato João Baptista Machado – Mártir do Japão, Prémio João de Barros, da Agência Geral do Ultramar, que na altura me encheu de orgulho. Era o reconhecimento de um autor dos Açores, para mais meu professor. E o prémio não era desprezível: 15 mil escudos, se bem me lembro. Havia um capítulo sobre “Goa Dourada”, o quarto creio eu, com uma descrição romantizada, altamente idealizada e mítica mesmo, da Roma do Oriente. Teria irritado Edward Said - se o autor de Orientalism lhe conhecesse a existência, talvez o citasse como exemplo da mitificação ocidental do Oriente. Mas o dito capítulo terá afinal tido alguma razão de ser por razões que adiante aduzirei. Orgulhei-me igualmente quando descobri que a Enciclopédia Luso-Brasileira (que eu consultava amiúde na velha biblioteca do seminário quando com um pequeno grupo de colegas lá trabalhava como voluntário sob a orientação do dr. José Enes) incluíra uma entrada com o nome do Monsenhor, ainda que lhe dedicasse apenas duas linhas. Ainda esse mesmo orgulho interior eu senti ao saber que as suas Regras de Gramática da Língua Inglesa, por onde nas suas aulas aprendemos inglês, eram também usadas no liceu. E, se não li o livro Os Lusíadas - Poema Católico, foi simplesmente porque o havia lido em artigos à medida que iam saindo na revista Atlântida, que ele dirigia. Mas voltemos ao tema de que prometi ocupar-me.
Os seus apartes eram lendários. Saíam-lhe com uma naturalidade assombrosa. De certa vez, numa prova oral do primeiro ano de Inglês perguntou ao António Filomeno Maia qual era o presente do indicativo do verbo to be. Nervosíssimo, o Filomeno gaguejou: I bee, you bee, he bees… E o Monsenhor: Pois, pois… Eu abelha, tu abelhas, ele abelha.
Noutra ocasião, ouviu-se na aula o ruído de um avião. Os alunos mais próximos da porta para o jardim, que estava sempre aberta, esticaram o pescoço para ver melhor. O Monsenhor: Ok, não distraiam o aviador.
Tinha uma predilecção por estórias que envolviam incongruências lógicas. Uma das suas clássicas era a dos grilos do padre Patagónia. Guardava-os o padre numa caixa de fósforos e todos os dias ia alimentá-los. Uma manhã, ao abrir a caixa, não os encontrou. Conclusão do padre Patagónia: Comeram-se um ao outro.
Entre essas predilectas incongruências lógicas figuravam os famosos silogismos que não apresentava como seus. Aliás, não reclamava nunca originalidade nas estórias que contava: Tudo o que é raro é caro
Um cavalo bom e barato é raro.
Logo um cavalo bom e barato é caro.
Outro exemplo de incongruência era o silogismo:
Quanto mais se estuda, mais se sabe;
Quanto mais se sabe, mais se esquece;
Quanto mais se esquece, menos se sabe;
Quanto menos se sabe, menos se esquece;
Quanto menos se esquece, mais se sabe;
Logo, não vale a pena estudar.
O inglês era, segundo ele, uma língua estranha sem lógica correspondente na nossa gramática portuguesa. Uma palavra lê-se Roma, escreve-se Jerusalém e significa Jericó.
Em determinadas matérias controversas comentava: Sobre esta questão, as opiniões dividem-se. Há os que dizem que sim e os que dizem que não. Os que dizem que sim afirmam, os que dizem que não, negam. Eu não digo nem uma coisa nem outra, antes pelo contrário.
As estatísticas, como as demais modernices, mereciam-lhe gracejos. Não acreditem nas estatísticas! Um homem come dois pães e outro não come nenhum, e vai as estatísticas dizem que cada um comeu um pão. Emparceirava, pelo menos aqui e não só, com Benjamin Disraeli, segundo quem havia lies, damn lies and statistics.
Ainda como exemplo de incongruências paradoxais, contava aquela história de um homem que quis habituar o seu cavalo a viver sem comer, mas teve pouca sorte. Foi aos poucos cortando mais e mais a ração do animal e, quando o cavalo já estava mesmo quase habituado a viver sem comer, morreu.
Nesta ordem de ideias, contava a do homem que foi votar e encontrou um amigo:
- Para onde vais?
- Vou votar.
- Em quem?
- Em Fulano.
- Então vamos para casa. Não vale a pena perdermos tempo. Eu ia votar por Sicrano! – que era da oposição.
Não era nenhum exemplo de pedagogo aggiornado, o Monsenhor Lourenço. Usava nas aulas os antigos métodos, que lhe pareciam mais eficientes do que as novidades pedagógicas, e advogava-os igualmente para a religião. Queixava-se dos métodos modernos de missionação que faziam apenas pesca à linha, obtendo uma conversão de cada vez, ao contrário dos antigos que pescavam cristãos à rede, em massa.
Muitas vezes lia monotonamente do compêndio e eu confesso que foi nas suas nas aulas de História Eclesiástica que devorei todos os quatro volumes de Un Periodista en el Concilio, do padre jornalista espanhol José Luís Martín Descalzo que admirava muito como repórter do Vaticano II. Fazia-o alegando juvenil e parvamente que a história contemporânea da igreja relatada por Martín Descalzo era mais importante que a do Manual de História Eclesiástica, de Bernardino Llorca S. J.. Para tal, tive sempre a cumplicidade de colegas que me encobriam e, com as suas costas me ajudavam a esconder dos olhares do Monsenhor. Ou julgar esconder, porque afinal não era possível iludi-lo. Olho de rato, era muito sabido e conhecia a psicologia humana muitíssimo bem. Não raras vezes atirava a sua piada, mas nunca protestou.
Não gostava de chamar os alunos a exporem a lição. Como que tinha rebuço em apanhar alguém em flagrante impreparação. Contava a história de um professor que tinha idêntico problema e acabava chamando à lição quem acontecia cruzar olhares com ele. Os alunos, tendo-se apercebido disso, um dia ficaram na aula todos de cabeça baixa deitada sobre os braços cruzados em cima das carteiras. Ele ficou quieto e em silêncio, como a aula inteira. Passados vinte minutos de desconforto da rapaziada, um aluno espreitou pelo canto do olho e o professor captou-lhe o olhar: Exponha você a lição. O Monsenhor resolvia o seu problema usando uma latinha, e chamava um aluno para ir tirar um número à sorte.
Havia algo dele mesmo na história que contava do professor que estava a examinar um aluno que não sabia nada. Perguntava-lhe por exemplo qual a capital da França. O aluno, moita. O examinador dizia: Paris. E pedia: Repita lá! E o moço repetia. E por aí fora. A cada pergunta sem resposta, o examinador acabava dando-a ele próprio, mas exigia que o examinando a repetisse de seguida. No final, deu-lhe um dez, a nota tangente da altura.
Como? – atalhou o examinador assistente. - O rapaz não sabia nada.
- Não sabia, mas ficou a saber.
- Mas ele não sabe mais nada!
E da bonomia do homem veio a sentença salvadora:
- Sobre o que não lhe perguntei não posso ajuizar.
Era muito parco nas notas. Dizia que só dava notas de porco – 9/10. Explicava que 20 era para Deus, que sabe tudo. 19 para o professor. 18 seria para um aluno que soubesse tanto como o professor mas não pode ter a mesma nota por ser aluno. 17 era para o melhor aluno da aula, que aliás rarissimamente dava a alguém.
