PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A LENDA DO POÇO DO BACALHAU
Contava-se, antigamente, que há muitos, muitos anos havia aportado aos mares da Fajã e ancorado ali mesmo, por fora do Boqueirão, um navio muito estranho e misterioso. Se de repente chegou, mais depressa se escapuliu, deixando em cima dos rochedos negros, um homem. Bondosas e humanitárias que eram as pessoas da Fajã, logo que encontraram o homem, de imediato se apressaram a ajudá-lo, dando-lhe alimentos, roupas, agasalhando-o e dando-lhe abrigo, durante a noite. Mais tarde, porém, vieram a saber que o homem era um deportado vindo de terras muito longínquas, onde havia praticado inúmeros crimes e cometido as mais vis barbaridades. Havia sido condenado e, para ser castigado para sempre, fora enviado e abandonado pelos seus conterrâneos na primeira ilha a que aportaram e que julgavam deserta, a fim de que se livrassem dele. Ficaria ali, sozinho, até ao fim dos seus dias, acabando por sofrer a paga de todo o mal que havia feito. Mas teve sorte o energúmeno, pois a ilha era habitada e o povo daquele lugar bondoso e caritativo, não se importando com o passado malévolo do facínora, tratando-o com carinho, respeitando-o com benevolência, aceitando-o com bondade. Mas o malvado não se comoveu com tamanha generosidade e, passados poucos dias, começou a assaltar, a roubar e a cometer as maiores barbaridades e as mais vis infâmias, sobre o povo, pobre, inocente e bondoso do pequeno povoado que o havia acolhido e ajudado inicialmente. O sacripanta não se coibia de roubar as colheitas aos pobres, de chibatear as pessoas que lhe ofereciam resistência ou o contrariavam e, sob chicote e ameaças, exigia às pessoas que trabalhassem para ele sem lhes pagar e obrigava os habitantes do humilde lugar a acarretar pedras para construir a sua própria casa. Ainda hoje se julga que foi este déspota deportado e militar que, roubando e escravizando o povo, construiu o solar Freitas Henriques, ao lado da igreja e que, por ter sido tão mau, tão criminoso e tão malfeitor, depois da sua morte, em vez de ter uma sepultura condigna, foi atirado ao Poço do Bacalhau, a fim de ali, naquele buraco sem fundo, ter o seu purgatório. Era essa a razão por que os todos os dias à noite, quem passava na Ribeira das Casas e se dirigia aos moinhos da redondeza, ouvia, vindos das profundezas do poço, gritos desesperados e aterradores que assustavam tudo e todos. Era a alma do deportado que ali expiava as suas culpas e pecados.
Eu por mim, confesso que nunca ouvi os gritos do facínora, mas tinha um medo enorme e nunca lá fui sozinho!
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A SENHORA MARIQUINHAS DO CARMO
Maria do Carmo Ramos Fagundes de seu nome, popularmente conhecida pela Senhora Mariquinhas do Carmo, nasceu na Fajã Grande das Flores, no dia oito de Agosto de 1903. Morava numa casa da Rua Direita, a que se tinha acesso por uma longa canada que existia junto à empena sul da Casa do Espírito Santo de Baixo, ao lado de um chafariz e do portão de entrada para casa do Gil e que se situava bem longe da principal e mais importante artéria da freguesia, lá para os lados da Rua Nova, paredes meias com o cemitério. Era casada, em segundas núpcias, com o senhor António Lourenço, do qual tinha três filhos, mas fora casada, uma primeira vez, com o senhor Lucindo Pureza, irmão do José Pureza e da senhora Josefina Greves, o qual faleceu bastante novo e, deste casamento, teve também uma filha. Enviuvou ainda muito nova. Curiosamente o segundo marido também era viúvo e pai de um filho, pois havia casado, inicialmente, com uma filha de tia Gonçalves que morava na Fontinha, ao lado da casa de tia Manceba.
