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RECORDANDO EMÍLIO PORTO

Domingo, 29.12.13

Todos os que lidaram de perto com ele, sobretudo nos últimos tempos, de certo que ainda se sentem atordoados com o seu repentino desaparecimento, com a sua morte súbita e inesperada. Emílio Porto faleceu, no passado dia doze, durante um ensaio do Grupo Coral das Lajes do Pico, por ele fundado em 1983, e do qual sempre foi maestro e o principal responsável pela organização de todas as suas actividades musicais. A sua morte deixou na maior apreensão e nostalgia a família, os seus amigos mais próximos e todos aqueles que, de perto ou de longe, com ele conviveram e trabalharam.

Conheci o Emílio Porto, quando em Setembro de 1960, demandei, pela primeira vez, o Seminário de Angra. Recordo-me de o ver assomar à janela do seu quarto, voltada para os “miúdos”, sempre sério e pensativo, a descer os degraus dos teólogos, a correr para a sala seis, a fim de chegar a tempo à aula de Teologia, a jogar voleibol no campo junto à cozinha, a percorrer as ruas de Angra, com passagem pelo pátio da Alfândega e, sobretudo, a reger, com mestria, elegância e emoção, a capela do Seminário. Frequentava o décimo primeiro ano e eu, o terceiro. As normas de um regulamento interno, rígido e rigoroso, impediam a comunicação diária entre os alunos das três prefeituras, quebrada apenas, nas manhãs de Natal, nos dias de Festa, nos ensaios do orfeão e pouco mais. Não era de muitas falas, nem se metia em graçolas ou brincadeiras com os mais pequenos. Tinha, no entanto, um ar alegre, prazenteiro, solene, digno, concentrado e trabalhador, revelando já dotes extraordinários e inexauríveis, a nível da formação musical.

Anos mais tarde, embora em tempos diferentes, cruzei-me com ele em São Caetano do Pico, substituindo-o, nas inúmeras actividades em que ele ali se envolvera e a que procurei dar continuidade e prosseguimento. Em São Caetano do Pico, Emílio Porto, para além de granjear o respeito, a consideração e a estima de toda a população, deixou uma obra notável. Dedicado à juventude, que acompanhava em todas as actividades e com quem se envolvia em todos os acontecimentos, com destaque especial para a música e também para o teatro, Emílio Porto fundou o boletim paroquial “Presença”, criou o Grupo Desportivo de São Caetano, tendo adquirido o terreno e construído dois campos para a prática do futebol, um nos Cabeços e outro na Terra do Pão, reestruturou a Tuna Musical da Terra do Pão, um e outro destinados sobretudo à ocupação dos jovens, renovou o Grupo Coral, e adequou as celebrações litúrgicas, de forma brilhante e digna, às reformas protagonizadas pelo Concílio Vaticano II. Dedicou os seus anos de trabalho naquela freguesia, ao serviço da comunidade e dos outros, nomeadamente, dos velhos, dos doentes e dos jovens. Se algo descuidou, foi em prol de si próprio, porquanto viveu, durante quatro anos, acompanhado familiares, em precárias e degradadas condições de habitabilidade.    

Mais tarde serviu o exército português no ultramar, durante a guerra colonial, realizando duas comissões de serviço em Angola. A forma como o fez, estabelecendo a amizade como estandarte da guerra e a verdade como lema de vida, granjeou-lhe o respeito, a consideração e a estima de quantos com ele conviveram. A atestá-lo os variadíssimos testemunhos de quantos acompanhou naquelas missões e os encontros regulares que, passados quarenta anos, ainda mantinha com os seus camaradas de guerra.

A partir de então, perdi-lhe as pegadas. Sei, no entanto, que, quer como homem, quer como cidadão ou professor e ate como político, teve sempre um comportamento digno, nobre e exemplar, pautado por um empenhamento honesto, por uma competência fluente, por uma dignidade desmedida e por uma humildade transparente, que nem o Grau de Comendador, com que foi agraciado pelo presidente Jorge Sampaio em 2008, nem a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico que a Assembleia Regional dos Açores lhe atribuiu, haviam de desfazer.

Quis o destino que nos reencontrássemos, há uns anos, no Mucifal. A partir de, então, restabelecemos uma amizade recíproca, íntima, sã e enternecedora, a nível individual e familiar. Não apenas em encontros frequentes, que agora podíamos fruir, mas também no “Alto dos Cedros” e no “Pico da Vigia”, dia após dia, íamos fazendo deslizar memórias de um passado que, afinal, tinha muito em comum.

Na madrugada do passado dia doze, fui fulminado, com a notícia empírica e real da sua morte. Emílio Porto falecera na véspera, durante um ensaio do seu Grupo Coral. Nesse dia, algumas horas antes, havíamos conversado e programado a sua visita ao Norte do país e que ele próprio já anunciara através da Internet. Na noite do dia seguinte, eu havia de o ir esperar à estação de Campanhã, no Porto.

 

Texto publicado no Pico da Vigia, em 23/04/12

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publicado por picodavigia2 às 23:20

OS CARRINHOS DAS OVELHAS

Domingo, 29.12.13

Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, ainda havia quem criasse ovelhas à porta, fazendo-o, no entanto, em pequena quantidade, isto é, criava-se geralmente uma ou duas ovelhas juntamente com um carneiro e nada mais

O objectivo primordial desta minúscula criação de ovinos, em contraste com os grandes rebanhos de ovelhas que pastavam no mato, na chamada zona do concelho, e que eram recolhidas e tosquiadas apenas nos dias de “Fio”, era, regra geral, o de entretimento e ocupação das crianças que, assim, se iam habituando e preparando para, mais tarde, tratar e cuidar dos animais. Mas, por outro lado, a criação de ovídeos junto de casa também proporcionava a utilização, quer da lã, quer da carne, com uma maior regularidade. Na Fajã o leite de ovelha nunca foi utilizado na alimentação humana, a não ser em tempos muito recuados, destinando-se, naquela altura, exclusivamente, à alimentação das crias. Sendo assim eram as crianças que cuidavam e tratavam das ovelhas, trazendo-lhes comida dos campos ou levando-as a pastar em pequenos currais ou ainda amarrando-as à estaca, no “oitono”, neste caso em conjunto com as vacas que também aí estavam amarradas.

No entanto, muitos fajãgrandenses, retiravam outro provento da criação dos ovinos à porta, pois utilizavam as ovelhas ou, eventualmente, um carneiro, para puxar minúsculos carros, no transporte de cargas mais leves e pequenas, aliviando-se de trabalhos e canseiras, evitando serem eles próprios a acarretar esses carregamentos às próprias costas. Foi assim que nasceram os carrinhos das ovelhas, que, em tempos antigos, muito provavelmente, terão sido usados com muita mais frequência e em maior número.

Os carrinhos das ovelhas, puxados apenas por um só ovino, eram autênticas miniaturas dos carros de canguinha, puxados por uma vaca. Na realidade não era costume encangarem-se juntas de ovelhas, como se fazia, no caso das vacas ou dos bois. As ovelhas atrelavam-se sempre uma a uma e, por isso mesmo, os carros que elas puxavam, a canga que se lhes enfiava no pescoço e até os tamoeiros que as prendiam ao cabeçalho, tudo, mas mesmo tudo, era rigorosamente igual aos carros de canguinha, mas em ponto pequeno. Autênticas e verdadeiras miniaturas.

