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A LUZ À GENTE

Quarta-feira, 11.12.13

Na Fajã Grande, antes da compra da Filarmónica “Nossa Senhora da Saúde”, no início dos anos cinquenta, todas as procissões que se realizavam nos dias festivos, com excepção da festa da Senhora da Saúde, para a qual era sempre convidada uma filarmónica doutra freguesia, eram acompanhadas de cânticos alternados com a reza do Terço ou com o repicar dos sinos. Assim acontecia nas festas de São José, da Senhora do Rosário, do Senhor dos Passos, de Santa Filomena e em muitas outras. Assim acontecia também na procissão da Senhora do Carmo, venerada como padroeira da igreja da Ponta.

Durante esta última procissão, num dos anos do início da década de cinquenta, decidiu o pároco introduzir alguns cânticos novos, na altura, tão em moda no Santuário de Fátima, até porque se tratava de uma festa que também se destinava a venerar a Mãe de Deus, embora sob outra invocação. Entre os cânticos importados do vasto reportório daquele Santuário Mariano, o reverendo decidiu-se por escolher e cantar o “Sobre os ramos da azinheira”. O povo pouco conhecedor daquelas modernices e mais habituado ao “Queremos Deus” e ao “Hóstia Santa”, teve algumas dificuldades em acompanhar a pedalada do pároco, mas lá ia cantando como podia e sabia, não sem atraiçoar, por vezes atroz e drasticamente, uma boa parte da mensagem textual dos versos em causa. Muito a custo lá ia acompanhando o prebendado, cantando um pouco desafinado: “Sobre os ramos da azinheira/Tu vieste, ó Mãe clemente/Visitar… “ e era aqui que começava o imbróglio.

O Antoniquinho, segurando uma vara do pálio que cobria o reverendo transportando o Santo Lenho, com a sua voz esganiçada, bem cantava: “Visitaaaaar a luz à gente…” O pároco logo o corrigia, em voz baixa, uma, duas, três vezes: - Ó paspalho, não é “a luz à gente”, mas “a lusa ” e insistia “Visitar a lusa.”

O Antoniquinho, no entanto, maneando a cabeça em sinal de rejeição, não lhe dava ouvidos e permanecia na sua: “Visitar a luz à gente/ Ó de quem és a padroeira.” Versos que, em sua opinião, caíam como mel na sopa, pois Nossa Senhora do Carmo, a padroeira da Ponta, era uma verdadeira luz que iluminava os caminhos de todos aqueles que imploravam a sua protecção e, sobretudo, dos que vestiam o seu hábito ou usavam o seu escapulário. E quando a procissão terminou, muito senhor de si, bem comentava para um e outro lado:

- Ó home essa! O Sinhô Pade parece qu’está mesme tole! Antão Nossa Sinhora de Fátima nan veie trazer a luz ao munde tode? E ui pastorinhos nan virim ua luz vinda do céu? E o Sinhô Pade a teimá, a teimá que Nossa Sinhora só tinha vinde vsitá ua tal Lusa, qu’ei até nim sei qu’inhé, nim nunca oivi falá.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:31

CASTIGO DO INVEJOSO

Quarta-feira, 11.12.13

“Emagrece o invejoso de ver a gordura alheia.”

Muito sábio e extremamente moralista este adágio fajãgrandense, utilizado, sobretudo, no sentido real, isto é, aplicado a quem quer que fosse quando demonstrava qualquer tipo de inveja de outrem. Na realidade o invejoso inveja tudo o que os outros possuem, incluindo aquilo que nem se revela de grande interesse ou que até, eventualmente, seja desprezível ou abominável. Mas mais, a inveja do verdadeiro invejoso é tanta e tão grande que ele até como que definha, emagrece ou fica doente de ver e sentir algo que os outros têm mas que ele não pode possuir. Por outras palavras a inveja é realmente uma doença que pode ser mortal pelo menos sob o ponto de vista moral. Este adágio também sentencia com castigo pesado o invejoso que passa a ser severamente castigado só por ver e invejar o que quer que seja que pertença a outrem.

