PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O DESASTRE DOS FANAIS (1819)
Um dos maiores desastres marítimos ocorridos com pessoas da Fajã Grande, depois do trágico desastre do Corvo, foi o que aconteceu no dia dezoito de Agosto de 1819, por fora dos Fanais. Assim como no desastre do Corvo, de 1942, o barco naufragado nos Fanais transportava quase exclusivamente passageiros naturais e residentes na Fajã Grande e que também se haviam deslocado ao Corvo, a fim de participarem na festa da Senhora dos Milagres. O acidente deu-se quando regressavam à Fajã. Sendo a festa no dia quinze de Agosto e o regresso tendo-se verificado apenas no dia dezoito, é muito provável que devido ao mau estado do tempo, a viagem de regresso tivesse sido adiada para aquele dia, sendo que, muito provavelmente o mar não estaria ainda nas melhores condições de navegabilidade, nem o tempo favorável à navegação. O barco regressava do Corvo com destino ao porto da Fajã Grande, sob as ordens do seu mestre e proprietário Francisco Coelho Rafael e, para encurtar distâncias, rumou em direcção a Ponta Delgada, ladeando, a partir daí, a costa noroeste da ilha das Flores, até à baía dos Fanais, junto ao ilhéu de Maria Vaz. O acidente deu-se por fora da baixa do Fanal, ainda na freguesia de Ponta Delgada e, muito provavelmente, devido ao mau estado do tempo e do mar. Mestre Francisco Coelho Rafael, de 76 anos, perdeu a vida e com ele mais dez pessoas, sendo uma do Corvo, outra da Fajãzinha e as oito restantes da Fajã Grande.
Da Fajã faleceu, para além do mestre, Leonardo José da Silveira de 26 anos e sua esposa, Maria de Jesus de 20 anos, que haviam casado no ano anterior, na igreja paroquial da Fajãzinha. Faleceram ainda alguns jovens, um de apenas dezassete anos, chamado José filho de João de Freitas, uma rapariga de nome Maria, de vinte anos filha de João António da Silveira. Faleceram ainda José António Galo de quarenta e três anos, Esperança de Freitas de cinquenta e oito e José de Fraga Henriques de quarenta. A jovem natural da Fajazinha que também faleceu neste desastre chamava-se Maria e tinha 20 anos. Não se sabe ao certo quantos passageiros o barco transportava nem, consequentemente, o número de pessoas que se salvaram.
Autoria e outros dados (tags, etc)
TABUINHAS E FORMAS
Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, praticamente, todas as casas tinham uma ou mais tabuinhas de madeira e várias tiras de lata, cada uma das quais se podia transformar numa espécie de círculo, de vários tamanhos. Eram os tradicionais utensílios necessários ao fabrico do queijo e ao seu posterior tratamento.
As tabuinhas eram fáceis de arranjar, pois eram simplesmente pequenos pedaços de madeira de criptoméria, geralmente excedentes do assoalhar ou tabicar da própria casa, da de um vizinho ou amigo ou de quem quer que fosse e que deles não necessitasse. Outras vezes tábuas pedidas nas lojas de comércio e que sobravam dos caixotes de sabão. Mas como nos anos cinquenta muitas famílias da Fajã procediam ao arranjo e melhoramento das suas casas, quer tabicando as salas e os quartos de cama, até aí sem forro e com os tirantes à mostra, quer assoalhando as cozinhas, muitas das quais, na altura, ainda tinham chão de terra ou de tijolo, era fácil arranjar as ditas tabuinhas. Mas havia também quem não as conseguisse obter. Nesse caso ou ficava com as que os antepassados lhes haviam deixado como herança ou adoptavam e adaptavam, então, a frágil madeira dos caixotes de sabão, que os comerciantes da freguesia, de vez em quando lá iam deitando fora. Num caso e noutro estas tabuinhas deviam ser sempre muito bem lavadas e limpas.