Com a tampa superior encastoada entre os dois cabeçalhos laterais, os carrinhos de ovelhas tinha as rodas mais simples, feitas geralmente duma peça única, enfiadas num eixo que encaixava nos “queicões”, presos ao tampo e com uma canga de canguinha muito semelhante às das vacas. Além disso, também tinham fueiros e sebe, embora esta, geralmente fosse feita com tábuas de madeira.

Mas as ovelhas não eram tão dóceis, nem tão obedientes, nem tinham tanta facilidade em aprender a trabalhar como as vacas. Eram mesmo umas desajeitadas. Daí que fosse preciso muito tempo e bastante paciência para as habituar à canga, tarefa que geralmente era confiada aos mais novos, mais pachorrentos, mais disponíveis, que assim se iam esquivando de acarretar os molhos às costas. Um carrinho de ovelhas transportava, muito à vontade, um grande molho de lenha ou de incensos, um pesado saco de batatas ou um grande cesto de inhames

Os carrinhos das ovelhas eram de fácil e simples fabrico, por isso qualquer habilidoso podia construí-los. Tinham a vantagem de serem utilizados quando se pretendia acarretar pequenas cargas, não o querendo fazer às costas. Além disso arrumavam-se facilmente, cabiam em qualquer caminho e se a ovelha “desse as couves” (1) o dono podia muito bem substituí-la, puxando o carro pelas suas próprias mãos.

Havia, no entanto, muitos homens na Fajã que diziam “não ter paciência para estas criancices”. Na realidade conduzir um carrinho de tão minúsculo tamanho, puxado por uma ovelha ou por um carneirinho, mais se assemelhava a uma brincadeira de criança do que propriamente a uma tarefa de adulto.

Confesso que tive a sorte, em criança de ter uma ovelha, mansa, meiga e que me seguia para todos os lados como se fosse um cãozinho. Era eu que ia buscar comida e lha dava, a levava a pastar ao Outeiro ou ao curral das Águas e lhe fazia a cama com feitos secos, mas nunca consegui, apesar de o pedir insistentemente, que meu pai me arranjasse um dos tais carrinhos.

(1)     Na Fajã Grande dizia-se que um animal “dava as couves” quando ficava tão cansado e estafado que já não conseguia trabalhar mais.

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publicado por picodavigia2 às 23:02

CRENDICES FAJÃGRANDENSES

Domingo, 29.12.13

Muitas eram as crenças ou crendices existentes entre a população da Fajã Grande, nos anos cinquenta. Tratava-se, naturalmente, de espécies de sentenças muito antigas, algumas trazidas muito possivelmente pelos primeiros povoadores e que se foram transmitindo de geração em geração. Aqui se recordo algumas, sendo que se trata apenas de meras citações de memória

“Atirar o dente de leite para cima do forno e dizer a oração – Maião, Maião, pega lá o meu dente podre e dá-me um são - tornava os dentes fortes e saudáveis.”

“Colocar o dente de leite, depois de extraído, debaixo do travesseiro, dava sorte.”

“Apontar uma estrela fazia nascer verrugas no dedo que apontasse.”

“Saltar por cima duma criança impedia-a de crescer.”

“As raparigas não deviam comer ovos de duas gemas, pois teriam gémeos.”

“Encontrar ou cruzar com um gato preto, na rua, dava azar.”

“Sol com chuva, casavam-se as viúvas”.

“Uma vassoura atrás da porta espantava as visitas.”

“Quando o arco-íris virasse de pernas para o ar seria o fim do mundo.”

“No ano dois mil acabava o mundo.”

“Não se devia cantar durante a Quaresma.”

“Comer salsa em jejum ajudava a desenvolver a memória.”

“Uma cruz feita em cima da massa do pão, acompanhada da oração – São João t’afermente e Santo Antonho t’acrescente – fazia levedar o pão mais depressa.”

“Sexta-feira 13 era dia de azar.”

“Agosto era mês de desgosto “.

“A língua do porco não se devia comer, devia ser oferecida pelas almas do purgatório”.

“Assobiar à meia-noite chamava o diabo.”

“Atirar sal para o lume espantava o azar.”

“Quem passasse por debaixo do arco-íris tornava-se mula-sem-cabeça.”

“Na Sexta-Feira Santa era bom comer funcho. Nossa Senhora também comera a caminho do Calvário.”

“Passar debaixo duma escada dava má sorte.”

“Quebrar um espelho, dava sete anos de azar.”

“As crianças que se portassem mal seriam assentadas no Boiceiro, uma cadeira com o fundo do assento repleto de pregos virados com o bico para cima.”

“Quem trabalhasse no primeiro dia do ano trabalhava todos os dias.”

“Era pecado cuspir depois de comungar.”

“Assistir à missa, confessar-se e comungar em nove sextas-feiras seguidas era garantia de não se morrer em pecado mortal.”

“Fazer uma cruz de cuspo no peito do pé melhorava o pé dorido.”

“Quando fazia relâmpagos deviam-se esconder ou tapar os espelhos.”

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publicado por picodavigia2 às 19:04

JUNTAS DE BOIS

Domingo, 29.12.13

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, havia poucas juntas de bois. A maioria dos agricultores, para puxar o carro, o corção ou o arado, utilizava vacas de leite ou gueixas alfeiras que eram criadas para mais tarde delas se fazerem vacas, substituindo as mais velhas que assim “eram emaladas” para Lisboa. Apenas quem dava dias para fora, ou seja quem ia lavrar as terras de outrem, sobretudo dos que não tinham gado ou queriam poupar as suas vacas para que dessem mais leite, tinha junta de bois, utilizando-a também, obviamente, para lavrar as suas próprias terras e fazer todos os outros serviços agrícolas e carregamento de todos os produtos, quer os que os campos produziam quer o estrume e o sargaço para adubar as colheitas.

Na Fajã Grande, apenas o Francisco Inácio e o Raulino Fragueiro tinham juntas de bois para trabalhar. Dos restantes agricultores, somente um ou outro tinha um e, muito raramente, dois touros, mas à engorda, isto é, fechados dia e noite no palheiro, poupados ao trabalho, às intempéries dos campos e aos dias de chuva e frio, alimentados com muita e boa comidinha para que, quando vendidos ou embarcados, pesassem muito e dessem bom dinheiro. Meu pai chegou a criar um boi nestas condições.

Quer o Francisco Inácio quer o Raulino Fragueiro, no entanto, tinham geralmente belas, valentes e bem tratadas juntas de bois. O Francisco Inácio tinha dois bois avermelhados e fuscos, de raça menos comum na ilha das Flores, mas muito mansos, bem tratados, com o pelo sedoso e luzidio e muito bem habituados à canga e ao trabalho. Dava dias para fora, sobretudo lavrando as terras daqueles que não tinham gado para o fazer. O mesmo acontecia com o Raulino Fragueiro, embora, neste caso, fossem os filhos que trabalhassem com os bois, também estes eram muito mansos e bem tratados, habituados ao trabalho, mas de raça “austina”, caracterizada pela cor lavrada de preto e branco. Num e noutro caso estes bois, depois de muitos anos de trabalho, também eram postos à engorda e embarcados ou vendidos para abate.

