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HOMENAGEM AO SEMINÁRIO DE ANGRA, AOS PROFESSORES E ALUNOS DAS DÉCADAS DE 50/60

Sexta-feira, 27.12.13

 

Estamos aqui para prestar homenagem ao Seminário Episcopal de Angra, única instituição de ensino pós-secundário, nos Açores até 1976, ano em que foi criada a Universidade açoriana, que foi um notável e inexaurível alforge de ciência, de arte, de música e de cultura, onde se formaram, para além do clero açoriano, de onde emergiram muitas eminentes figuras da igreja católica, grande parte da classe dirigente, da intelectualidade e da cultura açorianas.

Foi sobretudo nas décadas de cinquenta e sessenta que esta instituição atingiu o apogeu da sua notabilidade e da sua génese formadora. Mas nesta ocasião e neste momento não se pode nem se deve ficar apenas por uma referência a esta notável e excelsa geração das décadas de 50 e 60, a que a maior parte dos que estão aqui presentes se orgulha de ter pertencido. Importa recordar também aqueles que, antes de nós, por aqui passaram, desde o início da fundação deste Seminário, altura em que, durante alguns anos, repartiu as suas instalações com o Liceu desta cidade. Nas primeiras décadas do século passado, nomeadamente, a quando da implantação da República em Portugal e da separação entre Igreja e Estado, no princípio de Outubro de 1911, altura em que o poder civil, invocando os princípios que defendia e proclamava, tomou conta do edifício onde funcionava o Seminário e que pertencia à diocese. Este embora passando por diversíssimas e inverosímeis vicissitudes, sobreviveu. Nessa altura alguns alunos foram forçados a abandonar o curso, enquanto outros se instalaram em casas particulares ou das suas próprias famílias, no caso dos alunos da Terceira, indo receber lições às moradas dos próprios professores, como refere o Cónego José Augusto Pereira, nos seus livros “O Seminário de Angra” e “A Diocese de Angra na História dos seus Prelados”. Entre os alunos que foram forçados a abandonar o Seminário, estava o estudante José Vieira Alvernaz, como narra Maria Guiomar Lima, no livro recentemente publicado, sobre a figura daquele que foi um dos mais credenciados Patriarca das Índias: “Quando o Seminário encerrou o jovem Alvernaz continuou a estudar no Liceu de Angra, reinstalado no Convento de São Francisco. O ensino era mais caro, porém, o pai incentivou-o a não desistir…” Nessa altura, foi colega, amigo e companheiro de Vitorino Nemésio.

Nas décadas de 50 /60 ainda nos chegavam ecos e memórias de toda uma geração anterior que ao longo dos quase cem anos de existência do Seminário, lutara por construir e edificar uma instituição que era incontestavelmente o reflexo da força, do saber e da cultura. Umas vezes eram os professores de então e sobretudo os clérigos das paróquias a que pertencíamos, que recordavam os nomes, referiam a sabedoria e exaltavam a competência dos seus antigos mestres, enquanto noutras, nos era proporcionado ler os escritos e as memórias que muitos antigos alunos de anos anteriores nos haviam legado. Era frequente ouvirem-se os nomes do Dr Cardoso do Couto, este até atribuído à Academia dos Médios, o Dr Botelho, o Dr Bettencourt, o cónego Garcia da Rosa, o cónego Pereira e o Dr José Vieira Alvernaz, entre muitos outros. Do mesmo modo éramos incendiados pelos escritos de muitos homens, alguns deles padres, mas também dedicados às letras, que haviam feito a sua formação no Seminário, como Bernardo Maciel, Nunes da Rosa, José Jacinto Botelho, Valério Florense, Osório Goulart, Cónego Pereira, Diniz da Luz e mais recentemente, José Machado Lourenço, Coelho de Sousa, José Enes e Cunha de Oliveira ou à Música, como Tomás de Borba, Francisco Lacerda, o padre José d’Ávila, o padre José Luís de Fraga que nas letras usou o pseudónimo acima referido de Valério Florense, e tantos outros.

Era todo este passado nobre, glorioso, era toda uma tradição forte, ingente e diversificada que pairavam no Seminário e se iam transmitindo de geração em geração, quer através das frequentes alusões a antigos mestres e a sacerdotes músicos poetas e escritores e ainda a outras eminentes figuras da igreja católica, cujas fotos ornamentavam as paredes do salão de estudo dos Médios e também salão de festas, com destaque para o Cardeal D. José da Costa Nunes e os bispos, D. Manuel Medeiros Guerreiro, D. José Vieira Alvernaz, D. Jaime Garcia Goulart, D. Paulo José Tavares, D. José Pedro da Silva, cujas actividades pastorais, sobretudo por terras do Oriente, caíam sobre nós em catadupa e como que nos acicatavam os ânimos e as vontades, a fim de perseguirmos, sob a orientação dos mestres de então, na senda dos mais nobres ideais do humanismo, da cultura, das ciências, das letras e, também, como não poderia deixar de ser, da formação sacerdotal e da religião.

Assim, durante doze anos, o Seminário de Angra dispunha e disponibilizava, aos que o demandavam, um plano curricular exigente, completo, abrangente e rigoroso, complementado com actividades de índole intelectual e cultural, desde a música ao teatro, passando pelo jornalismo, através de academias, sabatinas, jornais, palestras, reuniões, semanas culturais, etc.

Quanto ao plano curricular, referirei apenas o curso de Teologia, extensivo aos últimos quatro anos de estudo e que se dirigia fundamentalmente à formação específica dos futuros sacerdotes, abrangendo um tronco de disciplinas básicas, com uma exaustiva carga horária. Embora não se tendo verificado, nesta etapa final do ensino do Seminário, nenhuma reforma curricular, como no preparatório e no de Filosofia, em termos de alteração ou enriquecimento do currículo, nos finais da década de sessenta verificaram-se grandes e profundas reformas, não só a nível dos conteúdos de algumas disciplinas mas também e sobretudo no que à metodologia dizia respeito. Na génese destas alterações, estiveram alguns dos professores de então, como o Dr Cunha de Oliveira em Sagrada Escritura e dr Francisco Carmo em Economia Social e ainda e sobretudo uma nova geração de professores, recentemente regressados de Roma: o Dr José Nunes em Teologia Dogmática, o Dr Manuel António, em Moral, o Dr Artur Goulart em Liturgia, o Dr Caetano Valadão em História do Cristianismo, o dr Vasco Parreira em Teologia Pastoral. Era o princípio do fim dos velhos compêndios profundamente enraizados nos princípios e axiomas da Escolástica Medieval e o libertar-se dos meandros da Casuística, fechada e obsoleta. Era o dealbar duma nova era, onde pontificavam as orientações e as doutrinas emanadas dos documentos do Concílio Vaticano II e a leitura de teólogos modernos, como Juan Alfaro e Bernard Haring, frequentemente citados por José Nunes e Manuel António, nas aulas de Dogma e de Moral.

Na globalidade, os professores, que leccionavam na década de sessenta, eram quase todos eles formados na Pontifícia Universidade de Roma e revelavam uma competência capaz de mobilizar os parcos recursos pedagógicos disponíveis, na altura, e que quase se limitavam aos manuais, ao quadro e a alguma bibliografia complementar. Muitos deles distinguiam-se culturalmente na sociedade angrense de então, bastante exigente na defesa e promoção da cultura. Alguns haviam publicado livros, outros escreviam para revistas e jornais, chegando um ou outro a assumir a direcção e a redacção do jornal “A União”, fazendo-o com grande qualidade e mestria. Para além de açambarcarem os púlpitos da Sé Catedral e de outras igrejas angrenses, por altura de festividades e comemorações, proferiram conferências na rádio, palestras em sessões culturais e orientavam diversas instituições e organizações sediadas em Angra, como o Instituto Açoriano de Cultura, a Cáritas, a Misericórdia, a Acção Católica, Cursos de Cristandade, Conferência Vicentina, etc. Foi um grupo de professores do Seminário que fundou o próprio Instituto Açoriano de Cultura, dando, posteriormente início à organização das Semanas de Estudo, como ontem foi referido. A um destes mestres, - José Enes - se deveu mais tarde a fundação da Universidade dos Açores, da qual também foi Reitor e professor, sendo-o também noutras universidades. Percursos notáveis, fora do Seminário, tiveram ainda outros mestres, Cunha de Oliveira, Francisco Carmo, Artur Goulart e Caetano Serpa. Outros como Caetano Tomás, José de Lima e Edmundo de Oliveira eram, também, professores do Liceu de Angra.

Para a história aqui ficam, por ordem alfabética, os nomes de todos os professores do Seminário de Angra, na década de 60: Afonso Carlos Quental, Alfredo José Tavares, Américo Caetano Vieira, António Pereira da Silva, António Rogério Andrade Gomes, Artur Cunha de Oliveira, Artur Goulart de Melo Borges, Artur Pacheco Custodio, Augusto Manuel de Arruda Cabral, Caetano Valadão Serpa, Edmundo Machado de Oliveira, Francisco Borges Paim, Francisco Caetano Tomás, Francisco Carmo, Francisco Vitorino de Vasconcelos, Horácio da Silveira Noronha, Jacinto da Costa Almeida, Jaime Luís da Silveira, Jeremias Machado da Rocha Simões, José Enes Pereira Cardoso, José Machado Lourenço, José Mendonça de Lima, José Nunes, Manuel António Pimentel, Manuel Coelho de Sousa, Valentim Borges de Freitas, Vasco da Silva Castro Parreira, Weber Machado e um leigo, o dr Mário Lima, médico do Seminário e professor de Medicina Pastoral. De recordar ainda o padre António Rocha que exerceu as funções de ecónomo, o padre Martinho, capelão de São Rafael, que era confessor assíduo, assim como o padre Ivo Correia, o padre Gil Mendonça e outros.

