PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
LUÍS BERNARDO LEITE DE ATAÍDE
Luís Bernardo Leite de Ataíde nasceu em Ponta Delgada, a 25 de Abril de 1883 e faleceu na mesma cidade, em Julho de 1955. Homem de vasta e multifacetada cultura, destacou-se como pintor, etnógrafo e historiador da arte micaelense. Desde muito jovem manifestou tendência para a pintura, datando de 1890 o seu primeiro trabalho identificado, Barcos no Porto de Ponta Delgada. Teve lições particulares de pintura e desenho com Artur Viçoso May, ao mesmo tempo que frequentava o ensino secundário. Em Coimbra, formou-se em Direito, em 1906, e regressou a S. Miguel, sendo em 1908 nomeado director da secção de Etnografia do, então, Museu Municipal, cargo que exerceu até ao fim da vida. Logo após a implantação da República fez parte da primeira comissão administrativa da Câmara Municipal de Ponta Delgada, mas rapidamente se desiludiu e voltou aos credos monárquicos tradicionais da família. Ainda em 1910, regressou a Lisboa para ter lições de pintura, durante alguns meses, com Carlos Reis. De novo em S. Miguel, iniciou então o período de criação adulta como pintor, que, marcada inicialmente por uma disciplina naturalista clássica, evoluiu gradualmente para um impressionismo, de estilo muito pessoal. Os seus quadros a óleo sobre tela e sobre madeira têm quase sempre exclusivamente por tema a paisagem micaelense. Deixou também notáveis caricaturas. Para além das suas exposições, participou noutras em Ponta Delgada, nas quais foram apresentadas obras de alguns dos pintores portugueses mais destacados na época. As suas qualidades foram reconhecidas no Continente e no estrangeiro e chegou a ser convidado por José de Figueiredo para conservador do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Em 1990 foi publicado pela Editora Signo um álbum com a reprodução de uma centena das suas obras sob o título Luís Bernardo Leite de Athayde: Do Naturalismo ao Impressionismo – Um Percurso Açoriano. A etnografia foi outro dos seus principais interesses. Manteve largo contacto epistolar com etnólogos de relevo, no estrangeiro e em Portugal, como, por exemplo, José Leite de Vasconcelos. Dedicou-se, também, ao restauro de obras de arte e monumentos, com destaque para o grande trabalho que realizou no Convento de Belém, onde residia. No campo da história da arte, encarada quase sempre numa perspectiva de ligação à etnografia, iniciou os seus trabalhos a partir de 1910, estudando e defendendo sistematicamente o património cultural e artístico micaelense. Para além de livros e opúsculos abaixo referidos publicou na Revista Micaelense, na Insulana, no jornal A Ilha e em outros periódicos, numerosos artigos sobre aquelas temáticas. Em 1930, fez parte da comissão administrativa da Junta Geral do Distrito e foi por proposta sua que esse corpo administrativo adquiriu o Convento de Santo André para nele instalar o Museu Carlos Machado. Nos primórdios do turismo açoriano pertenceu aos corpos gerentes da Sociedade Terra Nostra, deixando pinturas em algumas das suas instalações. Sócio honorário do Instituto Histórico da Ilha Terceira e sócio fundador do Instituto Cultural de Ponta Delgada. Foi agraciado em 1919 com o grau de cavaleiro da Ordem de Sant’Iago da Espada. Foi ainda vogal auxiliar da Comissão dos Monumentos Nacionais; sócio correspondente da Associação dos Arqueólogos Portugueses; membro do Conselho Superior de Belas-Artes (); etc. Em 1974, foi homenageado postumamente pela Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada, com o descerramento de um busto em bronze no Museu Carlos Machado, da autoria de Francisco Xavier Costa, e uma grande exposição retrospectiva.