Estes bois de trabalho eram guardados permanentemente nos palheiros, excepto quando trabalhavam, pois assim estavam sempre disponíveis para qualquer tipo de trabalho que fosse solicitado aos seus donos, pois eram eles que realizavam a grande maioria das tarefas agrícolas: lavravam os terrenos para as sementeiras, carreavam as lenhas e os produtos agrícolas e puxavam o corsão. Eram geralmente estas juntas de bois que também acarretavam as mercadorias dos comerciantes, desde os Terreiros até à Fajã Grande, antes de ser aberta a estrada, chegando mesmo a levarem mercadorias da Fajã para as Lajes, nos dias em que o Carvalho fazia serviço no porto da Fajã Grande. Por vezes, também eram contratados para acarretar lenha para quem necessitasse dela e não tivesse meios de o fazer e até acarretavam pedras e outro material para construção de casas. Eram uma espécie de assalariados rurais, estas juntas de bois,

Em ambos os casos estes bois eram animais muito mansos e pachorrentos, conhecendo bem o dono, que os tratava pelos seus nomes que eles conheciam e que, na Fajã Grande, geralmente, eram: Damasco, Gigante, Trigueiro e Lavrado. Os donos conduziam-nos com uma aguilhada, cuidavam e tratavam muito bem deles, limpando-os e enfeitando-os com ponteiras de metal nos chifres e campainhas de meia laranja e afinados sons penduradas ao pescoço, com “estrape” e fivela. A campainha com o som mais baixo devia ser usada pelo boi que trabalhava pela esquerda e a de som mais agudo, no do lado direito, sendo que as fivelas deviam ficar sempre do lado de fora. Os bois conheciam muito bem o seu dono, o lado em que eram encangados, assim como os caminhos em que circulavam e as propriedades que trabalhavam. Além disso, lavravam sem ninguém diante, obedecendo e respeitando as ordens e orientações do dono que falava com eles como se fossem pessoas e companheiros de j

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publicado por picodavigia2 às 18:20

FESTA DA ASSUNÇÃO EM SÃO CAETANO DO PICO

Domingo, 29.12.13

Com o mar a estender-se-lhe em frente e a assumir-se como tapete natural, de um azul aveludado, tingido de bruma e, aqui e além, a salpicar-se de espuma e maresia, e com a montanha atrás, como baluarte de sonhos, de emoções mas também como enigma duma rusticidade evolutiva e retumbante, a freguesia de São Caetano já mais se esquiva à celebração do 15 de Agosto – A Senhora da Assunção. É verdade que a confirmar-se o dogma, estabelecido para clarear o mistério, a Senhora que se assumiu ao Céu em corpo e alma não se arroga, na sua plenitude aparentemente mais convencional, o estatuto de padroeira, que o orago da freguesia desde os primórdios do povoamento da ilha e por influência de colonos italianos, foi, incondicionalmente, atribuído ao Santo que lhe deu nome. Na verdade é crença comum, talvez com ornamentos lendários, que os primeiros colonizadores desta zona situada numa das maiores baías do Sul do Pico, seriam muito devotos de São Caetano, sacerdote de Vicenza, Itália, pelo que o elegeram como padroeiro da localidade, dando, mais tarde, nome à freguesia. Mas com o rodar do tempo e o passar dos séculos, com imposições não litúrgicas e muito menos não teológicas, a festividade da Senhora da Assunção sobrepôs-se à de São Caetano, apagando-a, enfraquecendo-a, quase mesmo a eclipsá-la, ombreando, no entanto, lado a lado com a do Espirito Santo, esta aureolada com costumes e tradições ancestrais, muito sui géneris, e acabou por tornar-se uma espécie de “ex-libris” da freguesia, uma jactância paradigmática e fulgurante, um folguedo religioso, mas amedrontado e retumbante, a marulhar num quotidiano estático e quiescente, em que a freguesia se enraizou e onde floresce.

E a festa mais uma vez desabrocha, na sua simplicidade genuína e pura, sem grandes euforias ou alaridos, anunciada pelos toques tímidos e hesitantes dos sinos. É a festa constituir-se numa espécie de solenidade não solene, causticada, este ano, por intempéries climatéricas, ventos e chuvas que cerceiam o giro habitual da procissão e impedem a “Recreio dos Pastores de São João” de atirar aos quatro ventos os seus acordes, devidamente ensaiados e preparados. Com ela vai-se uma parte do povo, os menos fiéis, os pouco arreigados em costumes e tradições

A chuva tem o condão de alegrar os campos ressequidos mas também de reduzir o percurso processional e alagar os santos, a isto puco habituados. É o descalabro festivo, o desmoronar-se de um projecto, é verdade que ocasional e pouco duradouro, mas emoldurado no sonho sombrio e constante, mas mais uma vez frustrado, de se fazer este ano mais e melhor do que no ano transacto. Acresce à frustração do extermínio festivo, a despedida do pároco – Paulo Areias - que agora se vai entrincheirar em acções pastorais, em terras distantes, no norte da Alemanha, paredes meias com a Bélgica. A substituição implicará, no mínimo, “dois ramos de flores”. E havia de acontecer logo em plena crise.

E no silêncio de uma tarde sem acordes musicais, apenas os choros infantis do Samuel ao sentir sobre a nuca a gélida água lustral ecoaram pelas encostas da montanha silenciosa e coberta de um nevoeiro peçonhento e incomodativo, quebraram o estigma da desolação. O próprio reboliço das favas, dos caranguejos, das bifanas de albacora a solicitarem o sabor do mosto já fermentado de um tinto nascido de entre estas pedras negras e perfumado com o enxofre deste magma basáltico, num cubículo para tal talhado, ali ao lado, se perde entre lamentos de deslumbramento e frustração:

- Este tempo deu-nos cabo da festa!

- Não admira, aqui em São Caetano e por todo o Pico, Agosto é o primeiro mês do Inverno!

 

Texto publicado no Pico da Vigia, em 15/08/12

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publicado por picodavigia2 às 14:34

CONSISTENTE

Domingo, 29.12.13

MENU 21 – “CONSISTENTE”

 

ENTRADA

 

Fettuccine cozido em caldo de legumes, borrifado com mel

Nozes embebidas em creme de queijo fresco com ervas aromáticas

e polvilhado com queijo parmesão ralado

 

PRATO

 

Migas de brócolos e feijão verde salteadas em azeite e alho e temperadas com vinagre

Salsicha de soja grelhada recheada com queijo creme fresco, simples e polvilhada com salsa e ervas aromáticas

Tiras de pimento

 

 

SOBREMESA

 

Pera e geleia de ananás.

 

Preparação da Entrada:

 

Cozer a massa num pouco de caldo dos brócolos ou outro. Ainda bem quente borrifá-lo com uma colher de mel e misturar. Coloca-lo no prato ladeado por pedaços de nozes, passadas pelo queijo creme. Polvilhar com queijo parmesão ralado

 

Preparação do Prato:

 

Separar os o feijão verde e os brócolos em raminhos, lavá-los e cozê-los em água a ferver temperada com alho, durante cerca de 10 minutos. Escorrer e temperar com um pouco de vinagre, esmagar bem e reservar. Cortar pedacinhos de miolo de pão e escaldá-los com água de cozer os brócolos, a ferver. Deixar absorver a água.

Descascar e esborrachar os dentes de alho e salteá-los num tacho com o azeite. Juntar o pão, previamente espremido e os brócolos esmagados e misturar de forma homogénea.

Grelhar a salsicha aberta, barrá-la com o queijo creme e ornar com tiras de bróculos.

 

Preparação da sobremesa:

 

Tradicional.

