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A BUCHANAIFE

Quinta-feira, 19.12.13

Quando regressou da Califórnia, disposto a passar os últimos dias da sua vida na terra onde nascera, Mrs Robert trouxe consigo alguns costumes modernos que contrariavam os hábitos ancestrais duma isolada e pacata freguesia, como era a Fajã Grande, em plena década de cinquenta. Só que o ilustre ancião não se apercebeu, de imediato, da incompatibilidade existente entre os usos e costumes da terra do Tio Sam, estampados nas suas múltiplas extravagâncias, e o recatado viver dos habitantes da mais ocidental parcela do território português.

Ora, entre outras esquisitices, Mrs Robert adorava tomar banhos de mar. Na Califórnia, porém, não o fazia com a frequência e a continuidade desejadas. Vivia longe do mar, os invernos eram muito rigorosos e prolongados e, como se isso não bastasse, as águas do Pacífico que banhavam as costas do norte da Califórnia eram terrivelmente arrefecidas pela corrente fria do Humbolt. Mrs Robert saíra das Flores muito jovem, mas sabia bem que as águas do Atlântico, ali, nas Flores, eram mais quentinhas. O clima dos Açores era bem melhor do que o de “Mendocino County” e a corrente oceânica que passava a noroeste das ilhas era quente.

Assim e logo no dia imediato ao da sua chegada, Mrs Robert, resolveu pegar nos seus calções, muito vermelhos e ramalhudos, na sua toalha amarelada e a espelhar as praias do Hawai, enfiou um “kap” de marinheiro na cabeça, colocou os óculos escuros e partiu para o Porto, não sem, no entanto, despertar a curiosidade de quantos o viam caminhar naquele traje e naquela direcção.

O Porto Velho, a abarrotar de barcos e edificado ao redor de rochedos alcantilados não lhe agradou. Mas o Cais, esse sim. Era “wonderful, very wonderful”. Ao lado das escadas onde os barcos encostavam para descarregar mercadorias e passageiros, quando o Carvalho ali fazia serviço, havia um varadouro com alguma areia. “Really good”! E Mrs Robert decidiu-se pelo varadouro. Escondeu-se entre os rochedos para despir a roupa e vestir o “swimsuit” e encaminhou-se para o mar, descendo o varadouro como bem podia e Deus o ajudava. Mas as pedras estavam cheias de algas e limos molhados e escorregadios, fazendo com que Mrs Robert resvalasse várias vezes, amachucando e esfolando o rabiosque. Apesar de tudo, com as pernas a tremer como varas verdes, conseguiu chegar à água e começar a nadar. A água estava óptima, o mar muito manso e Mrs Robert nadava que nem um peixe.

A Maria Eduarda, que fora levar uma moenda ao moinho, lá para os lados da Ribeira das Casas, no regresso, passou por ali. Parou e mirou tudo! Pasmou-se, engasgou-se, benzeu-se e persignou-se. Nunca se vira, na freguesia, uma pouca-vergonha daquelas! Bisbilhoteira que era, não se conteve e, a correr numa aflição, veio anunciar ao povoado, não apenas o que vira mas também o que imaginara. Foi a debandada geral! Novos, velhos, rapazes crianças e até mulheres zarparam em direcção ao Cais, para ver, apreciar e comentar aquele inusitado espectáculo. E num ápice o Cais encheu-se de mirones, de comentários, de risos, de espantos, de reparos e de admirações. Incrédulas e apreensivas, as mulheres, sentenciavam: “Um velho daquela idade, a nadar, não pode estar bom da cabeça. Perdeu o juízo por completo.” Sorridentes, os homens comentavam: “É preciso ter coragem! O velhote aguenta-se que nem um rapaz de vinte anos”. Os rapazes e crianças, a divertirem-se com o espectáculo, alguns atirando-se de cima do Cais para a água, gritavam em alto e bom som: “Roberto vai ver a velha, Roberto vai ao fundo, ver a velha”.