As suas obras literárias principais são: Etnografia Artística, A Laranjeira do Senhor Santo Cristo), Ermidas Micaelenses., Um Místico. Notas Etnográficas e Folclóricas da Vida Micaelense do Século XVIII, Trechos da Vida Rústica Regional, A Urbanização de Ponta Delgada e a Sua Arquitectura, Notícias dos Médicos e Artistas Amigos Portugueses e Estrangeiros Que Exerceram a Sua Actividade em Portugal, Etnografia, Arte e Vida Antiga nos Açores, Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O DR FREITAS PIMENTEL
Era eu ainda criança quando me desloquei pela primeira vez às Lajes, com o objectivo de ir buscar uma encomenda vinda da América. Fi-lo acompanhado e com uma dupla e incontida alegria. Por uma lado tinha a oportunidade de, pela primeira vez, ver, apreciar e percorrer as ruas de uma vila, que eu cuidava ser algo de muito grandioso e imponente e, por outro, animava-me a esperança de ter umas roupinhas novas e, eventualmente, um ou outro brinquedo já gasto e usado ou, simplesmente, uma esferográfica sem tinta, vinda na “saca” da América.
Nessa altura, ainda não havia estrada a ligar a Fajã Grande às Lajes, pelo que o trajecto, entre as duas localidades, era feito a pé por inteiro, atravessando a ilha de lés-a-lés, percorrendo veredas e atalhos, saltando grotas e ribeiras, subindo montes e rochas, descendo ladeiras e aclives e, por vezes, atravessando relvas e pastagens, à mistura com vacas e bezerros, a fim de encurtar distâncias e aliviar percursos. Eram quatro horas de viagem cansativa e fatigante, mas alegre e folgazona. A certa altura, cheio de sede e a arfar fadiga, bebi água em sítio onde muito provavelmente esta estaria infectada. Passados alguns dias fui acometido de febres muito altas, com a boca inchadíssima e num estado lastimável, pelo que permanecia de cama, inerte, sem poder comer o que quer que fosse. Um enorme sofrimento para mim e uma atribulada angústia para os que me rodeavam. Uma tragédia! Meu pai, aflito, nem sabia o que fazer. Na Fajã Grande não havia médico e levar-me a santa Cruz era de todo impossível, devido à distância, à falta de transporte e ao meu estado de extrema fraqueza e acentuada debilidade.
Por feliz coincidência, nesses dias, o senhor Doutor Freitas Pimentel, à altura Governador Civil do Distrito da Horta, realizou uma visita oficial à Fajã Grande, viajando num gasolina, desde as Lajes. Recebido apoteoticamente em cima do Cais, Sua Excelência, acompanhado da sua comitiva, na qual já se incluíam as autoridades da ilha, dirigiu-se, para a Casa do Espírito Santo de Cima, apinhada de gente, onde lhe foram dadas as boas vindas e feitos os discursos. Meu pai sabia que o Senhor Governador Civil também era médico. Aguardou serenamente que todo este cerimonial se realizasse e, quando se apercebeu de que o mesmo se aproximava do fim, correu a casa, embrulhou-me num cobertor e trouxe-me ao colo até à Casa do Espírito Santo. Furando por entre a multidão, ludibriando os seguranças e resistindo à oposição de alguns membros da comitiva, aproximou-se do Dr Freitas Pimentel e solicitou-lhe que, por alma dos seus, me visse, me observasse e me receitasse algum remédio, ao mesmo tempo que me desembrulhava do cobertor.
O Dr Freitas Pimentel, apercebendo-se da gravidade do meu estado de saúde, de imediato, suspendeu a sua actividade de Governador Civil e solicitou ao seu secretário que lhe trouxesse uma pasta, donde retirou diversos instrumentos de diagnóstico médico. Observou-me, mediu-me a temperatura, auscultou-me e abriu-me a boca com uma espátula. De seguida, acalmou o meu progenitor, dizendo-lhe que eu tinha um gravíssimo ataque de piorreia mas que tudo se iria resolver. Receitou-me uma valente dose de penicilina, alguns comprimidos e um desinfectante oral, sugerindo que as injecções me fossem aplicadas o mais rapidamente possível.