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publicado por picodavigia2 às 13:41

O DESCANSADOURO DO BATEL

Domingo, 29.12.13

O descansadouro do Batel era, de todos os descansadouros existentes na Fajã Grande, na década de cinquenta, o que se situava num local de maior beleza e de mais plena graciosidade. Na realidade do local onde aquele descansadouro se situava, desfrutava-se de uma das mais belas vistas sobre a Fajã Grande, dado que se encastoava num lugar alto, sobranceiro ao Alagoeiro, a grande parte da freguesia, ao mar e a toda a orla marítima e ainda a uma grande parte da zona além do povoado, desde a Ribeira das Casas até à Rocha da Ponta e à das Covas. Tinha pois o descansadouro do Batel um posicionamento privilegiado, invejável, uma colocação, paisagisticamente, fabulosa, perfilando-se altivo e ufano, sobre quase toda a área da Fajã Grande, com a rocha escabrosa e imponente a servir-lhe de tapume e protecção, com o Monchique e a Baixa Rasa, lá ao fundo, no alto mar e com a extraordinária e rendilhada orla costeira, onde proliferavam baías, caneiros e enseadas, desenhados sobre o baixio negro e lávico, com rendilhados de todas as formas e feitios, transformando-o numa espécie de ex-libris de todos os descansadouro fajãgrandenses.  

Este descansadouro situava-se no cimo da ladeira do Batel, no cruzamento com uma canada que ligava o Batel à Bandeja, num sítio de relvas e de algumas terras de cultivo de milho, de forrageiras e de batata-doce, o que, consequentemente, não dificultava nem obstruía a possibilidade de quem ali se sentasse para descansar, para conversar, para fumar um cigarro, desfruísse da paisagem de sonho e de magia que dali era possível observar.

Na realidade, estrategicamente bem localizado, no alto de uma encosta, no cimo duma ladeira e num sítio bastante alto e largo, onde se iniciava uma canada que dava para a Bandeja, o descansadouro do Batel fora edificado pelos nossos antepassados, sabia-se lá há quantos anos. Mas tratava-se de um descansadouro maravilhosamente belo, enigmático, um espaço rectangular, apenas com uma parede a Sul, junto à qual havia sido construída, através dos tempos, uma ampla bancada feita de pedras soltas, encostadas e encavalitadas umas nas outras. Os homens que ali se sentavam a descansar, quando carregados com molhos, cestos ou sacos, colocavam-nos sobre as paredes do caminho circundante, precisamente do lado em frente ao do descansadouro. Muitos, porém, colocavam os seus carregamentos sobre a própria parede que servia de abrigo ao descansadouro. No entanto, se o vento soprasse de Norte ou de Oeste era praticamente impossível utilizar aquele local para descansar.

O descansadouro do Batel servia os homens que vinham de todas as terras do Sul, na direcção do Alagoeiro e da Fontinha, nomeadamente, Lavadouros, Alagoinha, Mateus Pires. Paus Brancos, Pico Agudo, Pocestinho, Escada Mar e ainda os que vinham da Rocha dos Paus Brancos e do cabeço da Rocha.

Como praticamente todos os outros descansadouros da Fajã, este, actualmente, também se perdeu no tempo e talvez mesmo nas memórias. Dada a sua especificidade e, sobretudo, tendo em conta a vista de que usufruía, poderia muito bem ter sido preservado ou recuperado, mantendo-se, assim, como uma espécie de miradouro, mas também e sobretudo, como testemunho vivo e verdadeiro dos trabalhos, das canseiras, dos carregamentos, dos sacrifícios de todos os nossos antepassados que outrora ali se sentavam a descansar, a conversar, a fumar e, quando tinham disposição e o cansaço lhes permitia, a observar a vista maravilhosa que dali realmente ainda hoje se desfruta.

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publicado por picodavigia2 às 11:02

O AEIOU DE OUTROS TEMPOS

Domingo, 29.12.13

Muitos dos nossos antepassados e uma boa parte das pessoas que na nossa infância eram de avançada idade, na Fajã Grande, por alturas dos anos cinquenta, sabiam ler e escrever, sendo que alguns deles até liam em voz alta, com alguma qualidade, acentuado rigor e boa dicção e escreviam, sem erros e com excelente caligrafia. No entanto, a maioria não tinha chegado sequer a fazer o exame final. É que este, na altura, correspondendo à antiga terceira classe e ao actual terceiro ano de escolaridade, só poderia ser realizado em Santa Cruz, a maior e mais importante vila da ilha das Flores, naqueles tempos. Apenas lá existiam as estruturas necessárias e adequada e o júri competente e capaz de presidir e realizar  tão importante acto, confirmativo da qualidade das aprendizagens efectuadas e das competências adquiridas, pelos alunos, nas escolas das suas freguesias. Assim, nas últimas décadas do século XIX, bem como nas primeiras do século passado, estava interdito à maioria das crianças da Fajã Grande, apesar de devidamente preparadas e com a devida capacidade, realizar o exame final. Para além das despesas que implicava uma estadia tão prolongada em Santa Cruz, a pagar comida e cama a uma criança e a um acompanhante adulto, eram quatro dias de trabalho que se perdiam: dois para realizar os exames, um escrito e outro oral e, outros tantos dias, para as viagens de ida e volta. Assim, as crianças ficavam com as competências, com a sabedoria, com as aprendizagens adquiridas, mas sem o exame, o qual, bem vistas as coisas e para a maioria dos pais, até de muito pouco ou de nada servia.

Muitos conhecimentos e muita sabedoria nos transmitiram os nossos antepassados. Não apenas a adquirida nas aprendizagens escolares mas sobretudo aquela que foi aprendida com trabalho, ou seja, aquela que foi adquirida com a experiência ao longo da vida. E foi sobretudo essa sabedoria e esses conhecimentos, que eles nos transmitiram.

Das aprendizagens, ficaram retalhos interessantes como aquela cantilena com que, na primeira classe, aprendiam e decoravam o AEIOU e que tantas vezes, quando éramos crianças, eles nos repetiam:

“A mãezinha leva já. A,

Belo leite com café, E,

P’ra merenda da Lilí, I,

Que está em casa da avó, O,

A Brincar com a Lulu, U.

A E I O U”.

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publicado por picodavigia2 às 10:31

ADDENDUM (O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR J. MACHADO LOURENÇO – AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU)

Domingo, 29.12.13

POR ONÉSIMO ALMEIDA

 

Não era preciso ser adivinho para prever o que iria acontecer com esta homenagem. Decidi enviar o texto a três dúzias de amigos e antigos colegas, hoje espalhados pelo mundo, e ele despoletou uma cadeia de reacções carregadas de afecto por esse nosso antigo professor, e trazendo-me estórias adicionais. Outras foram-me contadas na minha passagem por Angra, aquando da sessão de homenagem do IAC, bem como no dia seguinte, em Ponta Delgada, num encontro de colegas do meu curso que resolveram assinalar com um convívio os cinquenta anos da nossa entrada para o Seminário Menor naquela cidade, em 1958. Tendo sabido da sessão em Angra, pediram-me que relatasse o que ali se passara e recontasse algumas das estórias que contara na minha intervenção. Obviamente que choveram as lembranças de cada um e o carinho pela pessoa do Monsenhor Lourenço ficou refrão na corrente de sentimento dessa noite de nostálgica alegria. 