A propósito da atribuição de notas, há uma história que uso com frequência aplicando-a a situações diversas da vida. Às vezes o Monsenhor corrigia testes na aula. Estava um dia a fazê-lo e ia comentando em voz alta. Chegou ao fim de um a que deu um 9. Começámos a torcer para que desse um 10: Monsenhor, quem dá nove dá 10. E o Monsenhor: Pronto. Lá vai 10.
Entusiasmados com o bom sucesso, começámos a pedir: Quem dá 10, dá 11! - e o Monsenhor cedeu e subiu a nota. E o fomos prosseguindo a ponto de a classe entrar em delírio quando se atingiu o 17. Ainda assim, continuámos a incitá-lo a ir mais longe: Quem dá 17, dá 18. O Monsenhor achava que isso era ultrapassar a sua proverbial escala e parou. Bom, vamos lá a ver: que nota é que eu tinha dado no início? E todos em coro: 9! Ele, sempre muito sereno: Ah! De 9 para 18 a diferença é muito grande. Fica o 9.
Achei sempre espantosa esta estória como exemplo de se esticar demasiado a corda das normas e princípios. É sempre possível argumentar em favor de um pequeno jeito ou ajustamento a uma situação, mas isso só pode fazer-se até um certo ponto. Há que draw the line, como se diz em inglês. Em questões de ética, tanto em aulas como na vida real, tenho recorrido inúmeras vezes a esta sapientíssima e pedagógica – diria mesmo salomónica - decisão do Monsenhor Lourenço. O meu grande amigo Eduíno de Jesus lembrou-me que na antiga Retórica a memoratio não significava “decorar”, mas sim reunir coisas de memória para ilustrar. Nesse capítulo, o Monsenhor Lourenço tem sido para mim uma verdadeira Fonte de Hipocrene.
Logicamente incongruentes eram as histórias do ingénuo Caldas Aulette, autor de um famoso dicionário, de que contava muitas, mas que – confesso – confundo por vezes com as que contava do famoso Dr. Assis, celebrada ingénua figura coimbrã da viragem para o século XX[5]. Um dia ofereceram (creio que ao Dr. Assis) uma bonita bengala. Na rua alguém a elogia e ele reage:
- Sim, muito bonita. Só é pena ser muito grande.
- Por que não a corta?
- Porque, se cortar, vou eliminar a parte mais bonita, que é este belo castão.
- Pois corte-a por baixo.
- Não, que ela fica grande é em cima!
Eram muitas as estórias que contava do Dr. Assis. Recordo uma das suas charadas: Contrário do princípio em francês; muito apreciado na mulher, com cedilha. Dá a primeira cadeira na Universidade: Finanças. Isto é, a cadeira que ele, Dr. Assis, leccionava.
Havia nele um sentido pragmático algo inglês. E muito humor nessa cultura cultivado. Na cultura popular da sua Terceira também abunda o humor[6], mas deve tê-lo alimentado sob a influência da cultura inglesa que conhecia muito bem. Privilegiava o raciocínio pragmático e era avesso a elucubrações abstrusas. A gente lê uma frase e não entende, conclui: - Burro eu! Lê-se outra vez. Não entende? Burro eu ou burro tu! Lê-se uma terceira vez e, se ainda não se entende, Burro tu!
Uso inúmeras vezes esta estória nas minhas tiradas contra o uso pedante do jargão académico. Servi-me dela como fundo num conto do meu livro (Sapa)teia Americana a que dei mesmo o título de “Burro Eu!”
Outra:Um homem vai a uma corrida de cavalos e o cavalo X ganha a corrida. O apostador conclui: - Foi sorte. O cavalo ganha nova corrida e ele concluiu: - Coincidência. O cavalo ganha a terceira corrida e ele aposta no cavalo.
Eram muitas as suas máximas:
O bom soldado nunca deve perder a cabeça. Se não, onde é que há-de pôr o capacete? E as suas observações do género: A maior invenção da História diz-se que foi a roda. Não. Foi o botão. Imaginem o que lhes aconteceria nas calças se não fosse o botão! Como fechariam a braguilha?
Ou esta outra: O bom soldado deve dar o sangue pela pátria até à penúltima gota; a última é para fugir.
Entre nós, vários dos seus ditos se transformaram em expressão corrente, como aconteceu com uma saída sua. Explicava-nos:
- O Sr. Reitor veio dizer-me que esta aula é secundária e acaba a 18 de Março. Devo dizer-vos que recebi a notícia não só com resignação mas até com entusiasmo.
Uma dos seus conselhos irónicos era supostamente o de um lente de Coimbra, que recomendava aos alunos a lavagem frequente dos pés. Não calculam o prazer, o alívio que se sente nos primeiros quinze dias depois de lavados.
Havia ainda os seus àpartes quando ia lendo o compêndio em voz alta. De uma vez, era o referido Manual de História Eclesiástica: “Porém, ao querer pôr-lhe a coroa, Napoleão tomou-a em suas mãos e pô-la em si mesmo, coroando logo a seguir a sua esposa.”
Comentário do Monsenhor: Hoje as esposas é que coroam os maridos!
A ler um texto sobre a Índia portuguesa: “O grosso das tropas que até há pouco havia na Índia é descendente dos antigos europeus que se conservaram até hoje com sangue europeu puro” – e o àparte: … a não ser um ou outro que se tingiu, mas por… contrabando.
Sobre uma passagem que referia camelos, comentou: No Oriente, camelos são aqueles que se casam.
Tinha o que se chama a resposta sempre na ponta da língua. As saídas surgiam-lhe com frequência em trocas com os alunos. Sirva de exemplo uma sobre bastardos, a que chamava “filhos de trás da porta” (bastardos):
- D. Afonso IV é talvez o único rei de quem não se conhecem filhos bastardos.
O Carlos Fagundes interrompe:
- E D. Pedro V?
- Esse não teve tempo, coitado.
Na última aula do período pedíamos-lhe uma vez que nos desse um feriado:
- Não pode ser – disse ele e apontou para as salas ao lado. Estamos rodeados de graúdos: o reitor, o prefeito de estudos… É perigoso.
Eu intervim:
- Ó Monsenhor, na aula anterior o dr. José Nunes, que foi reitor no ano passado, deu só um quarto de hora de aula.
E o Monsenhor:
- Por essas e por outras é que ele saiu.
De outra vez estávamos à procura de uma dispensa de um exercício escrito (ou tema, como chamávamos os pontos).
- Monsenhor, esta semana já temos quatro!
- Tudo de História?
- Não, senhor: um de Direito, outro de Moral e outro de Dogma, mais agora este.
- Bom, se os outros decidirem não fazer o seu, eu sou capaz de fazer o mesmo.
Noutra aula, lê:
- O rei podia depor um bispo-conde. Ou um arcebispo-bispo-conde.
Interrompi:
- Monsenhor, li num livro que o antigo arcebispo, bispo-conde de Coimbra chamava-se D. Ernesto e os estudantes chamavam-no o ABCDE.
O Octávio atalhou:
- Ele já morreu!
E o Monsenhor:
- Ah! Então tem mais uma letra: F – Falecido.
De uma vez, na aula número 10 entra um aluno vindo de outra sala. Pede autorização para procurar um ponteiro que faltava na sua sala. O Monsenhor autoriza-o. O aluno percorre os cantos da sala e, sem êxito, desiste:
- Não encontro ponteiro nenhum - e saiu.
E o Monsenhor:
- Eu cá tenho o meu comigo.
Outros ditos famosos eram: Há dois tipos de profetas: os maiores e os menores. Os maiores são os que acertam sempre; os menores, são os que nem sempre acertam.