Meu pai voltou a embrulhar-me no cobertor e perguntou quanto era a consulta. O Dr Freitas Pimentel, esboçou um sorriso, deu-lhe uma leve palmada nas costas e disse-lhe apenas:
- Vá depressa, homem. Vá depressa a Santa Cruz ou às Lajes comprar as injecções, que as não há aqui na Fajã.
Cumpriram-se com rigor as prescrições médicas e, alguns dias depois, eu tinha-me curado por completo e estava são que nem um pero e meu pai aliviado.
Passaram-se mutos anos, sem que nunca mais visse o dr Freitas Pimental e lhe pudesse agradecer aquela cura milagrosa que ele, em mim, havia operado. Certo dia, porém, ao embarcar no aeroporto da Horta, dei com ele, só, abandonado, triste e melancólico, num canto da sala de espera. Cuidei que era a altura de lhe agradecer o que ele, há muitos anos, fizera por mim. Com alguma hesitação, aproximei-me, cumprimentei-o e apresentei-me, recordando o episódio de há muitos anos em que ele me havia curado. Que se lembrava muito bem das suas idas à Fajã Grande, mas não se lembrava de me ter tratado. Que procurara sempre ajudar a todos, mesmo quando lhe solicitavam cuidados médicos. Que nunca se recusara a tratar um doente e que sempre o fizera, sobretudo, naquelas localidades onde, na altura, não havia médico.
Agradeci-lhe mais uma vez e despedi-me. Para espanto meu, o antigo Governador Civil da Horta disse-me:
- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!
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NATAL À BEIRA RIO
(POEMA DE DAVID MOURÃO FERREIRA)
É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
David Mourão-Ferreira, Obra Poética 1948-1988
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BENVINDO SEJAS NATAL
(POEMA DE COELHO DE SOUSA)
Para os soldados na guerra,
E quantos vivem na paz.
Os que trabalham na terra,
Andam no mar
Ou no ar.
Para cegos e aleijados
herdeiros do sofrimento;
para quantos gozam alegres;
As criancinhas, os velhos
A juventude : o futuro;
Os nossos pais e irmãos
Do mundo todo,
Bem-vindo sejas nata!
Natal! Natal! Natal ! Ei-lo que vem
É Deus que volta
E nEle a vida, a luz, a graça, o bem.
Bem-vindo sejas, Natal!
Coelho de Sosa
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O SEMINÁRIO DE ANGRA TEM NOVO SITE
Nunca o “velhinho” Seminário de Angra foi tão divulgado pelos meios de comunicação social e pela internet! Na origem desta mediática “explosão” daquele que formou, sobretudo ao longo do século XX, a maior constelação de estrelas do firmamento açoriano da cultura, da ciência, da música, da religiosidade e da formação humana, estará, muito naturalmente, a comemoração dos seus cento e cinquenta anos de vida. Para além dum programa televisivo, elaborado e já transmitido pela RTP Açores e de algumas entrevistas apresentadas por aquela estação, a internet, também o tem divulgado ao mundo, através da rede social “Facebook”, onde foi criado o “Grupo da década de 50/60 – SEA”, que conta já com um bom número de aderentes, todos eles, outrora, alunos daquela instituição de ensino, onde, para além da troca de mensagens, se divulgam interessantíssimas fotografias, muitas delas trazendo-nos à memória pessoas e vivências daquele período áureo.
Também alguns blogues têm referido o SEA, nomeadamente, “Escrita em Dia” do José Gabriel Ávila, “Alto dos Cedros” do Emílio Porto e outros. Através do Facebookk e sob a motivadora “batuta” do João Carlos Carreiro, com a pronta colaboração do Abel que, com esta iniciativa, já colocou todo o clero da Ouvidoria da Terceira em pulverosa, foi divulgada a convocatória a “todos” para uma espécie de “congresso de memórias, encontros e vivências” a realizar em Angra nos próximos dias 6, 7 e 8 de Julho. Germinada nos encontros do Mucifal e, sob a sábia e competente orientação do Olegário, com a colaboração de um grupo de notáveis, nos quais se inclui Cunha de Oliveira, Artur Goulart, Onésimo, Caetano Valadão, Emílio Porto, Manuel Simas, Carlos Sousa, Januário, entre outros, está a ser preparado o projecto “Álbum SA”, um álbum dedicado ao papel determinante do Seminário de Angra na cultura açoriana das décadas de 50 e 60 do séc. XX.