Para além de irradiar uma simpatia contagiante, uma delicadeza desmesurada e uma dignidade incomensurável, o que mais caracterizava esta senhora, para além de uma excelente dona de casa e de uma mãe dedicada e esposa extremosa, era a disponibilidade, o espírito de ajuda e o carinho que dispunha para com todos os que, indiscriminadamente, lhe batiam à porta, a procuravam e lhe pediam auxílio, sobretudo para sarar maleitas e curar doenças. Na realidade a senhora Mariquinhas do Carmo disponibilizava, diariamente, os seus préstimos, as suas capacidades e as suas competência ajudando as parturientes, durante os partos, acompanhando-as nos dias seguintes e dando banho aos bebés, tratando os doentes dos seus achaques, curando os feridos das suas chagas. Era “muito entendida” como se dizia na altura a querer significar que a Senhora Mariquinhas do Carmo era muito competente, quer como parteira quer como enfermeira, apesar de não ter nenhum curso na área da saúde, nem em nenhuma outra área. Nem se quer fizera alguma formação ou tivera qualquer tipo de ajuda. Aprendera tudo por ela própria, com a sua dedicação, com a sua experiência, com o seu esforço, com a sua intuição, com a sua capacidade e com a sua própria vida. Dizia-se, na altura, que ainda era melhor a tratar os doentes do que o senhor padre da Fajãzinha, pessoa também muito entendida em questões de saúde e bastante procurada, nessa altura, para resolver variadíssimos problemas de relacionados com doenças ou feridas, dado que os médicos, na altura, rareavam nas Flores e quase nunca se deslocavam à Fajã.
Recentemente a Fajã Grande reconheceu o contributo desta sua ilustre filha, manifestou-lhe a sua gratidão e prestou-lhe a devida homenagem, atribuindo o seu nome a uma rua da freguesia, precisamente à antiga Rua Nova que assim passou a chamar-se Rua Maria do Carmo Fagundes, ou simplesmente Rua “Senhora Mariquinhas do Carmo”.
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HUMBERTA BRITES ARAÚJO
Humberta Brites Dias Jerónimo Araújo nasceu em Santa Cruz da Graciosa, em1959. Técnica de Informação Aeronáutica e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade dos Açores, publicou em 1978, Chamas na Noite, colectânea de poemas, altura em que ainda era aluna do Liceu Nacional de Ponta Delgada. Desenvolveu várias actividades culturais, nomeadamente no âmbito do teatro, tendo sido a autora de alguns dos textos já encenados. Tem sido colaboradora de jornais açorianos, publicou poesia, conto e crónica, tendo, mais recentemente, integrado a equipa de Pulsar, suplemento cultural do Açoriano Oriental.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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PESCAR SARGOS
Na Fajã Grande era costume dizer-se que quem dormitava por aqui ou por acolá, ou seja, fora do local e das horas em que o devia fazer e que, consequentemente, demonstrava evidentes sinais de fraqueza, de fragilidade e até de velhice, estava a “pescar sargos”, talvez devido ao facto de que a referida pesca, sendo, por vezes demorada e infrutífera, também, eventualmente, fosse cúmplice do sono.
Verdade é que ninguém, na Fajã, gostava de ser acusado de “pescar sargos”, nem de ser gozado por tão vergonhoso vitupério, pois era sinal de preguiça, de falta de capacidade para trabalhar e, sobretudo, sinónimo de debilidade. Era, de facto, um grave insulto, uma inaceitável ofensa, um imperdoável ultraje.
Certa noite, os homens, como habitualmente, faziam serão no Café da Chica, que de café não tinha nada, a não ser o nome. Dos presentes, uns jogavam à sueca num pequeno cubículo que havia nas traseiras. Outros, a maioria, debruçavam-se ou encostavam-se ao balcão, conversavam em voz alta, discutiam, apostavam, berravam, falavam na vida alheia, em suma, faziam uma algazarra que metia medo. Um ou outro ia bebendo um copo de anis, um traçado, uma cerveja ou uma laranjada. Quase todos fumavam, uns Quarenta e Três, outros Santa Justa e, os mais velhos, Raio do Sol. Sentados num banco, ao lado esquerdo da porta de entrada, alienados de toda aquela barulheira, meu pai e meu tio António Joaquim dormiam calma e profundamente.
Eis senão quando o Justino, pretendendo apreciar as reacções dos dois irmãos quando acordassem de caniço em riste, saiu da loja e voltou, pouco depois, trazendo duas canas, colocando uma na mão de meu pai e outra na de meu tio, simulando que eram caniços de pesca e que os dois estavam ali a “pescar sargos”. De seguida, sacudiu-os, gritou-lhes aos ouvidos e acordou-nos simultaneamente, enquanto os outros observavam atentamente o “fandaine”.
