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SACHAR O MILHO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)

Domingo, 08.12.13

Quarta-feira, 3 de Julho de 1946

“Hoje foi um dia muito cansativo para mim e para algumas pessoas que me foram ajudar. Foi o dia de sachar o milho do meu cerrado do Mimoio. É que sachar milho já é um trabalho levado dos diabos, mas com este calor e num campo daquele tamanho… é de dar cabo dum homem da minha idade. Este meu cerrado do Mimoio é uma terra de cultivo muito grande, a maior que eu tenho e uma das maiores da Fajã. Talvez maior do que o meu, só o cerrado de Ti’Antonho do Alagoeiro, nas Queimadas. Isto, claro, para não falar das terras junto do mar, onde também existem cerrados muito grandes. Mas como o meu Mimoio há poucos! Aquilo é terreno bom pra milho, pra trevo e erva da casta, para batata-doce, para tudo. O pior é acarretar o milho para casa, pois o acesso às terras do Mimoio é feito por canadas muito estreitas e em mau estado, onde não passa nem carro de bois nem corsão. Assim o milho tem que ser todo trazido às costas para o largo da Ribeira das Casas, onde é carregado em carro de bois e transportado para casa. Uma trabalheira! Mas sachar um cerrado deste tamanho também dá muito trabalho e provoca grandes canseiras. A minha sorte foi ter tido muita ajuda. Meu compadre Mateus e a comadre Inácia, como sempre, não faltaram. Também foram ajudar-me as minhas cunhadas, duas amigas da minha Maria e um dos rapazes do Bernardo Greves que dá dias para fora. É um bom trabalhador, este rapaz e leva apenas um alqueire de milho ou o seu valor em dinheiro que é de dezasseis escudos, por cada dia de trabalho, como é costume aqui na Fajã. As mulheres que lá estavam também ajudaram muito e por isso foi mais rápido. Eu sozinho a sachar aquelas campinas, nem daqui a um mês tinha aquilo pronto. Além disso o trabalho em conjunto parece render muito mais. Um homem pra ali a trabalhar sozinho não rende nada, desanima, não dá gosto nenhum. Agora um rancho como aquele que esteve hoje no meu Mimoio dá gosto ver. As mulheres até cantavam umas quadras brejeiras e antiquíssimas que eu já ouvia no meu tempo de criança. Mas não pensem que lá por estarem a cantar as mulheres não trabalhavam. Trabalhavam sim senhor, pois mesmo falando, cantando e rindo, todas estavam a levar a tarefa de sachar o milho muito a sério! Parecia que o trabalho até se tornava mais leve e mais suave. Eu pouco sachei, pois tinha que ir à frente desbastando o milho, ou seja, arrancando os pés mais fracos que estavam muito perto de outros e cujo crescimento iria prejudicar. Ainda me deu uns quantos molhitos de pés de milho que muito jeito me vão dar para alimentar a vaca e a gueixa durante uns dias.

A minha Maria e a irmã da comadre Inácia ficaram em casa, mas não estiveram de braços cruzados. Antes pelo contrário. Começaram logo de madrugada a preparar o almoço que haviam de nos ir levar ao Mimoio. Logo de manhã cozeram um caldeirão de inhames que raspei e preparei ontem à noite. Depois cozeram bolo no tijolo, guisaram um frango fritaram postas de peixe, torresmos e linguiça e fizeram dois grandes bules de café. Ainda há pouco o Sol tinha começado a dar na Rocha das Águas e elas chegavam, cada uma com o seu cesto à cabeça e um cabaz numa das mãos, enquanto com a outra segurava o cesto sobre a rodilha. Traziam inhames, batatas-doces e brancas, tudo já cozido e descascado, o conduto, um grande queijo e um cabaz de maçãs. Nos cabazes traziam os pratos, os garfos, as facas, as tigelas e dois bules de café, um com leite e açúcar e outro com café mais forte e só com açúcar. É que aqui na Fajã bebe-se muito café e há quem goste dele bem forte e preto, isto é, sem ter leite misturado.

Parámos o trabalho, sentámo-nos nos degraus do portal, puseram umas toalhas no chão e a comida em cima e todos comeram até se fartarem… e ainda ficou muita comida que foi guardada nos cestos para comermos a meio da tarde.