O Pico da Vigia também não foi excepção, tendo publicado alguns textos sobre aquela instituição, como se pode visionados no “tag” “Seminário de Angra” daquele blogue. Ora num desses textos, colocado há dois meses, dizia-se o seguinte; “… Lamentavelmente este “site” (do Seminário de Angra) é duma pobreza lastimável, duma amplitude medíocre e duma limitação inexplicável. Para além duma resenha histórica do próprio Seminário, baseada nos livros do Sr Cónego Pereira, o “site” do Seminário de Angra contém apenas o nome dos seminaristas, duas ou três notícias desactualizadas no tempo, o nome de quatro dos seus formadores e uma resenha do plano de formação pastoral para o ano de 2004. Formação humana, intelectual e espiritual, assim como obras e calendário: nada. Vídeos e fotografias: nada. (…) Recentes notícias informam que o Seminário tem um novo reitor, o dr Helder Miranda, um jovem de 34 anos, a quem naturalmente, no seu percurso académico, não terá sido alheia uma formação a nível de informática, até porque mantem, desde de 2007, um blog pessoal, intitulado “kerigma”. Por isso, um dos sonhos, entre muitos outros, nascido por altura das comemorações dos 150 seria o da reestruturação e actualização do referido “site” de modo que possa alimentar a saudade, o interesse, a amizade e a gratidão e seja capaz de aproximar e unir em sã camaradagem todos os que passaram por aquela “santa casa mimosa de Deus” e que ainda hoje, com muita emoção, a sentem como sua.”
Pois, para gáudio de todos, o Seminário Episcopal de Angra tem um novo site. Não creio que o que aqui foi escrito para tal tenha contribuído, pois muito provavelmente, nem foi lido pelos responsáveis daquele site, mas a verdade é que o profetizamos e é com muita satisfação que, agora, divulgamos tão boa notícia. Naturalmente que o novo site do SEA está no início. Mas, decerto, há-de crescer, não apenas com as vivências dos que agora ali se formam ou são formadores mas também com a história dos professores e alunos que, noutros tempos, por lá passaram, que muito lhe devem e que continuam a senti-lo como seu. A prová-lo estão as várias iniciativas programadas e a programar para comemorar os seus cento e cinquenta anos de existência.
Pode-se consultar o novo site em:
http://www.ecclesia.pt/seminarioangra/
Texto publicado no Pico da Vigia, em 31/01/12
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VASSOURINHAS DE PALHA
Para além das vassouras propriamente ditas, ou seja, aquelas que eram fabricadas com a palha do chamado “milho de vassoura”, na Fajã Grande, pelo menos até à década de cinquenta, também se faziam vassouras com a palha do trigo. Estas, porém, eram muito diferentes daquelas, não apenas no tamanho mas também no formato e, até certo ponto, no que à sua funcionalidade dizia respeito.
A primeira grande diferença entre estas vassourinhas de palha de trigo e as vassouras feitas com os caules e fibras do milho com o mesmo nome, era a de que as primeiras não tinham cabo, ou melhor não tinham cabo de madeira, o que obviamente baixava o seu custo de produção, permitindo que fosse mais fácil e menos trabalhoso adquiri-las. Comprar nas lojas, as vassouras que o Teófilo produzia no Faial e exportava para as Flores, era muito caro e inacessível aos bolsos de muitos fajãgrandenses e cultivar milho de vassoura, apenas nos cantos das belgas e cerrados não chegava para meia missa, isto é, para fazer meia vassoura. Todo o tereno era pouco para o milho, para a batata-doce e para as couves e, por isso mesmo, não podia desperdiçar para fazer vassouras. Mas as “vassourinhas de palha” não substituíam na globalidade as outras, pois eram bem mais pequenas e destinavam-se fundamentalmente a varrer o lar, as escadas e todos os cantos e recantos da casa onde as vassouras maiores e de cabo de madeira não chegassem.