No Seminário Menor de Ponta Delgada, durante os dois primeiros anos da sua existência urge recordar, como professores, os nomes de José de Oliveira Lopes, que exerceu o cargo de reitor, o Simão Leite de Bettencourt, Agostinho Tavares, José Franco Cabral e José Batista, pároco de São Pedro. A partir do ano lectivo de 1958/59, o reitor foi Jacinto da Costa Almeida e, alguns anos depois, Hermínio da Rocha Pontes.

Gostaria também de referenciar e homenagear aqui os monitores, tantas vezes esquecidos. Eram alunos mais velhos, que abdicavam do convívio, da convivência diária e até dos passeios com os seus colegas de curso, nalguns casos até se abstinham de usufruir do seu próprio quarto, que viviam junto dos mais pequenos, dia e noite, colaborando com os prefeitos, na formação, na educação e no acompanhamento dos mais novos. Eram jovens extraordinários, talentosos, bons alunos, que nos dispensavam uma amizade e um carinho muito grande, sendo geralmente bem mais complacentes e permissivos do que o próprio perfeito. Era sobretudo na prefeitura dos Miúdos, onde a diferença de idade entre monitor e alunos era maior, que se fazia sentir mais a sua acção terna e carinhosa. Recordo, dos dois anos que tive na prefeitura de São Luís Gonzaga: José Alvernaz Pereira de Escobar e José António Piques Garcia. È imperioso recordar também os últimos dois monitores do Seminário, no ano de 1967: Gilberto Amaral e Manuel Francisco Aguiar

E nós alunos? Durante décadas e décadas, centenas, talvez mesmo milhares de jovens de todas as ilhas rumaram a Angra a fim de encontrar no Seminário, sob a sábia competência destes e de muitos outros mestres, na procura de um saber completo e abrangente, uma formação sólida, competente e adequada que ombreava, talvez mesmo ultrapassava a dos outros seminários do país.

Na realidade, e citando o José Gabriel Ávila, no seu blogue “Escrita em Dia”: “Quem passou pelo Seminário de Angra nas décadas de 50 e de 60, ficou marcado pela abertura à cultura, à sociedade, à modernidade, e por novas ideias sociais, políticas e religiosas veiculadas por docentes formados em universidades europeias”

Foi a competência, a sabedoria, o humanismo e a dignidade destes e de outros mestres que constituíam o corpo docente do Seminário de Angra nas décadas de 50/60, os planos curriculares que eles próprios construíram, os conteúdos programáticos das disciplinas que leccionaram e as diversíssimas actividades culturais, artísticas e até de lazer em que connosco se envolviam e nas quais nos acompanhavam com dedicação, amizade e esmero, que fizeram, daquele punhado enorme de jovens açorianos que naquelas décadas procuraram este Seminário e que nele encontravam uma segunda casa e uma segunda família, aquilo que de facto hoje são. É verdade que alguns saíram ao longo do duro e sinuoso percurso de doze anos de estudo. Mas muitos outros chegaram ao fim e ordenaram-se, atingindo o objectivo primordial pelo qual haviam lutado e que constituía o sonho de qualquer simples e humilde família açoriana, na altura – ter um filho sacerdote. Muitos destes, no entanto, alguns anos mais tarde, por isto e por aquilo ou simplesmente porque quiseram, resolveram alterar o destino da sua vida. E, porque haviam armazenado, ao longo do seu percurso no Seminário, uma sólida formação, fizeram-no com dignidade, com convicção, com nobreza de carácter e de acordo com os valores humanos e morais que ao longo dos anos da sua formação haviam adquirido.

Seria impossível, para também os homenagear condignamente, referir aqui os nomes de todos os “nobres filhos da ciência ” que foram alunos mesta casa nas décadas de 50/60. Mas recordemo-los todos eles prestando-lhes a nossa homenagem, agrupando-os numa espécie de protótipo, que se poderia chamar “aluno desconhecido” – onde englobo os mais simples, os mais humildes, os menos “atrevidos” culturalmente. Mas será da mais elementar justiça mencionar aqui os nomes, dos que que mais se distinguiram nas várias áreas da cultura e da sociedade açorianas, sobretudo na década de sessenta. Se algum esquecer agradecia que mo lembrassem. São eles: nas letras, Artur Goulart, Manuel Pereira, Caetano Valadão Serpa, Olegário Paz, Andrade Moniz, Álamo Oliveira, Onésimo Almeida, José Francisco Costa e Urbano Bettencourt, no jornalismo, António Rego, Clemente Cardoso, José Gabriel Ávila, Jorge Nascimento, Santos Narcíso e José Matos, na ciência Weber Machado e Frias Martins, na Sociologia Octávio Medeiros, na Pedagogia, Augusto Cabral, na Música, Armindo Borges, Emílio Porto, José Luís Rodrigues, José Piques Garcia, José Carlos Rodrigues, José Gabriel Ávila, Carlos Sousa, João Elias, António Dionísio, Bartolomeu Dutra e Manuel Azevedo, no dirigismo desportivo Manuel Faria de Castro, na Teologia José Nunes, Rogério Gomes, Manuel António Pimentel, Vasco Parreira, Laudalino Moniz, José Constância, e Ângelo Valadão, na Filosofia Cipriano Franco, na política Emílio Porto, Manuel Serpa, José Adriano Borges Carvalho, Jorge Nascimento, Frederico Maciel, Manuel Azevedo e Sá Couto, na sociedade e no ensino João Esaul, Eduardo San-Bento, João Carlos Carreiro, José Augusto Borges, Gualter Dâmaso, Heriberto Brasil, Manuel Francisco Aguiar e Manuel Tomás, no artesanato Manuel Gonçalves e ainda a exercerem o sacerdócio, na diocese de Angra, Agostinho Barreiro, Fernando Teixeira, Daniel Correia, Pedro Lima, Abílio Morais, José Alvernaz, Aurélio Nóia, José Carlos Simplício, Machado Alves, Garcia da Silveira, João Luciano, João de Brito Meneses, António Varão e Abel Nóia, Francisco Dolores, João Maria Vieira Brum, e Agostinho de Sousa Lima, na de Santarém João de Brito Costa, nos Estados Unidos, Victor Vieira, Ivo Rocha, Gastão Altino, recentemente agraciado com o título de Monsenhor e no Brasil, José Francisco Correia. Muitos outros se distinguiram, sobretudo no ensino e na gestão bancária, com destaque, nesta área, o Noé Carvalho, António Manuel Carvalho e o Duarte Miranda. Na realidade seria extenso enumerar todos os outros nomes, não só das décadas de 50 e 60, mas também os que ao longo das outras épocas, durante 150 anos engrandeceram e honraram o Seminário de Angra, através da formação académica ali obtida e que singraram com êxitos assinaláveis nos mais diversos âmbitos das letras, das artes, da ciência, da cultura e da religião.

Finalmente julgo não dever terminar esta homenagem, sem referir aos que embora não sendo professores, nem alunos, partilhavam connosco, nalguns casos dia e noite, esta casa: os empregados. Na globalidade eram homens bons, amigos, dedicados à causa que serviam. Gostaria de destacar aqueles de que lembro melhor e que aqui permaneceram durante mais anos. Em primeiro lugar o Tomé, homem simples, generoso, sempre solícito a ajudar-nos e a fazer tudo por nós. Sempre de vassoura e apanhador nas mãos, quando em casa, acompanhava-nos sempre nos passeios grandes, responsabilizando-se pelo transporte das refeições. O Tomé não tinha família. A sua família éramos nós. O sr Julinho que mais tarde veio ajudá-lo nas limpezas. O porteiro sr José Natal, mais tarde deslocado para o Seminário de Ponta Delgada e substituído pelo sr Vargas, o cozinheiro, Sr António, natural da Graciosa, que nos brindava às segundas-feiras com um excelente feijão assado e muitos outros, com destaque para um grupo de religiosas que tomaram conta da alimentação e limpeza do Seminário, nos finais da década de cinquenta e da Senhora Maria, a primeira mulher a trabalhar no Seminário.

E termino este o meu pequeno e modesto contributo de homenagem aos alunos, aos professores e, sobretudo, à instituição o Seminário de Angra. É esta a minha mensagem de gratidão para com todos os professores, de quem guardo melhores recordações. É esta a minha solidariedade estima por quantos, como eu foram alunos e se formaram nesta casa que sempre respeitamos e havemos de continuar a respeitar e a senti-la como nossa.

Tenho dito.

Carlos Fagundes

Angra, 8 de Julho de 2012.

Texto publicado no Pico da Vigia, em  09/07/12

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publicado por picodavigia2 às 20:53

PALAVRAS, DITOS E EXPRESSÕES UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (VI)

Sexta-feira, 27.12.13

Aqui se transcrevem mais algumas palavras, ditos ou expressões utilizadas na Fajã na década de cinquenta, sendo a maioria citada apenas de memória.

 

Ancinho - Utensílio semelhante ao sacho, mas com dentes como um garfo e que servia para misturar na terra o trevo ou a erva da casta, espalhados entre o milho.

Ajunta - Apanha

Arreganhar ei ventas – Fazer pouco de alguém.

Atraca – Fio geralmente de couro que prendia os chifres dos bovinos quando encangados.

Bem pchimchim – Muito pequeno.

Bufar o lume – Soprar o lume para que se acenda.

Camalhão – Rego feito na terra, com enxada para a sementeira

Coiso-Mau – Um dos nomes porque era chamado o Diabo

Dar oividos – Ouvir mexericos, ouvir o que outros dizem.