De Lisboa, onde trabalha na comunicação social, um e-mail do cónego António Rego  como que deu o mote: “Fui transportado a um mundo fantástico”, revelando o quanto aqueles  idos anos sessenta pertencem a um passado que não só é de outro século como de outro milénio. Optei por, além das estórias novas, reproduzir as passagens que ao Monsenhor se referem pois isso dará uma dimensão mais representativa e alargada da justeza desta homenagem do IAC.

Da sua actuante livraria Culsete, em Setúbal, Manuel Pereira de Medeiros enviou-me um e-mail que, não sendo exactamente sobre o Monsenhor Lourenço, ajuda a criar um enquadramento importante, desenhando uma espécie de contexto temporalizado que permitirá ao leitor compreender melhor a auréola mítica que envolve estes anos 60 (no caso, também ainda fim da década de 50) nuns Açores remotamente isolados do mundo:

Marcou muito o meu curso. O tal curso que marcou muita coisa, como ainda agora foi possível perceber na reunião de 15 de Junho p.p.. Regressado à Terceira estávamos no 5.º ano, fôramos os primeiros alunos de Coelho de Sousa em Português no 3.º e 4.º. No 5.º Português, Inglês e História com Mons. Lourenço. Antes de no 6.º a Literatura com o Cónego José Augusto Pereira. E também no 6.º Filosofia com José Enes e Grego com Cunha de Oliveira. Vês a sequência e a sorte? Percebes o que de mim veio a mim desta sequência? Há mais. Especialmente Simão Bettencourt, de difícil intimidade mas comigo desde o primeiro ano até à sua morte uma grande e riquíssima amizade.

Tenho que ter mão em mim para não encher a tua caixa de correio!!

Vê lá se não há na tua memória atribuída a Mons. Lourenço alguma piada que já andava no ar das aulas n.º 4, 3 ou 10 antes de lá ele entrar...

Do Carlos Sousa, antigo Chefe dos Serviços de Emprego nos Açores e director do muito conhecido grupo musical Belaurora:

Mal recebi o teu e-mail, abri imediatamente o texto e li-o com sofreguidão. Acabei com lágrimas nos olhos. De alegria e de comoção. Bendita a hora em que se lembraram de Monsenhor Lourenço, para o homenagear. […] Também em mim, Monsenhor deixou gravados indelevelmente pedaços de sabedoria, (a pouquinha que tenho foi somatório do tanto que daquele tempo ficou). E, como "a memória é a faculdade de esquecer", espero que em mim só se apaguem no ponto final da vida.

O Januário Pacheco, que durante muitos anos leccionou no Luxemburgo, reagiu num e-mail, enviado creio que de Lisboa:

[…] Tenho muitas saudades do Mons. Lourenço e tenho muita pena de não ter fixado muitos dos seus ditos e anedotas cheias de humor e de sabedoria, como dizes. Nas férias ia muito a casa dele. Era muito simples, acolhedor para todos os vizinhos e familiares. Estou a vê-lo sentado, a saborear o seu cachimbo, entre os seus livros desarrumados. Depois, os afazeres e a revolução fizeram esquecer o muito que o Monsenhor dizia e sabia. Foi pena.

[…] O seu modo de estar com todos, e os pequenos factos que contas no texto definem a sua personalidade melhor do que tudo. E era uma pena as novas gerações ficarem sem os conhecer. Depois de assim escritas e relembradas, vão perdurar.

Até pensei ir à Terceira também para assistir as essas homenagens. Ainda não sei se vou. Vamos ver.

De um e-mail do Nuno Álvares Vieira, que na sua aposentação lecciona no Stonehill College em Massachusetts, e de quem já citara no meu texto um e-mail anterior, retiro a seguinte passagem:

Ainda a respeito do Monsenhor, uma coisa que aprendi dele foi "a arte de se poder falar positivamente de alguém, mesmo quando não haja muito de positivo para se dizer". Sabes onde aprendi isso? Através das recensões que ele fazia de livros na Atlântida. Sem escrever nada de negativo, dava margem suficiente para o leitor se aperceber do calibre de obras de menos qualidade. Assim era a índole bondosa e carinhosa do velho Monsenhor.

O José Luis da Costa Rodrigues, antigo professor de música e maestro de coro num Liceu de Genebra, Suiça, conta:

O Mons. Lourenço interrogava um aluno. Como este não soubesse nada, a chamada consistia em perguntas do Monsenhor. O aluno levantava a cabeça para ouvir a questão, olhava para o livro, levantava a cabeça e saía com o que tinha lido. Nova pergunta mesmo procedimento. A todas as interrogações era um mergulho no livro e uma cabeça que se levantava com uma resposta ao lado. Para acabar com o manejo o Mons. pergunta ao aluno: - Sabe o que tem de comum uma galinha e um aluno que não estuda as suas lições? – Mmm... - Os dois aplicam a palavra do Salmo: De torrente in via bibet, propterea exaltabit caput. Consulta feita: último versículo do Salmo 109.

Na sua gramática inglesa o Monsenhor Lourenço alternava regras em português e regras em inglês. As primeiras destinadas aos alunos do primeiro ano de inglês eram ditas as regras para os "menores de 18 anos" (alusão à proibição de certos filmes aos menores de 18 anos). No segundo ano era abolida essa proibição; daqui em diante tínhamos acesso às regras em inglês como quem pode ver todos os filmes graúdos... 

No refeitório dos "superiores" não sei se o Padre Coelho, o Dr. Cunha, ou o Dr. Enes, um deles, tinha feito um poema que só falava em cruzes. O autor pergunta ao Monsenhor: O que pensa do meu poema? - Penso que estamos diante de um cemitério...

[…] temos todos muitas recordações do Mons. Lourenço cujo humor era contínuo mas sem ofender. 

Artur Goulart, antigo Director do Museu de Évora, bem como antigo Chefe de Redacção de A União, partilhou comigo um importante dado para se conhecer melhor o que se passou num período particularmente duro da vida cultural angrense:

[…] uma bela homenagem [a uma pessoa] de quem tenho óptimas recordações, embora o não tenha querido acompanhar n' A União quando ele foi nomeado director. Achei que me devia solidarizar com o dr. Cunha de Oliveira e, pese embora o pendor humanístico e honesto do Monsenhor, a abertura a outros ventos não se compadecia. Apesar disso, sempre tivemos excelentes relações, como professor, como colega (?), grande companheiro de bridge, de humor fino e inteligente, de inúmeras histórias dos orientes. […] Julgo que também é dele a dos "quatro reis de Israel, que eram três, Esaú e Jacob". E aquela belíssima em latim, que procurei ontem nos meus papéis e não encontrei, referente aos cónegos, e que ele contava mesmo depois de ter sido nomeado tal, que deves conhecer e que acaba por afirmar, uma vez que basta um cónego para constituir um Cabido, que "quanto menor é o número, maior é a besta". Tem piada é em latim.

Do Urbano Bettencourt, poeta e professor na Universidade dos Açores, chegou-me o seguinte:

[… o teu] contributo para o perfil de JMLourenço, uma espécie de retrato em composição avulsa ou fragmentária, que dá conta de um homem cujo mundo, aparentemente, não era daquele reino sorumbático e pesadão do Seminário. O teu elenco é bastante vasto, afinal tiveste-o como professor em três disciplinas. Só o tive em Inglês, para mais naquela idade idiota dos 13-15 anos, mas lendo o teu texto lembrei-me de dois comentários dele. O primeiro possivelmente terá ocorrido também contigo, pois deves ter estudado Inglês pelo mesmo livro ...azul : quando estudávamos o humor de Three men in a boat, de Jerome K. Jerome, ele "dava-se ao trabalho" de traduzir para português... o nome do autor, Jerónimo Kapa Jerónimo, acrescentando logo: quem capa um capa dois.