Para o fabrico destas “vassourinhas”, escolhia-se a palha, não sendo imprescindível, sequer, que se seleccionasse a melhor. Era necessário, isso sim, que fosse a mais comprida. Após secar durante algum tempo, cortava-se o pé, se o trigo tivesse sido arrancado, e as sobras da espiga, se esta ainda existisse. Depois juntava-se uma boa mão cheia da dita cuja, preferencialmente toda do mesmo tamanho. Se o não fosse, cortavam-se as extremidades das maiores de modo a que ficassem todas iguais. De seguida dobram-se a meio e amarravam-se muito bem apertadas logo a seguir à parte dobrada, pelo menos em dois sítios, equidistantes um do outro. Espalmavam-se um pouco as palhas de meio para baixo, e amarravam-se de novo, de forma entrelaçada, de maneira a que as palhas mantivessem esse formato. Estava feita a vassourinha, que de tão pequena que era podia, realmente, ser manejada apenas com uma das mãos, pelo que estas vassouras também eram designadas, simplesmente, por “vassouras de mão”. Se a palha fosse muito curta as vassouras adquiriam um formato ligeiramente diferente. Neste caso a palha não era dobrada a meio, mas apenas amarrada numa das extremidades, procedendo-se, de seguida de igual forma como naquelas em que a palha era dobrada.
Para além da grande utilidade que tinham na limpeza e asseio das casas, estas vassouras também eram usadas pelos carpinteiros para varrer o cisco dos bancos onde trabalhavam, pelos moleiros para varrer a farinha sobre a mó do moinho, pelas cozinheiras para varrer os tijolos de cozer o bolo e por quem quer que fosse para juntar o milho, as favas os tremoços e até o trevo e erva-da-casta, postos a secar ao Sol. Depois de muito usadas e gastas, ainda serviam para varrer as casas velhas, sobretudo quando se debulhava milho ou descascavam as favas, e para limpeza das retretes, dos chiqueiros das galinhas e dos pátios e escadas.
Tinham pois muita utilidade, estas vassouras que, com o abandono do cultivo do trigo, começaram a rarear, embora houvesse quem as fizesse, nessa altura, com fios de espadana e até com bracéu, neste caso de forma semelhante aos pincéis de caiar as casas, mas sem cabo. É que as vassouras eram absolutamente necessárias na Fajã, uma vez que também serviam para apanhar os cacos do que se partia e para varrer as ruas quando se faziam os tapetes de flores e verduras para passarem as procissões ou para receber o Senhor Bispo ou outro personagem importante. Eram pois muito usadas, as vassouras, na Fajã e, como as de cabo eram mais caras e difíceis de se obter, recorria-se às célebres “vassourinhas de palha”, uma espécie de percursoras das vassouras de piaçaba, e que hoje muito provavelmente já não há memória.
Na realidade, na origem do fim destas vassourinhas, para além do abandono da cultura do trigo, também terá contribuído fortemente para o seu declínio e consequente extinção, o aparecimento, no final da década de cinquenta, na Fajã Grande, das vassouras de piaçaba, ao que parece, trazidas do Brasil, no início do século XX e sobretudo na década de trinta, por portugueses que tinham emigrado para o Brasil e que regressavam ao seu país de origem.
Na Fajã Grande, como em muitos outros lugares do país, também havia, nalgumas casas, a tradição de colocar uma ou mais vassouras atrás da porta, mas viradas ao contrário, ou seja, com o cabo para o chão e a parte de varrer para cima, com o objectivo de “afugentar as visitas indesejadas”, embora os que queriam manter oculta a sua crendice ou os que nisso não acreditavam, afirmassem que o faziam, simplesmente. para melhor conservar as ditas cujas.