Ei ventas – O nariz.

Enferrolhado – Bem guardado.

Escorrupichar – Beber tudo.

Estar Fatalinho – Estar melhor.

Estás bem amanhado – Estás metido em problemas graves.

Faca bengala – Grande faca com que se matava o porco.

Fedorento – Pessoa insignificante, com pouco valor.

Godelhão – Tumescência. Inchaço, contendo pus e que se deve espremer.

Há muita força de tempo – Há muitos anos.

Inda agora – Há pouco.

Lagoas – Terrenos regados com muita água onde crescia erva, que era ceifada para as vacas leiteiras.

Lagos – Pequeno espaço rectangular ou quadrado, junto ao Rolo, onde cada qual guardava o seu sargaço.

Lunetas – Óculos.

Malcriado – Com falta de educação

Mais monço – Mais novo.

Mum perfeitinho – Criança bonita e saudável.

O monço piqueno – Irmão mais novo.

Ómessa – Espanto, admiração.

Ora bolas – Aborrecimento.

Ou, ou, ou – Som com que se pedia às vacas para pararem e elas paravam.

Palhoco – Tolo, parvo.

Parece q’tás mouco – Não me ouves.

Penduricalho – Algo que está suspenso ou amarrado no alto.

Porcalhão – Pessoa muito suja ou que suja muito.

Sissaricalho – Espécie de personagem mítica que fazia tudo trocado.

Tá um frie de rachar – Está muito frio.

Tá quedo – Pára.

Tamanco – Calçado grosseiro, de couro e sola rija e protegida com pregos.

Tomate de Capucho – Fisális.

Tranbulhão – Grande queda.

Ventania – Vento forte.

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publicado por picodavigia2 às 17:52

SILÊNCIO SEM ECO

Sexta-feira, 27.12.13

Todo o silêncio fala,

Excepto o que não tem eco

Ou o que se fecha numa mala!

 

O eco do silêncio

É unção balsamada,

Alvissara, anúncio

Mensagem mistificada.

 

O eco do silêncio

É dádiva sagrada,

Encontro, prenúncio

Segurança conquistada.

 

O silêncio sem eco

Não é silêncio… É deserto,

É réplica giratória,

Retruque, covil, beco

Salpico, angustia, aperto

Sentença condenatória.

 

Testemunho incompleto.

Ruído apodrecido…

Açaime, prisão, gueto

Refúgio perdido.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:30

SERAFIM DE CHAVES

Sexta-feira, 27.12.13

Serafim de Chaves nasceu na Vila do Porto, ilha de Santa Maria, em 1 de Março de 1904, tendo falecido em 1985 Matriculou-se no Seminário de Angra, em Setembro de 1925, onde completou o Curso de Teologia, ordenando.se em 1935, tendo celebrado a sua Missa Nova em 15 de Agosto desse mesmo ano, na igreja matriz de Vila do Porto. Paroquiou durante dois anos na ilha Terceira, sendo colocado, depois, como vigário-coadjutor na igreja matriz da Horta, onde publicou o seu primeiro trabalho literário - Uma Proveitosa Lição de História. Seguidamente foi transferido para Santa Clara, na cidade de Ponta Delgada, onde paroquiou durante sete anos. Neste lapso de tempo colaborou no jornal Correio dos Açores, tendo escrito vários temas relacionados com diversas passagens do Evangelho e Teologia. Pouco depois emigrou para os Estados Unidos da América do Norte, fixando-se em Fall River, onde paroquiou durante dois anos, após os quais regressou à sua terra natal, sendo colocado como pároco, na Almagreira. Em 1964, em Vila do Porto, desempenhando um trabalho de colaboração e auxílio na Ouvidoria de Santa Maria. Serafim de Chaves escreveu vários poemas, dispersos por jornais e revistas dos Açores e publicou mais quatro livros, onde se pode apreciar a qualidade da sua veia poética e do seu estilo de sabor clássico. O soneto foi a sua estrutura poética preferida e mesmo quando enveredava pelo caminho da quadra ao gosto popular. Distinguiu-se, ainda, na Oratória, onde a força da sua eloquência cativava sobremodo o ouvinte de qualquer classe social. Era dotado de um espírito de finura extraordinário.

Publicou as seguintes obras: Uma Proveitosa Lição de História. Horta, Poesias (Quadros Reais dos Açores), Império - (Função do Divino Espírito Santo na Ilha de Santa Maria Açores), Expressões de Fé e O Louco de Amor.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 15:03

O RATO DO CAMPO E O RATO DA CASA

Sexta-feira, 27.12.13

Era uma vez um rato que vivia numa casa, no meio de grande conforto e bem-estar e onde não lhe faltava comida. Num dia de Inverno, resolveu sair de casa e dar um passeio, durante o qual encontrou um rato do campo, muito magro e debilitado, cheio de frio e de fome. Aproximou-se dele e disse-lhe.

 - Não sei como podes viver assim, aqui, no campo, tão fraco e sempre cheio de fome e de frio? Vem comigo, que te arranjarei um lugar na casa onde vivo, sempre quentinha e onde há comida em abundância. Ali terás tudo o que precisas para viveres confortavelmente. Há sempre que comer, não se passa frio, nem andamos à chuva.

- E não há lá um gato? – Perguntou o rato do campo.

- Bem, - respondeu-lhe o rato de casa. – Há realmente um gato, mas é como se não houvesse. Já é velho, quase cego e, além disso, está praticamente sempre a dormir. Vem comigo e verás como podes passar à vontade diante dele que nem sequer te há-de ver.

O rato do campo lá se convenceu e os dois vieram para a casa onde vivia o primeiro. Quando entraram o gato estava deitado, a dormir, em cima de um capacho, logo à entrada da porta. Passaram os dois ratos diante dele, o da casa muito confiante e o do campo muito desconfiado. Porém, naquele instante, o gato abriu um pouco os olhos, acordou e deu um salto, atirando-se ao rato da casa, prendendo-o com as unhas e ferrando-lhe os dentes no pescoço.

O rato do campo, vendo o seu amigo naquela aflição, deu meia volta e, pondo-se a correr na direcção do campo onde vivia, disse:

 - Mais vale viver no campo fraco e magro, do que em casa gordo e forte, mas no papo do gato. 

 

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publicado por picodavigia2 às 12:16

RESENHA HISTÓRIACA SOBRE O CORVO

Sexta-feira, 27.12.13

A distância que separa as Flores e o Corvo das restantes ilhas açorianas teve como consequência que o seu descobrimento e subsequente povoamento só tivessem ocorrido com um desfasamento temporal relativamente às restantes ilhas. Muito provavelmente, terá sido o navegador Diogo de Teive a descobri-las, no seu regresso de uma viagem ao Banco da Terra Nova, no ano de 1452. No entanto, subsistem algumas dúvidas em relação a quem terão sido os seus primeiros senhorios.

Alguns documentos provam que a ilha do Corvo deverá ter sido doada a D. Afonso, Duque de Bragança e Conde de Barcelos. Mas a primeira referência fiável da doação da ilha do Corvo indica que D. Afonso V a doou a Fernão Telles, tendo depois, assim como a das Flores, pertencido às famílias Teive, Telles, Fonseca, Mascarenhas e, finalmente à Coroa.

Os Teive tiveram como única acção lançarem gado nas duas ilhas, não mostrando grande interesse no seu povoamento; com efeito, é apenas perto do fim da época dos Telles que se verifica a primeira tentativa de povoamento das Flores por parte do flamengo Guilherme da Silveira, que, no entanto, veio a abandonar a ilha, algum tempo depois.

Em 1507, as duas ilhas ainda eram dadas como despovoadas e, por volta de 1508-1510, Antão Vaz e Lopo Vaz, residentes na Terceira, chegaram a acordo com João da Fonseca para se instalarem respectivamente no Corvo e nas Flores. Assim, muito provavelmente, os primeiros colonos terão vindo da Terceira e, eventualmente, também da Madeira. No entanto, Antão Vaz terá regressado à Terceira em 1515 e seriam três irmãos de apelodo Barcelos a tentar novo povoamento, que voltou a fracassar.

Em 1548, Gonçalo de Sousa foi confirmado como senhorio das duas ilhas e enviou para o Corvo escravos da sua confiança que cultivavam a ilha e criavam gado. Passados mais alguns anos foram das Flores para o Corvo mais habitantes que foram atraindo outros, e multiplicando-se com os que de novo nela iam nascendo.

Segundo Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, havia no Corvo vinte vizinhos que viviam em casas palhaças e eram rendeiros e escravos negros e mulatos. Sabe-se, pois, que apenas no último quartel do século XVI, praticamente um século passado desde o seu achamento, se verifica o povoamento definitivo da ilha do Corvo e que nos anos seguintes à descrição de Gaspar Frutuoso, se tenha verificado um aumento gradual da população devido a uma maior e melhor exploração agrícola dos terrenos da ilha.

 É, pois, num quadro de relativa prosperidade que o Corvo se encontra quando, juntamente com as Flores, passa para a posse dos Mascarenhas em 1593prosperidade que havia de decair com a crise que progressivamente se foi agravando nos anos seguintes e que só terminou em meados do século XIX.

