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TERESA BARONESA

Quinta-feira, 12.12.13

“Teresa, baronesa, vem da rua cagar à mesa.”

Embora contendo um palavrão ou, como se dizia na altura, uma palavra feia, trata-se de um interessante adágio fajãgrandense, utilizado sobretudo pelos mais novos, não tanto para se dirigirem e fazerem alguma crítica às meninas da freguesia de nome “Teresa”, pois estas até nem eram muitas, mas a todas as raparigas que se apresentavam duma maneira e procediam doutra. No caso das “Teresas”, se os rapazes e as outras meninas lhes atiravam este adágio à cara, não era tanto para as criticar mas antes para as apoucar e vilipendiar, aplicando assim o adágio no sentido real.

Mas, no sentido figurado, este adágio também era utlizado para criticar qualquer menina que aparentemente se apresentasse com os pergaminhos de muito fina, de muita cerimónia, de muita grandeza e de fingida ostentação, como se duma baronesa se tratasse e afinal no fundo era capaz de praticar as atitudes mais mesquinhas, mais mal-educadas ou até plenas de indignidade e de falta de educação. Por outras palavras, o adágio condenava aquelas meninas e talvez toda e qualquer pessoa que se apresentasse ostensivamente muito educada e fina, mas afinal era capaz de praticar as maiores barbaridades. Mostrar aos outros o que não somos, pavonearmo-nos num fingimento disfarçado é indigno de quem quer que seja e condenável a todos os níveis e deve ser denunciado, neste caso com palavras duras.

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publicado por picodavigia2 às 22:50

O MILAGRE DO MILHO

Quinta-feira, 12.12.13

Nos férteis campos do Douro Litoral, pais e filhos trabalhavam de sol a sol porque era deles que tiravam tudo o que era necessário para o seu sustento – milho, legumes, batatas e vinho. Em Março e Abril, quando os dias começavam a tornar-se maiores e mais quentes, jungia-se uma ou duas rezes à charrua, lavrava-se a terra ainda húmida das chuvas invernais e deixavam-se ficar as leivas e os torrões a secarem e como que a aquecerem-se ao Sol, durante alguns dias. Depois desfaziam-nos e transformavam-nos em terra fina que se alisava, umas vezes com enxadas e ancinhos, outras com uma grade puxada por animais, transformando os campos em enormes e fofos tapetes acastanhados. De seguida voltava-se à rabiça do arado, atrelavam-se os bois e traçavam regos paralelos e simétricos uns aos outros, de uma extremidade à outra dos extensos campos. Às mulheres competia a tarefa de semear o milho. Calcorreando os campos atrás do arado, retiravam punhados de grãos de uma cesta que levavam enfiada no braço, atiravam os grãos com tanta agilidade e perícia que eles caiam direitinhos no rego, muito bem alinhados uns à frente dos outros, como se fossem soldadinhos numa parada militar. Cada rego fechava-se com o abrir do seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. Por fim a terra era de novo gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos e assim germinassem mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. Não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado. Nas extremidades do campo e nos lugares mais abrigados pelos bardos das beiradas ficavam pequenos canteiros de batatas, feijão, ervilhas e melões, misturados com as couves, as alfaces e o cebolo. Em Abril e Maio, quando o milho ainda estava miudinho, homens e mulheres em conjunto sachavam e mondavam os campos, de lés a lés, retirando as ervas daninhas e os pés de milho mais bastos para que os outros crescessem à vontade. Nos dias seguintes o campo transformava-se num enorme tapete de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e as ervilhas e os feijoeiros começavam a trepar pelas estacas de cana que eram espetadas aqui e além. Os milheiros cresciam de dia para dia, as suas folhas entrelaçavam-se umas nas outras e balouçavam como ondas ao sabor das brisas matinais e os caules, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no alto com umas flores estranhas que cobriam os campos com um manto esbranquiçado e fofo. Algum tempo depois nos caules enrijecidos começavam a formar-se espiguinhas cabeludas que iam crescendo e alourando ao Sol do estio. Em Setembro as espigas amadureciam por completo e procedia-se à apanha. As mulheres arrepelavam dos caules já muito amarelados e envelhecidos as espigas maduras e recolhia-as em enormes cestos, enquanto os homens os iam acarretando para os carros ou para as lojas de arrumos, nos campos juntos das casas. Depois cortavam-se as folhas e os caules e guardavam-se para alimento dos animais.