De vez em quando, na sequência de qualquer referência à França, acrescentava: … a filha mais velhaca, perdão, mais velha da Igreja…
Eram várias as suas estórias parlamentares:
Um padre-deputado falava no Parlamento e entra uma pomba na sala. Um deputado, conhecido por aparecer frequentemente bêbado, comenta alto: - Lá vem a inspiração do Espírito Santo! O padre deputado riposta: - Não. É a pomba que vem à procura do borracho![7]
Outro deputado afirma de punho cerrado e com veemência:
- Eu cá só tenho um partido!
Da bancada da Oposição respondem-lhe:
- Esteja calado, se não parto-lhe o outro!
Mais uma ainda da sua série sobre o Parlamento:
Um deputado: V. Ex.cia dá uma no cravo, outra na ferradura!
Outro deputado: Porque V. Ex.cia não pára quieto com o pé.[8]
Ainda outra figura política preparava uma intervenção para ler no Parlamento anotando na margem do seu discurso: Argumento fraco. Ler mais alto.
Eram inúmeras as estórias locais.
Contou, por exemplo, a propósito de uma famosa gralha num anúncio de venda de colchões em frente ao Paço Episcopal, a do visconde que telefonou ao director de A União, Dr. Cardoso do Couto, por causa de uma notícia que saíra, por sinal da mesma forma que tinha entrado na redacção: Fulano [ele, o visconde], vende uma égua e os arreios por lhe não servirem.
O Dr. Brasil, conhecido agnóstico de Angra, dava consulta gratuita aos pobres. Era comum agradecerem-lhe com a popular expressão Nosso Senhor lhe pague! O médico respondia: Não quero contas com ele, que é muito caloteiro!
O dr. Valadão (“Velho”) estava a aprender a conduzir. Nervoso, viu ao longe uma vaca e avisou o instrutor: Eu vou dar na vaquinha, eu vou dar na vaquinha! E deu mesmo. Vira-se para o instrutor: Eu não disse?
A mesma figura, na aprendizagem de condução com o instrutor a avisá-lo: Páre! Páre! O Dr. Valadão bate com o carro contra a parede. E o instrutor: Assim também, pára; sai é mais caro!
Numa freguesia da ilha havia uma rapariga que não era das melhores coisas que tinham vindo a este mundo. Um dia o marido parece que deu uma cabeçada e partiu os cornos. Diz-lhe ela: Calma! Daqui a dias nascem outros. Antes tê-los inteiros do que tê-los partidos.
Conservador assumido[9], não se poupava a emitir os seus comentários críticos ao que à sua volta ia vendo. Um dia, referindo-se a um nosso colega de curso que encontrou sem colarinho na rua, disse:
- Há dias encontrei na rua o José Manuel Franco. Fiquei sem saber se ele tinha desistido, ou se aquilo era o Concílio.
O Varão pediu dispensa no início da aula, prática comum quando um aluno por qualquer motivo não tinha podido preparar a lição do dia.
O Monsenhor: - Então vai ser chamado o vizinho do lado, o sr. Moules, porque se o senhor não estudou não vai poder ajudar o seu colega.
Terminarei com uma história que costumo contar quando se me oferece a oportunidade de dar um exemplo da finura de espírito e do sentido de humor do Monsenhor Lourenço. Era um dia cinzento de Fevereiro. Estávamos na sala número 4 (dizíamos “aula nº…”) junto ao jardim. Aula de História Eclesiástica e o capítulo daquele dia era sobre “A expansão da Igreja Primitiva”. Como sempre, o Monsenhor hesitava quanto a quem chamar à lição. Na carteira mesmo em frente da sua secretária, o Manuel Faria de Castro esfregava as mãos para se aquecer: Está frio, Monsenhor. E este:
- Pois. Faz frio, faria frio, porque é que o Faria não expõe a lição?
O Faria estava completamente in albis e, ainda não refeito da surpresa, começou a papejar sem conseguir arrancar frase que se ouvisse.
O Monsenhor, com mal-disfarçada ironia, ajuda-o:
- Com que então, a Igreja… estendeu-se muito, não foi?
A classe estala às gargalhadas menos o Faria que, nervoso, não se apercebeu do trocadilho ou não se riu porque o riso geral era à sua custa. O Monsenhor prossegue então num tom ainda irónico mas agora também malicioso:
- … e logo no princípio, não foi?
Há muitas mais estórias do Monsenhor e os colegas de outros cursos foram de certeza testemunhas de inúmeras outras que poderão também contar. Deveriam fazê-lo para se completar tanto quanto possível este retrato de uma personalidade brilhante e de mente tão rica.
Nestes dias li o livro Plato and a Platypus Walk Into a Bar. Understanding Philosophy Through Jokes, de Thomas Caathcart & Daniel Klein[10], um autêntico compêndio de Filosofia urdido com anedotas e ditos de humor. Com as de Monsenhor Lourenço poderíamos do mesmo modo compor uma espécie Livro da Sabedoria Segundo Monsenhor Lourenço. Na verdade, lembro-me de o meu antigo e estimado professor se ter uma vez referido a um livro dizendo que o pobre autor nele tinha posto tudo quanto sabia. Com ele, isso não foi possível. Os seus muitos livros são apenas uma pequena amostra de tudo o que ele sabia e o seu espírito criou. Incito, por isso, os meus colegas a colaborarem enquanto a memória lhes permite.
Nunca o seu humor foi por qualquer um de nós tomado como agressivo ou ofensivo. Havia na sua personalidade uma bonomia sábia da vida, compreensiva das fragilidades humanas que, no enquadramento do seu aspecto físico algo curvado, frágil e, para nós jovens, já avançado em anos, lhe davam um estatuto ou auréola de avozinho querido dos netos porque a autoridade já não residia nas suas mãos e não lhe cabia impor disciplina ideológica ou vigiar os nossos pequenos desvarios de jovens. Em troca, de todos só recebia carinho, respeito e admiração.
Não deixa de ser deveras curiosa a diferença entre uma obra escrita conservadora e a personalidade no fundo aberta e compreensiva de alguém reconhecendo que, sendo embora de outro tempo, que considerava bem melhor do que o novo, admitia ter esse seu tempo já vivido a sua época. Fora educado no Oriente, por onde circulou numa rede de baluartes da civilização ocidental e cristã – Singapura, Malaca, Goa, Macau. Repetia-nos com frequência: Quem não foi ao Oriente não conhecerá nunca a obra que os portugueses lá fizeram. Só anos mais tarde, quando tive oportunidade de visitar o Oriente, pude aperceber-me do prestígio que ali gozava ainda o Portugal de outrora (até nos táxis ouvi elogios rasgados a Portugal) e de como a Igreja católica, apostólica, portuguesa/goesa, era de facto uma realidade voltada para um passado de ouro que, mesmo se largamente mítico, se pressentia como realidade prestigiada e prestigiante. Os últimos exemplos que conheci foram os de um descendente de goeses, Miguel Rodrigues-Kamat, meu aluno na Brown, que me falava da Goa Dourada com a mesma letra e música ouvida ao Monsenhor Lourenço, como se tivesse lido o tal capítulo quarto da biografia do seu Beato João Baptista Machado. Fez mesmo uma tese de licenciatura em História sobre “The Golden Goa”. Hoje médico, ainda não alterou a sua visão romântica. E mais recentemente, tenho outro aluno, este chinês, o Yi Liu, de Beijing, que me chegou à Brown com uma também altamente positiva ideia de Portugal, como se o nosso país de hoje mantivesse o fulgor imperial de há quinhentos anos.