A seguir, com o pandulho bem cheiinho, voltamos ao trabalho, eu, à frente, a desbastar e os outros a sachar e a arrancar algum pé de monda que lhe aparecesse pela frente. Aqui na Fajã sacha-se o milho, não em pé mas com as costas dobradas ou de cócoras. È verdade que é bem mais cansativo, mas o trabalho fica muito mais perfeito, pois uma mão puxa o sacho e a outra arranca e sacode a terra da monda, atirando-a para um monte ou deixando-a em cima da terra para que ela seque e apodreça. Além disso ainda se junta sempre um montinho de terra para junto de cada pé de milho, a fim de que possa resistir aos ventos e temporais vindos ali do norte, de cima da Rocha da Ponta.

É muito cansativo este trabalho de sachar, sobretudo quando nos esforçamos para que o trabalho fique perfeito.”

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publicado por picodavigia2 às 22:38

A PEDRA D'ÁGUA

Domingo, 08.12.13

Lado a lado com o Outeiro Grande e até beneficiando da mesma canada de acesso, a Pedra d’Água apenas igualava aquele idílico e produtivo local da Fajã Grande na qualidade das suas pastagens, mas ultrapassava-o, de longe, na extraordinária situação geográfica de que beneficiava e que lhe concedia o estatuto de um dos mais belos lugares da freguesia.

É que a Pedra de Água, um dos lugares mais pequenos da Fajã, era, na realidade, um local onde apenas havia pastagens, mas estas eram possuidoras de uma tal qualidade que ombreavam, e de que maneira, com as do Outeiro Grande e com muitas outras dos vários locais dos arredores. De resto mais nada possuía a Pedra d’Água, a não ser a magnífica vista que dali se desfrutava. Nem cerrados ou belgas de cultivo, nem terras de mato e mesmo as relvas eram poucas, porque o lugar da Pedra d’Água, na realidade, era minúsculo em extensão. Mas o que mais o caracterizava e o distinguia de muitos outros era a sua localização no alto de um enorme planalto, debruçado sobre a Fajã e já quase no termo do Outeiro, desfrutando, na realidade, de uma maravilhosa vista sobre a freguesia. Se por ali passasse uma estrada, com certeza, se havia de construir um miradouro naquele local. Dos lados oeste e sul, ficavam os contrafortes do Pico, o planalto da Cuada e a Rocha da Fajãzinha, a abarrotar de água, de verdura e de imponência. Em frente, a sul e sudoeste e bem escarrapachado aos nossos olhos, o mar, na sua enorme imensidão, calmo, infinito e azulado nos meses de verão, altivo, revolto, turbulento, umas vezes esbranquiçado, outras, encardido, no inverno. Lá bem plantado no meio, o Monchique, um pedaço de basalto negro, como que deixado ali pelos deuses, ladeado pela Baixa Rasa, com um retoiçar contínuo das ondas ao seu redor, a envolverem e a abraçarem sem disfarce e sem vergonha, a extensa fajã e a salpicarem os rochedos negros e os currais de couves e milho do Areal e das Furnas ou a perderem-se entre as pedras alisadas do rolo. A separar a terra e o mar, um rendilhado, todo ele negro, todo ele basáltico, o baixio com os seus caneiros e enseadas, onde se destacavam o Redondo, a Retorta, o Caneiro das Furnas, a Baia de Água e o Poceirão com o Calhau da Barra a fiscalizar passagem para o Atlântico. Mais além, espraiava-se a enorme Baía, debruada pelo Rolo, um amontoado inaudito de pedras polidas e arredondadas, estendendo-se ao longo da Ribeira das Casas e das Covas, do Vale de Linho e do Castelo, desde o Pesqueiro de Terra ao Ilhéu do Cão, metamorfoseando-se de novo em baixio, lá ao fundo, junto à rocha da Ponta. Já mais perto, a igreja rodeada pelas casas ordenadas em arruamentos simétricos, umas brancas, outras cinzentas e escuras, com os seus telhados acastanhados, aglomerando-se e misturando-se com cerrados, belgas e courelas onde florescia milho, batatas e couves. Mais perto ainda, já como que a prolongar-se pelas encostas do Outeiro, do Pico da Vigia e do Mimoio, pequenas pastagens e algumas terras de mato galvanizadas de um verde de tons diferenciados, onde se misturavam incensos, faias, canas, fetos e cana roca. Finalmente, mas muito distante, a Norte, já para além da Ribeira do Cão, a Ponta, onde as casas se postavam em fila, muito bem arruadas, na direcção da ermida da Senhora do Carmo, aninhadas nos contrafortes da rocha. Contrastando com o Oceano e do lado oposto, um semicírculo pétreo e altivo, formado pelas rochas da Ponta, das Covas, das Águas, dos Paus Brancos, dos Lavadouros e do Curralinho, povoadas de ribeiras e de cascatas onde a água se desprendia em fluxos ritmados e refulgentes sob o verde dos socalcos e o negro dos penhascos. Plantado ali mesmo em frente o Pico, com a casota da vigia da baleia bem lá no alto, à espera do foguete que despertasse os baleeiros de sonos e trabalhos e os açulasse em correria louca para o porto, lançando ao mar os botes, adormecidos nas ramadas do Porto Velho, que partiriam na procura e apanha do cachalote que o foguete anunciara. Finalmente e a sul, a segunda parte do semicírculo. Muito ao longe as Rochas da Figueira e dos Bredos a protegerem a Fajãzinha, onde as casas, tão distantes e tão pequeninas, se assemelhavam a minúsculos salpicos esbranquiçados, como que confundidos com a enorme mancha verde das terras de mato, dos campos e das pastagens. Depois a Cuada com a velhinha Casa do Espírito Santo e pouco mais de meia dúzia de minúsculas e envelhecidas habitações, dispersas e como que perdidas entre hortas e pomares, consubstanciando-se, mais adiante, na Eira-da-Cuada, com o Oceano, novamente extenso, resplendoroso e sempre predisposto a receber o volumoso caudal da Ribeira Grande, cuja foz se localizava logo a seguir à ladeira do Biscoito, já em terrenos da Fajãzinha. Finalmente a rocha da Alagoinha povoada de um número quase infinito de grotas, grotões e cascatas, muitas delas dia e noite a escorrer e a vazar, teimosamente, água sobre poços e ribeiras.