Numa aula em que andávamos a contas com o "My bonnie is over the ocean / My bonnie is over the sea", um dos meus colegas, já não sei qual,  foi encarregado de ler e talvez levado pela pronúncia de "ocean" foi no balanço e, em vez de "over the sea", leu "over the she". Comentário imediato de Monsenhor Lourenço: "Ora, ora, em cima dela não!"

Tanto um como outro comentário eram coisas altamente improváveis de serem ditas numa aula "eclesiástica" naquela primeira metade dos anos 60. Mas acho que me têm servido também de modelo para algumas "quebras" inesperadas no ambiente das aulas.

João Esaú Dinis, que foi Director da Escola Superior de Tecnologia de Saúde de Lisboa, acrescentou esta estória:

Dele retive o caso de, no Concílio de Mâcon, se ter discutido, duvidado ou, pior, afirmado que as mulheres não teriam alma. Face ao desconforto da história, lá foi [o Monsenhor] explicando: “Pois, os padres da Igreja, num intervalo das sessões, enquanto passeavam para trás e para a frente, pelos corredores, terão comentado entre si do seguinte modo: “Pela maneira como tentam o homem, até parece que as mulheres não têm alma como nós”.

E com tal amenidade, parecia incólume a infalibilidade conciliar.

De Brampton, Canadá, o Eduardo San-Bento Couto, depois de um e-mail apressado, enviou-me no dia seguinte um outro, comovente, em que acrescenta mais algumas estórias pessoais, de diálogos tidos com o Monsenhor Lourenço:

Ontem, a compreensão foi resultado de velocidade de leitura; hoje, foi de meditação. Chorei sem querer, tal a realidade presente dos ditos e situações. Embora tu e eu não compartilhássemos da maioria das aulas com Mons. Lourenço, revi-me em quase tudo o que testemunhaste.

Mas, porque penso que este é o tempo oportuno, ou nunca o será, aqui vão alguns aspectos do Monsenhor, os quais me tocaram e sobre os quais, como tu, ainda reflicto frequentemente:

1.         O seu pasmo perante a pluralidade e relatividades das religiões.

Visitei o Oriente pela primeira vez em 1972; ainda estava bem viva em mim a experiência das vivências de Mons. por aquelas paragens. E então percebi o significado da sua luta romana monolítica perante o monolitismo hindu e budista, e respectivo pragmatismo.

Assim me respondera Mons. com seu algo de sarcasmo perante a minha procura gélida da veracidade:

«Senhor Couto, o baptismo não faz mal a ninguém do mesmo modo como não faz mal o banho da vaca santa ou a refeição nirvânica da última hora» ; respeitar as três visões é um investimento seguro sem consequências negativas».

Aquilo escandalizou-me, embora no fundo tivesse gostado muito da resposta.

                        2. O seu entendimento profundo dos símbolos religiosos. Repara nesta:

«Senhor Couto, o que é mais fácil de aceitar? Comer e beber Deus ou lavar-me na urina de uma vaca? A última é muito mais simples e menos horripilante».

                        3. O cuidado com que lidava com excepções. (Método científico aplicado à pedagogia).

Como eu nunca senti que tivesse liberdade de ter notas baixas, lá ia tentando também exceder-me no inglês.

Nota frequente do Mons. no papel dos 'exercícios': «17 valores. Tudo certo. Deves ter copiado.»

No princípio, eu ripostava; mas Mons. respondia-me: «Não ligues a isso; 17 significa tudo certo; e se copiaste, tanto melhor para ti».

Outros teriam aberto um inquérito...

Onésimo, desculpa-me o arrazoado. Mas és o culpado porque me fizeste reviver coisas bonitas em fim de ano.

Vários outros e-mails me chegaram dos mais diversos pontos do globo. Recordo, com receio de esquecer nomes, os de Manuel Quaresma (professor na Catholic University of America, Washington, DC ), Olegário Paz (que durante décadas leccionou em Lisboa), António da Silva Cordeiro (antigo professor no Seminário, há décadas residente em New Jersey, EUA), Octávio Ribeiro de Medeiros (Vigário Episcopal e professor na Universidade dos Açores), Gualter Dâmaso (da Açortravel), José Gabriel Ávila  (ex-RTP-Açores e bloguista), todos em Ponta Delgada, e Afonso Carlos Rocha (Reims, França) . O jorgense José Manuel Melo (gerente bancário aposentado, também em Ponta Delgada), evocou o seu “antigo e sempre recordado professor”, acrescentando que numa festa de S. Tomás de Aquino foi declamador de um poema de Mons. Machado Lourenço – “’Ao Anjo das Escolas’ – escrito de pronto para o acontecimento” . De Toronto, o José Carlos Rodrigues, advogado e antigo maestro do Orfeão Edmundo Oliveira, de Ponta Delgada, fez também uma emocionada evocação de J. Machado Lourenço num e-mail que por acidente perdi.  De Oakland, Califórnia, uma  carta do Fr. Joe Ferreira refere a memória benquista do saudoso Mons. Lourenço, de quem guardo as melhores recordações, sobretudo pelo incentivo que me dispensou nas minhas inclinações jornalísticas”.

Um autêntico gentleman, bondoso e com um fino senso de humor. Tive sempre por ele a mais profunda admiração.

Na sequência da longa conversa com o Heriberto Brasil, pedi-lhe que passasse à escrita as estórias que me contou. Fez o favor de aceder ao meu pedido e, de um e-mail seu, seu extraio as que se seguem:

Quando Monsenhor Lourenço chegava à sala de aula, após a oração inicial (Hail Mary, full of grace…), ia-se sentando vagarosamente. Era o momento esperado ansiosamente pela turma porque, geralmente, saía estória ou dito humorístico. 

As estórias ou ditos que se se seguem foram contados por ele no início de algumas aulas.

Certa vez, estavam Monsenhor Lourenço e o Sr. Cónego Jeremias Simões a pescar no porto das Cinco Ribeiras. Nisto, o Sr. Cónego Jeremias sente uma “ferrada” no anzol e levanta o caniço com tanta violência que o peixinho, que vinha mal preso, desprendeu-se e caiu ao mar.

O Sr. Cónego Jeremias, entre o entusiasmo e a frustração, volta-se para o Monsenhor Lourenço e exclama:

- Viu! Viu!

Ao que o Monsenhor respondeu:

- Vi, vi, o seu caniço vir sem nada para cima!

O Cónego Jeremias não achou piada nenhuma, enquanto o Monsenhor se fartava de rir.

Depois que o Senhor Padre Roberto, pároco de Santa Bárbara, herdou (de forma considerada um tanto ou quanto manhosa) os bens do Senhor Padre Joaquim, pároco de São Bartolomeu – caso que estava sendo muito comentado – Monsenhor Lourenço despeja esta, com um sorrisinho de malícia:

- Ora, ora. O Pe. Roberto herdou o Pe. Joaquim. Mas a mim na’m’herda [nada]!

Certo dia, após o momento de humor inicial, levámos muito tempo para serenar e estávamos a pisar o risco.