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publicado por picodavigia2 às 15:24

JOÃO AFONSO

Quarta-feira, 11.12.13

João Dias Afonso nasceu em Angra do Heroísmo, ilha Terceira, a 27 de Agosto de.1923, tendo-se distinguido como escritor e jornalista. Técnico superior principal de bibliotecas e arquivos, foi director da Biblioteca Municipal de Angra do Heroísmo e, mais tarde, funcionário superior da Biblioteca Pública e Arquivo da mesma cidade. Entretanto fez estudos históricos sobre baleação e museologia, com estágios nos EUA e no Reino Unido. Deve-se-lhe a organização do Museu Etno-Histórico dos Baleeiros dos Açores, nas Lajes do Pico.

Na Biblioteca de Angra, a que esteve ligado longos anos, bem como noutros arquivos nacionais e estrangeiros, tem realizado aturadas pesquisas no âmbito da história dos Açores e da etnografia histórica açoriana “O Traje nos Açores”. Foi o responsável por uma inventário exaustivo da bibliografia açoriana. A sua longa carreira de jornalista está ligada, principalmente, aos jornais de Angra do Heroísmo Diário Insular e A União, no primeiro dos quais coordenou uma notável página de «Artes e Letras» durante 30 anos, de 1946 a 1978, apenas com uma interrupção entre 1959 e 1961, durante a qual foi redactor da antiga Agência Nacional de Informação, em Lisboa. Tem feito conferências e participado em diversos congressos no País e no estrangeiro. Algumas das suas conferências foram proferidas em universidades norte-americanas, como Harvard, Brown, Arlington, Honolulu, etc.

Como poeta, surge no âmbito do modernismo insular de meados do século com uma poesia em que se reconhece um pouco o torneio da frase nemesiana, mas cuja genuinidade o próprio Nemésio foi o primeiro a acentuar, sublinhando a «vaga fluidez» da sua expressão, a qual «lhe permite conseguir às vezes admiráveis efeitos de simplicidade e pureza». Em alguns poemas publicados na imprensa periódica usou o pseudónimo de Álvaro Orey.

Publicou três opúsculos de poesia intitulados Enotesco, Pássaro Pedinte e Ruas Dispersas (com prefácio de Vitorino Nemésio), e Cantigas do Terramoto para Ler e Passar, bem como numerosos ensaios e estudos sobre temas de história, literatura e etnografia dos Açores, de que destacamos - além dos citados e de muitos outros dispersos ou publicados em opúsculo - Garrett e a Ilha Terceira; Antero de Quental e o Pensamento da Revolução Nacional; Açores de Outrora na Ilha Terceira Daqueles Tempos; O Galeão de Malaca no Porto de Angra, Baleias e Baleeiros - Açorianos nos Sete Mares e Ancorados nas Suas Ilhas, e outros.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 11:09

PAZ

Quarta-feira, 11.12.13

é necessário

imperioso,

urgente,

indispensável,

e obrigatório

que anuncies ao Mundo

que podes,

queres

e tens a força necessária

para transformar

esta lamentável e hedionda história da humanidade

 - história de guerra -

numa simples e maravilhosa história de amor

 - história de paz!

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publicado por picodavigia2 às 11:04

O JUDEU ERRANTE

Quarta-feira, 11.12.13

Uma estória, muito antiga, que ainda se contava, no início da década de cinquenta, durante os serões, na Fajã Grande, era a do Judeu Errante. Tratava-se duma lenda, onde o protagonista era uma figura mítica que se recusou a ajudar Jesus Cristo a carregar a cruz, durante a dolorosa viagem a caminho do Calvário e que, por isso mesmo, recebeu um castigo eterno. Rezava assim a estória:

Na Sexta-Feira Santa, enquanto caminhava a caminho do Calvário, depois de flagelado e coroado de espinhos, carregando uma pesada cruz, Nosso Senhor parou em frente à porta de um sapateiro, que trabalhava no arranjo de umas botas. Nosso Senhor, exausto, cansado e cheio de sede, pediu-lhe um pouco de água. O sapateiro interrompeu, de imediato o seu trabalho, mas não atendeu o pedido de Nosso Senhor. Antes pelo contrário, zombando d’Ele, disse-Lhe:

- Então tu não és o Filho de Deus? Faz um milagre, faz com que nasça aí, à tua frente, uma fonte, donde comece a correr água para beberes – ordenando, de seguida, a Nosso Senhor que seguisse o seu caminho, que caminhasse e não parrasse durante mais tempo, ali, à sua porta.