Mrs Robert ao ver toda aquela patuleia desenfreada toca de remar para terra, tentando subir o varadouro com rapidez e celeridade. Os pés, porém, escorregavam sobre limos e algas. Mrs Robert, com uma monumental barriga e umas pernas muito delgadas, caía e levantava-se para cair de imediato, em infrutíferas tentativas de chegar ao esconderijo onde guardara a roupa. Impossibilitado de subir a pé, começou a andar de gatas, a rastejar, a rolar.se e a desgastar-se por completo, perante a chacota e a risada geral que emanava de cima do Cais, entremeada por entre gritos: “P´rá água! P´ra água! Roberto para a água!”

Muito a custo, Mrs Robert lá chegou ao seu esconderijo, enquanto a multidão, dando o espectáculo por terminado, abandonava o Cais. Algum tempo depois, ao regressar a casa, Mrs Robert deu com Ti’Antonho Joaquim sentado à praça. Parou e fixando-o de frente ripostou;

- Senhor António Joaquim, não tem vergonha! Um homem da sua idade, também teve a lata de caminhar para o Cais, a ver o “Fandaine”, para se rir à minha custa… Pois fique sabendo que Robert trabalhou muitos anos num talho, em “Ukiah” e sabe manejar muito bem uma “buchanaife”. Tenho uma lá em casa e vou trazê-la comigo, para ver se o Senhor António Joaquim e os outros voltam a ir ver o “fandaine” e a rir-se de mim. Oh, se voltam!

E a partir desse dia Mrs Robert, para além dos preparos necessários ao seu banho de mar, levava consigo, para o Cais, uma enorme faca de matar porcos

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publicado por picodavigia2 às 23:45

O FULGOR DO SOL

Quinta-feira, 19.12.13

Na encosta, com fulgor

Bate o Sol a toda a hora!

Só tu, menina, não sabes

Por que o Sol não vai embora.

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publicado por picodavigia2 às 21:55

VILA VILÃO

Quinta-feira, 19.12.13

“Vila, vilão.”

Este é um adágio fajãgrandense bastante parco em palavras mas muito rico em significado. Na realidade, nas Flores, nos tempos em que as freguesias estavam muito isoladas e distantes das vilas, e a Fajã Grande não fugia à regra até porque era a freguesia mais distante das Lajes, a sede do concelho em que estava integrada, havia uma certa conflitualidade entre os seus moradores e os que habitavam nas vilas. Cuidavam os habitantes das freguesias que as pessoas que moravam nas vilas eram uns beneficiados, uns privilegiados e uns felizardos, pois tinham tudo à sua disposição, enquanto eles, que viviam nas freguesias e nos lugarejos pequenos e isolados, muito pouco ou nada tinham, a não ser a falta de tudo. Nas vilas vivia-se bastante melhor do que nas freguesias, muitas pessoas tinham emprego, não faziam grandes deslocações a pé pelos matos, a subir rochas e a atravessar ribeiras, pois tinham ali tudo à mão e, por vezes, até esbanjavam o que tinham e desvalorizavam e apoucavam os que viviam nas freguesias. Muitos deles até nem trabalhavam nos campos, não tinham as mãos calejadas, não comiam o pão com o suor do seu rosto. Tinham empregos na Câmara, nas Finanças, na Tesouraria, no Tribunal e não se cansavam muito a trabalhar. Não faziam nada e tinham tudo. Eles, os que viviam ali, debaixo das rostas, a trabalhar de sol a sol, a esfolarem-se vivos, pouco ou nada tinham. Por tudo isso aí os habitantes das freguesias tinham, na verdade, algumas desconfianças acerca dos residentes nas vilas, considerando-os autênticos “vilões”. Daí a origem e o sentido deste adágio: “Vila, vilão.”