Logo o Monsenhor Lourenço admoestou:

- Ora, ora. Eu gosto de contar estas coisas para criar um ambiente alegre. Mas depois quero toda a gente em silêncio e com atenção. Porque eu já tenho dito que dou um nove a rir, um oito a rir muito e um sete a chorar de rir.

Numa certa aula, dissertando sobre o comportamento que devíamos ter quando fôssemos padres, afirmou:

- Sim, porque havia um indivíduo que costumava dizer: “Há uma classe de pessoas que só merece pancadas. É a classe que usa saias – mulheres e padres”.

E acrescentou:

- E olhem que tinha certa razão!

Uma das estórias que contou, do seu inesquecível Oriente, foi esta:

- Eu fui acompanhar o Dom José da Costa Nunes, como secretário dele, numa das suas visitas a uma diocese sufragânea de Goa. Como estava um calor insuportável, o Dom José não levava calças por debaixo da batina. Íamos numa carroça. De repente, o cavalo dá uma guinada e o Dom José cai de costas, no fundo da carroça, ficando a espernear, sem calças.

E ria muito, recordando o ridículo da situação.

O Padre Cipriano Franco lembrava-se de uma narrativa que o Monsenhor fizera do naufrágio de um barco em que viajava. A grande maioria dos passageiros saltou para a água, mas José Machado Lourenço não. E justificava-se:

- Se hei-de ir acabar na água, ela que venha ter comigo!

O Carlos Joaquim Fagundes, há décadas a leccionar no Norte de Portugal (Paredes), enviou-me um longo e-mail com estórias adicionais, que alguma delas indesculpavelmente eu omitira. Ele escreve:

Recordo-me praticamente de tudo o que referes na tua alocução, excepto daquele do D. Pedro V, em que sou protagonista. Lembro-me sim uma aula de História da Igreja, em que ele abordou o papado de Alexandre VI. Eu lera na Biblioteca (infelizmente ia lá poucas vezes, mas para tal também não era motivado), algo sobre esse período, e perguntei-lhe: - Monsenhor, não nos vai falar do “Baile das Castanhas”? Ele sorriu muito simpaticamente, como era seu hábito e respondeu: - Bem, isso fica para a aula de Ballet. – e continuou a lição.

Entre os célebres silogismos dele, lembro-me de um outro que não referes: “A água mata a sede; o peixe salgado tem água, logo… o peixe salgado mata a sede.”

Era também muito frequente nele, perante qualquer postulado não aceitável, a expressão “ ou isto ou aquilo é assim ou então a lógica é uma batata”. Frequentemente, perante uma negativa que alguém tinha ou por outra qualquer contrariedade que lhe era referida, ele tentava acalmar o sofredor, com este dito: - “A meu pai nunca morreu nenhuma vaca. Ele não as tinha.”

Uma questão de “alta metafísica” que ele levantava muitas vezes, era a do “ovo”: - “Uma galinha põe um ovo no Pico. O ovo vem para a Terceira onde nasce o pinto. Donde é natural o pinto?  Do Pico ou da Terceira? Creio que se referia a isto porque ele próprio ou alguém da família dele fora concebido no Pico e nascera na Terceira.

Deves recordar-te de um outro episódio muito interessante. Antes da aula começar, ficávamos todos em pé. Ele rezava, em Inglês, a Ave Maria e nós, em coro, retorquíamos com a Santa Maria, também em Inglês. No fim ele dizia: Mother of God. Nós respondíamos: -  Pray for us. Só então o Monsenhor dizia: Sit down, please! e nós sentávamo-nos de imediato. Certo dia, o Monsenhor esqueceu-se da invocação à Mãe de Deus e, a seguir à Ave-Maria, disse Sit down, please! Todos nós permanecemos em silêncio, excepto o José Maria Bettencourt, que estava distraído e muito convicto, retorquiu: - Pray for us. - Amen. – respondeu Monsenhor com uma tranquilidade e uma simpatia desusadas.

Também me lembro que contava muitas histórias do padre Himalaia, das suas experiências e invenções. Numa outra aula alguém estava a mascar chiclet. O Monsenhor muito sério e sempre a olhar para o livro assim que teve oportunidade, com voz indecisa como quem não sabia ler: - “… mascando… mascaaaaannnnnndo… Ah! Mas quando….” (e continuou serenamente a leitura).

Certo dia saiu-se com esta: - O sacristão da minha freguesia tem ideias muito avançadas sobre a Eucaristia.” Alguém lhe perguntou “porquê” e o Monsenhor respondeu: - Então não é que o outro dia eu ia celebrar missa e tinha-se acabado o vinho. Eu perguntei-lhe: - Então e agora? Como vai ser? Ao que ele respondeu: - Não há problema. Vou ali ao botequim do Mendes e trago-lhe um copo de bagaço.”

Era de facto uma simpatia e confesso que tive sempre uma enorme admiração por ele, sobretudo pela sua cultura e pelos seus dotes literários.

 

No final da sessão no IAC, o Padre João de Brito Carmo, que tem dedicado tanto do seu tempo ao estudo do folclore terceirense, lembrou-me uma história que se tornara, aliás, proverbial entre nós. Numa aula de inglês, o Monsenhor fazia exercícios de retroversão com os alunos do seu curso. Pediu então ao hoje Padre José Constância que traduzisse para inglês a frase: Eu amo-o. O Constância avançou: I love… mas, titubeante, estacou. O Monsenhor insistiu no complemento directo: Eu amo-O! E o Constância: I love… you.

O Monsenhor: - A mim não que já estou muito velho!

 

No referido encontro em Ponta Delgada, o José Adriano Borges Carvalho, advogado na Praia da Vitória, recordou uma que também se tornou famosa. Era comum o Monsenhor pedir que enunciássemos os verbos, sobretudo os irregulares: - To be? - To be - was - been. - To do? - To do - did – done. - To go? -  To go - went - gone. - To set? - To set - set - set. De uma vez, voltou-se para um aluno e pediu-lhe a enunciação do verbo to put. O aluno, reflectindo a nossa dificuldade em pronunciar o u suave, exagerou e pronunciou algo como To pât – pât –pât. 

O Monsenhor corrigiu:  - Não tenha medo de dizer put, que em inglês não quer dizer nada!

O José Francisco Costa, professor no Bristol Community College, em Fall River, onde dirige o LusoCentro, recordou a hilariante cena do Monsenhor Lourenço numa aula em que lhe vimos sair fumo do peito. Tinha posto na algibeira do casaco o cachimbo, seu companheiro habitual, mas sem estar completamente apagado. O José Costa fez entretanto acompanhar a evocação desse divertido episódio de um poema que aproveitarei para fechar este memorial como mandam as regras – isto é, com chave de ouro -, se bem que naturalmente ainda muitas outras lembranças e estórias vão surgir à medida que esta homenagem for chegando ao conhecimento de outros antigos alunos . Eis então o poema:

 

Naquele meu tempo, “Monsenhor”

só rimava com “Lourenço”.

Sábio. Terno. Avô universal,

a mim em tanto tão igual

que até fumava de um cachimbo que, um dia,

em plena aula, se reacendeu por dentro do casaco…

E ficou-me, indelével imagem,

um rosto de serenidade,

perfil de natureza humilde,

olhar inclinado entre a terra e o céu.

Sem pressa para viver mais,

ou acabar os dias mais cedo.