Nosso Senhor respondeu-lhe, dizendo que seria ele a caminhar, sozinho, pelo mundo fora, até ao fim dos tempos. E foi assim que o sapateiro, depois de ser assinalado com o sinal da cruz na testa, se tornou no Judeu Errante, que tem caminhado pelo mundo ao longo dos tempos e que ainda hoje continua a andar por todo o mundo, sem nunca poder parar a não ser quando conseguir colocar os pés precisamente no buraco onde esteve especada a cruz de Nosso Senhor. De facto, o sapateiro, deixando a mulher e os filhos, primeiro seguiu atrás de Nosso Senhor até o Calvário, depois saiu de Jerusalém e começou andar, iniciando, assim, uma longa peregrinação por todo mundo, a qual ainda não acabou e que só terminará no dia do Juízo Final, quando Nosso Senhor voltar para julgar os vivos e os mortos.

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publicado por picodavigia2 às 10:42

CANTILENA

Quarta-feira, 11.12.13

Ondinha sobe,

Ondinha desce.

E tu, menina,

Onde estiveste?

 

Teu pai já dorme,

E tua mãe vela.

Só tu menina,

Estás à janela.

 

Manhãs de nuvens,

Dias de perigo.

E tu menina

Não tens abrigo?

 

Lá vem a Lua,

Com grand’eirado.

Só tu menina

Não tens cuidado.

 

Tua mãe deu-te

Beijos e abraços.

Eram tão ternos,

Meigos, colaços.

 

Agora, menina

Dorme descansada

Tua mãe a teu lado

Vela-te, acordada.

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publicado por picodavigia2 às 10:34

O AREAL

Quarta-feira, 11.12.13

O lugar do Areal, na Fajã Grande era uma extensa e ampla planície que se prolongava junto do mar desde as Furnas até ao Canto do Areal, confrontando a leste com as últimas casas das Courelas e os seus limites geográficos eram, a Norte, as Furnas, a Este as Courelas e o Pico, a Sul o Pico da Vigia e a Oeste o mar e alguns lugares situados no baixio: a Poça das Salemas, a Retorta, o Redondo e a Coalheira.

O Areal era um lugar exclusivamente de terrenos agrícolas, terrenos bons mas pouco produtivos, diga-se em abono da verdade, não tanto pela qualidade do solo ou pelo modo como eram trabalhados mas por ser um local fustigado por ventos e salmouras que lhes caíam permanentemente em catadupa e que prejudicavam fortemente os vários produtos agrícolas ali cultivados. Nas terras do Areal plantavam couves, batatas-doces e brancas e semeava-se feijão, abóboras e, sobretudo, milho. No entanto e até à década de cinquenta, numa ou noutra terra ainda se cultivava o trigo em vez do milho.