As formas feitas de lata, por sua vez, eram adquiridas no único latoeiro da freguesia, o Antonino de Francisco Inácio, pelas quais geralmente não levava dinheiro, uma vez que também eram resultantes das sobras das latas que ele próprio ia fabricando e vendendo. As formas deviam ser muito bem furadinhas pelos lados e eram presas nas pontas formando um círculo e sendo amarradas com um pano ou cordão, o que permitia torná-las maiores ou menores, consoante a quantidade de leite que se tinha disponível para fazer o queijo, assim como para apertar o queijo à medida que ele ia “curando”.
Depois era deitar o coalho no leite morno e esperar para que coalhasse. Uma vez coalhado o leite era colocado aos poucos dentro da forma, prensado com a mão, colocando-a, de seguida, sobre a tabuinha, ficando assim, suspensa em cima de uma selha, de forma a escorrer o soro pelos furos, permitindo que este fosse aproveitado para alimento dos porcos. No que às formas diz respeito, havia geralmente em todas as casas uma maior e mais alta, destinada, fundamentalmente, fazer os queijos com “crostes”, ou seja com o leite tirado às vacas nos oito dias seguintes a “dar bezerro” e durante os quais não podia ser vendido pois era impróprio para ser desnatado.
Depois de retirados das formas os queijos eram colocados a “curar” em armações de canas presas nos tirantes da cozinha, a fim de que nem as crianças e os gatos a eles se atirassem…
Autoria e outros dados (tags, etc)
MORCELAS
Na Fajã Grande, como em todos os outros lugares, freguesias ou regiões do país, as morcelas eram feitas por altura do Natal, normalmente nos dias que o antecediam, sendo confeccionadas no próprio dia da matança do porco.
Para a sua realização utilizavam-se as tripas grossas, o bucho e o velho, sendo tudo muito bem limpo, lavado, tornado a lavar, virado e revirado, areado com laranjas azedas, folhas de cebola e farinha e novamente muito bem lavado até ficar completa e absolutamente limpo. Como,”sem sangue não se fazem morcelas”, o sangue do porco era ingrediente obrigatório. Para tal o porco devia ser muito bem degolado a fim de “deitar” a maior quantidade de sangue possível, o qual era aparado num enorme alguidar, onde se juntava uns punhados de sal, mexendo-se constantemente com as mãos ou com colheres de pau, para que não coagulasse. Ao sangue de um porco normal ou médio devia juntar-se mais ou menos um quilo de arroz cozido, duas tigelas médias de rama de cebola picada e também cozida, duas mãos cheias de salsa picada, alhos igualmente picados, pedacinhos de carne e de toucinho da barriga e temperos variados: canela, cominhos, noz-moscada, cravo-da-índia, sal e malaguetas. Um pormenor curioso era o de que a rama da cebola depois de cozida deveria ser muito bem espremida, o que se fazia geralmente apertando-a dentro de uma toalha ou outro pano. Uma vez juntos todos os ingredientes, misturavam-se muito bem, provava-se e acertavam-se os temperos, deixando-se repousar durante algumas horas.
Só então se enchiam as tripas grossas, o bucho e o velho com todo este preparado, devendo atar-se, antecipadamente, uma das extremidades da tripa com um fio barbante ou outro que se tivesse mais à mão. As tripas não deviam ser muito cheias ou acoguladas a fim de não rebentarem, sobretudo durante a cozedura. Depois de encher a tripa, amarrava-se a outra extremidade, prendiam-se os fios das duas pontas uns nos outros de modo a que a morcela formasse uma espécie de semicírculo, prendiam-se pelos cordões em grupos ou cachos, em varas de vime e mergulhavam-se, durante algum tempo, em água a ferver e a que, antecipadamente, se juntara um mão cheia de sal. Para saber se as morcelas já estavam cozidas, retirava-se uma e bicava-se com uma agulha; se não vertesse sangue era sinal de já estarem cozidas e prontas a retirar.