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O PAlÀCIO DE HERODES
Nos grandes e bonitos presépios que se faziam na Fajã Grande, nos anos cinquenta, por altura do Natal, o maior, mais belo e mais sumptuoso edifício que ali se colocava era o Palácio de Herodes, contrastando com a pobre e humilde casa de Barbearias, situada, por tradição, no lado oposto do presépio.
Porém, enquanto Barbearias era uma figura mítica e a sua lenda, ao que parece, era conhecida apenas na Fajã, Herodes era uma figura histórica, referida não apenas pelos evangelistas mas também por cronistas e historiadores, embora, na Fajã Grande, se contassem muitas estórias e lendas a seu respeito, embora, na Fajã Grande, se contassem muitas lendas e estórias acerca dele.
Herodes Antipas era filho de Herodes, o Grande e, após a morte do pai herdou a tetrarquia da Galileia, auto intitulando-se “rei” sem no entanto nunca ser reconhecido como tal, pelos romanos, dado que para estes. Vivendo maritalmente com Herodias, a mulher de seu irmão, fez a vida negra a João Baptista e mais tarde, na mira de matar o Menino Jesus, foi o responsável pela trágica e catastrófica “degola dos inocentes”. Quando Jesus nasceu era que governava a Galileia, uma das quatro divisões romanas da Palestina, a cujos governantes se atribuía a designação de “tetrarca”.
Sendo assim, esta personagem perversa e malina, o tal “cara de burro sem cabresto… que tinha das duas tranças mas não gostava de crianças”, segundo Torga, não podia faltar no presépio e com um maravilhoso palácio, onde abundavam a grandiosidade, a sumptuosidade, o luxo, a riqueza, a depravação e onde reinavam a concupiscência, a intriga, o ódio e a promiscuidade. Feito a partir de uma enorme caixa de papelão, com janelas e varandas recortadas e coladas, com telhado ornado de enfeites, com cortinados de veludo vermelhos por dentro da janela, era colocado distante da gruta, mas em lugar de destaque e por ali haviam de passar, obrigatoriamente, os três reis magos, na sua lenta caminhada, a tentarem obter, junto do facínora, informações sobre o local onde Jesus nascera.
O Evangelista São Marcos, descreve assim uma festa no sumptuoso palácio de Herodes: “Aconteceu então que Herodes, no dia de seu aniversário, deu um banquete a seus nobres, oficiais, e altos dignitários da Galiléia. Durante o banquete dançou a filha de Herodíades, a qual muito agradou a Herodes e seus convidados. Então o rei disse à donzela: Pede-me o que queres, e to darei. E prometeu em juramento: Dar-te-ei o que quiseres, ainda que seja a metade do meu reino. Ela foi perguntar à sua mãe: Que queres tu que eu peça? Esta respondeu: a cabeça de João Batista. A donzela foi ter com Herodes e lhe respondeu: quero que me entregues numa bandeja a cabeça de João Batista. O rei se entristeceu, mas não quis negar o pedido, visto que o havia jurado na presença de seus convidados. No mesmo instante, ordenou a um verdugo que trouxesse a cabeça de João. Este foi ao cárcere e cortou a cabeça do profeta. Logo, trazendo-a numa bandeja, entregou-a à donzela, e esta foi ofertá-la à sua mãe.”
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UMA BRINCADEIRA DE MUITO MAU GOSTO
O José Rodrigues, também conhecido pelo “Bem se sabe”, dado que nas suas conversas usava frequentemente este chavão, era um homem simples, generoso, benévolo e, além disso, possuía uma cultura geral bastante interessante, mas era muito ingénuo.