Era o milagre do nascimento dos grãos de milho e do seu crescimento.

Algum tempo depois marcava-se o dia da desfolhada. Todos, mas sobretudo os mais jovens, esperava ansiosamente essa noite de sonho e de magia.

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publicado por picodavigia2 às 20:46

À MEMÓRIA DE MEU PAI

Quinta-feira, 12.12.13

Abrias as portas da madrugada, ainda o Sol não havia nascido

E caminhavas por entre brumas e nevões,

Ao frio, à chuva, ao vento e às tempestades,

Cordas à cinta, enxada às costas, machado ao ombro, foice na mão.

Carregavas, molhos, cestos, sacos… tudo.

Trazias às costas o peso do mundo!

E ao chegar a casa, já noite escura, como recompensa

Tinhas um pedaço de pão, uma tigela de leite ou um caldo de couve.

 

Um dia chegou o infortúnio, a incerteza, a consumição, a desgraça.

Destruíram-te, aniquilaram-te, desfizeram-te

E, por fim,

Levaram-te ao calvário e conduziram-te à morte.

Obrigado pai, por tudo o que fizeste e sofreste por nós.

 

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publicado por picodavigia2 às 19:13

A COROA DA CUADA

Quinta-feira, 12.12.13

Conta uma antiga lenda, que há muitos anos um barco de piratas, comandados por um rei mouro, atacou na costa oeste da ilha das Flores, na zona das Fajãs. Cuidavam os malvados que os habitantes daqueles pequenos povoados da ilha, rodeados por tão altas rochas, não conseguiriam defender-se, nem teriam quem os ajudasse na peleja. Assim seria mais fácil atacar aquele povo indefeso, retirando-lhe todos os bens que possuíssem, nomeadamente ouro, se o houvesse e alimentos que os havia, de certeza. A população, porém, quando se viu atacada e com poucas possibilidades de defesa juntou-se toda, invocou o auxílio do Divino Espírito Santo e preparou-se para se defender dos infiéis. Assim conseguiram juntar forças, oferecer resistência e impedir aqueles ladrões e assassinos de os roubarem e matarem, obrigando-os a abandonar a ilha sem fazerem mais pilhagens e roubos. Aconteceu, no entanto, que durante a luta, o rei mouro que comandava os invasores atacantes perdeu a coroa e ao fugir esqueceu-se dela, deixando-a abandonada no meio de um campo de trigo. Era uma magnífica coroa de prata. Já em viagem, no mar alto, o rei mouro deu por falta da coroa e lembrou-se que a tinha deixado na ilha que tinham tentado saquear. O barco rumou novamente em direcção às Flores, em busca da preciosa coroa. Ora vendo a embarcação dos piratas aproximar-se novamente da ilha e temendo que desta feita não os venceriam, uma mulher levou a coroa para a Cuada, escondendo-a na casa do Espírito Santo, colocando-a sobre o altar como se fosse o símbolo do Paráclito, de verdade. De repente levantou-se um enorme temporal e o barco dos piratas foi obrigado a inverter o rumo e navegar na direcção do mar alto, abandonando definitivamente a ilha.

Cuidando que se tratava de um milagre do Divino Espírito Santo, o povo juntou-se rezando e cantando junto da coroa que passou a utilizar, depois de devidamente adaptada e benzida, como símbolo do Espírito Santo, na Casa do Espírito Santo da Cuada, a mais antiga da freguesia da Fajã Grande.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:54

MASCARADOS

Quinta-feira, 12.12.13

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, nas semanas que antecediam o Carnaval, quase todos os dias à noite, mas sobretudo e com maior profusão aos sábados e domingos, as ruas da freguesia enchiam-se de grupos de mascarados que visitavam a maioria das casas, ou melhor a maioria daquelas donde emanava por entre os cortinados das janelas da sala uma nesga de luz baça, ténue, proveniente de um candeeiro a petróleo ou duma candeia, a anunciar que ali se seroava.