Os escassos contactos com o exterior obrigaram a que na ilha do Corvo se gerasse uma espécie de sistema de auto-abastecimento alimentar. Gaspar Frutuoso aponta o facto de, durante muito tempo, não haver no Corvo uma embarcação: quando era necessária a sua vinda da ilha das Flores eram feitos sinais de fumo. Assim, o raro comércio era efectuado através da ilha vizinha que, normalmente, só tinha ligação marítima com as restantes ilhas apenas entre Março e Setembro, altura em que as condições atmosféricas eram mais favoráveis. Por aqui se pode ver até que ponto tinha a ilha de ser auto-suficiente. Porém, a partir da 1850, o Corvo começou a progredir, os seus habitantes a dedicar-se ao cultivo das suas terras e â criação dos seus gados, obtendo não só o necessário para o seu sustento e vestimenta, mas ainda para fornecimento de alguns navios que ali aportam frequentemente. Factor indiciador dessa melhoria de vida é o das casas, já antes de 1870, serem todas cobertas de telha. Deve salientar-se ainda a existência, desde 1845, de uma escola primária masculina e, em 1871, o facto de ter começado a haver ensino nocturno para adultos. Além disso, a população também aumenta, de 800 habitantes em 1842, para atingir o seu máximo em1878 - 880 habitantes. No último quartel do século XIX, porém, volta a verificar-se um decréscimo da população em cerca de 9%. Tal facto deve-se à emigração que começa a verificar-se, sobretudo para os Estados Unidos, não apenas no Corvo mas em todo o arquipélago dos Açores. É essa mesma emigração que se torna o factor determinante na oscilação demográfica do Corvo durante o século XX, uma vez que no início do século a população corvina era de 808 habitantes e nos censos de 2001 era de 430.

 

NB – Dados retirados do “Inventário do Património Imóvel dos Açores” IAC

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publicado por picodavigia2 às 11:37

NOCTURNO (EM CAPÍTULOS)

Sexta-feira, 27.12.13

A DESCIDA DO COVÃO

 

O Sol já descia amarelado e pardacento sobre os lúgubres casebres da freguesia. A ilha estendia-se calma e serena sobre o oceano azulado, consciente da sua ânsia de infinito. O mar horripilava a esperança e desafiava o destino mas prometia uma bonança limitada. O vento, vestindo de púrpura, soprava levemente de sudoeste. O verão, embora timidamente, como que anunciava o princípio do seu fim, e os campos cobriam-se de um verde cada vez mais amarelado e fulvo, ansiosos de proclamarem o almejado amadurecimento dos milhos semeados nas belgas mais soalheiras e nos campos mais férteis.

Eu descia o aclive do Covão, de aguilhada em riste, imaginando tanger a Moirata e o Damasco, jungidos garbosamente, puxando um pesado carro de incensos. Do eixo apertado rolando entre cocões fumegantes, saltava um rangido alucinante que ecoava altíssono nas encostas sobranceiras do Pico da Vigia. De vez em quando parava e punha-me de cócoras, ora para apertar, ora para alargar, os parafusos dos cocões. As reses, impacientes e desabridas, porém, não contemporizavam com os meus excessivos e curiais cuidados para com o famigerado obstáculo do seu descanso. De vez em quando soltavam-se e, punham-se em extravagante correria, virando o carro e os incensos e desapareciam, enquanto a minha fictícia e simulada tarefa era substituída por estroinices reais e aberrantes, não para os meus princípios de menino de sete anos, mas para os proprietários dos currais, belgas e courelas onde, debaixo dos meus pés, rolavam maroiços e ruíam paredes, sobre as quais acintemente saltava, para encurtar distâncias.

Por toda a aldeia já corria a fama de que pedras atiradas para os campos ou paredes e maroiços deitados abaixo, no caminho do Outeiro Grande, eram obra minha. Sim senhor! Pudera! Passava lá todos os dias!...

Fora uma espécie de contrato amistoso que meu pai celebrara, sem me consultar, com o barbeiro da freguesia e que me condenava a ir levar-lhe e buscar, todos os dias, ao Outeiro Grande, a Trigueira com cria serôdia, tendo, como obrigação da parte dele, tosquiadura grátis a todos os elementos do agregado familiar. E não eram poucos! O contrato, porém, ainda continha mais uma cláusula, que nos era extremamente favorável: como o homem acumulava as funções de latoeiro com as de barbeiro, lata que furasse lá em casa tinha pingo de solda rápido, eficiente e gratuito.

Quanto às paredes e maroiços, meu pai, perante o persistente e contínuo chorrilho de queixas que lhe chegavam aos ouvidos, já me avisara várias vezes. Que as levantasse ele. Aliás, quantas mais queixas ou ameaças surgissem, mais paredes e marouços apareceriam derrubados nos dias seguintes.

Pedradas às ovelhas do Delfim era tarefa certa e quotidiana. Podia eu passar ali todos os dias, agarrado ao rabo da Trigueira, não encontrar ninguém sentado nos degraus que dão para a Pedra d'Água e abster-me de atirar umas valentes pedradas às ovelhas daquele biltre? Claro que as pedradas eram para o bigorrilha, mas os pobres ovinos, que já fugiam só de ouvir, ao longe, o som reconhecível da campainha da Trigueira, é que eram as vítimas. Apenas em duas situações eram perdoados: quando alguma badana procriava ou, quando a viagem era mais tardia, já luz-que-fusco, e eu, então, corria, cheio de medo, ao passar, mais abaixo, junto ao Calhau das Feiticeiras. Dizia-se que estas apareciam por ali, precisamente ao anoitecer. E a verdade é que no velho e monstruoso tufo estavam gravadas as marcas aberrantes e inconfundíveis dos seus pés.

 

PREPARAÇÃO DA VIAGEM

 

Cheguei a casa! Um frenesim diabólico liderado por meu pai: ia ainda hoje a Ponta Delgada e eu tinha que o acompanhar.

Como? Não me disse. Para quê? Respondeu-me sumariamente com um argumento reflexivo do respeito que sempre impunha a si próprio, espelho das suas atitudes leais e honestas e do seu comportamento garboso:

- Mestre António Algarvio chegou da Terceira, onde foi operado. Há três anos, quando me aconteceu o mesmo, ele veio cá, de propósito, para me visitar. Por isso, agora, tenho que o ir ver. Tu vais comigo.

Entrei num misto de excitação e enleio.

Ao lado, minha irmã, agora afeita também ao papel de mãe, apresentava argumentos contrários de peso: a distância, o avançado do dia, não ser altura boa, eu ainda ser muito pequeno...

Meu pai contra-argumentava linearmente, apenas com o sentimento de gratidão e o reconhecimento que todos devemos ter, repetindo incessantemente: «Ele também veio cá.»

Afinal, bem vistas as coisas, a tarefa estava bastante facilitada: «Para lá íamos no São Pedro; de regresso vínhamos com Deus...»

Enfiei rapidamente umas calças curtas, castanhas, presas ao peito com suspensórios de plástico, uma camisa de seda cor-de-rosa, calcei uns sapatos, também castanhos, acintemente cortados à faca na parte superior, para que os meus rechonchudos e nédios pezinhos, habituados às agruras dos descampados, lá entrassem mais facilmente. Peguei numa "froca" de angrim, também oferta dos meus generosos parentes americanos, e larguei em forte correria pela Assomada, Rua Direita e Via d'Água, fazendo, no entanto, um desvio curvilíneo  pela Fontinha.

Minha avó, à janela da sala, de camândulas em punho, ao ser avisada de tão inesperado e inóspito périplo, benzia-se e persignava-se ao mesmo tempo que proferia exclamações alucinantes acompanhados de invocações iconolatras a Santa Rita, a santa que, indiscutivelmente, ocupava o primeiro lugar no top da sua heteróclita e pouco canónica hagiografia.

Eu, nem a ouvia. Antes me esgueirava cauteloso e apressado, não fossem tais impropérios causar alguma influência no espírito do meu progenitor e o demovessem da nossa arrojada mas gratifica viagem.

 

A VIAGEM

 

Cheguei acima do cais num ápice! Lá estava o São Pedro altivo, com o seu casco branco debruado a vermelho e amarelo, alardeando-se e balouçando-se sobre as águas calmas do Atlântico, preso ao cais, com fortes amarras à proa e à ré.

A companha, porém, ainda ali não estava. O botequim da Dona Augusta era valhacouto certo para escapadelas burlescas e alcoólicas. Chegaria, mais tarde, com meu pai, e era constituída por cinco elementos: Mestre Gregório, sobre quem ombreava toda a responsabilidade de comando e organização do batel, o Jacinto, responsável pelas amarras e apoitas, o Mulato, maquinista-mor, o João do Alto, ajudante e aprendiz e o Manuel da Ana, especialista na arte de içar a vela. Saltando de terra para bordo com extrema desenvoltura, ocuparam, de imediato, os seus lugares na embarcação e reservaram um banco à proa para os dois intrusos viajantes. O Mulato encarregou-se, de em duas braçadas, por o motor em movimento, o qual lançou, de imediato, no ar, um ronco estrépito, misturado com rolos de fumo e um pestilento cheiro a gasóleo.

O São Pedro, depois de solto pelo Jacinto, deu duas guinadas à retaguarda, afastou-se do cais, rodopiou sobre si próprio e pôs-se em marcha lenta, deixando atrás de si uma esteira de espuma acinzentada. A grande baía da Ribeira das Casas estava calma, mansa e tranquila, propícia a um navegar anelante, seráfico, pleno de regozijo e fascínio. Era a minha primeira viagem e, agora, já longe de terra, saboreava-a erotoforamente e achava graça aos suaves e idílicos solavancos a que o São Pedro se entregava sempre que encontrava pela frente uma onda mais afoita e audaz, sob os olhares atrevidos do Manuel da Ana, marinheiro experimentado nos ritos de iniciação à arte de navegar e que velhacamente esperava pela hora de cessar o meu enlevo.