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publicado por picodavigia2 às 21:35

TOURADA NA RUA DIREITA

Quinta-feira, 19.12.13

O Maurício tinha o palheiro do gado na Assomada, junto à casa das Senhoras Mendonças e possuía relvas no Vale do Linho, lá para os lados da Ponta. O Raulino Fragueiro tinha o palheiro do gado na Tronqueira, junto à casa do Lucindo Cardoso e possuía relvas na Alagoinha, lá para os lados dos Paus Brancos. As vacas do Maurício, conduzidas por ele próprio, todas as tardes, desciam a Rua Direita, com destino às relvas do Vale do Linho e subiam-na, de madrugada, no regresso ao palheiro. Por sua vez, as vacas do Raulino Fragueiro, geralmente conduzidas pelo filho mais velho, o Francisco, todas as tardes, subiam a Rua Direita com destino às relvas da Alagoinha e desciam-na, de madrugada, de regresso ao palheiro. Umas e outras eram vacas robustas, de boa raça, bem tratadas, fortes, valentes, saudáveis, bonitas e boas de leita. Além disso, como era costume na Fajã Grande, quer o Maurício quer o Raulino Fragueiro e os filhos, para além de tratarem muito bem as suas vacas, colocavam-lhes reluzentes ponteiras nos chifres e sonoras campainhas ao pescoço. Assim, umas e outras, nas suas idas e vindas diárias, à tarde e de manhã, transitavam calma e tranquilamente na Rua Direita, enchendo-a de sons, de cores, de alegria e de movimento, mas também de bosta, de incómodo e de cheiro a leite e a palheiro.

Certa tarde, porém, tudo isto se modificou. Por infeliz coincidência ou mero acaso, o Maurício e o Francisco do Raulino saíram com as suas vacas dos seus palheiros a tais horas e com tal rigor que estas haviam de encontrar-se, umas com as outras, logo ali, a seguir à Praça, no início da Rua Direita, as do Maurício a descer, as do Raulino a subir. E eis se não quando, uma das vacas do Maurício, cuidando talvez que as suas oponentes não lhe deixavam espaço suficiente para circular, de mais atrevida e metediça que era, resolveu dar uma valente cornada numa das vacas do Francisco. Foi o bom e o bonito! As outras, entrando em defesa da inocente agredida, resolvem atacar massivamente, à cornada, ao coice, ao empurrão, ao salta por cima e ao encavalita, não apenas a desdenhosa que havia iniciado a guerrilha mas toda a comitiva que se encaminhava para o Vale do Linho. O Maurício, um boca-aberta de se lhe tirar o chapéu, cuidando que as suas vacas sabiam muito bem defender-se e atacar no momento oportuno e que as cornadas a ele não lhe doíam rigorosamente nada, optou por observar, de longe, o “fandaine”, e o Francisco, sempre lento, sempre atrasado e sempre na conversa com um e com outro, quando se aproximou do local da peleja, já esta ia a mais de meio, com consequências desastrosas, pois era de tal modo intensa, envolvente e desalmada que era impossível pôr-lhe cobro. Juntou-se gente, os moradores assomaram às portas, varandas e janelas, uns a divertirem-se com aquele inesperado espectáculo e outros a indignarem-se com as suas malévolas consequências. For fim os donos das vacas, ajudados por voluntários, à paulada, à cacetada, aos gritos, aos berros e ao incitamento às tréguas, lá conseguiram sossegar as rezes, que cansadas, escarrachadas, amarfanhadas e apalermadas lá seguiram o seu destino, as do Francisco subindo a Fontinha, até à Alagoinha, as do Maurício, continuando a descer a Rua Direita e a Tronqueira, até ao Vale do Linho.

Mas os moradores da principal e mais aristocrata artéria da Fajã, sobretudo os das casas ali ao redor, muito se indignaram e ainda mais se revoltaram. É que para além do incómodo provocado, o inesperado e inóspito incidente deixou marcas inqualificáveis e aberrantes, sobretudo de bosta e mau cheiro, nos passeios, nas entradas, nas portas e até nalgumas janelas e varandas. E o Maurício e o Francisco do Raulino, declarados unanimemente com os principais responsáveis por aquela displicente e abominável tourada, não foram poupados aos mais odiosos, variados e vis insultos, vitupérios, injúrias, pragas e imprecações.