O nome deste maravilhoso lugar poderá muito bem ter a sua origem numa enorme pedra situada logo no início da canada que, bifurcando-se com a do Outeiro Grande, conduzia a estas paragens. Era um enorme tufo, encravado no chão, com a parte superior muito porosa e com alguns buracos que, quando chovia, se enchiam de água.

Meu pai tinha uma relva na Pedra d’Água e outra no Outeiro Grande. Curiosamente eram sempre as vacas que, chegando junto daquele calhau, por si próprias decidiam se o seu destino seria o de seguirem em frente até se encafuarem nas verdejantes e frescas pastagens da relva do Outeiro Grande, ou voltarem à esquerda, subir meia dúzia de degraus e procurar as vizinhas paragens da Pedra d’Água, onde existia uma outra relva, com não menos qualidade. Quanto a mim e quando era eu que as ia levar àqueles bucólicos paradeiros, bem preferia que elas escolhessem a Pedra d’Água, a fim de que mais uma vez me fosse dada a oportunidade de usufruir e apreciar a bela paisagem que dali se desfrutava e que, afinal, muito pouca gente na Fajã conhecia.

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publicado por picodavigia2 às 19:14

SÃO CORNÉLIO

Domingo, 08.12.13

Todos os anos, no mês de Setembro e após as prolongadas e danosas secas de verão que tanto prejudicavam os campos e as sementeiras, realizavam-se, as “Rogações” ou seja procissões que percorriam algumas das ruas da freguesia, durante as quais, recorrendo à invocação e intersecção dos santos, se implorava a benevolência e a protecção divinas, a fim de que, pura e simplesmente, chovesse. Assim, os produtos agrícolas, semeados e plantados nos campos, de tão raquíticos e definhados que estavam, haviam de tornar-se viçosos verdejantes e, consequentemente, mais produtivos.

