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CEIA DENATAL

Terça-feira, 24.12.13

(EXCERTO DE UM CONTO DE RAMALHO ORTIGÃO)

 

“…Depois celebrava-se a ceia, o mais solene banquete da família minhota. Tinham vindo os filhos, as noras, os genros, os netos. Acrescentava-se a mesa. Punha-se a toalha grande. Os talheres de cerimónia, os copos de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam-se mil luzes nos castiçais de prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham activamente com as rimas de pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as garrafas.

Os que tinham chegado de longe nessa mesma noite davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contavam histórias, acidentes da viagem; os caminhos estavam uns barrocais medonhos; e falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé de família.

E o nordeste assobiava pelas fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou zoar a carvalheira, enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava um respiro tépido o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com canela.

Finalmente o bacalhau guisado, como a brandade da Provença, dava a última fervura, as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas travessas grandes. Uma voz dizia: - Para a mesa! Para a mesa!

Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo, bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um lado tocavam nos pés dos que estavam defronte. Bom aconchego! Belo agasalho! As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude….”

 

 Ramalho Ortigão - As Farpas

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publicado por picodavigia2 às 11:13

MARIA FRANCISCA BETENCOURT

Terça-feira, 24.12.13

Maria Francisca Bettencourt nasceu em Angra do Heroísmo, em 1904 e faleceu na mesma cidade, em 1980. Professora do ensino particular, distinguiu-se pela sua obra poética, com o pseudónimo de Maria do Céu. Escreveu também pequenas peças de teatro e radiofónicas e textos para as festas da cidade. Esteve ligada às mais diversas actividades culturais de Angra e deixou numerosos artigos dispersos pelos jornais da cidade. Foi, também, fundadora do Grupo de Baile da Canção Regional, de Angra. Entre as suas obras destacam-se: Do Meu Viver, Festas Velhas- Festas Novas, O satélite e D. Lua, A Grande Surpresa, Um episódio do Natal Terceirense que bem pode ser Verdade, Voz de Mulher, Rimas e Rosas de Milagre.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

 

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publicado por picodavigia2 às 02:25

A FAJÃ DAS FAIAS

Terça-feira, 24.12.13

A Fajã das Faias era um dos mais interessantes, curiosos, pitorescos e originais lugares da Fajã Grande. Era também o lugar situado mais a Sul daquela freguesia, no que à zona das terras mais baixas dizia respeito, uma vez que ficava já quase como que encastoado em pleno território da Fajãzinha, embora do lado de cá da Ribeira Grande.

Era um lugar pequeno, este da Fajã das Faias e, também, um sítio de difícil acesso e, além disso, bastante distante do povoado, embora relativamente perto da Cuada. Por isso mesmo, muito provavelmente, hoje, já terá desaparecido da memória de muitos dos que, outrora, calcorrearam os caminhos, canadas, atalhos e veredas daquele alcantil abrupto, escarpado, encavalitado nos contrafortes do Tufo da Cuada, mesmo ali debruçado sobre a Ribeira Grande. Situado na fronteira com a Fajãzinha, na margem direita da Ribeira Grande, imediatamente a seguir à foz da Ribeira do Ferreiro, precisamente no sítio onde o curso do maior caudal de água da ilha das Flores fazia uma enorme curva, o lugar da Fajã das Faias como que roubava espaço à Fajãzinha e aumentava a área territorial da Fajã Grande, precisamente para açambarcar aquela pequena fajã situada nas encostas do Tufo da Cuada e do Vale Fundo. Era por isso mesmo e fundamentalmente, uma terra de mato, de faias, incensos, misturados com algumas criptomérias, embora na parte mais baixa e nos terrenos alagadiços, junto â Ribeira Grande, nalgumas propriedades, muitas delas com proprietários residentes na Fajãzinha e Cuada, se cultivassem alguns inhames. O acesso à Fajã das Faias fazia-se pelo caminho que ligava a Cuada aos Lavadouros e à Cancelinha, pelo que o trajecto mais acessível era, geralmente, feito pelo Delgado e pela Cuada. Para se ter acesso àquele lugar ermo e exíguo, depois de se atravessar esta localidade e ultrapassar a última casa, um pouco antes do Vale Fundo e a seguir ao Calhau do Tufo, virava-se à direita e entrava-se numa canada estreita e sinuosa, com grande parte do piso em degraus e onde dificilmente passavam animais. Como possuía apenas esta canada que atravessava de Norte a Sul, o acesso a muitas das propriedades ali existentes, era feito atravessando outras, que lhe deviam caminho, através de trilhos, atalhos ou até saltando paredes. Do lado da Fajãzinha, no entanto, era possível chegar-se à Fajã das Faias, através da travessia da Ribeira Grande, o que era bastante difícil e, a maior parte dos dias, quase impossível, devido ao leito escabroso e ao enorme caudal que aquele curso de água geralmente se ufanava de possuir. Até à foz, a margem direita da Ribeira Grande, ou seja a fronteira Sul da Fajã Grande, era toda rochosa, com excepção deste lugar da Fajã das Faias, da zona da Ladeira do Biscoito, onde existia a principal ponte de ligação entre as duas freguesias vizinhas, e da zona circundante ao Poço da Alagoinha.