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publicado por picodavigia2 às 19:51

COPIANÇO DE LUXO

Quinta-feira, 19.12.13

O Teixeira era um aluno pouco interessado nas aprendizagens, extremamente preguiçoso nos estudos e bastante descuidado nos trabalhos. Como se não bastasse, condimentava tudo isto com alguma indisciplina e bastante desatenção, prejudicando, vezes sem conta, com as suas atitudes e comportamentos menos correctos, o normal funcionamento das aulas. No entanto, nas fichas de avaliação, embora deixando uma ou outra pergunta em branco, geralmente respondia às questões formuladas com clareza, rigor e correcção, obtendo, assim, bons resultados. - “Hum! Mas ali havia gato, olaré se havia”. – Cuidei eu, comigo próprio.

Era hábito, na altura, que cada aluno, ao terminar a sua ficha de avaliação, a viesse colocar sobre a secretária do professor, regressando ao seu lugar, sendo-lhe, no entanto, atribuído um outro trabalho com que ocupasse, da melhor forma, a restante parte da aula, durante a qual os outros alunos acabavam os seus testes.

Eu, sentado à secretária lia, preparava trabalhos e aulas, corrigia fichas doutra turma, enfim ocupava o meu tempo de forma a evidenciar que não estava ali como polícia mas como professor e amigo. No entanto, o caso do Teixeira, despertava-me extrema curiosidade e, por isso, comecei a dedicar-lhe maior atenção.

Passados uns dias, nova ficha. Como de costume, alguns alunos, ao terminá-la, vieram colocá-la em cima da minha secretária, regressando aos seus lugares, a fim de fazerem os trabalhos propostos. Entre esses alunos, veio a Cláudia, a melhor, a mais estudiosa e a mais brilhante aluna da turma. O Teixeira não perdeu tempo e, de imediato, levantou-se e veio colocar a sua ficha sobre a secretária. Porém, antes de chegar ao seu lugar, voltou-se, de repente, solicitando-me com veemência:

- Setôr, esqueci-me duma resposta. Posso levar a minha ficha para responder ao que me esqueci?

Acenei-lhe afirmativamente e o Teixeira, com muito apuro e alguma e meticulosidade, retirou a sua ficha, regressando ao seu lugar. No entanto e sem que ele se apercebesse, assinalei com um lápis a ficha que estava por cima, de maneira a que, mais tarde, a pudesse identificar.

A aula terminou e todos vieram entregar as suas fichas. Mais tarde, ao corrigi-las verifiquei que a ficha que eu tinha assinalado não era da Cláudia. Pelo contrário a ficha da melhor aluna da turma estava imediatamente antes da do Teixeira. Ao corrigi-las, verifiquei, sem surpresa, que as respostas do Teixeira, estavam rigorosamente iguais às da Cláudia. Sem tirar nem pôr!

Na aula seguinte, ao entregar as fichas, dei os parabéns ao Teixeira, elogiando-o pela qualidade das suas respostas e pelo excelente resultado por ele obtido. E o Teixeira todo vaidoso, a vangloriar-se junto dos outros…

No teste seguinte repetiram-se os procedimentos. Era a Cláudia a colocar a sua ficha sobre a secretária e o Teixeira a levantar-se para também vir entregar a sua. No entanto, eu havia deixado cair ao chão, em frente à secretária, alguns papéis. Quando o Teixeira se aproximou, solicitei-lhe que, por favor, me juntasse aquela papelada. Ele, solícito, correspondeu ao meu pedido, baixando-se para juntar o que lhe pedira, enquanto eu, sem que ele se apercebesse, surripiava a ficha da Cláudia. Por feliz coincidência a que estava a seguir era a de um dos mais fracos alunos da turma. E a cena repetiu-se:

- Setôr, posso levar a minha ficha para responder a uma pergunta que me esqueci? – Solicitou o Teixeira.

Que sim, que estivesse à vontade, que ainda faltava muito tempo para terminar a aula.

O Teixeira regressou ao seu lugar de ficha em riste. Sentou-se, mas aquilo não atava nem desatava. Estrebuchou, esbracejou, bufou, olhou para trás e para diante, completamente perdido e a determinada altura fixou-me, pasmado. Pisquei-lhe o olho e acenei-lhe com a ficha da Cláudia que, apática e admirada, não percebia nada do que se passava.