Era também no Areal que, devido à sua proximidade do mar, se faziam as primeiras sementeiras e as plantações do cedo. Durante o Inverno os terrenos do Areal permaneciam quase incultos ou produziam apenas couves e abóboras, destinadas umas e outras sobretudo a alimento dos animais. Em Janeiro o Areal era um deserto árido e inóspito e os terrenos ficavam por ali a enfraquecerem, alimentando-se apenas com as raízes das couves e uma ou outra caseira, por ali deixada por acaso, a apodrecer. Daí que fosse necessário, em Fevereiro, antes de semear o milho e os feijões estrumar muito bem aqueles campos. Eram carros e carros de bois, com as sebes cheias de esterco ou de sargaço, a percorrer as ruas, guinchar como se fossem gatas com sio, carregadíssimos, a dirigirem-se para as bandas do Areal. Entravam nos campos que ficavam junto do caminho e abriam-se portais numas e noutras terras para que os carros chegassem aos campos mais distantes. Quer o estrume, quer o sargaço eram despejados em pequenos montes ao longo de todo o terreno. Depois com garfos de tirar esterco, os montes iam-se desfazendo à medida que o estrume ia sendo espalhado sobre o terreno de modo a cobri-lo por completo, Dias depois os campos eram abertos, isto é lavrados com arado de ferro e de seguida gradeados e tornados a lavrar com o arado de pau, de forma a estarem aptos para as sementeiras. Passado algum tempo a enorme planície enchia-se de um verde esperançoso e prometedor de colheitas de excelente qualidade. Mas logo vinham os malditos ventos nortes a desfazerem, a partirem e a devastarem tudo o que ali se produzia e, se algo ficasse em pé, lá vinha do mar a famigerada salmoura a destruir e a desfazer o pouco que havia resistido aos invernosos vendavais. Por vezes perdia-se a esperança por completo e tinha que avançar-se com uma espécie de plano B, lançando nos terrenos desertos outras colheitas alternativas, geralmente milho para o gado. Esta a razão de um interessante adágio fajãgrandense que se atirava ao rosto dos intrujões quando prometiam algo que não cumpriam “És como as terras do Areal que prometem muito mas dão puco”.

A origem deste topónimo é de fácil identificação. Este lugar tinha a sudoeste, na sua fronteira com o mar, uma espécie de rolo, onde era fácil verificar vestígios de um enorme areal, ali existente em tempos idos. Além disso os terrenos de toda esta planície, mas muito especialmente os mas próximos do mar, eram muito arenosos, semelhantes a um areal. Daí que este local fosse de verdade e com razão alcunhado de o “lugar do Areal”, o qual, apesar das vicissitudes climáticas, tinha um papel de relevo e de grande importância na produção agrícola e na economia fajãgrandense

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publicado por picodavigia2 às 10:16

O CHARABÃ (VERSÃO ORIGINAL)

Quarta-feira, 11.12.13

A abertura do troço da estrada que liga a ladeira do Pessegueiro aos Terreiros foi de enorme alegria para os habitantes da Fajã Grande. É que não mais percorreriam a pé a difícil e íngreme caminhada até ao cimo da rocha da Fajãzinha, quer nos dias da chegada do Carvalho, quer noutros em que por diversas razões, mormente por doença, tinham que se deslocar a Santa Cruz ou às Lajes.

Foram anos e anos a calcorrear veredas, a subir escarpas, a transpor ribeiras e a saltar grotões, numa árdua e difícil maceração. O percurso iniciava-se no cimo da Assomada, seguindo-se depois pelo Caminho da Missa. Até à Eira da Quada o trajecto era fácil, mas a descida da ladeira do Biscoito consubstanciava um perigo permanente! Mais difícil ainda era a passagem da Ribeira Grande sobretudo depois da derrocada da ponte e em dias de grande caudal. Apesar de povoada de “passadeiras”, temiam-se escorregadelas fatídicas e saltos em falso sobretudo por parte de mulheres e crianças. Os próprios animais tinham muita dificuldade em atravessá-la e eram obrigados por vezes a lutar contra a força da corrente. A seguir a Fajãzinha, com paragem no Rossio para saborear a água fresca e límpida que ali corria em duas bicas, dia e noite. Aí o percurso estava facilitado. Por fim a parte mais temida e perigosa - a subida da Rocha dos Bredos.

Assim, toda a população da freguesia desejava ardentemente o fim de tão acerbo suplício. Por isso, a chegada dos empreiteiros e construtores do troço da nova estrada entre o Porto da Fajã e o Pessegueiro e, mais tarde, entre este e os Terreiros foi um desvairamento. Mas a obra demorou anos. Por um lado as limitações e insuficiências da maquinaria disponível, por outro, a dificuldade em abrir brechas naquele alcantil escarpado, abrupto e pétreo que era a rocha da Fajãzinha.