Devidamente fantasiados com as roupas mais extravagantes e inéditas possíveis a cobrir-lhes o corpo da ponta dos pés ao cocuruto da cabeça, com excepção da cara que era tapada com uma máscara, os mascarados deambulavam pelas ruas escuras e sinuosas até entrarem nas lojas que estavam abertas ou nas casas que lhes abriam a porta. Para que ninguém os identificasse, ou para que até os mais perspicazes demorassem a acertar-lhes o nome, os mascarados vestiam uns trapinhos velhos e pouco costumeiros, há muito não usados por eles ou por quem quer que fosse da família ou até umas roupitas novas a cheirar à América, acabadinhas de chegar numa encomenda vinda da Califórnia e ainda não estreadas. As máscaras, por sua vez, eram compradas nas lojas, mas muito às escondidas, para que dificultasse a identificação ou, nalguns casos, feitas pelo próprio ou por algum familiar, recorrendo geralmente a uma caixa de sapatos de papelão bem grosso. Poupava-se dinheiro e facilitava-se a disfarce.

Os mascarados tinham objectivos muito claros e consuetudinariamente bem definidos: gostavam de ser vistos pelo maior número de pessoas possível, investiam seriamente no seu disfarce a fim de que a sua identificação demorasse a maior quantidade de tempo possível, adoravam fazer palhaçadas, brincadeiras jocosas e pregar partidas e, sobretudo, apostavam em meter medo aos mais pequenos. Se soubessem que um garotelho qualquer tinha medo, então é que nunca mais o largavam.

Confesso que entre os pequerruchos da minha idade eu era dos que tinha mais medo. Se os mascarados entrassem em minha casa ou na da minha avó e eu lá estivesse, escondia-me e trancava-se a sete chaves num buraco qualquer ou em lugar que ninguém me visse. Nessas noites sair de casa, mesmo que fosse apenas da minha para a da minha avó, sozinho, nem pensar. Só o faria se acompanhado com um adulto da minha confiança e que me garantisse protecção e amparo. Aquelas máscaras disformes, tétricas, macabras e, por vezes, cadavéricas metiam um medo terrível. Além disso, haviam de atacar sempre as podres crianças indefesas e amedrontadas…

Muitas portas não se abriam aos mascarados. Aquelas que o faziam, no entanto, ao ouvirem bater à porta e antes de se abrirem, perguntavam de dentro: “Quem é?” E eles cá de fora com aquela voz muito rouca e disfarçada, simulando eco: Mascaraaaados”. Só então a porta se abria, mas mesmo assim todos eles, antes de entrarem teriam que se identificar em segredo, apenas ao dono da casa, prometendo também que, terminada a visita, todos tirariam a máscara. Ia lá entrar-nos a dentro de portas alguém desconhecido!? Havia de se meter pela casa dentro um inimigo ou algum meliante que andasse a cobiçar e a seduzir as filhas!?

Durante a visita tentava-se adivinhar quem se encobriria em tão estranhos disfarces. Era o adivinhas! “Quem será? Quem não será? Conheço-lhe as mãos! Pelo andar deve ser fulano! Pelos trejeitos deve ser sicrano!” E assim se passavam alguns momentos divertidos, com eles a disfarçarem atitudes e palavras, a fazer palhaçadas e a meterem com as raparigas e com os medrosos e os da casa a tentarem descobrir-lhes a identidade.

 No fim todos tiravam a máscara e muitas vezes havia grandes surpresas.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:45

BATOTA ELEITORAL

Quinta-feira, 12.12.13

Ele era o terror dos recreios, das aulas, da cantina e até das casas de banho. Nos recreios era cacetada velha em tudo o que lhe surgisse pela frente e, se apanhasse a mochila de um colega perdida por aqui ou por além, eram pontapés certeiros, furibundos e enraivecidos até que, ou a destruísse por completo, ou se aproximasse um funcionário que ameaçasse levá-lo ao Conselho Directivo. E o funcionário não havia de livrar-se de um bom chorrilho de ameaças e insultos. Equipa de futebol onde ele decidisse jogar não encontraria adversário, e os que haviam tido a ousadia de defrontá-lo, desportivamente, bem marcados haviam ficado, com negras, feridas e mamulos. As pernas num Cristo. Na cantina não havia dia em que o Senhor Garcia – o único funcionário da escola que temia – não fosse chamado. Ameaças, apertões nos braços, puxões de orelhas. Era o Senhor Garcia a virar as costas e ele a reforçar a dose.