E não é que foi o bom e o bonito. Meu tio levantando-se de rompante, esbracejou, gritou, berrou, barafustou, praguejou e, pegando na cana com ambas as mãos, levou-a aos joelhos, partiu-a em mil pedaços, atirando-os à cara dos seus algozes, que riam às gargalhadas. Depois, levantando-se, saiu porta fora a lançar imprecações e insultos em todas as direcções. Que fossem todos para o raio que os parta, aqueles almas do diabo, aqueles “sanababichas”. Eram todos uns grandes “filhas da manha”!
Meu pai também acordou. Permanecendo sentado no mesmo lugar, em silêncio, viu e ouviu tudo. Depois de meu tio sair, pegou na cana e disse simplesmente:
- Já que me deram o caniço vou aproveitar para continuar a “pescar sargos”.
E fechando os olhos, voltou a adormecer, perante a admiração e o espanto de todos.
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FONTES E PONTES DO OUTONO
“O outono: ou seca as fontes ou leva as pontes.”
Interessante e curioso adágio fajãgrandense de índole meteorológica, utilizado no sentido real, com o intuito de alertar os trabalhadores ruais de que a estação do outono, na ilha das Flores, em termos de pluviosidade, é contraditória, porquanto ou é muito seca ou chove em demasia.
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PROVÉRBIOS SOBRE O NATAL
Uns citados de memória, outros retirados de livros, calendários e almanaques, aqui se transcrevem alguns provérbios populares sobre o Natal, muitos dos quais utilizados outrora na Fajã Grande e que estão assinalados com um asterisco:
“Ande o frio por onde andar, há-de vir pelo Natal.
Ande o frio por onde andar, no Natal cá vem parar.”
Caindo o Natal à 2ª feira, tem o lavrador que alugar a eira.
De S.ª Catarina ao Natal, um mês igual.
Do Natal a Santa Luzia, cresce a noite e mingua o dia.
Do Natal à Sta. Luzia, cresce um palmo em cada dia.*
Dos Santos ao Natal, cada dia mais mal; do Natal ao Entrudo, come capital e tudo.
Dos Santos ao Natal, é Inverno natural.*
Dos Santos ao Natal, um salto de pardal.*
Mal vai Portugal se não há 3 cheias antes do Natal.
Não há ano afinal que não tenha o seu Natal.*
Não há porco que não tenha o seu Natal.*
Natal em casa, junto à brasa.
Natal na praça, Páscoa em casa. Natal em casa, Páscoa na praça.*
No Natal semeia o teu alhal se o quiseres cabeçudo, semeia-o pelo Entrudo.
Pelo Natal se houver luar, senta-te ao lar; se houver escuro, semeia outeiros e tudo.*
Pelo Natal, cada ovelha no seu curral.
Pelo Natal, neve no monte, água na ponte.
Pelo Natal, sachar o faval.*
Pelo Natal, tenha o alho bico de pardal.
Quando o Natal tem o seu pinhão, a Páscoa tem o seu tição.
Quem quer bom ervilhal semeia antes do Natal.*
Quem varejar antes do Natal, deixa o azeite no olival.
Se te queres livrar de um catarral, come uma laranja antes do Natal.*
Tudo a seu tempo, e os nabos no Advento.
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"INVICTUS" - NELSON MANDELA
(Invictus é um pequeno poema do poeta Inglês William Ernest Henley (1849-1903). Ele foi escrito em 1875 e publicado pela primeira vez em 1888.
Nelson Mandela levou-o escrito num pequeno pedaço de papel para a prisão e guardou-o na sua cela, durante os 27 anos do seu doloroso cativeiro.)
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Do avesso desta noite que me encobre,
Preta como a cova, do começo ao fim,
Eu agradeço a quaisquer deuses que existam,
Pela minha alma inconquistável.
Na garra cruel desta circunstância,
Não estremeci, nem gritei em voz alta.
Sob a pancada do acaso,
Minha cabeça está ensanguentada, mas não curvada.
Além deste lugar de ira e lágrimas
Avulta apenas o horror das sombras.
E apesar da ameaça dos anos,
Encontra-me, e me encontrará destemido.
Não importa quão estreito o portal,
Quão carregada de punições a lista,
Sou o mestre do meu destino:
Sou o capitão da minha alma.
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O ENSINO NA FAJÃ GRANDE NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Na Fajã Grande, na década de cinquenta, as pessoas que haviam nascido nos finais do século XIX e nos primeiros anos do século XX, e que na altura rondavam os cinquenta ou sessenta anos, quase na totalidade, não sabiam ler ou escrever, embora uma ou outra soubesse assinar o seu nome. Era pois uma geração analfabeta, a dos nossos avós, embora possuindo uma cultura rica em tradições, em costumes e em douta sabedoria popular.