Voltado de costas para a proa, sentado ao lado de meu pai, olhava a Fajã, ao fundo, distanciando-se aos poucos, numa perspectiva que nunca me tinha sido dada observar e que, agora, me permitia imaginar e configurar formas diversificadas e simbólicas. As casas brancas, agrupadas e enleadas, faziam-me lembrar as pérolas de um enorme colar, suspensas entre dois grandes, pétreos e turgescentes peitos: o Pico da Vigia e o Outeiro, ou, então, numa visão mais integradora, a Ponta dos Pargos surgia-me como a proa negra dum grande navio, com o seu convés povoado de casotas e torres, onde se destacavam as da Igreja e da casa do Chileno e lembrava-me dos rigores do Inverno, quando o vento soprava de leste e o velho Carvalho Araújo ancorava mesmo ali, totalmente impedido de o fazer em qualquer outro ponto da ilha, devido ao mau tempo. De seguida, olhava para leste, tentando descortinar o interior da ilha, e via o grande obstáculo que era a rocha das Covas, agora mais alta e proeminente do que nunca. A água, nas cascatas das ribeiras do Cão e das Casas, desprendia-se em fluxos ritmados e flavescentes, sob o verde dos socalcos e andurriais e o negro das fragas, ravinas e penhascos. Lá estava o famigerado e precito pináculo das Covas, onde dias antes, por momentos, meu pai e eu, quase hipotecáramos a própria esperança de viver. Puxei-lhe, avidamente o braço calejado e disse:

- Foi ali, pai! Foi ali! Lembra-se?

Meu pai teve que, pacientemente, explicar ao Manuel da Ana que, andando por ali - e apontava para a rocha das Covas - alguns dias atrás, comigo, a apanhar erva-santa, de repente, começaram a cair pedras, calhaus enormes e que tínhamos apanhado um grande susto. Víramos a morte pintada! Não fossem os gritos do Constantino, que de cá de baixo lhe indicava para fugir para junto da rocha e hoje não estaríamos ali.

- Tiveste sorte rapaz! Olha se apanhavas com aqueles marmelos! - Dizia o Manuel da Ana, apontando para umas pedras enormes e mais proeminentes a meio da rocha.

 

A GENEROSIDADE DE MESTRE GREGÓRIO

 

Eu, porém, já não olhava para os calhaus nem para nada. O São Pedro, agora, navegava entre a Baixa-Rasa e o Ilhéu do Cão. A bonança e a calma de que beneficiava a baía, protegida do vento de sudoeste pelas pontas dos Pargos e do Baixio, deixaram de se fazer sentir. Ondas mais fortes e maiores começavam a obstaculizar a serena navegação do pequeno e frágil batel. Algumas tornavam-se tão altivas e arrogantes que, saltando acima da obra morta do São Pedro, salpicavam, conjuntamente, tripulantes e passageiros.

De repente, comecei a sentir uma vasca terrificante e nauseativa. Parecia estar possuído de vibrações caliginosas, paradigmáticas e angustiantes. O meu corpo, trémulo, inerte, perdera a força e a própria razão de ser e convulsionava-se em frémitos acres e agonizantes. Meu pai, de imediato, entendeu o que se passava. Apoiou-me a cabeça com uma mão e inclinou-me a estibordo. Num ápice, perante o ricto malicioso do Manuel da Ana, entreguei, ali, aos peixinhos, gratuitamente e numa enorme sensação de dor misturada com alívio, o meu parco e frugal almoço, conjuntamente com a alegria e o prazer de fruir tão enlevado périplo.

Quando meu pai me recolheu de tão extenuante suplício, estava lívido, sem forças e verdadeiramente arrependido de me ter envolvido em tão arrojada odisseia. Desejava ardentemente voltar ao cais, donde minutos antes, tão feliz, tinha partido. O safardana do Manuel da Ana, pleno de regozijo, atrevimento e prazer sádico, alheio ao meu sofrimento, sentenciou, na qualidade de emetologista-mor do batel:

- Bravo! Assim é que se aprende! Eu também comecei assim. Calma rapaz! Verás que a próxima vai ser melhor.

O meu sofrimento redobrou porque senti, então, que a maioria da tripulação o apoiava na sua galhofa e estava, decididamente, contra mim. Apenas meu pai, por razões óbvias e evidentes, se mantinha neutro: defender-me era contrariar o movimento maioritário da tripulação liderado pelo biltre do Manuel da Ana. Na sua qualidade de viajante convidado, não podia fazê-lo.

Eu sofria duplamente: a indisposição provocada pelos solavancos do São Pedro e a chacota da marinhagem.

Foi então que, num gesto de grande nobreza, dignidade e comiseração, mestre Gregório, confiando a cana do leme a um dos meus algozes e seu adversário de mofa, se levantou. Balouçando as suas pernas arcadas de velho e experimentado marinheiro, num ímpeto de solidariedade e protecção infantil, pegou nalguns velhos casacos e outras peças de roupa que por ali sobejavam, dobrou-as, enrolou-as e estendeu-as no fundo do barco, à proa, formando uma pequenina e provisória cama. Passou-me carinhosamente, a mão pela cabeça, afagou-me o rosto, encostou-me ao peito e ergueu-me dizendo:

- Deita-te aqui. Vais ver que assim passas melhor e não vomitas mais.

Meu pai agradeceu e eu deitei-me. Não vi mais nada, a não ser, lá ao longe, a sombra negra do Monchique que, contrariamente à sua forma habitual de triângulo isósceles, agora parecia um enorme cesto de vimes, com o fundo virado para cima.

A viagem continuava num mar cada vez mais cavado, hermético e altivo. Porém a sábia experiência de mestre Gregório, fugindo, acintemente, à crista das ondas maiores, proporcionava uma navegação mais tranquila. Deitado no meu provisório mas reconfortante beliche, apenas via o azul esbranquiçado do céu, povoado de cirros brancos, que corriam velozes, ultrapassando o São Pedro, em direcção ao infinito.

Passaram-se alguns momentos que me pareceram horas. A tranquilizante navegação que a sábia e experiente mestria do velho comandante impunha ao São Pedro, a ampla e calma baía dos Fanais por onde agora deslizava suavemente, provocaram em mim uma mudança taumaturga e, levaram meu pai a convencer-me a sair da minha taciturna reclusão. Levantei-me e sentei-me, de novo, no lugar que me fora reservado e que ainda não tinha sido ocupado.

 

O ILHÉU DE MARIA VAZ E A BAÍA DOS FANAIS

 

O espectáculo que observava agora era majestoso e belo. O São Pedro navegava ronceiro, entre o ilhéu de Maria Vaz e a rocha dos Fanais. As águas estavam calmas e tranquilas. Não havia ondas. Parecia que o mar tinha amansado acintemente, para que eu pudesse erguer-me e saborear tão deslumbrante espectáculo.

- Ali, - apontava o Mulato para a praia dos Fanais - as lapas são como a palma da minha mão! O pior é descer a rocha para as apanhar.

O Manuel da Ana, em ar trocista, olhando de soslaio para mim e piscando o olho a meu pai, aproveitou logo a deixa:

- E aqui, no ilhéu, os ratos são do tamanho de cães.

Eu tremia, agarrado ao braço do meu progenitor, concedendo-lhe o benefício da veracidade, confirmado não só pelo testemunho do Mulato, mas também, por relatos anteriores, que diziam que por aqueles sítios tudo era excêntrico e heteróclito. Por toda a ilha era sabido que o melhor sítio para lapas era a baía dos Fanais. As dificuldades estavam sempre na descida da rocha, por onde eu nunca tinha passado e que agora surgia ali, à minha frente, alta, imponente, silenciosa e misteriosa, apenas cortada pela cascata da ribeira da Francela.

O São Pedro, porém, abstraído de tudo, continuava a navegar. A tarde surgia mais fria, mas muito limpa e luminosa. Por detrás da alta rocha, com as suas ravinas e pináculos, podia ver-se o interior da ilha, onde já se lobrigavam claramente as pastagens dos matos de Ponta Delgada, entremeadas e divididas por bardos e tapumes de hortênsias azuladas e cor-de-rosa, onde pululavam manchas escuras, brancas e fulvas, pastando a erva tenra.

 

NAVEGAÇÂO À VELA

 

De repente, sob ordem de mestre Gregório, o Manuel da Ana levantou-se, aproximou-se do mastro que se mantinha erguido no meio do São Pedro, desamarrou, com extrema facilidade uma série de cordas e estendeu, com a ajuda dos outros marinheiros, um enorme pano esbranquiçado que, num ápice, prendeu e ergueu no mastro rijo e erecto. É que os ventos, agora, sopravam noutra direcção, permitindo ao São Pedro, depois de ultrapassar a ponta do Albarnaz, com o seu imponente farol, seguir em linha recta, na parte setentrional da ilha, bolinar lentamente sobre as águas bravas e onduladas. Meu pai sugeriu:

- Levanta-te, para veres o Corvo.

Lá estava, de facto, ao fundo a pequenina ilha, sobre o verde azulado do oceano, com uma leve e nevoenta fumaça que impedia de se lhe observar a parte mais alta, que fazia lembrar um enorme biscoito, saído do forno, ainda a fumegar.