Ao fim de alguns anos, no entanto, para gáudio de todos, a obra concluiu-se e a nova estrada que ligava a Fajã aos Terreiros foi inaugurada.

Nos dias e meses que se seguiram, porém, o desânimo voltou. Afinal a estrada estava ali, lisa e plana que era um regalo, coberta de asfalto e bagacina, mas de pouco ou nada servia. É que não havia automóveis na Fajã e ninguém dispunha de arte ou engenho e muito menos de dinheiro para comprar um. Assim uma estrada, na opinião de muitos, tornava-se inútil, até porque fora interdito o uso dos velhos e tradicionais corções puxados por bovinos. É verdade que havia algumas camionetas de carga e outros veículos em Santa Cruz, mas eram poucos e vinham sempre cheios. Carros de Praça eram apenas três. Fretá-los só em caso de doença grave e nem era para todos.

Perante este imbróglio, o Venceslau pensou comprar um automóvel. Serviria a freguesia e valorizava o seu estatuto de comerciante. Porém, bem-feitas as contas, considerou de todo impossível. É que os lucros do botequim não davam para meia missa.

Mas o sonho do Venceslau, no entanto, não desvaneceu de todo. Quando o Fra-gueiro regressou do Faial, onde se fora operar ao estômago, segredou-lhe:

- Homem, na Horta a moda agora é comprar automóveis e os tipos estão a vender carroças, charabãs e até coches ao preço da chuva. Vendem-nos aparelhados com animais e tudo! Um charabã, aqui, é que dava... Já que não podes comprar um automóvel, compra um charabã. Eu não trouxe um porque, como sabes, não tenho dinheiro. O pouco que tinha ficou todo no Hospital e na Pensão. Agora tu… Bem podias aproveitar...

Como o Fragueiro era sensato e de confiança, o Venceslau aceitou de bom grado a sugestão. Nos dias seguintes não pensava em mais nada. A ideia parecia-lhe genial, embora sofresse grande contestação por parte da mulher. Mas como ele é que mandava lá em casa, no Carvalho seguinte partiu para o Faial.

O Charabã foi recebido com foguetes, filarmónica e sinos a repicar. Até padre Silvestre acedeu ao pedido da Bernarda e, juntando-se ao povo que se aglomerava à Praça, preparou-se para a bênção de estola, caldeirinha e hissope em riste. O reverendo, inicialmente, havia recusado o pedido da consorte do Venceslau, dado o seu habitual afastamento das cerimónias e celebrações litúrgicas, agravado, vezes sem conta, com o facto de ela manter o botequim aberto durante a missa e, ainda por cima, lhe roer na casaca de vez em quando. Mas decidiu-se pela bênção. É que sendo ele provavelmente um dos mais frequentes futuros utilizadores do charabã, um pouco de água benta e um bocado de latim dariam mais segurança às rédeas do Venceslau ao descer a rocha da Fajazinha ou a Ventosa.

Mal a carripana emergiu na primeira curva da Assomada, por ordem da Bernarda, os foguetes começaram a estralejar, a banda a tocar a Maria da Fonte, os sinos a repicar e o povo a dar uma enorme salva palmas.

O Venceslau saiu do assento do cocheiro em ombros. Nem a Bernarda, com saudades acumuladas de um mês, o pôde abraçar. O povo acotovelava-se para ver de perto a engenhoca que mudaria o seu destino, dificultando a acção litúrgica do padre, que a muito custo atirava para cima do veículo e dos animais água benta e salmos: -  “In êxitu Israel Egipto...”  Depois, fazendo uma cruz, retirou-se, enquanto todos lutavam por ver de perto e tocar a nova coqueluche dos transportes fajãgrandenses.

O charabã era um veículo grande, de quatro rodas com raios de ferro, sobre as quais assentava uma estrutura de madeira, à qual se prendiam quatro varões que sustentavam o tejadilho – um toldo de lona esverdeada, já muito desbotado pelo sol e pela chuva. Os assentos eram quatro bancos, dois laterais e outros dois transversais, um logo atrás do assento do cocheiro e outro na retaguarda. Puxavam-no três muares devidamente identificados: a Mulata à esquerda, a Moirata ao centro e o Lopes na direita.