Mas o pior era nas aulas. Não tanto porque as atrocidades desancadas sobre os colegas fossem mais demolidoras mas, sobretudo, pelo mau ambiente que se criava e pelos actos de indisciplina que protagonizava e que cerceavam aprendizagens e obstruíam a concretização dos trabalhos propostos pelos professores. Uma tragédia! Queixavam-se, em vão, os professores, aborreciam-se, sem proveito, os colegas e reclamavam, sem sucesso, os pais.

Um dia faltou a uma das minhas aulas. Os colegas respiraram de alívio e a maioria desejou que aquele dia se perpetuasse indefinidamente. A calma e a tranquilidade momentaneamente reinantes, levaram, no entanto, a que se abordasse o assunto. Revoltaram-se, ripostaram, reclamaram e, sobretudo, apresentaram diversíssimas propostas para a solução do problema. Foi então que o Delegado de Turma, eleito democraticamente no início do ano lectivo, propôs:

- Setor, se lhe déssemos responsabilidades, se ele se empenhasse a sério em alguma coisa, por exemplo, se fosse ele o Delegado de Turma... Havia de mudar, não havia?

Achei a ideia muito interessante, digna e plausível. Discutiu-se bastante. Muitos, inicialmente, contestaram a proposta, mas verdade é que esta cresceu, tomou corpo e acabou tendo o apoio, mais ou menos explícito, de toda a turma. Ele, o Delegado de Turma, eleito com maioria absoluta de votos, amado e apoiado por todos, sempre atencioso, sempre disponível, sempre solícito, sempre respeitado e querido de todos, na presença dele, na próxima aula, pediria a sua demissão, abdicaria do cargo, proceder-se-ia a um outro acto eleitoral e a turma votaria, massivamente, no terrorista, com o objectivo único de o amansar.

Se bem o pensaram melhor o fizeram. Uns a muito custo, outros com má vontade, alguns com remorsos, um ou outro engolindo em seco, mas todos, mesmo todos, votaram nele que, boquiaberto, incrédulo, pasmado, com cara de parvo, olhava para todos os lados como se afinal fosse ele a ter medo deles.

- Setor, tenho mesmo que aceitar? – Perguntou a medo.

Que sim, que era a vontade de toda a turma, que a partir de agora seria ele o Delegado de Turma, o representante os seus colegas, seria ele a responsabilizar-se por eles, a realizar algumas tarefas em nome deles e, sobretudo, a ajudá-los em tudo o que eles necessitassem.

Inconsistente nos primeiros dias, entorpecido em inéditos comportamentos, fragilizado na sua contumácia, aos poucos foi-se moldando e era vê-lo, para espanto e admiração de todos a mandar, a solicitar, a pedir, a aconselhar, a serenar os ânimos, a comprometer-se com exigências e a empenhar-se em tarefas.

- Milagre! – Diziam os mais inocentes.

– Milagre da batota eleitoral… - Retorquiam os mais astutos, piscando-me o olho.

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publicado por picodavigia2 às 16:14

SENSÍVEL

Quinta-feira, 12.12.13

MENU 18 – “SENSÍVEL”

 

ENTRADA

Taglierini cozido barrado com creme de queijo e aromas de salmão

Fios de cenoura embebidos em azeite e vinagre balsâmico e polvilhado com orégãos.

 

 

PRATO

 

Salmão grelhado com batata cozida, salpicada com cebola, alho, salsa e azeite.

Esparregado de brócolos, ladeado com tiras de cenoura cozida.

 

 

SOBREMESA

 

Pêssego e Gelatina de Morango.