As morcelas geralmente serviam-se cortadas às rodelas ou fritas em banha e comiam-se acompanhadas de pão de milho, de bolo, de batata-doce ou de inhame. Eram um excelente e saboroso manjar! Também se guardavam algumas, debaixo de banha, para se conservarem melhor e comerem mais
Era tradição, em muitas casas da Fajã Grande, cozer os pés do porco junto com as morcelas, os quais, juntamente com o bucho, constituíam a ceia no dia da matança, na qual participavam apenas as pessoas da casa e uma ou outra mais chegada ou amiga.
Autoria e outros dados (tags, etc)
TOUCINHO DIVINO
“Nosso Senhor dá toucinho, a quem não tem cambeiros.”
Adágio ou dito popular usado na Fajã Grande para significar que há pessoas que não merecem o que têm porque não o sabem utilizar. Pode considerar-se como semelhante ou equivalente a um outro muito conhecido “Deus dá nozes a quem não tem dentes.”
Autoria e outros dados (tags, etc)
CAPACHOS DE CASCA DE MILHO
Devidamente trabalhados e esteticamente perfeitos, os capachos elaborados com casca de milho, na Fajã Grande, eram de muita utilidade. Os capachos mais novos e confeccionados com maior cuidado reservavam-se, com requinte e orgulho, para a porta da sala, onde apenas as visitas mais importantes limpavam os sapatos. Os mais toscos e já demasiadamente usados eram colocados na porta ou portas da cozinha, por onde diariamente passavam muitos pés sujos, algumas botas enlameadas e um ou outro sapato de pele de cabra cheio de esterco. Uns e outros, porém, constituíam os únicos meios de atapetar as entradas de acesso às moradias, impedindo assim, num caso e noutro, que o soalho da casa, esfregado com escova e sabão, de uma ponta à outra, apenas uma vez por semana, se conservasse o mais limpo e asseado possível.
De fabrico caseiro e pessoal, o fabrico destes capachos passava por uma fase inicial, que consistia em escolher cuidadosamente as cascas de milho mais perfeitas e adequadas. Não eram utilizadas as exteriores e das interiores era imperioso escolher as mais duras e com maior resistência, as quais eram, de seguida, divididas em lâminas com cerca de meia polegada cada uma. Depois era necessário e imperioso ter a arte e o engenho para entrelaçá-las umas nas outras e fazer uma enorme trança, semelhante à dos cabelos das meninas, mas em que as pontas e as extremidades mais ásperas das cascas ficassem todas para o mesmo lado. Uma vez terminada a trança com o comprimento desejado e necessário ao tamanho do capacho, calculado por estimativa, a trança era cosida do interior para exterior, geralmente com fios de espadana. Seleccionados uns bons centímetros de uma das pontas da trança, ia-se enrolando, apertando, prensando, cosendo e recosendo à volta desta e do chumaço que aos poucos se ia formando o resto da trança, de maneira a que o capacho ficasse com uma forma quase oval. A face que continha as pontas e os rabos das cascas era a mais áspera e que ficava voltada para cima, a fim de que nela rastejassem pés e calçado, enquanto a outra mais lisa e direita constituía a parte que assentava sobre o soalho.
Os capachos de casca de milho eram uma obra-prima que o tempo, as novas técnicas de fabrico e os materiais modernos foram apagando. Hoje são uma espécie de mito que apenas perdura na memória dos mais antigos.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A VELHA E A CABAÇA
(CONTO TRADICIONAL)
Era uma vez uma velha que vivia sozinha, na sua casa, numa pequena aldeia e tinha uma neta que morava muito longe. Certo dia, recebeu uma carta da sua neta a dar-lhe uma alegre notícia. Em breve, ia casar-se e convidava a avozinha para ir ao seu casamento.