O porto de Ponta Delgada, no entanto, ainda estava longe. Os balanços do São Pedro, devido à navegação à vela, eram, agora, tão dolentes e acutilantes, que recolhi, mais uma vez, por ordem do meu marítimo paraninfo, ao valhacouto que me havia improvisado. Os efeitos da navegação à vela eram muito mais cruéis e maléficos do que os da navegação a motor e provocaram em mim um mal-estar muito superior ao sentido anteriormente. Deitei-me novamente. Mesmo assim sentia-me muito mal. O barco seguia muito lento, afecto a grandes baloiços e solavancos, que aumentaram sensivelmente a minha inequívoca náusea. É que o São Pedro, ora subia lentamente uma onda, erguendo gigantesca e altivamente a proa sobre a sua crista, ora caía, dorido e sopeado, sobre a enorme cova que a seguir se formava no azulado negro do oceano, num constante e ritmado bater, que se repetia incessantemente. O céu, agora, parecia-me escuro e as imagens do mestre Gregório e dos outros marinheiros assemelhavam-se a sombras enormes, férulas e rúbidas, que se perdiam no ilhéu de Maria Vaz. Ratazanas heteróclitas e gigantescas saíam de todos os lados do ilhéu, de enormes e esconsas grutas, lançando aulidos aterradores, correndo indefinidamente atrás do São Pedro, que voava sobre tapumes esbranquiçados de hortênsias, os quais lentamente se abriam e transformavam em pélagos e precipícios infinitos e transcendentes, onde as ratazanas desapareciam, deixando atrás de si um rasto de gasóleo e fumo negro. O São Pedro tinha asas, galgava o mar a grande velocidade, aproximava-se do Corvo e subia a ilha, sobrevoando as casinhas muito brancas e pequeninas, perdendo-se entre as fumaças do pico de João Moura, que, de repente, se transformava num enorme gigante que chamava por mim, me pegava ao colo e me colocava, com excessivo cuidado, sobre o cais de Ponta Delgada.

 

 

PONTA DELGADA DAS FLORES

 

Quando acordei, já estava em terra. Fora mestre Gregório que, compadecendo-se mais uma vez do meu sofrimento, me pegara, cuidadosamente, ao colo e me pusera definitivamente em terra firme.

Ponta Delgada situa-se na parte mais setentrional das Flores, numa suave encosta, sobranceira ao cais e a uma pequena baía ladeada pela ponta que lhe deu o nome e pela Ponta do Ilhéu e estende-se, longamente, por uma ampla e verdejante planície, onde salpicam as casinhas pintadas de branco. Próxima do cais, onde varou o São Pedro, sempre sobre as ordens radicais e lineares de mestre Gregório, confunde-se com ele e insere-se num todo que permite aos viajantes e turistas, sem grande esforço, atingir rapidamente o povoado. Esta exímia e curta distância facilitou, obviamente, a minha débil e tonta capacidade de me movimentar, originada pelo marelhar constante e contínuo, sentido ao longo de três horas de viagem e que ainda pesava sobre mim. Mesmo em terra, continuava a sentir o corpo entorpecido, nauseabundo e incapacitado de me aventurar às arrojadas correrias ou alanzoar-me em parrésias heteróclitas a que era propenso.

Caminhei, pois, misantropo e macambúzio, ao lado de meu pai, até à casa de mestre António Algarvio.

 

MESTRE ANTÓNIO ALGARVIO

 

António Alves da Costa Cabreira, conhecido em toda a ilha por mestre António Algarvio, era um homem alto, esbelto e elegante. Aparentava os seus sessenta anos, cabelos grisalhos, olhos azuis, sempre muito atentos nos dos seus interlocutores. O que mais o caracterizava, porém, era um altivo, descomunal e garboso bigode, que se salientava no rosto oval, do qual lhe ocultava grande parte, e que constituía grande motivo de orgulho para o seu proprietário, que despendia muito tempo e grandes cuidados na sua manutenção, nomeadamente, no asseio das enormes pontas, para as quais como que já institucionalizara o hábito de, constantemente, as retorcer e anafar. O enorme bigode, apesar de grisalho, apresentava, no centro, uma mancha amarelada, que levemente se difluía nas regiões limítrofes e que era o resultado plausível do seu declarado e assumido vício de fumador. Tinha uma voz forte e ríspida, com um acentuado sotaque continental, mais concretamente do Algarve, donde era natural. Essa era, aliás, a razão de ser do seu epíteto.

Nascera em São Bartolomeu de Messines, a terra das pedras de amolar. Mas não era a razão principal pela qual mestre António Algarvio se blasonava da sua terra natal. Segundo ele, São Bartolomeu de Messines fora um eficiente baluarte miguelista, pois foi lá, junto à ermida de Sta Ana, que as forças apoiantes de D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, pesada derrota às forças liberais, bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira. Com ar garboso, acrescentava mestre António, que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general Tomás António da Guarda Cabreira, seu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista. Não ficavam por aqui, contudo, os pergaminhos da ilustre e ditosa pátria de mestre António - foi em São Bartolomeu de Messines que veio ao mundo o ilustre vate João de Deus e acrescentava:

- Ainda lá está a casa onde nasceu e viveu o poeta.

Recebeu meu pai com grande satisfação e alegria. Sentado num enorme cadeiral de vimes, enrolado num grosso cobertor de papa, ia contando, de forma dramático-cómica, como era seu timbre, os pormenores, incluindo os mais insignificantes, da sua viagem à Terceira, em quase tudo semelhante à que meu pai realizara três anos antes: -  operação ao estômago, Dr Gago da Câmara, rua da Garoupinha e o velho e monacal hospital de Angra. Enfim, alanzoava-se num aranzel leptológico que lhe era tão peculiar e que contrastava seriamente com a senga e tímida elocução do meu progenitor.

Eu, sentado numa cadeira, muito tímido e quietinho, totalmente alheio a tão desinteressante diálogo, despertei, de imediato, as atenções emocionalmente caritativas da dona Josefa, eminente consorte do nosso anfitrião, que acumulava, simultaneamente, as funções de cozinheira, cargo que, na opinião de mestre António, exercia com desusada competência. A ilustre senhora, exercitando a sua acutilância de investigadora assumida dos destinos do próximo, apercebeu-se, de imediato, do meu estado de famélica debilidade. Num acto de extrema curialidade, sem me consultar, trouxe-me uma enorme tigela de leite fresquinho acompanhado de vitualhas diversas. Envergonhado, manifestei simulada recusa. D. Josefa, no entanto, não era para cerimónias e, embora timidamente, tive que aceitar. Tal repasto produziu em mim um efeito retemperador. Não fosse o temível e odiento séter, sentado ao portão, impedindo a entrada ou saída de qualquer mortal, eu já tinha abalado, na qualidade de objector de consciência, aos efusivos e triviais discursos do ilustre descendente do general Cabreira.

 

O REGRESSO À FAJÃ GRANDE

 

O dia aproximava-se do fim. Meu pai, apercebendo-se disso e, porque sentia que a sua missão estava cumprida, decidiu voltar para casa. Nem os veementes e imperiosos pedidos de mestre António, nem o convite gracioso e meigo de dona Josefa, oferecendo hospedagem, o demoveram do tão impertinente carracismo.

Partimos!... Na torre da Igreja de São Pedro, soaram três espaçosas badaladas, seguidas de duas consecutivas. Era o som religioso das Trindades que anunciavam o anoitecer. Os homens regressando dos matos, ao lado de azémolas carregadas de bilhas e latas de leite, tapadas com ramos de queirós, tiravam, solenemente, o boné e simulavam uma pequena oração. Velhinhas vestidas de negro e bioco a tapar-lhe a cara, sentadas às janelas de suas casas, esbagoavam as contas do rosário, bichanando imperceptíveis ave-marias. Mulheres robustas e mal vestidas, algumas pejadas, recolhiam a casa, com molhos de lenha ou de couves à cabeça acompanhadas de garotos descalços, com monco a escorrer-lhes pelo nariz e agarrados aos saiotes. Vendo meu pai todo geringoto, traçando o rumo duma caminhada que, de certo, a noite iria supinamente obstaculizar, formulavam-lhe convites sucessivos e sinceros, disponibilizando caldinho de couves para a ceia e dormida. Todos eram de opinião de que não eram horas de se fazer ao caminho do mato, ainda por cima acompanhado duma criança.

Mas o persistente carracismo de meu pai, mais uma vez imperou. Rejeitava linearmente todas as ofertas de hospedagem, como aliás já acontecera em casa de mestre António Algarvio. Aí, o homem quase se zangara! Por isso, o meu progenitor tinha agora outro argumento, para justificar a sua decisão: não ficara em casa de mestre António, não ficava em nenhuma outra.

Caminhámos!... Ao descoser do derradeiro casebre da freguesia, já a noite caíra, fria, silenciosa e escura. Muito escura! Para trás ficavam os campos, cobertos de milho loiro, amarelado e fulvo e as famílias reunidas à volta das tigelas de leite e broa, acompanhadas de um caldo de couve onde não faltava a talhadinha de toucinho. Era o jantar tradicional e habitual das gentes da ilha.

Entrámos decididamente nos matos e na escuridão. Tínhamos pela frente a árdua tarefa de atravessar, durante a noite, de norte para sul, uma quarta parte da ilha das Flores, sem caminhos, através de pastagens separadas por cancelas e tapumes de hortênsias, chegar ao Risco, descer a íngreme rocha da Ponta e, só então, encontrar um caminho digno de tal nome, que nos conduzisse a casa. A única esperança era a lua. Esta, porém, contrariamente às expectativas de meu pai, tardou em aparecer.

 

CAMINHANDO NA NOITE

 

Iniciámos, então, uma desconexa e terrífica inambulação que, inevitavelmente, nos conduziria ao pélago. Meu pai confiara de mais no conhecimento que julgava possuir de tão inóspitos andurriais, reconhecendo, finalmente, que, no escuro da noite, era muito difícil andar por ali. É que as pastagens dos matos de Ponta Delgada, como aliás as de toda a ilha, não possuem caminhos, são apenas detentoras de pequenos atalhos ou trilhos delineados pela passagem, espaçada, de homens e animais

Era precisamente por uma dessas pastagens que eu caminhava, agora, bem agarrado à mão de meu pai, cheio de medo de tudo e de nada, ora horrorizado com os aulidos de algum touro que, repentinamente, surgia ao nosso lado, ora assustado com ecos simbólicos e fantasmagóricos de ruídos estranhos que, no escuro da noite, se faziam ouvir de todos os lados.