No fim da aula, quando veio entregar a ficha, o Teixeira, atirando-a com repulsão e agastamento, disse-me em voz baixa:

- O setôr é que me lixou. Foi mais esperto do que eu.

Mas a verdade é que verifiquei com agrado que a partir daí alguma coisa mudou, para melhor, nas atitudes e comportamentos do Teixeira.

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publicado por picodavigia2 às 15:41

A MATANÇA DO PORCO EM SÃO CAETANO

Quinta-feira, 19.12.13

Assim como noutras localidades açorianas, a Matança do Porco, em São Caetano do Pico, constituía, nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta e, muito provavelmente, nas anteriores, um dos maiores e mais importantes momentos de festa de cada família, ao longo do ano. Ocorria, normalmente, no mês de Dezembro ou no de Janeiro e eram dois ou três dias de trabalhos árduos, de canseiras, de consumições e preocupações, mas também de festa, de alegria e, sobretudo, de mesa farta. Os próprios dias que antecediam os da Matança, já eram de grande azáfama, não apenas nas idas e vindas aos matos, a fim de cortar, acarretar e secar a urze, indispensável ao chamusco, mas também na preparação da lenha necessária para afoguear panelas e caldeirões, onde se havia de cozinhar os torresmos e derreter o toucinho. Uns dias antes da matança era necessário, também, arrancar, limpar, lavar e por a secar as cebolas de rama, que na véspera haviam de ser picadas para encher as morcelas. Depois de, devidamente preparadas, as cebolas eram misturadas e amassadas juntamente com salsa e outros temperos, aguardando a chegada do sangue. A véspera da Matança ainda era destinada a preparar as salgadeiras, a cozer o bolo e os inhames, a assar as batatas-doces e a preparar o peixe, o feijão, as lulas destinadas e outras iguarias destinados às refeições dos dias seguintes.

O dia da Matança iniciava-se ao lusco-fusco. Os parentes e amigos que vinham ajudar eram recebidos com um traguinho de aguardente ou de traçado. As mulheres embrenhavam-se, de imediato, a colaborar nas lides da cozinha, enquanto os homens, se quedavam junto ao curral, apreciando o cevado, avaliando o seu peso e qualidade, ao mesmo tempo que enrolavam uma ou duas pitadas de tabaco numa folha de casca de milho, transformando-o em cigarro que iam acendendo, sucessivamente, uns nos outros.

Finalmente iniciava-se o combate. Os mais novos, os mais experientes e, sobretudo os mais afoitos, saltavam para o curral, atapetado de palha e atiravam-se ao cevado, sem dó nem piedade. O bicho gritava, grunhia, estrebuchava e executava movimentos bruscos, em frustradas tentativas de libertação. Os homens venciam e o porco era amarrado, amordaçado e preso, sendo colocado sobre um tabuão ou sobre uma porta velha, a jeito que o marchante lhe enfiasse a faca com sucesso e o sangue jorrasse abundantemente e fosse aparado num alguidar de barro, ao mesmo tempo que lhe era misturado um pouco de vinagre, a fim de não coagular. Posteriormente, havia de se misturar ao preparado das morcelas.

Uma vez morto, o porco era chamuscado, de ponta a ponta, de um lado e outro, muito bem lavado e rapado, de modo a que a própria pele dos torresmos de toucinho pudesse ser comida. De seguida era aberto, sendo lhe retirados os miúdos, incluindo as tripas que, de imediato, eram separadas, a fim de se proceder à sua rígida, cuidadosa e exigente lavagem, com água, sal, farinha de milho, limas azedas, etc. As grossas, assim como o bucho, eram cheias com o preparado das morcelas, a que se juntara pedacinhos do véu picados. As outras tripas guardavam-se para as linguiças.

O abrir e o consequente desamanhar do porco era realizado pelos mais sábios e experientes. Os bofes, o coração e uns pedacinhos de carne da barriga eram guisados com batata branca, o fígado transformado em iscas e, juntamente com as sobras do almoço, constituíam o lauto jantar ou ceia, onde não faltavam os convidados de honra: padre, professor, regedor, guarda-fiscal e outras pessoas mais influentes na freguesia ou aquelas a quem se deviam favores. Mas a mesa não se levantava e, já pela noite dentro, entre jogos de cartas e copos de vinho, prova-se a morcela. Era também por esta altura que apareciam algumas visitas estranhas, com o intuito de assaltar as morcelas. Entre folguedos e cantigas, por vezes até entre bailados de chamarrita, todos eram brindados com vinho e comida, onde não faltava a aromática e saborosa morcela.