A velha ficou muito contente e pôs-se, imediatamente, a caminho para não chegar atrasada ao casamento. Depois de ter andado alguns quilómetros, atravessando uma floresta, surgiu à sua frente um grande lobo que lhe disse numa voz rouca:
- Ai, velhinha, que eu como-te!
- Ai, não me comas, que eu estou muito magrinha. Vou ao casamento da minha neta e, quando de lá voltar, já venho mais gordinha! Poderás comer-me nessa altura.
- Está bem, na volta cá te espero! – Respondeu o lobo e deixou-a seguir o seu caminho.
Muito assustada a velhinha continuou a caminhar até à casa da neta. Quando lá chegou, contou tudo o que lhe acontecera e a neta acalmou-a dizendo que não haveria problema nenhum, que ela havia de regressar bem a casa. O casamento realizou-se e foi muito bonito, por isso, a velhinha estava muito feliz. Mas, quando se decidiu a voltar para a sua casa, começou a ficar com muito medo. A neta correu ao quintal, cortou a cabacinha maior e mais redondinha que lá tinha, abriu-a numa das extremidades e escondeu a avó lá dentro. A neta voltou a fechar a cabacinha. Assim, a velha iniciou a viagem rebolando, dentro da cabacinha, pela estrada fora. A certa altura, ao passar ao pé do lobo, este perguntou:
- Ó cabacinha, não viste por aí uma velhinha?
A velha de dentro da cabacinha respondeu:
- Não vi velha nem velhinha, não vi velho nem velhão. Corre, corre cabacinha, corre, corre cabação.
O lobo fez cara de admirado, mas a velha, dentro da cabacinha, continuou rebolando pela estrada fora, até chegar à sua casa sã e salva.
Autoria e outros dados (tags, etc)
NÂO VIOLÊNCIA
“A humanidade não pode libertar-se da violência senão por meio da não-violência.”
(Mahatma Gandhi)
Autoria e outros dados (tags, etc)
O PICO EM NOVEMBRO
O Pico, em Novembro, é um oásis de serenidade, um paraíso de bem-estar, uma espécie de reserva de sossego ou um seleiro de tranquilidade, onde as manhãs são uma comunhão permanente com a natureza, as tardes ombreiam com o verde perene da montanha, diluindo-se, ao fim do dia, no azul plácido do oceano, enquanto as noites se aproximam, rápidas, a galvanizarem-nos, numa terna e envolvente quietude que nem as estrelas espanta.
O Pico, em Novembro, lisonjeia-nos com o silêncio estonteante das brisas matinais, entrelaçado com o chilrear irreverente e estouvado da passarada e com os murmúrios maviosos das marés, incensa-nos com os salpicos adocicados duma maresia adormecida, ondulada, apenas, com o sulcar dolente das quilhas das embarcações, a rilharem em redopio, na demanda de chicharros e bonitos.
O Pico em Novembro, enleva-nos no aroma vertiginoso do mosto efervescente das adegas, encharcado de lava e perfumado a enxofre e embala-nos no escurecer zonzo e colaço das noites claras, luminosas, embebidas de luar e de sublimidade. No Pico, em Novembro, até a lava dos currais se torna mais negra, a sombra dos maroiços mais entontecida, o piso das veredas mais atapetado, os murmúrios das florestas mais inebriantes, o vai e vem das marés mais atrevido, os gritos dos cagarros mais sibilantes e os fluxos do horizonte, estranhamente, melhor delineados.
No Pico, em Novembro, há castanhas e araçás a atapetar o chão de lava doirada, batatas-doces a transbordarem dos cerrados e folhas amarelas, aureoladas de perfumes e aromas, dançando nos ares como bonecos embriagados que amedrontam o vento e afugentam tumultos intempestivos, perturbantes e aterradoras.
No Pico, em Novembro, há sobretudo, um Sol que, embora tímido, é gratificante e consolador, a desfazer madrugadas sombrias e enevoadas e a aniquilar, por completo, as tardes escurecidas e anuviadas. No Pico, em Novembro, florescem crisântemos e miosótis a amansarem a saudade inaudita dos que já partiram para a eternidade.