De repente, à nossa frente, sem que déssemos conta, surgiu um inopinado tapume de hortênsias. Cancela, nem vê-la. Meu pai furou o tapume, mas a separá-lo da propriedade seguinte estava um arroio repleto de fetos e cana-de-roca. Calou-se, por momentos e, depois, exclamou:

- Estamos perdidos!

Eu emudeci, perante tal parrésia. Mesmo que quisesse não podia responder-lhe ou fazer qualquer sugestão. Sentámo-nos, calados, na erva fria, já perene de sereno. Fixámos, imóveis e silenciosos, o nosso pensamento no infinito escuro e no amanhecer distante.

Passado algum tempo, meu pai, como que despertando duma profunda letargia, pensando que eu já adormecera, sacudiu-me e ordenou:

- Álvaro, descalça os sapatos!

Não lhe obedeci. Pensei que delirava e assustei-me ainda mais. Ele, porém, repetiu a ordem com tal veemência que fui obrigado a obedecer-lhe.

Descalcei os sapatos e entreguei-lhos. Ele, dando um nó no extremo da manga de um casaco que trazia ao ombro, guardou-os. Depois, um pouco mais calmo, explicou-me:

- Agora vais andando à minha frente, andando com cuidado, sentindo a relva debaixo dos teus pés, até encontrares o sítio onde ela está amachucada. Assim descobriremos o atalho.

Comecei a andar, maquinalmente, na escuridão, como se estivesse a jogar à cabra-cega, num espojadoiro. A estratégia, porém, resultou excelentemente. Algum tempo depois, encontrei o trilho. Recomeçámos a marcha lenta e cautelosa. Agora era eu o guia e disso me ufanava. Habituado a andar descalço pelos campos e caminhos, ia facilmente sentindo, debaixo dos meus pés, a erva amachucada e calcada, por onde nos dias anteriores tinham transitado os homens e os animais.

Passado algum tempo, porém, meu pai mandou-me parar. Cuidava ele que estávamos perdidos outra vez. Não tínhamos saído fora do atalho, porque isso os meus pés descalços não me enganavam; perdêramo-nos sim, na direcção. O meu progenitor não sabia se caminhávamos para sul, na direcção da Fajã, ou se pelo contrário regressávamos a Ponta Delgada. Ele, porém, decidiu continuar a andar na mesma direcção, apesar da minha pronta, frontal e resistente oposição.

Andámos, até chegar a uma parede. Eu, já exausto e sonolento, sentei-me! Meu pai, aproximou-se dela e, com as suas mãos calejadas, acariciou-a, levemente, de ambos os lados. Depois, com muita determinação e certeza, disse-me:

- Íamos enganados. Nesta direcção, regressávamos a Ponta Delgada. Vamos voltar para trás, porque a Fajã é na direcção contrária.

Reiniciámos a nossa marcha, sempre no escuro, mas agora na direcção certa e segura, enquanto meu pai me explicava que as paredes e os muros voltados para o norte recebem menos sol e, por isso, têm mais humidade e, consequentemente, mais musgos e ervas. Fora isso, afinal, que ele detectara quando acariciou a parede, descobrindo de que lado ficava o norte. Depois foi só voltar em sentido contrário, porque a Fajã ficava a sul. Era esta a direcção certa e desejada.

Caminhámos, horas a fio, na noite, no medo e no escuro, lutando contra o sono e a constante indefinição dos atalhos!

 

DA ROCHA DO RISCO À PONTA

 

Chegámos finalmente ao Risco, iniciando a descida da rocha. Agora já não nos voltaríamos a perder porque, por um lado, apesar de íngreme, a rocha tinha uma vereda bem delineada e, por outro, a lua surgira, finalmente, por cima da rocha dos Paus Brancos, clara e iluminadora, desfazendo, decididamente, a total escuridão que nos acompanhara até agora e a que os nossos olhos como que já se tinham habituado.

Iniciámos a descida. Segundo a douta estimativa do meu progenitor, já devia passar muito da meia-noite. Regozijei-me. É que sentir, naqueles descampados escuros e solitários a terrifica hora da meia-noite, teria sido fatídico para a minha imaginação. A meia-noite era a hora má, plena de aparições fantasmagóricas e contactos com o diabo. Convenhamos que um encontro, naqueles páramos, com o mafarrico, mesmo que fosse apenas na minha imaginação, não seria o mais aconselhável para a minha já débil audácia, pese embora contasse com a protecção de meu pai, um verdadeiro ateu, nestas crenças.

A rocha da Ponta é um alcantil escarpado, abrupto e a pique. A única e sinuosa via que possui é uma vereda, um aclive íngreme e sobranceiro ao mar. Sítios há, em que pedregulho, objecto ou pessoa que caia, vem direitinho parar às águas do Atlântico, a não ser que antes se desfaça ou esborrache nas fragas e penhascos que nela proliferam.

Eu descia-a, encantado com o luar de que agora desfrutava, opondo-se à escuridão que me envolvera toda a noite. O espectáculo que observava era deslumbrante e maravilhoso! O luar, projectando-se no mar, transformava-o num espelho prateado e cristalino. Lá longe já se vislumbrava o casario da Fajã e a tímida luzinha do farol da Ponta do Baixio. O Pico da Vigia, sobranceiro ao povoado, projectava, no mar, uma sombra clarificante que se difluía, com lenidade, no oceano. O silêncio da noite apenas era cortado pelo ritmado bater das ondas junto à costa. No Rolo, circundante à grande Baía, onde se vislumbravam os montículos arrumados do sargaço, simulando aldeamentos escuros, perdiam-se ondas infinitas de prata e de espuma.

A certa altura, abstraído em tão paradigmática contemplação, sem me aperceber, meti um pé em falso num pequeno riacho, tropecei e estatelei-me de tal forma que o meu corpo ficou a balouçar entre cai e não-cai, à espera de rolar pela falésia, atingindo o oceano. Foi meu pai que, lesto e hábil, me agarrou, impedindo-me de rolar pelo íngreme barranco e cair no fundo do precipício. O resultado foi um enorme susto para ele e um grande galo para mim, o qual me impediu, radicalmente, de continuar a fruir a excelência e beleza daquela paisagem nocturna.

Chegámos às primeiras casas da Ponta. Luz, apenas na pequena lâmpada da capelinha de madeira da Sra de Fátima, fruto da exima devoção à virgem do António Simão e marco protector dos viajantes que se dispunham a subir a temível e perigosa rocha. Meu pai decidira que tínhamos que parar na Ponta. Estávamos exaustos, famintos e cansados e o meu galo crescia cada vez mais. Mais adiante, uma luz, a única em todo o reduzido casario. Meu pai bateu à porta. Conhecia muito bem o dono. Eu já nada podia decidir ou opinar.

A porta abriu-se imediatamente. Uma das filhas do Maurício Esteves assumiu, aflita e sobressaltada, de candeeiro em riste, gritando:

- Já chegaram!? Já chegaram!? Entrem, entrem depressa!

Nós, pasmados, hesitantes e perplexos.

Só depois de entrarmos ela explicou, chorosa e triste, que o pai estava nas últimas e o irmão mais velho tinha ido a pé, aos Terreiros, esperar o Dr João Alves, que vinha de Santa Cruz, de carro, para depois lhe fazer companhia. A partir dos terreiros faria o trajecto a cavalo, mas àquela hora da noite, bem necessitava de companhia. Julgara que eram eles e, quando se apercebeu de que éramos nós, ficou decepcionada. O pai piorava de instante para instante e, temia-se que, quando o médico chegasse, já nada pudesse fazer. Abeirámo-nos do leito escurecido em que expirava o velho Esteves e onde reinava um misto de choro e amargura. Ao lado, os filhos, alguns vizinhos e amigos e a candidata a viúva, que ocupava lugar de destaque, junto à cabeceira do moribundo

Meu pai, depois de se inteirar do estado de saúde do agonizante e das causas de tão inóspito acometimento, pediu uma faca, cuja lâmina fria colocou sobre o emérito galo que eu conquistara na descida da rocha, o qual, lenta e progressivamente, foi reduzindo o seu volume, embora não desaparecendo totalmente.

No velho relógio da sala bateram duas horas. Enquanto o moribundo continuava a agonizar, lançando por vezes alucinantes e dolorosos estertores, já alheio a tudo o que o rodeava, e os circundantes tentavam encobrir e disfarçar choros e soluços, decidimos dar continuidade à parte final, por certo a mais fácil, do nosso atribulado percurso.