No início mencionei Edward Said e o orientalismo que ele abominava, mas acho que faria mais sentido evocar aqui a resposta indirecta de Ian Buruma e Avishai Margalit sobre o correspondente ocidentalismo que no Oriente encontraram[11]. Só que o caso de Monsenhor Lourenço é diferente tanto de Said como de Buruma & Margalit, pois tendo a visão que transmitia sido forjada no próprio Oriente, fora depois complexa e duplamente mitizada no seu regresso, ao deparar com um Ocidente que se afastava a passos largos dessa dourada visão do mundo.
Nessa minha primeira viagem ao Oriente, em 1982, senti-me impulsionado a escrever umas linhas ao Monsenhor Lourenço, com quem nunca mais contactara desde que do Seminário saíra, em 1969. Lembro-me de ter adquirido vários postais das ruínas da Igreja de S. Paulo, em Macau, e de os ter enviado a alguns amigos com a seguinte nota referindo-me à presença portuguesa naquelas paragens: “De pé ainda, mas os restos.” Não foi isso que escrevi ao Monsenhor. Não retive o texto verbatim, mas seguiu algo assim: “Vim aqui verificar in loco tudo o que já sabia por lho ter ouvido nas suas aulas.” Cerca de seis meses depois, eu recebia a notícia da sua morte. Mas um amigo próximo dele garantiu-me que ele recebeu o meu postal e o leu com lágrimas nos olhos comentando: “Nunca sabemos aquilo que ensinamos onde vai cair”.
Foi a última lição que do Monsenhor Lourenço recebi e é agora mais um dito que dele – com verdadeira saudade e carinho – conto, sempre que a ocasião se me oferece. Só tenho pena de não ter estado mais atento nas suas aulas para ter podido arquivar na memória muito do que de certeza irremediavelmente perdi. Mas dessas imbecilidades juvenis não vale a pena vir aqui lamentar-me. O Monsenhor Lourenço sabia dosear a nostalgia com sal irónico e não se comprazia em lamentações.
[1] E-mail de 20 de Setembro de 2008.
[2] É breve a referência que na paródia lhe faço. Marte (o Dr. Valentim Borges de Freitas) ia falar em defesa dos alunos. Antes de começar a narrar essa sua intervenção, na estância 22, os primeiros quatro versos referem-se assim a Saturno:
Muito perto e um pouco mais adiante
Estava o velho e ridente Saturno
Que o fizera rir havia um instante,
Mas já estava agora sério e seguro.
Onésimo Teotónio Pereira de Almeida, O Centenário (Paródia). Edição do Autor, 1963),
[3] Que Nome É Esse, Ó Nézimo? – e outros advérbios de dúvida (Lisboa: Salamandra, 1994), pp. 43-47.
[4] Nos anos sessenta eu tinha todas os livros do Monsenhor, mas deixei-os nos Açores, juntamente com muitos outros, quando primeiro fui para Lisboa. Não poucos deles levaram descaminho. É, por isso, com imensa satisfação que registo aqui o facto de agora voltar a possuir um exemplar de Vitória. Foi-me oferecido pelo meu amigo e antigo colega (um ano mais novo no curso) Heriberto Herculino Silveira Brasil, patrício do Monsenhor, pois é também natural das Cinco Ribeiras. Hoje meu @migo internético, convidou-me a almoçar no dia da homenagem do IAC e surpreendeu-me com essa bela oferta desfazendo-se do seu único exemplar. Cabe aqui um agradecimento muito sincero à sua generosidade.
Nesse almoço que teve lugar em S. Mateus à vista de bela água, e a que se juntou o Doutor Cipriano Franco Pacheco, ouvi aos dois várias novas estórias que no final deste meu texto serão reproduzidas. Pus-me, entretanto, imediatamente a reler essa “novela folclórica”, como o autor lhe chama em subtítulo, e foi com imenso prazer que facilmente recordei inúmeras passagens da primeira e única leitura que do livro fiz há 45 anos. A título de exemplo, menciono os versos do Palito Métrico, do folclore académico coimbrão, que um colega do protagonista de Vitória tentou verter para português, também em verso. Assim, Filius ille putae, qui primus carmina fecit saiu: Aquele filho da mãe / Que primeiro versos fez, / Merecia na cabeça / O que tem bovina rez! (Angra do Heroísmo: União Gráfica Angrense, 1958), p.p. 136s. O Monsenhor contava esta estória nas aulas.
[5] Ver Alberto Costa, O Livro do Doutor Assis. Possuo a 10ª edição (Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1951), que não indica a data da primeira edição.
[6] Sobre essa faceta da personalidade do Monsenhor o Heriberto enviou-me uma achega biográfica preciosa e que transcrevo na íntegra: O humor do Monsenhor Lourenço não nasceu, propriamente, por geração espontânea. Ele pertence a uma família (em sentido genérico) conhecida, aqui nas Cinco Ribeiras, pelos "Bilhanas". Trata-se duma família célebre pelo seu sentido de humor. Um dos seus irmãos, o Marcial "Bilhana", que era casado com uma prima de minha mãe, era um exemplo disso. Naquilo que dizia, nas partidas que armava. Ainda hoje, quem dele se lembra, recorda a alegria que ele espalhava à sua volta, com ditos e brincadeiras. Uma prima do Monsenhor, já em 2º ou 3º grau, por acaso também casada com um primo de minha mãe, ainda hoje é um excelente exemplar do humor dos "Bilhanas". Acontecimento ou situação que aquela boca comente dá para partir a rir. E até o filho dela, com nome de Mago, Belchior, é hoje em dia uma das principais figuras dos terceirenses bailinhos de Carnaval. E sobressai (para além de ser um actor nato) imagina em quê: exactamente no humor. De há uns anos a esta parte, quando as pessoas, pelo Carnaval, aglomeradas em salões de sociedades recreativas esperam que passe um bailinho, é frequente ouvir-se a pergunta "quando é que chega o bailinho do Belchior?". (E-mail de 2 de Janeiro de 2009).
[7] O meu amigo e colega, Professor António Cirurgião, aposentado da Universidade de Connecticut, natural do Continente, também frequentou um seminário e diz que um seu professor contava essa estória e dizia que o deputado com fama de alcoólico era Brito Camacho. (E-mail de 11 de Dezembro de 2008).
[8] António Cirurgião informa-me que esta resposta foi também de Brito Camacho. (Idem)
[9] Não contarei aqui uma estória que reflecte bem o patriotismo português do Monsenhor, bem expresso na letra que, a pedido do Dr. Edmundo Oliveira, escreveu para o “Coro dos Soldados”, da ópera Fausto, de Gounod, que cantámos no orfeão. O excessivo passadismo nacionalista desses versos fez-me escrever uma paródia anti-salazarista. Mas essa narrativa ficará para um outro escrito, em outro contexto.
[10] (Abrams Image, New York, 2007).
[11] Occidentalism. The West in the Eyes of Its Enemies (New York: The Penguin Press, 2002).