Saídas da igreja, estas procissões seguiam, todos os anos, os mesmos trajectos e cumpriam, com rigor quase milimétrico, os seus percursos. Durante a caminhada cantava-se a Ladainha de todos os Santos, uma prece da Igreja Católica dirigida a Deus, mas com pedidos de intercessão à Virgem Maria, aos Anjos e aos Santos mais importantes da Cristandade. Assim e durante a recitação ou canto da Ladainha eram invocados, para além de Nossa Senhora, os Anjos, os Patriarcas, os Profetas e alguns dos Santos que constam no Martirológio da Igreja, a saber: os Apóstolos e Discípulos de Jesus, os Mártires, os Bispos, os Doutores da Igreja, etc. Após a invocação dos santos, a Ladainha terminava com uma série de súplicas a Deus, a fim de que Ele, ouvindo as orações e preces dos fiéis, lhes concedesse os seus mais legítimos desejos e lhes satisfizesse as mais urgentes necessidades. As normas litúrgicas, no entanto, permitiam que, relativamente aos Santos, se pudessem acrescentar outros nomes, o mesmo acontecendo no que às invocações dizia respeito.

Era isso que fazia o pároco, até por que, sendo o giro da procissão bastante longo, a ladainha tal com constava no “Liber Usualis” não chegava para meia missa. Ora entre os nomes que o prebendado, todos os anos, acrescentava aos constantes do cânon, era o de São Cornélio, papa e mártir que governou a Igreja Católica no séc. III, num dos mais difíceis papados da História, embora, também, num dos mais curtos.

Cismou pois o pároco de que havia de acrescentar à lista dos “Omnes sancti mártires” e logo a seguir aos “Sancti Gervasi et Protasi” a invocação de São Cornélio, santo que, na opinião do clérigo, possuía um currículo muito superior ao de outros que constavam oficialmente na ladainha, dado que o Santo, para além de mártir, tinha sido teólogo, pregador, bispo e papa. Ora acontecia que o pároco iniciava o canto da ladainha logo ao transpor do Guarda-Vento, com o “Kyrie eleison” e como a procissão seguia sempre com o mesmo ritmo, as invocações eram cantadas, todos os anos, junto às mesmas casas e sempre em frente às mesmas portas. A invocação de S. Cornélio não fugia à regra. Aquilo era certo e certinho! Sempre que a procissão rondava a casa do Sabino, o pároco, em frente ao portão de entrada, parecendo até que elevava mais a voz, atirava para os ares: “Sancte Cornelius”, ao que o povo humilde e contrito respondia em uníssono “Ora pro nobis”.

 O Sabino ouviu um ano, dois anos e começou a não achar muita piada àquilo, até porque já há muito desconfiava que, pelos recantos da freguesia, corriam, à boca pequena, uns estranhos e pouco abonáveis mexericos relativamente à fidelidade da sua consorte. Uma vez ou duas… não se dava por nada. Agora todos os anos, em frente à sua porta, aquela invocação tão estranha e esquisita… aquele santo maldito cujo nome fazia lembrar… Ai dava que pensar, dava. Não seria que o pároco… Não se conteve o Sabino e, em vez de se calar, perante a chacota de todos, começou a indignar-se, a revoltar-se e a ameaçar tirar razões com o pároco. Mas pior do que isso, cuidando que assim publicamente defendia a sua honra e a dignidade da sua consorte, indignou-se em plena Praça, barafustou no Descansadouro e foi tirar razões com o pároco, precisamente à hora da missa. Mas o prebendado retorquiu-lhe que nada podia fazer no sentido de alterar as normas litúrgicas impostas pelo Senhor Bispo ou sequer mudar o giro da procissão, contrariando as tradições e os costumes da paróquia. Além disso, fazendo-lhe uma síntese da vida e obra de São Cornélio, terminou, concluindo que “era uma das maiores figuras da Igreja Católica de todos os tempos, muito para além do actual papa, Pio XII”.

De nada serviram as explicações do pároco, por que mesmo assim, não se calou o Sabino. Pelo contrário, mais barafustou, mais reclamou, mais se zangou, mais se indignou e mais atirou ao ar a displicência do pároco, aqui, acolá e além, que por fim já não era apenas o reverendo a cantar-lhe o nome do santo mártir, uma vez por ano, em frente ao seu portão. Era um chorrilho diário, um coro contínuo, uma revoada permanente de vozes de quantos lhe passavam em frente à casa ou que simplesmente com ele se cruzavam no caminho a cantar-lhe, em alto e bom som: “Sâo Cornélio, ora pro nobis”.

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publicado por picodavigia2 às 09:01





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