 

FINALMENTE EM CASA

 

O caminho agora era acessível e conhecido. Eu caminhava ronceiro atrás do meu progenitor, que cônscio do adiantado da hora, procurava, recuperar o tempo perdido, nos matos de Ponta Delgada. O sono e o cansaço haviam-se conjugado em mim e dominavam-me de tal forma, que já nem conseguia andar, ou, se o fazia, era maquinalmente. Porém, ao chegar à fatídica ladeira das Covas, dei uma enorme corrida e vim agarrar-me ao braço de meu pai, pedindo-lhe protecção. Era ali, exactamente ali, naquele malfadado sítio, que o padre Silvestre ouvira gritos horríveis e gemidos ansiosos, quando regressava da Ponta, depois de, zelosamente, cumprir as suas obrigações pastorais. O testemunho do reverendo, inicialmente digno de pouco crédito, acabou por tornar-se verídico, porque os gritos e os gemidos foram ouvidos por outras testemunhas. Todos os habitantes quer da Ponta, quer da Fajã, temiam passar por ali, sobretudo durante a noite. Apenas alguns homens mais destemidos e menos crédulos, e meu pai estava nesse número, sabiam ao certo o que se passava. Entrei em pânico. A minha própria sombra e a de meu pai me assustavam. Ele, então, pacientemente, explicou:

- Era a Ana do José Felício. Na véspera, um grupo de homens, liderado pelo Ângelo da Joaquina, tinham-lhe feita uma espera, na relva do João Cristóvão, e viram-na chegar, à tardinha, e esconder-se numa furna. Quando sentia alguém passar, punha-se, de imediato, a gemer e a gritar. Inicialmente pensava-se que era apenas para assustar o senhor padre Silvestre. Afinal, a razão era outra, como ela própria explicou, depois de levar umas valentes bordoadas. Queria apenas impedir que pessoas da Ponta tivessem medo de passar por ali, impedindo-as de vir trazer a moenda ao moinho do José Mateus e, assim, as deixassem no seu, que ficava para além da ribeira do Cão.

A explicação do meu progenitor, no entanto, não me acalmou. A certa altura tive mesmo a certeza de ouvir os tais gritos horrorosos e suspiros alucinantes. Arrepiei-me todo e tremi de medo. Meu pai, no entanto, acalmou-me. Eram cães que andavam por ali a farejar fêmea.

Chegámos a casa! Três horas! Minha irmã sobressaltada e aflita, ainda não pregara olho. Assumindo o seu papel de mãe, deitou-me o mais rápido possível. Acordou-me às sete. Era a minha obrigação ir levar a Trigueira ao Outeiro Grande. Regressei, como por vezes fazia, pela Bandeja e Fontinha, entrando em casa da minha avó, para lhe contar a nossa trágica odisseia.

- Foi um milagre de Santa Rita! - Exclamava ela.

E a santa teve honras de luzinha acesa, durante um mês.

                                                            

 

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publicado por picodavigia2 às 10:21

O COELHO E A COELHA

Sexta-feira, 27.12.13

Mais um rimance, recolhido por Pedro da Silveira, na Ponta da Fajã Grande, em 1943, junto de José Inácio Mateus e publicado na Revista Lusitana. Nos anos cinquenta este rimance ainda se declamava aos serões para as crianças adormecerem mais rápida e suavemente. Trata-se duma história muito simples mas que, contrariamente, aos “Contos da Carochinha”, tem um final infeliz, devido ao caçador cruel e ao gato maldito.

 

“Andando um belo coelho nua rocha a passear

Avistou ua coelha, foi-lhe falar p’ra casar:

«Adeus minha rica amada, minha bela coelhinha,

Te venho falar d’amores, com tenção de tu ser’s minha.»

A coelha le respondeu, com grande consid’ração:

Que amores não pretendia, logo le disse que não.

«Nã me fales tu assim, com palavras tã tiranas,

Deves de amar o mundo e ganhar as suas famas».

«Desvie-se para lá, não escorregue no lodo,

Quero más às minhas famas do que quero ao mundo todo».

«Se para todos in geral e pous p´ra mim sois assim.

Nã me vou daqui imbora sem de ti levar o sim».

«Coma possa-m’eu fiar nessa tua mansidão,

Se eu de ti nada conheço nim sei a tua tenção».

«Se de mim tu t’arreceias, o teu receio é culposo?.

«Dá cá a tua mão se queres ser o meu esposo».

O coelho que ouviu isto saltou com muito prazer

Tirou o anel do dedo e lo foi oferecer:

«Toma lá este anel, minha linda coelhinha,

Toma lá este anel, co a tenção de seres minha».

Pegar’ um na mão do outro, choraram na despedida:

«Adeus minha rica amada, minha coelhinha qu’rida».

Passaram-se oito dias, sem se tornarem a ver.

O coelho a foi prêcurar p’ra se d’irem receber.

E viveram muitos anos com grande satisfação,

Nu’a cova que fizeram debaixo do frio chão.

A cova era estreita, lá nasceram seus lindos.

Ao cabo de nove meses tiveram sete filhinhos.

Saíra a coelha de casa, na graça de Deus Senhor,

Quando voltou vinha ferida, de tiro de caçador.

«Que tendes minha rica esposa, que vindes tão desmaiada?»

«Cala a boca, qu’rido esposo, nã te posso contar nada;

Só te posso dizer, que vás chamar o doutor,

Porque eu venho ferida do tiro do caçador».

Saiu o coelho de casa cansado do coração,

Foi apressado à botica, chamar o cerugião.

Quando este chegou a casa, remédios nã receitava,

Logo o desembaraçou, que ela que nã ‘scapava.

Foi o coelho para a rocha chorar a ausência do amor.

Que ela morrera inocente, do tiro do caçador.

Voltando então para casa, de cansado s’assentou:

«Quim foi o grande ladrão que meus filhos me roibou?»

Saiu o coelho de casa, agora já sim ninguém,

Perguntou a seus vezinhos, se por ali passara alguen.

«Passou o gato patife, que os coelhinhos levou».

«Aquele gato ladrão, que os meus filhos roubou!

O gato, gato maldito, que a todos me levou,

Nã olhou eu ser viúvo e nim só um me deixou».”

 

Pedro da Silveira – Suplemento da Revista Lusitana.

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publicado por picodavigia2 às 09:37

DOIS E MEIO

Sexta-feira, 27.12.13

Todos os anos, pela altura da Quaresma, o pároco, do alto do púlpito ou do meio da grade, a propósito dos esclarecimentos sobre a desobriga pascal, aproveitava para recordar os outros Mandamentos da Santa Madre Igreja, insistindo com maior desvelo no quinto. E repetia duas, três e mais vezes “Contribuir para as despesas do culto e sustentação do clero, de acordo com os legítimos usos, costumes e tradições da Igreja”.

Lá por ser o quinto e vir em último, não significava que fosse menos importante do que os outros. Pelo contrário, talvez fosse o principal, pois sem ele não havia clero e sem clero não havia missa, não havia confissão, não havia nada. Por isso e, de acordo uma antiquíssima tradição da Igreja Católica, era dever moral e religioso de todos os crentes contribuir, financeiramente, para a honesta e digna sustentação do seu pároco. Então não estava ele, ali, todas as horas do dia e da noite, disponível para quem o chamasse para os últimos sacramentos, não estava ele dia após dia, ao serviço da paróquia, celebrando missa, ministrando os sacramentos e orientando o ensino da catequese? Por isso os paroquianos tinham o dever de contribuir economicamente para que ele pudesse servir em disponibilidade total. Todos, mas mesmo todos, tinham pois a obrigação de cumprir o quinto mandamento da Igreja. E o montante estipulado, de acordo com as normas estabelecidas, na diocese, pelo Senhor Bispo, era o equivalente a um dia de trabalho ou um alqueire de milho: quinze escudos.

O José Natal não nadava em dinheiro, mas tinha algum, pois havia transaccionado uma loja e, além disso, era o responsável pelo correio, o que lhe dava mais uns centavos no fim do mês. Ouviu, como todos os outros, num domingo, no outro e ainda no último, antes da Páscoa, em que o pároco, perante o suposto esquecimento de muitos, até ameaçou ler da grade os nomes dos prevaricadores.

Foi para casa, pegou em lápis e papel e fez contas. Ele vivia sozinho. Na maioria das outras casas da Fajã viviam mais de quatro pessoas, nalgumas dez, noutras doze e até numa eram quinze e todos pagavam pela mesma medida. Ora havia ele de pagar o mesmo que pagavam os outros, com família numerosa, por tudo e por nada a baterem à porta do passal, cheios de filhos para baptizar, com as mulheres sempre na igreja, a não deixarem escapar uma missa ou uma novena? Não era justo. Além disso ele pouco sujava a igreja, uma confissão por ano e não tinha filhos para baptizar, nem para a catequese. Continuou a fazer contas: quinze escudos, numa família de quatro pessoas, - e já era baixar muito a fasquia - eram dois e meio por pessoa. Sim senhor! Pois sendo ele sozinho havia de pagar dois escudos e meio e já estava a ser muito generoso.

Como não queria ver o seu nome lançado ao desvario lá do alto do púlpito, pegou numa moedinha prateada, muito brilhante, de dois e meio e lá foi, com destino à sacristia, onde o pároco habitualmente montava escritório e tesouraria.

Bateu à porta, entrou, cumprimentou com bons modos o reverendo e explicou o porquê da sua visita. Nada de estranho por parte do pároco que sabia que o Josezinho era um bom cristão, cumpridor das leis da Igreja e dos seus deveres de baptizado.

O José Natal sem mais demora, tirou a moeda do bolso e colocou-a na palma da mão direita, estendendo-a na direcção do pároco. Estava ali o seu “culto”!

Que havia um engano, que provavelmente o Josezinho não havia percebido bem o que explicara, mas não era aquilo, não podia, nem devia ser só aquilo. O José Natal insistiu e o pároco, começando a revoltar-se, voltou a contrariar. Que nem pensasse, que tivesse juízo, que não aceitava aquela migalha.

O José Natal, sempre calmo e descontraído, voltando a colocar a moeda no bolso, exclamou:

- Áh! Não quer?! Então ela vai para onde veio. – E dando meia volta, saiu da sacristia.

Não tardou muito e o pároco a correr atrás dele pelo adro fora:

- José, José, ó José, este ano fica assim, mas para o ano vais ter mesmo que pagar os quinze escudos

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publicado por picodavigia2 às 00:30





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