A Fajã das Faias confrontava a Sul com a Ribeira Grande, a Norte com a Cuada e o Tufo da Cuada, a Oeste com a Ladeira do Biscoito e a Leste com o Vale Fundo e com a Ribeira do Ferreiro. O seu nome muito provavelmente terá a ver, por um lado, com o facto de ser uma zona baixa, nas encostas de um monte e nas margens de uma ribeira e, por isso mesmo, também constituir como que uma espécie de fajã - terreno baixo junto do mar, neste caso junto de uma ribeira - e, por outro, porque naquele lugar existia uma densa vegetação onde predominavam as faias. No entanto, não deixa de ser estranho e quase inexplicável o facto de este topónimo fajãgrandense utilizar em vez de “faeira” a palavra “faia”, comum em todas as ilhas açorianas, para designar a árvore que nas Flores e na Fajã Grande sempre se designou por “faeira”, como bem o demonstra o contista Nunes da Rosa, nalguns dos seus contos que integram o “Pastoraes do Mosteiro”. Porquê Fajã das Faias em vez de “Fajã das Faeiras”? Não existe explicação plausível, a não ser o facto de o topónimo ter sido criado numa altura em que ainda se não tinha deteriorado, o nome faia, na gíria fajãgrandense.

A Fajã das Faias permanece assim como um lugar mítico e adormecido, hoje perdido, não apenas no espaço mas também e sobretudo no tempo e talvez mesmo na memória de muitos dos que, nos longínquos anos cinquenta, por ali passavam, na apanha de incensos para o gado, de lenha para o lume ou a ceifar os fetos e a cana roca que proliferavam entre aquele denso e luxuriante arvoredo.

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publicado por picodavigia2 às 01:55

O EMBRULHO

Terça-feira, 24.12.13

Era véspera de Natal. Álvaro respirou de alívio. Finalmente o presépio estava pronto, a obra, na construção da qual se empenhara, meses seguidos, com a ajuda da irmã mais velha, estava concluída. Sentou-se no chão, de pernas cruzadas, a contemplar o que acabara de construir: era um belo presépio, talvez um dos maiores e mais bonitos dos que se faziam na freguesia. Observou e voltou a observar em pormenor. O presépio realmente tinha tudo: montes, ribeiras, lagos, caminhos, vacas e ovelhas a pastar, campos, casas, ruas por onde andavam pessoas, uma igreja, o palácio de Herodes, a casa de Barbearias e, como não podia faltar, uma enorme furna, parecida com a furna do Peito, onde pernoitavam o Menino, Nossa Senhora, São José, a vaca, o burrinho e, ao redor e ajoelhados, anjos, pastorinhos e camponeses.

A preparação havia durado meses, desviando-o, por vezes, de outras tarefas que, apesar de criança, era obrigado a fazer. Mas o presépio… Não, esse não podia falhar.

Os dias anteriores tinham sido destinados a apanhar o musgo e as ervas no Outeiro, buscar a areia e os seixos ao Canto do Areal. Antes, porém, passara dias e meses, sobretudo ao serão, construindo as casas, a igreja e o palácio de Herodes, alisando a prata para fazer os lagos e as ribeiras e colocando o trigo em pratinhos a germinar. Fizera as casas com caixas de sapatos, escolhendo duas outras maiores: uma para o palácio e outra para a igreja. As casas eram muito bem feitas, umas diferentes das outras, com as portas devidamente cortadas e vincadas, de modo a abrirem e fecharem, as janelas com vidros feitos com papel de plástico colado por dentro e até, nalguns casos, com cortinas feitas com papel de seda. Os telhados eram de papelão canelado de cor castanha, de forma a simular as telhas no seu formato e na sua cor. Por sua vez o palácio de Herodes era todo enfeitado com janelas, varandas e torres. Do mesmo modo a igreja tinha uma torre com sininhos desenhados, uma cruz no cimo, cata-vento e tudo. As figuras tinham sido recortadas de calendários e postais e reforçadas com tiras de papelão. Apenas o Menino, a Virgem e São José eram de barro. Comprara-as o pai, cedendo a muitos pedidos e promessas, quando fora a Santa Cruz pagar a décima. A vaca e o burro, ele próprio os falquejara de pequenos troços de criptoméria que encontrara no caminho. Ele próprio também confeccionara as ovelhas, desenhando-as e recortando-as nas tiras do papelão que sobravam das portas e das janelas das casinhas, colando-lhe pedacinhos de algodão apenas do lado em que ficavam voltadas para fora.

A construção do monte fora o que lhe dera mais trabalho e consumições. A mãe fartava-se de o avisar de que não queria mais tralha em casa do que já tinha. A pouco e pouco, no entanto, lá foi arranjando mais uns caixotes, umas tábuas, uns papelões, amachucando e forrando tudo com leivas de musgo e com outras verduras, de forma a simular o monte, por onde deslizavam ribeiras feitas com tirinhas de papel prateado e onde pastavam as ovelhinhas.

Finalmente construíra a parte inferior, já no chão da sala, junto à qual estava agora sentado. Cobrira uma parte do soalho com areia, ladeara-a com seixos, afim de não se espalhar pela casa provocando, mais uma vez, os protestos da sua progenitora. Sobre a areia edificara o povoado, colocando a igreja, as casas, os lagos onde desaguavam as ribeiras e onde construiu, através da colocação de seixos mais pequeninos, os caminhos e as ruas por onde circulavam pessoas e animais, na labuta da sua actividade quotidiana.

Num dos extremos lá estava o palácio de Herodes e no oposto a casa de Barbearias. Sobre a gruta brilhava uma enorme estrela e um anjo segurava uma tira de papel onde se podia ler algo que Álvaro não entendia, porque era em latim, semelhante ao da missa do galo. Tudo uma verdadeira perfeição!

Retirou-se feliz. Cumprira a sua parte. Agora aguardava que o Menino lhe trouxesse o presente.

 

E, na manhã seguinte, mal se levantou, correu apressadamente para junto da gruta. E não é que lá estava o embrulho de figos passados que tanto tinha pedido e que lhe souberam a mel.

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publicado por picodavigia2 às 00:31





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