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A LENDA DE HIRÃO-ABI
Conta uma antiga lenda que o arquitecto encarregado da construção do celebérrimo templo de Salomão foi Hirão-Abi ou Hiram Abiff. Hirão-Abi era natural de Tiro, antiga cidade fenícia, cujo rei, que curiosamente também se chamava Hirão, fez acordos comerciais com Salomão, por alturas da construção daquele grandioso templo, enviando para a Terra Santa ouro, prata, madeira de cipreste e de cedro, além de pedreiros, entre os quais se incluía o próprio arquitecto que chefiava a execução da obra, Hirão-Abi. Segundo a lenda, Hirão-Abi foi abordado três vezes por tantos outros pedreiros, Jubelas, Jubelos e Jubelum, que mais tarde mudaram os seus nomes para Abibala, Seterkin e Oterfut, respectivamente, porque sentiam uma grande inveja das aptidões de Hirão-Abi e, ocultando a sua verdadeira identidade, queriam conhecer o segredo da arte de bem construir, pois consideravam-na um verdadeiro mistério que, a todo o custo, haviam de desvendar. Pretendiam, assim, revelar o segredo do mestre pedreiro, no projecto de construção daquele magnífico templo, caso contrário perderiam a sua própria vida. Por duas vezes Hirão-Abi, apesar de ameaçado de morte, não cedeu às exigências dos três pedreiros, recusando revelar o seu segredo com a célebre frase: “Perco a minha vida, mas não revelo o segredo”. Porém, sendo abordado uma terceira vez, negando novamente e com veemência revelar o segredo, Hirão-Abi foi morto, perdendo-se, assim, aquele estranho segredo magistral. Os assassinos levaram o cadáver de Hirão-Abi para fora da cidade, sepultando-o e assinalando o local da sepultura com um ramo de oliveira, pondo-se, de seguida, em fuga. Os outros pedreiros, amigos e companheiros de Hirão-Abi começaram a persegui-los. O rei Salomão, porém, não terá sido alheio ao crime, pois Hirão-Abi despertara-lhe ciúmes, não só por também não lhe revelar o seu segredo mas sobretudo porque o suplantava no amor a Belkiss, a misteriosa rainha de Sabá. No entanto o rei de Tiro pediu que a morte de Hirão-Abi fosse rigorosamente punida e, para comover os executores, mostrou-lhes um filho que o mestre pedreiro tivera com Belkiss e exortou-os a que descobrissem os assassínios e vingassem a do mestre morte o mais depressa possível. Estes procuraram Hirão-Abi por toda a parte mas só o encontraram junto à sua sepultura. Hirão-Abi tinha ressuscitado.
Foi assim que Hirão-Abi, devido à sua conduta virtuosa, à sua piedade genuína a Deus e, sobretudo, devido à sua inflexível fidelidade ao segredo que lhe estava confiado, se tornou um símbolo para que, assim como ele, todos e cada um dos seres humanos possam receber o severo tirano, ou seja, a Morte, a fim de os transportar desta vida imperfeita para uma outa perfeita, gloriosa e celestial presidida por Deus, Supremo e Verdadeiro Arquitecto do Universo.
Cuida-se que esta lenda e a presumível conclusão que dela se tira estarão na verdadeira origem da maçonaria, ultrapassando assim a crença de que esta ter-se-ia originado muitos anos mais tarde, nas corporações medievais dos canteiros das grandiosas construções góticas das igrejas, mosteiros e castelos da Idade Média.
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OS MISERÁVEIS DE VITOR HUGO
O livro Os Miseráveis de Victor Hugo, publicado em 3 de Abril de 1862 simultaneamente em Leipzig, Bruxelas, Budapeste, Milão, Roterdão, Varsóvia, e Paris é, em minha opinião, um excelente livro, daqueles que se lêem duas ou mais vezes. A acção acontece na França do século XIX, entre a Batalha de Waterloo (1815) e os motins de Paris, Junho de 1832. É uma extensíssima narrativa, onde a ficção se envolve com a história, a filosofia, a ética, a moral, a religião, a psicologia, etc, sobre a vida de Jean Valjean e de variadíssimos personagens que com ele vão enriquecer os cinco volumes do romance, testemunhando a miséria daquele século e a pobreza miserável da sociedade francesa.
Jean Valjean, depois de cumprir 19 anos de prião nas galés - cinco por roubar um pão para sua irmã e sete sobrinhos, e mais catorze por inúmeras tentativas de fuga - é libertado, mas marginalizado por todos que o encontram, excepto pelo bondoso monsenhor Myriel, Bispo de Digne, nos Alpes Franceses. No entanto, em vez de se mostrar grato, Valjean, durante a noite, rouba-lhe uns talheres de prata e foge. De imediato é preso e levado à presença do Bispo que o salva, alegando que os talheres foram um presente, dando-lhe dois castiçais de prata e repreendendo-o por ter saído com tanta pressa e esquecer essas peças bem mais valiosas do que os talheres. Este gesto de bondade de Monsenhor Myriel nunca mais se apagará da memória do antigo presidiário e mudar-lhe-á, radicalmente, a vida. Anos depois, Valjean reaparece no outro extremo da França sob o pseudónimo de senhor Madeleine e torna-se um próspero empresário, dono de uma fábrica, um homem respeitado pela sua bondade e caridade, sendo eleito governador da cidade onde vive - Montreuil-sur-Mer. É aí que encontra o inspector Javert, antigo guarda prisional e chefe da polícia da cidade, que desconfia da identidade de Madeleine, perseguindo-o persistentemente, até o identificar como o antigo forçado, que conheceu quando trabalhava como guarda, na prisão de Toulon. É também em Montreuil que Madeleine conhece a desafortunada Fantine, que, algum tempo depois, morre, deixando sozinha a filha Cosette, que entregara aos cuidados dos Thérnardier, um casal de estalajadeiros, corrupto e sem escrúpulo, que maltratam e abusam da menina e extorquem dinheiro a Fantine. Perante informações de Javert de que o verdadeiro Valjean fora descoberto e havia de ser condenado e após uma longa noite de hesitação e sofrimento, Madeleine apresenta-se, em tribunal, como verdadeiro Valjean, sendo ele próprio condenado e levado para prisão, de onde foge para libertar Cosette das atrocidades dos Thérnardier, como prometera a Fantine. A partir daqui e depois do autor historiar a Batalha de Waterloo, a acção do romance decorre em Paris, onde todos os personagens se vão reencontrando em encontros e desencontros, misturando-se com outros, nas ruas e no convento Petit-Picpus, onde Valjean se torna jardineiro e onde Cosette recebe uma boa formação. Personagem de destaque, em Paris, é Marius Pontmercy, um aristocrata de segunda geração que se desentendeu com seu avô monarquista por causa das suas ideias liberais. Estuda Direito e junta-se aos estudantes revolucionários. No entanto, apaixona-se por Cosette, com quem casará, mais tarde. Ferido nos motins de Paris, Marius é salvo por Valjean, escondendo-se nos esgotos da cidade. No entanto Javert, que se intrometera nas barricadas como espião, ao ser descoberto e desmascarado é poupado à morte por Valjean, mas, vítima de um terrível conflito interior, atira-se ao Sena, suicidando-se. Nos motins de 5 de Junho surgem outras personagens como Enroljas, o líder dos Amigos do ABC e líder da rebelião de Paris. Trata-se de um jovem charmoso e de beleza angelical, apaixonado e dedicado à democracia, lutando pela igualdade, pela liberdade e pela justiça. Enjolras é um jovem de princípios que acredita numa causa - a criação, na França, de uma República Livre e Democrática, libertando os pobres, defendendo os oprimidos e onde todos são iguais. Mas ele e os outros revoltosos são executados pela Guarda Nacional, após a queda da barricada que haviam montado, em defesa dos seus princípios e valores. Outro personagem invulgar é Gavroche, filho mais velho dos Thénardier, abandonado pelos pais e que também participa, activamente, nas barricadas, sendo morto enquanto recolhia as balas dos mortos da Guarda Nacional para dar aos revoltosos. Por sua vez, sua irmã Eponine, mimada em criança, acaba sozinha nas ruas de Paris, quando chega