 

******

 

Preparação da Entrada: - Cozer o taglierini e misturá-lo com o creme de queijo fresco com sabor a salmão e guarnecê-lo com os fios de cenoura raspados e embebidos em azeite e vinagre balsâmico. Polvilhar com orégãos.

Preparação do Prato: - Temperar, limpar de espinhas e grelhar o salmão. Cozer a batata e cobri-la com a cebola, alho, salsa, picados e salpicar com azeite. Cozer os brócolos e reduzi-los a puré. Desfazer duas colheres de maisena numa mistura de leite e água e levar ao lume até empapar. Juntar um fio de azeite e temperar. Misturar com os brócolos e uma colher de creme de queijo fresco. Cozer meia cenoura em tiras rectangulares. Dispor no prato.

Preparação das Sobremesas – Confecção tradicional.

 

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publicado por picodavigia2 às 12:10

A ILHA DAS FLORES (DIÁRIO DE TIO ANTONHO)

Quinta-feira, 12.12.13

Terça-Feira, 23 de Julho de 1946

 

“Para aqueles que a não conhecem eu, hoje gostava de falar sobre a ilha das Flores, nos Açores, pois é a ilha onde eu nasci, onde fui criado e onde estou a viver desde que voltei das Américas. É uma ilha pequenina e distante das outras ilhas dos Açores, excepto do Corvo que fica aqui mesmo ao lado. É uma ilha onde existe muita verduras e está sempre coberta de flores e onde muitas ribeiras correm com as suas águas transparentes e cristalinas e os montes e os picos estão, continuamente, cobertos não apenas de ervas, musgos e arbustos mas também de muitas árvores frondosas, muitas delas cheias de frutos adocicados e apetecíveis. Uma ilha que o mar acaricia suavemente em cada dia e em cada hora e onde as manhãs nascem claras mas repleta de incertezas, de insegurança e de falta de tudo e onde, à tarde, o Sol se torna amarelado e pardacento e se esconde no horizonte infinito. As Flores é uma ilha onde o mar como que desafia o destino desta gente e deste povo e onde as tempestades se sobrepõem à bonança. No Inverno, o vento, misturado com relâmpagos e trovões, ruge feroz e assustadoramente, tornando-a mais pequenina, mais distante, mais só e cada vez mais pardacenta e escura. Por vezes, até temos medo do Inverno. Mas no Verão, o vento como que se veste de púrpura e sopra, mas levemente e como que embalando uma brisa doce e suave. E a ilha pequenina, distante mas coberta de flores veste-se de claridade e de esperança. O Sol desce alegremente sobre os casebres, pinta os campos de um verde amarelado e amadurece os milhos semeados nas belgas mais soalheiras e nos campos mais férteis. E à noitinha, nesta ilha pequenina e distante mas coberta de flores, nas torres das igrejas, ouve-se o toque das trindades. Os homens com as mãos calejadas e os ombros doloridos, regressam dos matos carregados com latas de leite, suspensas em troncos de araçá, tapadas com ramos de queirós, tiram, solenemente, o boné e simulam breves orações. As mulheres, robustas e mal vestidas, cansadas dos trabalhos dos campos, recolhem-se às suas casa, com molhos de lenha ou de couves à cabeça, acompanhadas de garotos descalços, com ranho a escorrer-lhes pelo nariz, agarrados aos saiotes das mães. As velhinhas, viúvas, vestidas de negro e lenço a tapar-lhe a cara, sentadas às janelas de suas casas, por de trás das cortinas de pano esbranquiçado, esbagoam as contas do rosário, bichanando Padre Nossos e Avé Marias

Pois esta é que é a ilha onde eu nasci, onde vivo e que se chama ilha das Flores.”