O resto da tarde foi de regabofe no botequim onde a Bernarda, na ausência do Venceslau, pontificava. Uma viagem ao Porto para convidados e a garotada toda a correr atrás do charabã. Garrafas de anis, genebra e aguardente a abrirem-se, pirolitos e figos passados para a miudagem, enfim, uma comemoração de arromba. Depois, a Bernarda, transformando o balcão ainda sujo das bebidas em secretária, deu início às marcações com reservas e tudo. A primeira semana em poucos minutos esgotou. Um sucesso!

No dia seguinte às seis da manhã, o charabã partia na sua viagem inaugural. Os candidatos a passageiros eram muitos e excediam, de longe, a lotação. O Venceslau não quis ficar mal e, confiando excessivamente na força dos muares, acrescentou mais três bancos transversais, o que quase permitiu duplicar a lotação da carripana, enchendo-a como sardinha dentro de lata.

Envergando o chicote e sentando a seu lado a Bernarda, que decidiu fechar o botequim, já que não trocava aquela primeira viagem por nada deste mundo, o Venceslau deu o sinal de partida, proferindo a senha de ignição:

- Salta mula lá p’ra diante mula!...

E batendo ao de leve nos três muares, iniciou o périplo, com dezenas de mirones a ver aquela primeira partida, apesar de a manhã ainda não se ter clarificado de todo.

Até à rocha da Fajãzinha a viagem correu muito bem, pese embora os animais começassem a suar e a escumar em demasia. Ainda a rocha não ia a meio e a Mulata, depois de levar uma valente chicotada, porque começava a atrasar-se, ajoujou-se, perante um grito de susto e de espanto da comitiva. O Venceslau, querendo mostrar a força e valentia da mula, ferrou-lhe nova chicotada, mas com tal força que a pobre, muito a custo lá se levantou. Mas pouco depois, quase desfalecida, voltava a ajoujar-se por completo, arrastando consigo a Moirata.

O Venceslau ficou lívido ferrando nova e mais pesada tareia nas mulas indefesas.

Tal violência provocou grande contestação entre os passageiros. Alguns apiedando-se dos animais desceram do veículo, caminhando a pé. Dois homens vieram levantar as mulas, comprometendo-se a empurrar o charabã, se necessário, até ao cimo da rocha.

Ao chegar aos Terreiros, como a estrada fosse plana e a Mulata e a Moirata já estivessem mais descansadas, o Venceslau deu ordens para que todos subissem. A viagem correu normalmente até à Casa do Estado.

Aí procedeu-se a uma paragem devidamente programada. Era metade do caminho entre a Fajã e Santa Cruz. Pessoas e animais deviam abastecer-se e descansar por alguns minutos. Pouco depois reiniciou-se a viagem, que continuou calma e tranquila, apesar de lenta, até ao alto da Ventosa. Aí o coração do Venceslau deu um pulo. Não se contendo, segredou para a Bernarda:

- Isto agora é canja! É sempre a descer até Santa Cruz. Vamos andar depressa porque temos que recuperar o tempo perdido.

Os detrás bem gritavam:

- Vai devagar, Venceslau, que as mulas não aguentam!

Mas ele nem lhes dava ouvidos.

De repente, ao rodar uma curva junto à relva do Mantes, a Mulata, sem que ninguém o esperasse, ajoujou-se de novo e caiu, arrastando desta feita a Moirata, o Lopes, o charabã e todos os seus ocupantes. É que com o balanço a viatura desprendeu-se dos temões e amarras que a prendiam aos muares, rolou pela borda da estrada e, dando duas cambalhotas, foi parar à relva assustando umas vacas que ali pastavam mansamente.

O pânico foi geral entre os acidentados. Os feridos foram poucos e os achaques leves. Para além do susto, apenas umas arranhadelas e algumas mâmulas. O charabã ficou completamente desfeito.

Uma camioneta de carga que passou, horas depois, com alguns trabalhadores, recolheu os sinistrados e trouxe-os de regresso à Fajã, perante protestos e lamentações, enquanto a Bernarda não cessava de atirar culpas ao Venceslau, que maldizia a sua sorte.