No Pico em Novembro há uma estranha força telúrica que nos atrai, prende e enleva. A Ilha Montanha, qual gigante adormecido no meio do atlântico, cobre-se com mantos de tonalidades variadas onde predomina o verde pardacento das encostas, o azul dourado do oceano, o amarelo suculento das folhas secas, o vermelho dos araçás e das maçãs e o negro enigmático das paredes das adegas, dos currais, dos maroiços e de uma ou outra casa. O Pico, em Novembro cobre-se de sons suaves e melodiosos, de sinfonias contagiantes e deleitosas que ecoam pelas encostas e colinas e salpicam de espuma esbranquiçada o alvorecer tranquilo e esfuziante de cada dia.
No Pico, em Novembro, os vales e os montes, as encostas e os penhascos, os atalhos e as veredas, os currais e os maroiços irradiam perfumes contagiantes e atraentes que calcificam o espírito e impingem ao corpo um sopro de sustentável leveza.
No Pico, em Novembro, a alta e esconsa Montanha ergue-se mais imponente do que nunca e, quando descoberta, deixa livre a suprema sensação de se viver entre a terra e o céu.
No Pico, em Novembro, as vilas, os povoados, as casas esbranquiçadas e espalhadas ao longo das encostas ou mesmo as construídas com blocos de lava preta junto ao mar brilham, fulguram, luzem e reluzem, alinhadas entre o negro clarificante dos baixios e o verde fresco da vegetação dos cabeços, sobre o amparo ternurento da Montanha.
No Pico em Novembro, o mar enche-se golfinhos e bonitos, de castanhetas e peixes-reis, de sargos e abróteas e até as cagarras aproveitam o sossego das noites, para ensaiarem os seus bailados debutantes.
No Pico em Novembro, prova-se o vinho, celebra-se o São Martinho e até a chamarita tem um sabor mais atraente e a lava um perfume mais delirante.
O Pico, em Novembro, é uma espécie de súmula de um pequeno mundo construído durante séculos por baleeiros, agricultores e pescadores, onde proliferam os seus minúsculos povoados, sublimes e aconchegantes, debruçadas sobre o mar, a espreitar a bonança que renasce em cada madrugada e se ofusca, suavemente, com a edificação dos crepúsculos outonais.
O Pico, em Novembro é um paraíso, um sonho para todos os amantes do silêncio e da natureza, para quem anseia envolver-se entre o rendilhado negro e rude dos baixios, apreciar o verde flutuante das encostas, acariciar o amarelado das folhas debilitantes dos vinhedos, penetrar nos campos calafetados de lava ou até subir a imponente Montanha, conquistando uma enigmática e inesquecível sobrenaturalidade.
O Pico, em Novembro, é um sonho bordado a púrpura, um paraíso ungido com encanto, um éden pincelado com silêncio.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O ABALO
Em toda a escola não se falava noutra coisa. Um sismo de grau seis na escala de Richter, embora com epicentro no alto mar, a uma razoável distância da costa portuguesa, varrera todo o Norte do país, com maior incidência nas regiões do Minho e Douro Litoral.
Na sala de professores, onde se comentava o catastrófico acontecimento com maior proficiência e sabedoria, não havia um único professor que o não tivesse sentido. Uns tinham apanhado um grande susto, outros não tinham sequer pregado olho toda a noite e alguns afirmavam a pé juntos que tinham saído para a rua e só ao romper do dia haviam regressado a casa. Nos pátios e corredores funcionárias e contínuas, por entre laivos de embaraço e de pânico, afiançavam com acentuados exageros que tinha parecido o fim do mundo e que só por milagre divino ou por graça de algum santo da sua predilecção é que prédios, casas, muros e paredes não haviam desabado sobre nós.