Mas este analfabetismo que grassava por quase toda a freguesia, significava que o ensino nos primeiros anos do século XX pura e simplesmente não existira na Fajã ou então que teria sido bastante deficitário, pese embora, desde os tempos do Marquês de Pombal se evidenciassem esforços, em Portugal, no sentido de difundir a instrução primária por todo o país e de, mais tarde, em 1911, após a implementação da República, se ter estabelecido a obrigatoriedade do ensino primário dos sete aos dez anos, em todo o país. Na realidade, o ensino primário teve origem nas aulas de ler, escrever e contar que, até 1759, estavam a cargo de ordens religiosas, dado que os clérigos eram as únicas pessoas que tinham acesso ao ensino, destacando-se os Jesuitas que, nessa altura, já dispunham de um plano curricular único para ser aplicado em todas as suas escolas. Em 1759, o marquês de Pombal retira o ensino ao clero e procede à sua estatização, criando as chamadas “aulas régias” que, mais tarde, no século XIX, deram origem ao ensino primário. Durante a Monarquia Constitucional e a Primeira República foram efectuadas várias reformas do ensino primário, acabando por torná-lo obrigatório, em todo o país. No entanto, essa obrigatoriedade nunca saiu do papel e só veio a ser efectivada já durante o Estado Novo, mas mesmo assim demorou a atingir todo o território nacional.
Foi o que aconteceu na Fajã, onde tudo terá demorado a chegar e a implementar-se devidamente, dadas a sua distância e o seu isolamento. Segundo o relato de algumas pessoas mais velhas, por essa altura, não havia escola propriamente dita, em nenhum edifício ou sala pública, sendo possível, no entanto a uma ou outra criança, regra geral as mais inteligentes e que eram identificadas ou referenciadas pelo pároco na catequese, conseguisse aprender a ler e a escrever e adquirisse os conhecimentos básicos propostos pelos programas da altura. Segundo esses mesmos relatos, as aulas geralmente eram dadas em casa do próprio professor, que ensinava letras e números, ou seja, Português e Matemática, destinando-se, no entanto, a um número muito reduzido de crianças. Findos alguns anos, esses alunos estavam preparadas para fazer o exame da chamada 3.ª classe, a última do ensino primário, nessa altura. Esse exame no entanto, apenas poderia ser feito em Santa Cruz, com um júri especializado.
Mas embora todos os alunos que frequentavam as casas desses professores, geralmente, estivessem habilitados e bem preparados para o exame, nem todos o faziam, por um lado, porque os pais não viam vantagem nisso e por outro porque teriam de abdicar de um ou mais dias de trabalho e fariam alguma despesa ao deslocarem-se a Santa Cruz. Apenas as crianças que pretendiam continuar a estudar o faziam, mas isso era raro e quase exclusivo de algumas que, nessa altura, pretendiam, com a ajuda e colaboração do pároco, frequentar e estudar no Seminário de Angra.
A partir da década de vinte começou a haver salas de aulas públicas, com professores especializados, designados por “professores oficiais”, o que terá aumentado o número de alunos que frequentavam o ensino, criando-se mais tarde, na Fajã, duas escolas. A masculina que funcionava na Loja da Casa do senhor Padre Pimentel, na qual foi professor durante muitos homens um homem que marcou uma geração na Fajã Grande, o professor Orlando e que paralelamente ao ensino, desenvolveu uma intensa actividade cultural na freguesia. Outra figura de relevo e inesquecível na história do ensino na Fajã Grande foi o professor Santos, o qual, sendo viúvo na altura, casou na Fajã, onde viveu durante muitos anos. Por sua vez a escola feminina funcionava na casa de Espírito Santo de Baixo, onde as professoras alternavam com alguma frequência mas onde leccionou, também durante muitos anos e marcando uma geração de meninas, a esposa do Dr Mendonça, um médico que esteve radicado na Fajã, durante muitos anos, vindo mais tarde a fixar-se e a exercer a sua actividade na Madalena do Pico.
Apenas na década de cinquenta se juntaram as duas escolas, criando-se assim a “Escola Mista da Fajã Grande” que funcionou durante muitos anos na Casa do Espírito Santo de Baixo.