à adolescência. Apaixonada por Marius, participa na rebelião e salva-lhe a vida, parando com a mão uma bala que o atingiria. Acaba por ser mortalmente ferida quando a bala, destinada a Marius, lhe atravessa a mão e as costas. Destacam-se ainda, como personagens, no romance de Victor Hugo: Baptistine, irmã do Bispo Myriel e Madame Magloire, a sua empregada, Gervais, um miúdo que Valjean rouba e depois, arrependido, lhe devolve a moeda, Félix Tholomyès, estudante rico e burguês, amante de Fantine e pai biológico de Cosette, que a abandona, Fauchelevent a quem Valjean salva a vida retirando-o debaixo duma carroça e que depois o abriga e esconde no convento Petit-Picpus, Bamatabois agressor de Fantine e Champmathieu, o vagabundo erroneamente confundido com Jean Valjean. São de referir também a irmã Simplice que cuidou de Fantine em seu leito de morte e a Madre Innocente, prioresa do convento Petit-Picpus. Nas ruas de Paris, aparecem, ainda, o Senhor Gillenormand, avô de Marius e a Senhorita Gillenormand, sua filha, o Coronel Georges Pontmercy, Pai de Marius, um oficial do exército de Napoleão, ferido em Waterloo, o Tenente Théodule sobrinho favorito de senhorita Gillenormand, o Senhor Mabeuf, amigo e protector de Marius, que também se junta aos insurrectos e que é baleado e morto no alto das barricadas, quando erguia uma bandeira vermelha. Por sua vez do grupo de estudantes revolucionários, para além do líder Enjolras, fazem parte Courfeyrac, Combeferre, Jean Prouvaire, Feuilly, Bahorel, Laigle, Joly e Grantaire. Paralelamente movimenta-se um grupo de bandidos, liderado pele malicioso Montparnasse e a que pertencem Claquesous, Babet e Gueulemer. Magnon é uma ex-funcionária de senhor Gillenormand e amiga dos Thénardier recebem, fraudulentamente, uma parte dos pagamentos. Ela é presa por ser supostamente envolvida no roubo a Gorbeau e muitos outos. A história, finalmente, termina pouco depois do casamento de Marius e Cosette. Valjean confessa a Marius que é um forçado evadido. Marius, horrorizado com a revelação, consegue fazer com que Valjean, perdendo a vontade de viver, desapareça, gradualmente, da vida de Cosette. Apesar de tudo Marius e Cosette procuram-no, acabando por encontrá-lo nos seus últimos momentos de vida. Feliz por estar ao lado da filha e do genro, Valjean relembra todo o seu passado a Cosette e revela-lhe a identidade da sua mãe, Fantine, acabando por morrer feliz porque amado por ambos.
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O GRUPO CORAL DAS LAJES DO PICO NA ABERTURA DA SEMANA DOS BALEEIROS
Ontem, dia 20 de Agosto de 2012, realizou-se a sessão solene da abertura da semana dos baleeiros, nas Lajes do Pico, presidida pelo Engenheiro Roberto Silva, presidente da Câmara daquela vila picoense,
Para além do presidente da edilidade, usaram da palavra o Dr Miguel Costa, Director Regional dos Equipamentos e Transportes, em representação do presidente do Governo Regional, o pároco da Matriz Lajense e o presidente da direcção do Grupo Coral das Lajes do Pico, Dr Manuel Francisco Costa.
No entanto o que mais caracterizou esta sessão de abertura da semana dos baleeiros e da festa de Nossa Senhora da Lurdes foi a actuação do Grupo Coral das Lajes do Pico que apesentou ao público com um repertório diversificado, com interpretação de obras de música clássica, de autores açorianos (Emílio Porto, Edmundo Oliveira, António Dionísio e outros) e ainda alguns números de música regional das ilhas.
A actuação do Grupo Coral das Lajes do Pico foi extremamente aplaudida pelos presentes, pelo facto de se tratar da primeira actuação oficial daquele Grupo, após o falecimento do seu fundador e maestro de sempre, Manuel Emílio Porto, em Abril transacto, sendo agora a direcção musical do grupo da responsabilidade do jovem maestro Ildeberto Peixoto, professor de música e vereador da Cultura da Câmara municipal lajense.
No discurso que proferiu, o presidente da direcção do Grupo Coral das Lajes do Pico, Dr Manuel Francisco Costa, referiu, com emoção, saudade e agradecimento, a figura de Emílio Porto e do seu inequívoco contributo na formação e direcção musical do grupo desde a sua formação em 1983, até à altura em que faleceu, bem como o seu valioso contributo como músico de excelente qualidade e que nos legou um notável acervo musical.
Outro facto digno de relevo é o de esta cerimónia ter como cenário a igreja Matriz das Lajes, o que, não sendo inédito, é um bom augure do quanto se pode e devem aproveitar espaços destes, amplos, dotados de excelentes condições acústicas e subaproveitados, uma vez que até agora tinha uma muito reduzida utilização semanal – cerca de uma hora, apenas aos domingos e dias festivos.
A semana dos baleeiros continua recheada de actividades, entre as quais sobressaem muitos de índole cultural, mantendo assim uma tradição desde há muito arreigada nas festividades da Senhora de Lourdes, naquela que é considerada a vila mais baleeira de todas.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 21/08/12
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O CONGRESSO DE TODAS AS RECORDAÇÕES
Emanados dos mais nobres sentimentos de convívio, de alegria e de camaradagem, cá estamos reunidos num verdadeiro “Congresso de Todas as Recordações”. Os que há cinquenta anos aqui viveram, estudaram e se formaram. Uns viajaram de longe, outros moram aqui ao lado. Não vieram todos, vieram alguns. Vieram os que puderam e os que de tempo e saúde dispuseram. Uns, muito provavelmente, suspendendo trabalhos e tarefas, outros já interrompendo o repouso das suas aposentações. Juntos querem celebrar os 150 anos da instituição que, há cerca de meio século, nos recebeu, educou e formou. Mas o que mais querem é dar aqueles enormes e afectuosos abraços que encaixotaram dentro si e guardaram durante dezenas e dezenas de anos, para agora os trocar. São abraços que duram minutos. São abraços que apertam e trazem lágrimas. São abraços dos mais belos abraços que existem no mundo mundo. Partilham-se sobretudo, as recordações mais doces. Dois mestres nos acompanham, para aqui e para acolá, para onde podem. Cunha de Oliveira com a sua bengalinha, corre, procura, canta e caminha como se fosse um aluno. O José Nunes que ainda conserva aquele doce sorriso que se torna maior quando lhe sugerimos que imponha ordem e respeito. É o nosso cicerone, a mostrar, sobretudo o que mudou, nas camaratas, nos corredores, nos salões, nos pátios e até na capela. O Caetano Serpa é mais aluno do que mestre. Ontem ao jantar, o Carlos Dias foi o “leitor” de serviço e o grande contador de histórias. E sabem o que leu? Aquela passagem do evangelho “et galus cantavit”. Claro que o galo do saudoso cónego Jeremias veio à baila. Depois da leitura, o José Nunes é que deu a ordem para terminar o tempo de silêncio. O actual Reitor, uma simpatia em pessoa, também nos acompanhoupasto no repasto,sempre solícito e sempre aento,a ver se algo faltava. O principal prato foram as cantigas, com o maestro José Carlos Rodrigues. De tarde o encontro e a partilha. De fotos, de quadras, de histórias, de testemunhos. Só faltou uma coisa impossível de conseguir-se: tempo, tempo para mais. À noite ensaio. O José Luís, repartindo batuta com o José Carlos: “Mi, dó, sol dó´.” Vê-se que é “escola do Dr Edmundo”. O mesmo transparecia no Emílio Porto, quando pegava na batuta. E o Fernando Mota num excelente solo do “Juravit Dominus”. Depois “Maldita”, e por aí adiante. O pior é que já não nos aguentamos “das canetas”, aquelas horas todas em pé. E o José Manuel que até tem ferros nas pernas em vez de ossos. Vieram os do Seminário, veio o reitor, veio o Ricardo e os seminaristas seguiram-lhe o exemplo e no fim, os de ontem e de hoje, cantaram, juntos, o hino “Se há grandeza no Mundo…” Belo, comovente, sublime.