O charabã ficou a apodrecer por ali. A Moirata e o Lopes foram vendidos para as Lajes. A Mulata de tão velha e fraca que era, ninguém a quis comparar. Morreu pouco depois. O Venceslau e a Bernarda venderam o botequim e partiram para a América.

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publicado por picodavigia2 às 10:06

A CANADA DO OUTEIRO GRANDE E DA PEDRA DE ÁGUA

Quarta-feira, 11.12.13

O caminho de acesso aos lugares do Outeiro Grande e da Pedra d’Água, a partir do cimo da Ladeira do Covão, era uma íngreme, sinuosa e estreita canada, pese embora todos os dias transitassem por ali um bom punhado de pessoas e muitos animais. Na realidade, após a Ladeira do Covão, também ela de tão inclinada que era, quase inacessível a carro de bois ou a corsão, tudo o que se acarretasse do Outeiro Grande e da Pedra d´Água para “a porta”, teria que ser, necessária e obrigatoriamente, transportado às costas dos humanos, pois nem sequer burro carregado com um molho, cesto ou saco de cada lado, ali conseguiria passar. E não era pouco o que aqueles lugares produziam. Para além de fetos e erva que abundavam por aqueles parramos, é verdade que da Pedra d’Água nada mais vinha mas o Outeiro Grande era fértil em lenha, incensos, batatas-doces e milho, embora muitas vezes, estes produtos, sobretudos se produzidos em maior quantidade, fossem transportados até à Cabaceira, através duma outra canada mais curta, sendo então, a partir daí transportados em carro ou corsão, até ao seu destino. Vida difícil, pois, a daqueles que tinham terras para aqueles lados.

A canada de acesso a dois dos mais emblemáticos lugares da Fajã Grande era constituída por uma série de pequenas voltas, rectilíneas e em ziguezague. A primeira, logo a seguir à ladeira do Covão, era a maior, a mais íngreme e a que tinha mais dificuldades em percorrer-se, sobretudo por parte das rezes que a subiam e desciam quase diariamente. Para além de ser muito inclinada, era, quase na totalidade, construída em degraus intercalados com pequenos troços rectilíneos mas onde abundava toda a espécie de pedregulhos e calhaus caídos das paredes circundantes e dos degraus mais altos. Construída através de um apertado rasgo nas fraldas do Outeiro, tinha a Sul altas paredes que a separavam dos terrenos de cultivo circundantes enquanto a Norte se encafuava “resminés” com os impenetráveis meandros do Outeiro, cheios de canas e silvados, por onde os bezerros vezes sem conta fugiam e se perdiam, sendo difícil, de seguida, dali retirá-los. O único senão deste trecho da canada do Outeiro Grande era o poder observar-se dali uma bela vista sobre a Fajã e sobre o mar, mas alheia aos que por aquele degredo passavam vergados ao peso dos carregamentos, evitando escorregar nos pedregulhos e a evadirem-se de “topadas” nos dedos dos pés descalços. Na segunda volta, a canada mudava de rumo e seguia na direcção sul. Era rectilínea, de piso areoso mas bastante acessível. Atravessava uma colina, rasgando-a de norte a sul. Era a parte de maior excelência e de melhor acessibilidade de todo aquele sórdido e inóspito percurso. De seguida, voltava a este, numa torso muito curto mas muito sinuoso, com degraus e pedregulhos soltos por tudo o que era sítio e ladeado por altas paredes de ambos os lados. E estávamos chegados à volta onde se situava o famigerado Calhau das Feiticeiras, um enorme tufo espetado ali no meio da canada, do lado este, bem cravado na rocha e cravejado de pequenos buracos, marcas deixadas pelos pés das ditas cujas que por ali desciam e subiam diariamente, ao anoitecer. Dizia-se que as malditas atiravam as almas penadas por ali abaixo e logo desciam, arrastando-as para cima para as atirarem novamente pelo calhau abaixo. Mais uma volta sinuosa e íngreme e estávamos na bifurcação final da canada: à esquerda virava-se para a Pedra d’Água, à direita seguia-se para o Outeiro Grande, num e noutro caso por veredas inconstantes, irregulares e de difícil acesso, embora, no caso do Outeiro Grande e porque o percurso era maior, se pudesse, por vezes e nalguns locais, atravessar relvas para encurtar caminho. Mas isto apenas quando se seguia sem animais ou sem cargas às costas e somente em duas relvas, uma do António Cardoso e outra de José Padre.