De facto, na escola, todos eram unânimes em considerar que fora uma noite de medo, de angústia e de sofrimento a que ninguém ficara alheio. Enfim uma catástrofe que, embora não tivesse provocado, ao que se soubesse, prejuízos materiais ou humanos, deixaria marcas indeléveis, por muito tempo, na memória de todos.
A verdade é que eu também sentira um medo enorme. Mas, aproveitando o meu estatuto de único açoriano existente na escola, cuidei que esta seria uma rica oportunidade de ocultar o meu temor, revelando assim uma força superior que afinal não possuía. Por isso, com um misto de desusada bazófia, comecei a armar-me em perito fictício em sismologia, garantindo com algum exagero que aquilo não tinha sido nada comparado com as crises sísmicas tão frequentes e tão dramáticas nas ilhas açorianas e que eu, noutros tempos, vivera tão de perto. É verdade que, durante a minha infância, a ilha das Flores me poupara a tais catástrofes. Não havia registo escrito ou memória de um abalo sísmico na ilha, o que na realidade era confirmado pelo postulado científico de que as estruturas arquitectónicas das Flores e do Corvo estão situadas na placa do continente americano, devido a uma fenda que as separou das outras sete, há milhões de anos, provavelmente, no decurso de uma crise sísmica submarina muito violenta. No entanto, mais tarde, e já em plena juventude, a eles bem me habituara, quer durante a minha permanência em Angra quer mais tarde na ilha do Pico. Mas no fundo bem compreendia a agitação geral provocada pelo sismo da noite anterior a que ninguém escapara e o medo que todos, mas mesmo todos, tinham sentido e a que eu próprio não fora alheio, pese embora o tentasse disfarçar.
Após o toque para a aula das dez, ao atravessar os recreios, verifiquei que a agitação que tal calamidade provocara nos adultos também se estendera às crianças, pese embora a sua média de idades rondasse os dez ou onze anos. Percebia-se perfeitamente nas suas palavras, nas suas atitudes e nas suas brincadeiras uma desusada e como que sinistra tribulação. Por isso, ao entrar na sala e, antes de iniciar a aula, fui forçado, como fazia sempre que ocorria algum acontecimento extraordinário, a dedicar um bom par de minutos, a ouvir e a conversar com os alunos, até porque, neste caso, senti que seria necessário e imperioso, por um lado, desanuviar-lhes algumas inquietações e tumultos e, por outro, transmitir-lhes alguma calma e tranquilidade. Que não tivessem medo. Que tinha sido um abalo pequeno. Que o norte de Portugal era uma zona do globo terrestre onde raramente se verificam abalos de terra e que os que aconteciam eram geralmente de fraca intensidade e sem grandes prejuízos materiais ou humanos. Depois tentei, a muito custo, indicar-lhes alguns procedimentos a ter na ocasião em que, eventualmente, acontecesse um outro sismo. Impossível transmitir-lhes o que quer que fosse! É que todos queriam falar e contar o que tinham sentido e vivido durante aquele trágico momento da noite anterior. Por isso a todos dei a oportunidade de o fazer, obrigando-me assim a abdicar do plano que havia tão meticulosamente elaborado para aquela aula de expressão escrita, transformando-a, de forma improvisada, numa aula de oralidade.
Uns mais outros menos, todos contaram algo do que tinham sentido e vivido e que os havia preocupado na noite anterior e que ainda os preocupava. Todos… excepto o António - um matulão de mais de catorze anos, que habitualmente se sentava sozinho, ao fundo da sala, sempre distraído mas sempre calado, sempre a leste de tudo o que ali se passava e mais sabido nas lides da vida quotidiana do que nas letras e nas ciências. Como não se manifestasse interroguei-o com a denodada intenção de poder apreciar e até, eventualmente, corrigir a sua expressão oral, item pelo qual também o havia de avaliar no final do período:
- Então, António? Não sentiste o abalo de terra, esta noite?