Quando todos foram embora dei por mim a conversar com um grupo de seminaristas, ainda ali residente. Eles olham-nos com um respeito extraordinário, com uma admiração gigantesca! Querem conhecer-nos, querem ver-nos e querem sobretudo, agora ao vivo, ouvir os “ecos” da nossa presença naquela que é a sua e nossa casa. Agora, esses ecos tornaram-se reais e entraram-lhes abruptamente pela porta dentro. Mas verdade é que eles têm sempre a porta aberta e estão sempre à nossa espera.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 8 de Julho de 2012
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ARTUR GOULART HOMENAGEADO PELA CÂMARA DE ÉVORA
A Câmara Municipal de Évora vai homenagear o Dr Artur Goulart de Melo Borges, numa cerimónia solene que terá lugar no próximo dia 29 de Junho, “Dia da Cidade de Évora” entregando-lhe a Medalha de Mérito Municipal “Classe Prata”, como reconhecimento “… pelo seu contributo inigualável nas áreas da cultura em geral e da história da arte em particular, nomeadamente em Évora e no Alentejo, assim como pela sua qualidade humana e de investigador…”
Artur Goulart de Melo Borges nasceu na vila das Velas ilha, de São Jorge, em 12 de Abril de 1937. Após fazer os estudos primários naquela vila, matriculou-se no Seminário de Angra, estabelecimento de ensino que frequentou durante quase toda a década de cinquenta. Após terminar o Curso de Teologia, naquela instituição, em 1958, ausentou-se para Roma, onde frequentou o Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã e o Pontifício Instituto de Liturgia, licenciando-se em Arqueologia e Liturgia. Após o seu regresso aos Açores, em 1961 leccionou no Seminário Episcopal de Angra as disciplinas de Desenho, Arte, História da Arte e Liturgia, altura em que, durante alguns anos, assumiu, simultaneamente, o cargo de redactor do jornal «A União», sendo director o Dr Cunha de Oliveira, tendo, nessa qualidade incentivado a implementação e publicação do suplemento cultural e literário «Glacial», acontecimento marcante na cultura açoriana.
Alguns anos depois mudou a sua residência para a cidade de Évora, fez a pós-graduação em Museologia e História da Arte e frequentou o Curso Superior Livre de Estudos Árabes, da Universidade de Évora, tendo-se dedicado ao estudo da epigrafia árabe em Portugal. Nesse âmbito, colaborou no Catálogo da exposição “Portugal Islâmico”, 1998-1999, do Museu Nacional de Arqueologia. Publicou as inscrições de Évora, Beja e Moura e participou no projecto “Bibliografia crítica luso-árabe”, da Universidade de Évora. Técnico do Museu de Évora de 1979 a 1999, exerceu o cargo de director durante sete anos. Participou em congressos, seminários e publicações sobre estudos árabes, património artístico e cultural, etc. Foi professor na Universidade Católica, onde leccionou algumas aulas num mestrado sobre Peritagem de Arte.
. Desde Março de 2002, é o coordenador científico do Inventário do Património Artístico Móvel da Arquidiocese de Évora. Como investigador arqueológico publicou trabalhos diversos, entre os quais: em 1985 “Duas Inscrições Árabes Inéditas no Museu de Évora”, em 1989, “As Inscrições Árabes Lapidares do Museu de Beja”, em 1991, “Património da Epigrafia Árabe em Portugal” e, em 2001, Epigrafia. Em 2010 publicou o livro de poemas “no fio das palavras”, editado pela Santa Casa da Misericórdia das Velas.
Recorde-se que a Câmara Municipal das Velas, em 26 de Abril de 2010, já havia agraciado o Dr Artur Goulart com a “Medalha de Prata do Município” por quanto considerar que: “... se tem distinguido e se distingue como escritor exímio e como poeta brilhante e possui um currículo de vida de reconhecido valor mantendo sempre ligações fortes e saudosistas com o Concelho das Velas, a quem nunca negou a sua colaboração bem como se distinguiu no campo social como voluntário e no campo cultural, como homem sábio e participativo…”
Para mim e decerto para todos aqueles que tiveram o privilégio de ter o Dr Artur Goulart como amigo de sempre e como mestre, durante quase uma década, uma e outra destas notícias enchem-nos de júbilo e de alegria. Tanto em Évora como nos Açores, onde com ele vivemos, convivemos e aprendemos, Artur Goulart impôs-se não apenas como mestre sábio, competente e dócil, mas também como homem e cidadão dotado dos mais nobres princípios de humanismo e solidariedade, pautando o seu quotidiano pelo estudo e pelo trabalho em prol da cultura, da arte e da defesa do nosso património. Bem hajam quantos o reconhecem.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 26/06/12
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O ACIDENTE NA POÇA DAS SALEMAS
Em meados da década de sessenta, a população da Fajã Grande foi alarmada por mais um acidente mortal, no mar. O José Joaquim fora encontrado, praticamente sem vida, na Poça das Salemas
José Joaquim Cardoso de Freitas era filho do Roberto de José Padre e da Madalena da Maria da Ponta, que moravam na rua da Via d’Água, numa casa térrea, mas caiada de branco, situada ao lado de um chafariz que havia, precisamente na maior curva daquela artéria, em frente à antiga casa do Senhor Arnaldo, derrubada a quando da abertura da estrada que ligava o Porto da Fajã à Ribeira Grande.
Nascido no final da década de quarenta, o José Joaquim teve uma infância pouco feliz, não granjeando simpatias, não dispondo de grandes oportunidades para ser feliz, nem sendo contemplado com a sorte ou bafejado pela fortuna, nem sequer agraciado pelo bem-estar. Talvez por tudo isso e por muito mais, ao terminar a escola primária foi-lhe dada a oportunidade de ingressar no Seminário Diocesano, cujos primeiros cinco anos, nessa altura, deviam ser cumpridos no Seminário Colégio de Ponta Delgada, em São Miguel, onde aquela instituição estava sediada. Agarrou, inicialmente, com ambas as mãos a oportunidade que lhe era disponibilizada, para se libertar dos trabalhos quase esclavagistas a que era obrigado, das canseiras, dos aborrecimentos, dos constrangimentos e de outros males que sobre si caíam. Mais tarde, porém, falhou. Os estudos não correram da melhor forma, a inteligência era algo limitada e a vontade de estudar quase nula, fracassando em quase todas as disciplinas. Assim foi forçado a regressar à Fajã, com um destino incerto, com um futuro problemático, com um percurso devida assinalado pelo estigma do insucesso. De fracasso em fracasso, o José Joaquim entrou num mundo onde as oportunidades de ser feliz eram raras e diminutas e a capacidade de se realizar como pessoa era-lhe cerceada quase por completo. Eram esbatidas, esfumadas e dispersas as perspectivas que lhe delineavam o futuro. Tentou de tudo um pouco, mas quase nada conseguiu com eficiência e eficácia, até que o infortúnio havia de lhe bater à porta, pondo-lhe fim à vida.