Filho do João da Catrina, morava no início da Assomada, quase à Praça. Para além de ajudar o pai nas lides do campo, o José Rodrigues era um excelente carpinteiro, com oficina montada nas Courelas. Rezam as crónicas, que foi ele que, nos finais dos anos trinta, construiu as primeiras balizas para o campo de jogos do Estaleiro, entre o Porto e o Calhau Miúdo, onde jogavam os dois primitivos clubes de futebol da Fajã Grande, o Sport e o Salgueiros e que mais tarde se uniram, formando o Atlético Clube da Fajã Grande, agremiação que manteve a prática desportiva, na freguesia, até há poucos anos. Era ele também que construía os caixotes de madeira, dentro dos quais eram colocadas as latas da manteiga, produzida pela Cooperativa da Fajã Grande e exportada para o Continente.
Ora certo dia, um grupo de energúmenos, maldosos e malévolos, decidiram, imprudentemente, que haviam de divertir-se à custa da simplicidade e da ingenuidade do José Rodrigues. Lamentavelmente, exageraram e fizeram-no da pior forma e da mais vil e abominável maneira, esquecendo as danosas consequências que teria o seu acto hediondo e tresloucado.
Ao cair da tarde, um dos membros do grupo convidou o José para ir fazer serão à sua casa, na Tronqueira, onde vivia com a esposa. O José, alegre e bom conversador, aceitou de bom grado o convite, demorando-se em casa do seu anfitrião, apenas, durante o tempo combinado pelo grupo. No momento exacto foi-lhe sugerido que se fosse embora. Já era um pouco tarde e os da casa pretendiam deitar-se. Despedindo-se dos presentes, educadamente, como era seu timbre, e agradecendo a hospitalidade, o José saiu, na maior das calmas, com destino à sua casa. Os restantes elementos do grupo, informados de tudo, esconderam-se à entrada da Tronqueira, numa terra do Francisco Tomé, bastante mais alta do que o caminho e separada deste por uma grossa parede. Precisamente no momento em que o José Rodrigues ali passava, à socapa e sem escrúpulos, atiraram-lhe para cima uma caneca acabada de retirar duma retrete das redondezas, a abarrotar de urina e de fezes humanas, já em putrefacção. A acção foi tão rápida e célere que José não teve alternativa e levou com toda aquela imundície em cima de si. Um verdadeiro horror! Uma péssima e asquerosa brincadeira, condenada a todos os níveis.
No dia seguinte, foi feita a participação às autoridades competentes. Estas, de imediato, identificaram os prevaricadores, o que até não foi difícil porque os donos da casa onde o José fora passar o serão, haviam-se esquecido de que eram cúmplices, não ocultando a sua colaboração naquele deplorável acto.
Julgados em tribunal, depois de antes terem sido radical e abominavelmente condenados por toda a população da freguesia, todos os elementos intervenientes naquela malévola e ascorosa brincadeira foram presos, ficando algum tempo na cadeia, na vila de Santa Cruz, excepto um deles, por ser menor. O dono da casa onde o José fora convidado a fazer serão também foi condenado e preso. E quando a esposa chorosa e desolada, lamentava, amargamente, o infortúnio do marido, junto do seu progenitor, este, virando-lhe as costas em sinal de reprovação, simplesmente lhe disse: “Até tu, também devias estar presa”.
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NATAL DAS ILHAS
(POEMA DE VITORINO NEMÉSIO)
Natal das Ilhas. Aonde
O prato do trigo novo,
A camélia imaculada,
O gosto no pão do povo?
Olho, já não vejo nada.
Chamo, ninguém me responde.
Natal das Ilhas. Serão
Ilhas de gente sem telha,
Jesus nascido no chão
Sobre alguma colcha velha?
Burra de cigano às palhas,
Vaca com língua de pneu,
Presépio girando em calhas
Como o eléctrico, tu e eu.
Natal das Ilhas. Já brilha
Nas ondas do mar de inverno
O menino bem lembrado,
Que trouxe da sua ilha
O gosto do peixe eterno
Em perdão do seu passado.
Vitorino Nemésio, Sapateia Açoriana