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publicado por picodavigia2 às 09:42

O SIÇARICALHO

Quarta-feira, 11.12.13

O “Siçaricalho” era uma figura imaginária, enigmática, mítica e lendária que povoava o universo fantasmagórico da criançada, na Fajã Grande, na década de cinquenta. Imaginário, porque embora sendo igual a um homem de verdade que se alimentava, trabalhava, lavrava, semeava, criava gado, tinha pai e mãe, o “Siçaricalho” apenas existia na imaginação da criançada e de quantos adultos a ele se referiam, não por nele acreditarem mas para o impor aos mais pequenos como modelo da insanidade, da confusão, da trapalhice, da falta de irracionalidade. Enigmático também era “Siçaricalho” porquanto não existia, nem era conhecido como tal mas apenas e tão só pela narração das suas, aparentemente, estúpidas, peculiares e contraditórias actividades e características que eram apresentadas de forma metafórica e ambígua e que faziam com que se tornasse difícil de decifrar quer o seu carácter quer a sua identidade. O “Siçaricalho” talvez fosse todos os homens da Fajã e não fosse nenhum e por isso mesmo identificava-se no atípico e quase paradoxal e pequeno universo mitológico fajagrandense, onde pontificavam outras figuras emblemáticas como o “Velho Laranjinho”, o “Antonico Passarico”, o “Velho Entrudo”, o “Ano Velho”, o “Coiso-Mau”.o “Papão Feio” e muitos outros. O “Siçaricalho” da Fajã Grande personificava-se e tomava forma humana através duma pequena narrativa em verso, onde se narravam as peripécias duma personagem que, na vida, estava rodeado das mais estranhas e inconcebíveis contrariedades. O “Siçaricalho” tinha o primado do enigma e da contradição, pelo que a explicação dos seus actos não era compreensível, tendo, por isso mesmo e muito provavelmente um papel pedagógico muito activo. Pretendia-se assim, através de factos praticados por um personagem imaginário e das suas características humanas contraditórias, transmitir conhecimentos, exercer uma acção pedagógica sobre as pessoas, nomeadamente sobre os mais jovens e, consequentemente., detentores de personalidades mais maleáveis. Lendas são narrativas transmitidas oralmente pelas pessoas com o objectivo de explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais e apresentar modelos e arquétipos. Para isso há uma mistura de factos reais com imaginários. Mistura-se a história e a fantasia, por isso poder-se-á dizer que, neste caso, o “Siçaricalho” tem algo de lendário, porque se trata de, através duma narração oral, contada ao longo do tempo e, naturalmente, modificada, apresentar uma personagem que se imponha através do contraditório, do enviesado e do ridículo mas que faça parte integrante da tradição e do património cultural dum povo.

Desta estória do “Sissaricalho” que nos era contada a mim e a meus irmãos, por minha mãe, que por sua vez as ouvira em criança ser contada, como muitas outras, por uma tal Tia Fraga, que morava em frente à casa da minha avó, muito se perdeu. Ficaram apenas, numa ou outra memória, retalhos dispersos de uma narração onde entre outras coisas se dizia que “Siçaricalho andava a lavrar, com um arado de carne e bois de madeira. Vieram dizer-lhe que o pai estava a morrer e a mãe para nascer…”

“Siçaricalho” trapalhão, contraditório, trafulha, mentiroso, aldrabão, cabeça no ar. “Siçaricalho” mito cultural, disperso e desfeito no universo lendário da Fajã Grande mas, aparentemente, perdido no tempo.

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publicado por picodavigia2 às 00:07





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