Certa tarde decidiu-se por ir aos polvos para o Canto do Areal, com vontade e energia de percorrer, se necessário, todos os caneiros e poças que por ali abundam, desde a Poça das Salemas até à Coalheira e ao Caneiro das Furnas, a fim de conseguir apanhar meia dúzia de polvos que pudesse vender e fazer algum dinheiro. Partiu sozinho como já fizera outras vezes. Caniço curto e grosso na mão, “pexeiro” às costas, iniciou a pescaria com a necessária captura de caranguejos, meia dúzia que fossem para amarrar ao nylon do caniço e pô-los a balancear para cá e para lá, nas poças, a fim de despertar o apetite dos octópodes. Os excêntricos moluscos marinhos logo que vissem os caranguejos a nadar, embora mortos e amarrados com o fio invisível, cuidando que eles estavam vivos e ali à sua disposição, haviam de sair das suas buracas e atirar-se a eles como Santiago aos Mouros. Aí ele, José Joaquim, muito rápido e certeiro havia de lhes enfiar o “pexeiro” com um enorme anzol e prendê-los de tal maneira que nenhum havia de lhe escapar.
Entusiasmado com o presumível sucesso da pescaria, começou na Poça das Salemas de fora. A maré estava muito seca e chegava lá muito bem, a pé. Mas os arrabaldes da poça, normalmente cobertos de água estavam a abarrotar de limos verdes, de sargaços molhados, de algas escorregadias e perigosas e o José Joaquim não sabia nadar. Provavelmente uma escorregadela e estatelou-se sobre o baixio, batendo com a cabeça e, como se isso não bastasse, escapuliu para dentro da poça, cheia de água, ficando ali a flutuar de costas para cima, como alguém o encontrou, algumas horas depois.
Na tentativa de o salvar, apesar de estar morto, ainda foi levado para o Hospital de Santa Cruz, onde foi registado o óbito, tendo sido sepultado, no dia seguinte, no cemitério daquela vila.
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PANELA
“Sabe da panela quem mexe nela.”
Douto provérbio este, muito repetido na Fajã Grande, na década de cinquenta e, obviamente, utilizado apenas no sentido figurado, a fim de referir que para a realização eficiente de qualquer actividade ou tarefa era necessária a experiência. Poder-se-ia mesmo dizer que este provérbio, simplesmente, traduzia uma expressão utilizada noutros meios: “A experiência é mestra da vida”.
No entanto, na Fajã Grande o mesmo provérbio também era utilizado para elogiar a qualidade ou a excelência com que alguém estava a realizar um trabalho ou actividade com elevada excelência. Assim um carpinteiro que estava a fazer uma porta era, por vezes, saudade, com este provérbio, não só com o fim de o elogiar mas até de incentivar que realizasse ainda com mais eficiência um trabalho.
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IN MEMORIAM DE EMÍLIO PORTO
Comungámos o esplendor das madrugadas, quando assomavas à janela do teu quarto, projectada para o lado dos mais novos, dos que haviam chegado há pouco, dos que, como eu, se enterneciam e deliciavam com os movimentos sibilantes e sublimes da tua batuta de maestro debutante.
Abrigámo-nos de torrentes e enxurradas diluvianas, quando, em São Caetano, é verdade que em tempos diferentes, espicaçávamos as flores e os pássaros, a fim de que se espelhassem na luminosidade infinita da esperança e que se locupletassem nos alvores sublimes da liberdade, a que estávamos, incondicionalmente, acorrentados.
Sem o querer e muito menos sem o desejar, entrincheirámo-nos num quotidiano mavórcio, entre balas, granadas e obuses, é verdade que em lugares diferentes, mas elegemos, sempre, a amizade como estandarte da guerra e fizemos da paz o caminho da esperança que não morre.
Depois seguimos caminhos paralelos, semelhantes e diferentes, na demanda da felicidade, do amor e do trabalho, até nos reencontramos entre a lava verde da montanha e o bafo sulfúrico dos vinhedos, saboreando o perfume adocicado do entardecer.
Por tudo isto, tínhamos combinado encontrarmo-nos, ontem, às dezanove e cinquenta em ponto, em Campanhã!
Texto publicado no Pico da Vigia, em 14/03/12
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TRÊS NAUFRÁGIOS EM TRÊS ANOS
A falta de faróis ou de outros meios de sinalização da ilha das Flores, a grande quantidade de escolhos, baixas e ilhéus da sua costa e a não existência de meios de apoio à navegação, foram os culpados de grande parte de um bom número de naufrágios verificados ao redor das costas florentinas, desde o seu povoamento até à primeira metade do século passado. A Fajã Grande, ponto de referência de toda a navegação proveniente das Américas com destino ao Norte da Europa e ao Mediterrâneo, não foi excepção. Foram inúmeros os acidentes verificados desde o início do povoamento daquele lugar, sendo que de muitos desses naufrágios não há registo ou memória. Alguns, no entanto, marcaram definitivamente a história e a toponímia da freguesia, como foi o caso da “Bidart”, barca francesa naufragada no Canto do Areal, na madrugada de 25 de Maio de 1915, precisamente num local que mais tarde passou a chamar-se, “o lugar da Bidarta”.
Neste longo decurso do tempo, houve, no entanto, um período negro ou de grande ocorrência de naufrágios, nas costas fajãgrandenses. Foi no início da década de setenta do seculo XIX, quando a Fajã Grande como freguesia ainda era uma criança. Nessa altura, num curto espaço de, aproximadamente, três anos, verificaram-se três grandes naufrágios.
No dia de Natal de 1869 deu à costa, nos baixios mais ocidentais da Europa, a barca francesa “Republique”, vinha da Martinica e dirigia.se para França, carregada de açúcar. Rezam as crónicas que foi tal a abundância de açúcar despejado em terra, na altura escasso na ilha, que uma parte foi arrematada, tendo, no entanto, o povo recolhido tanto que, pelos vistos, houve quem chegasse a utilizá-lo como tempero nas couves, em vez do sal, também escasso na freguesia, naqueles recuados tempos. Felizmente salvou-se toda a tripulação.
Ano e meio depois, a 15 de Julho de 1871 verificou-se um outro naufrágio nos mares contíguos à Fajã Grande. Desta feita foi um brigue inglês, de nome “Concórdia” com capacidade de 180 toneladas, que transportava açúcar e aguardente, embora, neste acidente, grande parte da carga se tenha perdido no mar, não sendo recuperada e a que o foi, pelos vistos uma pequena parte, terá sido guardada pelas autoridades e arrematada mais tarde. A embarcação naufragada seguia com destino a Queentown e salvaram-se todos os tripulantes, num total de 8 homens.
Finalmente, a 9 de Janeiro do ano seguinte deu-se mais um grande naufrágio na Fajã Grande, Desta feita foi o lugre francês “Alexis”, capitaneado por Boncherie que faleceu no acidente, juntamento com dez dos onze tripulantes que, com ele, seguiam a bordo. O navio navegava de Rio Grande com destino ao Sul para a Europa, carregando couros, lã, chifres e clina. Uma parte deste carregamento salvou-se e foi arrematada.
A esta série negra de três naufrágios em tão curto espaço de tempo, poder-se-á juntar um quarto, acontecido no dia 26 de Fevereiro de 1866. Trata-se do naufrágio do patacho inglês “Greffin”, capitaneado por Philip de Boutellier. Salvou-se a tripulação e uma boa parte da carga que transportava, neste caso fardos de algodão, dos quais se recuperaram alguns, os quais, como era hábito na altura, foram arrematados na ilha.