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publicado por picodavigia2 às 11:21

TI MALVINA

Quinta-feira, 12.12.13

Francisco Fagundes da Silveira, mais conhecido popularmente na Fajã Grande por “Ti Malvina”, nasceu no longínquo ano de 1892, no condado de Siskiyou, no norte da Califórnia, um dos maiores condados daquele estado norte-americano mas, naquela altura, um dos mais pequenos em população. Fundado em 1858, o condado de Siskiyou já na altura fazia jus de grande prosperidade. Tinha fronteira a norte com o estado do Origan, a leste com o Condado de Del Norte, a Sul com o Trinity e o Shasta e a Oeste com o Modos. Aí nasceu Francisco e uma irmã mais nova, chamada Maria do Céu, esta em 1895. Foram seus pais José Fagundes da Silveira e Maria da Conceição Henriques, casados na Fajã Grande em 1880, pouco tempo depois de José regressar da sua primeira estadia na Califórnia. Desse casamento resultaram cinco filhos, tendo os três mais velhos nascido na Fajã Grande, um dos quais foi meu avô materno. Descontente com a vida precária da ilha e sonhando com algo de melhor para os filhos, José resolveu regressar novamente à Califórnia, juntamente com a mulher grávida de algumas semanas e os filhos ainda pequeninos. Nesta segunda viagem dirigiu-se para o norte e foi nessa altura que se fixou no novo e promissor condado de Siskiyou, onde comprou terras e gado e onde nasceram os dois filhos mais novos deste seu primeiro casamento. Alguns anos mais tarde e devido à doença da esposa, José regressou aos Açores juntamente com a família, incluindo o jovem Francisco, que anos mais tarde casou com Malvina da Silveira, razão porque veio a granjear o epíteto de “Francisco Malvina”, por abreviação de “Francisco da Malvina” e nos últimos anos de vida simplesmente “Ti Malvina”. Curiosamente quase todos os seus filhos, Maria, Lídia, José. Minerva, João Floripes e Teresinha, haviam também de adoptar o apelido de “Malvina”

Rezam as crónicas que Francisco era um homem muito inteligente, com uma memória fabulosa, com grande capacidade de aprendizagem e uma vontade enorme de saber e conhecer. Por isso lia, estudava, investigava e sabia. Era considerado o homem mais sábio da Fajã Grande. Um dos mais notáveis episódios em que Ti Malvina revelou a sua sabedoria e o seu profundo conhecimento, superando o pároco, os professores e o médico, foi o da Aurora Boreal, estranho fenómeno que aterrorizou toda a população da Fajã Grande e que durante anos e anos persistiu na memória de quantos o presenciaram. A Aurora Boreal terá aparecido, na Fajã Grande, ao fim da tarde de um dia de Verão, nos finais dos anos trinta ou início dos anos quarenta e assustou de maneira assombrosa toda a população da freguesia que considerava aquele fenómeno como sobrenatural, cuidando que era um sinal divino, a anunciar que chegara o fim do Mundo e o Juízo Final. Foi Ti Malvina que se insurgiu contra a sobrenaturalidade de um fenómeno do qual tinha a certeza e sabia que era perfeitamente natural, embora pouco vulgar naquelas paragens do globo terrestre e que não traria rigorosamente nenhum mal a quem quer que fosse, nem muito menos seria o fim do mundo ou o fim ou princípio de outra coisa qualquer, pois era simplesmente uma Aurora Boreal. O povo rejeitou radicalmente as informações e os conhecimentos de Ti’Malvina, considerando-o um herege e um ateu.

Outro facto que revela a sabedoria, o conhecimento e sagacidade de pensamento de Ti Malvina, foi o de ele, nas primeiras décadas do século XX, sentado numa simples cadeira da sua rústica cozinha, ter previsto que um dia o mundo “havia de nos entrar pela casa dentro, através duma pequena janela”, imaginando assim o que mais tarde veio a acontecer: a invenção da televisão.

Para além de sábio, Ti Malvina também era uma pessoa dotada para a realização de todos os tipos de actividades e experiências relacionadas com o universo. Ti Malvina explicava os eclipses, as fases da lua, a esfericidade da terra e conhecia muitos postulados científicos.

Francisco Fagundes da Silveira, um homem que se tivesse tido a oportunidade de ter estudado e frequentado universidades portuguesas, europeias ou americanas, muito provavelmente teria inscrito o seu nome entre a plêiade de cientistas portugueses e estaria entre os grandes vultos da história da cultura açoriana.

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publicado por picodavigia2 às 10:42





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