Depois de pendurado a um tirante pelo focinho, geralmente na loja ou na própria cozinha, o porco era aberto nas costas, de cima para baixo, sendo-lhe espetadas umas canas atravessadas que mantinham o interior do animal aberto, a fim de o enxugar. Por baixo colocava-se uma pequena celha para aparar os restos de sangue e água que escorriam do interior do animal.  

No dia seguinte, desmanchava-se o porco, separando, carne, ossos, lombos e toucinho. Algumas postas eram destinadas a ofertas e do lombo faziam-se os primeiros bifes para o jantar, juntamente com a morcela assada ou frita. A cabeça também era separada e preparada para com ela fazer a tradicional sopa, também incluída no jantar. O toucinho era derretido, quase na totalidade e, depois de se retirar a banha, transformava-se em pequenos mas deliciosos torresmos de graxa. Uma parte da carne e os ossos eram salgados e guardados nas salgadeiras, enquanto outra era finamente picada para as linguiças, que se haviam de encher alguns dias depois, a fim de ir garantindo, juntamente com a carne, os torresmos e o toucinho, o sustento de cada família, durante o ano.

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publicado por picodavigia2 às 11:11

AS PELES DAS OVELHAS

Quinta-feira, 19.12.13

Na Fajã Grande, salvo raras excepções, as ovelhas eram criadas no mato, à solta, todas em conjunto, sendo recolhidas para a tosquia duas vezes por ano, nos chamados dias de “Fio”. Um em Março outro em Setembro.

Muitas famílias, num ou noutro desses dias, para além de sacos e sacos de lã, traziam do mato para casa uma ovelha ou um carneiro, para abater, conseguindo, assim, melhorar o seu cardápio, nos dias subsequentes ao “Fio” ou então guardavam e alimentavam o ovino até à altura da festa mais próxima ou mais importante, a fim de, nesses dias, garantir refeições melhoradas, uma vez que a carne de vaca, para além de cara, rareava na freguesia.

Mas não era apenas a carne que se aproveitava do ovino abatido. Primeiro a ovelha ou carneiro era tosquiado com muito cuidado, a fim de que a pouca lã que lhe sobrasse no corpo ficasse muito bem aparada e direitinha. Só então se matava o bicho, esfolando-o também com tal cuidado que a sua pele ficasse totalmente inteira e sã, a fim de ser aproveitada para uso doméstico. Para tal, limpava-se muito bem do sangue e das gorduras e depois esticava-se com umas canas pontiagudas nas extremidades. Duas prendiam-se na pele correspondente às patas dianteiras, cruzavam-se sobre o lombo e voltavam a prender-se nas patas traseiras, formando um X. Depois e com uma terceira cana esticavam-se as pontas abertas da barriga, cruzando-a sobre as primeiras de forma a formar uma espécie de papagaio de papel. Assim, bem esticada, a pele aguardava por um dia que fosse de cozer pão, a fim de que, retiradas as brasas, depois do forno estar aquecido, estas fossem colocadas sobre a pele, queimando-a e secando-a como se fosse a pele de um tambor. Esta operação repetia-se tantas vezes quantas fossem necessária para a pele ficar bem seca, bem queimada e bem esticada. Finalmente a pele era muito bem lavada de ambos os lados e colocada ao sol, a secar. Estava assim conseguido uma espécie de pequeno lençol que era colocado sobre os colchões de casca ou de palha dos berços dos bebés ou das camas de alguma criança maior, mas ainda incontinente. A pele da ovelha funcionava assim como uma espécie de lençol, acolchoado e impermeável que tinha uma dupla função: aquecer o corpinho do pequerrucho e impedir que o chichi, eventualmente expelido durante a noite, não alagasse os lençóis e os colchões das camas ou dos berços.