Resposta pronta do molengão:
- Eu?!... Eu, setor?... Eu acordei e ouvi a minha casa toda a tremer, mas pensei que era o meu pai e a minha mãe que, esta noite, estavam mais entusiasmados com “aquilo”.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O BOLO DO TIJOLO
Sabe-se hoje que o milho apenas começou a ser cultivado nos Açores no século XVIII e que os fornos de lenha só foram autorizados nas ilhas a partir do ano de 1766. Além disso, nessa altura, eram apanágio exclusivo dos capitães-donatários e das famílias mais ricas. Mas mesmo quando generalizado o uso do forno pelas famílias mais pobres e pelo povo em geral, pelo menos nas Flores, quer o pão de trigo quer o de milho, eram cozidos apenas pelas festas, muitas vezes em casa de um vizinho ou de um amigo ou familiar, que possuísse forno. Não há dúvida pois que foi o bolo cozido em tijolos que alimentou durante anos e anos a população da maior parte das ilhas, nomeadamente a das Flores.
A Fajã Grande não fugiu à regra e, sendo assim, é muito provável que os seus primeiros habitantes recorressem ao tijolo para cozer o bolo, alimento fundamental no seu cardápio quotidiano, utilizando a farinha produzida através do cereal que haviam trazido e introduzido na região os primeiros povoadores – o trigo. Sabe-se também que em tempos de más colheitas, de secas, de fomes e de peste os habitantes da Fajã e de outras localidades das Flores, em tempos idos, até terão recorrido às raízes dos fetos, da junça e até do jarro ou do grão do tremoço para fazer farinha e cozer bolo, juntando-a assim à do trigo, rara e escassa ou até substituindo-a quase na totalidade.
Na Fajã, na década de cinquenta, ainda se cozia, com muita frequência, o bolo de milho em tijolos de barro, sendo muitos deles, na altura, substituídos pelas “chapas” de ferro, privilégio dos lavradores com mais posses. Mas os primitivos tijolos, onde ainda se cozia o bolo feito com farinha de trigo, chamado “parrameiro” (cf. Rui de Sousa Martins in “O Pão no Arquipélago dos Açores”) eram feitos com uma laje de pedra basáltica, devidamente cortada e polida.
Os processos de cozer o bolo, quer com farinha de trigo quer com a de milho, eram, no entanto, muito semelhantes. Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, o bolo do tijolo, de farinha de milho, era feito da seguinte maneira: a farinha de milho era peneirada para um selha de madeira ou para um alguidar de barro. De seguida era “aberta” no centro, fazendo-se uma cova onde se punha o sal, escaldando-a, isto é, deitando-lhe em cima uma boa quantidade de água a ferver, mexendo-se rápida e energicamente com uma enorme espátula de madeira, conhecida por “pá do bolo”. Este bolo, cozido na Fajã Grande, não levava fermento. Depois de escaldada, a massa devia arrefecer. A seguir juntava-se a mistura, na altura um pouco de farinha de trigo. Antigamente porém, e dado que a farinha de trigo tinha que ser comprada, a mistura utilizada era o inhame ou a batata-doce raspados. Hoje ainda há quem misture a batata doce raspada à massa do bolo, tornando o produto final extremamente saboroso. Finalmente amassava-se e formavam-se bolas que depois se achatavam com maior ou menor altura, colocando-as em cima de uma superfície lisa, sendo depois cortadas em quatro quartos que se iam colocando sobre o tijolo, depois de afogueado, bem quente e polvilhado com farinha. Quando se pressentisse que o bolo já está cozido de um lado, virava-se, com a ajuda de uma faca, colocando a outra face sobre o tijolo até a mesma se cozer. Esta operação requeria alguma atenção, a fim de evitar que o bolo não queimasse de nenhum dos lados.