Na Fajã Grande, as peles das ovelhas, os primeiros animais a serem domesticados pelo homem, cerca de 9000 anos antes do Nascimento de Cristo, para quem não tinha crianças ou abatia mais do que uma ovelha, eram utilizadas como capachos e tapetes, colocados sobretudo nas salas e mais ainda nos quartos de dormir, onde as pessoas geralmente andavam descalças e com os pés lavados. Acrescente-se que estes tapetes eram de grande utilidade por quanto a lã das ovelhas para além de repelir as nódoas era muito resistente, pelo que estes tapetes e capachos tinham longa duração. Para os obter, o processo de secagem das peles era igual ao realizado para transformar as peles em lençóis para os berços.

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publicado por picodavigia2 às 10:19

O PADRE LEONETE DO CORVO

Quinta-feira, 19.12.13

Na década de cinquenta, quase todos os anos vinha uma embarcação com romeiros do Corvo, com destino à festa da Senhora da Saúde, na Fajã Grande. O inverso também acontecia, isto é, por altura da festa da Senhora dos Milagres, uma outra embarcação seguia da Fajã, a abarrotar de peregrinos, com destino à ilha vizinha. Este intercâmbio era tão excessivo, tão gratificante e tão entusiasmador que quase todas as casas da Fajã tinham os seus “conhecidos” no Corvo, assim como as do Corvo os tinham na Fajã, hospedando-se uns nas casas dos outros, a quando das suas deslocações a festas e romarias. Nem mesmo o trágico acidente ocorrido em 1942 em que perderam a vida dezasseis pessoas quase todas oriundas da Fajã Grande, pôs cobro ou sequer acalmou tão enraizada euforia.

A comitiva do Corvo que se deslocava à Fajã, para além de muito numerosa, trazia, geralmente, a filarmónica e um padre. Este chamava-se Leonete e era esperado sempre com grande expectativa e interesse na Fajã Grande. Estranhamente hospedava-se, na Tronqueira, em casa do seu “conhecido” José Maria, abdicando, radicalmente, talvez por não granjear de grande simpatia entre o clero da diocese, em geral, e das Flores em particular, de se hospedar na mansão do padre Pimentel, que recebia e dava guarida a todos os sacerdotes que se deslocavam de outras paróquias a fim de ajudarem naquela festa. Além disso, o padre Leonete, nos dias em que permanecia na Fajã, mal tinha tempo para rezar ou celebrar missa, julgando-se mesmo que estava impedido de o fazer, uma vez que passava todo o dia a concertar e a reparar toda a maquinaria que estivesse avariada na Fajã Grande, sobretudo relógios, sem levar dinheiro a ninguém. Uma autêntica dádiva de Deus, este padre Leonete.

Leonete Vieira do Rego, natural de São Miguel fez a sua formação no Seminário de Angra, tendo, de seguida e durante algum tempo, trabalhado como mecânico numa oficina de Ponta Delgada. Nessa altura ainda não tinham surgido “os padres operários” em França, pelo que a atitude do padre Leonete não agradou ao prelado diocesano. Este, cuidando que esse tipo de trabalho era incompatível com a prática de vida sacerdotal, tentando demovê-lo dessa actividade laica e pretendendo que se dedicasse exclusivamente ao serviço de Deus, enviou-o para o Corvo, talvez por pensar que aí não havia máquinas, nem motores com que padre Leonete se entretivesse. Mas enganou-se, o mais alto dignatário da Igreja nos Açores. É que isso em nada demoveu a vocação para a mecânica do padre Leonete que terá comprado e levado de São Miguel para o Corvo o motor de um carro velho, reparando-o e construindo com ele um pequeno gerador que serviu para iluminar a igreja e os arraiais das festas, naquela ilha. Uma novidade extraordinária! Nunca tal se tinha visto, no Corvo! Um sucesso nunca alcançado pelos corvinos! E o padre Leonete entrou em órbita de grandiosidade e de glorificação, junto do povo. Mas não se ficou por aqui. Com outro motor velho construiu uma debulhadora destinada a ajudar os corvinos na debulha do trigo e comprou um jipe destinado a acarretar e transportar o trigo e outros produtos. Mais o glorificaram e o louvaram os seus paroquianos, dando graças a Deus por lho ter enviado. Além disso as reparações de todo o tipo de maquinaria estavam sempre por sua conta, não apenas no Corvo mas também nas Flores quando ali se deslocava, como acontecia todos os anos pela festa da Senhora da Saúde, na Fajã Grande. Acrescente-se que todo este trabalho, segundo rezam as crónicas, era gratuito, embora o povo das duas ilhas, reconhecido como é pelo bem que lhe fazem, lhe retribuísse ofertando-lhe algo do que produziam nos seus campos.