Este bolo “saído do tijolo” a ferver, migado e misturado numa tigela de leite fresco ou então já frio, no dia seguinte a ser cozido, mas no leite fervido, na década de cinquenta e anteriores, era a “ceia” diária da maioria das famílias da Fajã Grande, sendo por vezes, e nas casas dos lavradores mais abastados, acompanhado com um pedacinho de queijo, com uma torta, com conduto de porco ou até com uma sopa de agrião.
Autoria e outros dados (tags, etc)
OS “FIOS” DAS PALAVRAS DE ARTUR GOULART
Não é todos os dias que temos o privilégio de receber, como oferta, um livro de poemas. Esse privilégio, no entanto, torna-se supremo, se for o próprio poeta e autor do livro a distinguir-nos com tão excelsa regalia, embora, neste caso seja bastante mais raro.
Quanto a mim confesso que já tive essa honra duas vezes. Uma há muitos anos. O livro que, nessa altura, recebi como oferta e autografado pelo próprio autor, com uma pequena dedicatória, foi o livro “Caminhos”, da autoria de Valério Florense, pseudónimo literário do padre José Luís de Fraga, meu conterrâneo. Mais recentemente fui presenteado por Artur Goulart com livro “No Fio das Palavras” de que é autor
Artur Goulart foi meu mestre e companheiro. Homem de uma sensibilidade notável, de uma cultura elevadíssima e de um profundo saber, sobretudo no domínio das artes, foi o professor que durante mais anos me acompanhou como mestre ao longo da minha formação académica e de quem recebi, para além dos conhecimentos das disciplinas por ele leccionada, um notável exemplo de nobreza de carácter e de defesa de valores morais. Afável nas suas atitudes, compreensivo na nossa inquietude e alegre nas horas de convívio, Artur Goulart fazia das suas aulas autênticos momentos inesquecíveis de diálogo, de partilha, mas sobretudo duma aprendizagem eficaz e profícuo, utilizando, na década de sessenta, paralelamente a Edmundo Oliveira, audiovisuais nas suas aulas, o que as tornava obviamente, num e noutro caso, muito mais atractivas e motivadoras.
Ao receber “No Fio das Palavras” e recordando o meu saudoso mestre e actual companheiro, interroguei-me de qual seria o sentido deste “fio” das suas palavras. Li-as todas e voltei a ler alguns dos poemas, ou melhor reescrevi-os porque acredito que cada leitor ao ler um poema como que o reescreve à sua maneira. E descobri então que nestas palavras dos poemas de Artur Goulart existem, afinal, não um, mas três “fios”. Primeiro porque as palavras de Artur Goulart estão de tal modo escritas e elaboradas com tal sensibilidade que realmente parecem ligar-se umas às outras como o fio de um enorme e misterioso novelo. E é precisamente com esse suave e macio “fio” que elas contêm e encerram que vamos construindo, elaborando e tecendo, a pouco e pouco, imagens de sonho, de beleza e de graciosidade reais. É o que acontece se na realidade seguirmos esta espécie de “fio” “sobranceiro ao mar, à solidão, ao luar, ao vento, perdido nas ondas, carregado de bruma, de saudade, de distância...” construiremos facilmente as imagens de sonho dos nossos “ilhéus”. Mas as palavras de Artur Goular têm um outro fio cortante, uma espécie de gume com o qual as vamos abrindo uma a uma, penetrando no su interior semântico, bebendo a beleza profunda do seu significado e saboreando a amplitude magna da sua compreensão: “…na entrega há o segredo inteiro da subida.”. Mas as palavras do poeta ainda contêm um terceiro “fio”, aquele que derramam ou despejam sobre o leitor como uma espécie de bálsamo purificante, como um perfume de suavidade e doçura, como gotas enternecedoras de sublimidade que lentamente nos vão envolvendo numa perene e infinita maré de açorianidade: “Só/Ilha/o mar/ e eu.”,
Acrescente-se que o livro de Artur Goulart editado pela Santa Casa da Misericórdia da Vila das Velas, ilha de São Jorge, donde é natural, contém um excelente prefácio de Olegário Paz.