Conta-se que na freguesia de Ponta Delgada das Flores, o padre Leonete com um pequeno motor, também construiu um gerador para iluminar nas festas do Espírito Santo e de Santo Amaro, com um pequeno motor a que ligava uma serra disco que servia para a iluminação e para a projecção de filmes. Para lhe pagar, os habitantes daquela freguesia mandavam-lhe barcos carregados de lenha que apanhavam nas barrosas e que o Padre Leonete, no Corvo, mandava serrar e, transformando-a em madeira, enviava-a de novo para as Flores para o povo a vender, ganhando assim algum dinheiro.

Mas o que imortalizou o padre Leonete no Corvo foi o ter sido ele o responsável pela chegada da electricidade àquela pequenina e isolada ilha, em plena década de cinquenta do século passado.

Mais tarde e porque os trabalhos de mecânica do padre Leonete, mesmo no Corvo, provavelmente, continuaram a não ter o beneplácito bispo da diocese, o padre Leonete foi desterrado como missionário para Timor, onde terá chegado a dar aulas de mecânica, sendo no entanto obrigado a sair daquele território, na altura sob a dominação portuguesa, a quando da invasão do mesmo pela Indonésia, refugiando-se na Austrália. Apesar de tudo ainda voltou ao Corvo onde veio a falecer.

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publicado por picodavigia2 às 08:52

ALGUNS PROVÉRBIOS SOBRE O NATAL

Quinta-feira, 19.12.13

{#emotions_dlg.painatal} Uns citados de memória, outros retirados de livros, calendários e almanaques, aqui se transcrevem alguns provérbios populares sobre o Natal, muitos dos quais utilizados outrora na Fajã Grande e que estão assinalados com um asterisco:

 

“Ande o frio por onde andar, há-de vir pelo Natal.

Ande o frio por onde andar, no Natal cá vem parar.”

Caindo o Natal à 2ª feira, tem o lavrador que alugar a eira.

De S.ª Catarina ao Natal, um mês igual.

Do Natal a Santa Luzia, cresce a noite e mingua o dia.

Do Natal à Sta. Luzia, cresce um palmo em cada dia.*

Dos Santos ao Natal, cada dia mais mal; do Natal ao Entrudo, come capital e tudo.

Dos Santos ao Natal, é Inverno natural.*

Dos Santos ao Natal, um salto de pardal.*

Mal vai Portugal se não há 3 cheias antes do Natal.

Não há ano afinal que não tenha o seu Natal.*

Não há porco que não tenha o seu Natal.*

Natal em casa, junto à brasa.
Natal na praça, Páscoa em casa. Natal em casa, Páscoa na praça.*

No Natal semeia o teu alhal se o quiseres cabeçudo, semeia-o  pelo Entrudo.

Pelo Natal se houver luar, senta-te ao lar; se houver escuro, semeia outeiros e tudo.*
Pelo Natal, cada ovelha no seu curral.
Pelo Natal, neve no monte, água na ponte.
Pelo Natal, sachar o faval.*
Pelo Natal, tenha o alho bico de pardal.

Quando o Natal tem o seu pinhão, a Páscoa tem o seu tição.

Quem quer bom ervilhal semeia antes do Natal.*

Quem varejar antes do Natal, deixa o azeite no olival.

Se te queres livrar de um catarral, come uma laranja antes do Natal.*

Tudo a seu tempo, e os nabos no Advento.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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