Monsenhor Lourenço, mestre

de quem aprendi a maior lição:

saborear a memória dos que me ensinam a vida.

 

(Em “Matinas”, depois de ler as “Laudes” do Onésimo)

           

                                                                       Onésimo Teotónio Almeida

                                                           Providence, Rhode Island 31 de Dezembro de 2008

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publicado por picodavigia2 às 09:58

O VERBO E A VERVE DE MONSENHOR J. MACHADO LOURENÇO – AULAS QUE O VENTO NÃO LEVOU

Domingo, 29.12.13

POR ONÉSIMO ALMEIDA

 

Começarei esta minha intervenção expressando o prazer muito especial que para mim foi receber este convite. Poderá parecer estranho se lhes disser que não gosto muito de escrever. Costumo mesmo dizer que gosto sim é de ter coisas escritas. Mas quando me chegou este convite do IAC aceitei-o com júbilo. Na verdade, há muito que pensara registar por escrito as estórias do Monsenhor Lourenço fazendo-lhe assim a minha homenagem de antigo aluno perpetuando-lhe a memória em registo de ficar. Palavras leva-as o vento, como todos bem sabemos. Nas suas aulas ele lançou muitas ao vento, mas não poucas ficaram na memória dos alunos. Eu queria fazer a minha parte: pô-las no papel. Daí o júbilo ao surgir-me esta ocasião.

Fica implícito neste meu parágrafo introdutório que não venho fazer qualquer balanço nem biográfico do saudoso Monsenhor Lourenço, nem sequer um balanço literário da sua vasta obra, que aqui apenas referirei de passagem. Pura e simplesmente procurarei servir de intermediário, mero gravador que ouviu da sua boca estórias e apartes, comentários irónicos fora-de-página que me parece não se dever perder. Marginália pura. Obviamente que não esconderei a intenção ou a tentativa de procurar revelar uma faceta não-transparente para quem não conheceu o Monsenhor Lourenço de perto e que dele tem agora apenas os seus escritos. Destas minhas recolecções sairá naturalmente um retrato, que reconheço parcial. Antecipo-me a frisar que não pretende ser mais. Direi mesmo: é um retrato captado da oralidade das aulas, já que me sentei muitos anos nos bancos de aluno com ele como professor tanto de Inglês como de História Universal e História Eclesiástica.

Aliás, um magnífico e sintético retrato do Monsenhor foi elaborado com mestria por um outro aluno seu, meu antigo colega e hoje companheiro de diáspora, o florentino Nuno Álvares Vieira. Quando lhe disse que viria a Angra com esta missão, respondeu-me com o seguinte e-mail:

Encheu-me de emoção saber que tu ias ou vais falar numa homenagem ao Mons. Lourenço. Ainda mais emocionado fiquei por saber que tal homenagem estaria nas tuas mãos, pois sei através dos teus escritos que tu és um admirador do velho sábio - intelectual diversificado, historiador, teólogo sem ser de grandes beatices - batia uma só vez, de mão leve no peito, para dizer "mea culpa", escritor, poeta (até as musas o inspiraram a escrever versos bonitos à rainha das festas da cidade), bom terceirense (amigo da sua terra), humorista, calmo, observador, bom medidor das proporções, compreensivo, altamente humano, etc. etc. Mais do que alguém poderia pensar - nada lhe passava desapercebido. Nada! Não te esqueças de quando dizia que os ministros do antigo governo asseguravam o povo de manter as suas petições debaixo de olho: sentavam-se sobre elas.[1]

Tivesse eu o talento de James Boswell e escreveria, aposto, uma versão moderna de The Life of Samuel Johnson, tantas são as estórias que ao longo dos anos os seus alunos foram acumulando na memória. Não fiz qualquer pesquisa entre os colegas para esta ocasião. Socorro-me apenas da minha memória e, nalguns casos, das minhas sebentas, pois fosse eu pesquisar entre todos os seus antigos alunos e veriam que não exagero comparando-o com Johnson.

O Monsenhor Lourenço repetia, aliás com muita frequência: As minhas aulas são de cultura geral. E tanto assim era que delas foi o que melhor se me colou na mente: os seus ditos, as suas estórias tão cheias de sabedoria, a que ao longo dos anos tenho recorrido para ilustrar as mais diversas ideias. Há um livro americano intitulado Everything I Needed to Know in Life I Learned in Kindergarden, pois sem desprimor para o magnífico corpo docente que tive a sorte de me acompanhar no Seminário de Angra, poderia também eu dizer que muito do que necessitava na vida aprendi nas aulas do Monsenhor. Na verdade, os seus ensinamentos eram, mais do que dados, factos, ou peças epistémicas (para usar o jargão corrente), autênticas pérolas de sabedoria – e por sabedoria aqui eu refiro-me à mais clássica sofia dos gregos. Assim o avaliámos desde cedo e, por isso, quando a propósito do Centenário do Seminário em 1962 eu escrevi uma paródia parcial d’ Os Lusíadas em que figuravam como deuses do olimpo todos os professores do Seminário, escolhi para o Monsenhor Lourenço a figura de Saturno. No final do panfleto, numa “Tabela dos deuses”, eu explicava: “Saturno: Monsenhor Lourenço – Paz e abundância na idade de ouro”.[2]

Era assim que o entendíamos, uma espécie de avô livre e magnânimo que ensina os netos sobre a sua experiência com uma atitude livre, uma dose de candura e uma certa bonomia que se fixam indelevelmente na memória deles, colando-se-lhes também ao coração.

Aludi à obra literária do Monsenhor Lourenço e adverti que não me iria debruçar sobre ela. Não é de facto essa a minha intenção. Conheço-a e posso dizer que a li toda nos anos sessenta. Mas ela é do domínio público e prefiro aproveitar esta oportunidade para complementá-la com uma faceta da obra não escrita. No entanto, constato que não posso deixar completamente de referir também a escrita, cujos títulos recordo na íntegra quase por ordem de publicação, porque cada livro trazia a lista das obras publicadas e eu, que sempre tive, não sei porquê, uma pecha para os livros (escrevi sobre isso uma crónica intitulada “O meu último fetichismo”[3]), admirava a produtividade do meu professor, mesmo se já naquela altura os versos de À Mãe do Amor, Aleluias da Alma, ou Lusa Estrela e, mais tarde, de Benedicite, me pareciam demasiado datados no mundo clássico em que o Monsenhor sempre gostou de viver, e o fez assumidamente, nunca escondendo as suas preferências políticas de católico, apostólico, português (para mais monárquico) e, em literatura, poeta da velha escola. Nunca isso, porém, deu azo a que fosse ostracizado ou hostilizado por uma juventude que vivia fascinada com o novo e voltada toda para o mágico e revolucionário futuro.

A sua novela Vitória era assim como que um rito de passagem obrigatório. Lia-o quem começava a entrar nos dilemas da idade de se descobrir o outro sexo. Conta a vida de um seminarista do Seminário de S. José de Macau, com estórias muito parecidas às nossas de Angra. Por lá os seminaristas não eram conhecidos por “melros pretos”, como em Angra, mas a sua situação era semelhante. De uma vez, num jornal local, apareceu um comentário de um anticlerical referindo o facto de num jardim da cidade só ter visto suínos e seminaristas. Reagindo em verso, alguém que parece ser o próprio Machado Lourenço, pergunta: se àquele jardim só iam suínos e seminaristas e o autor daquele comentário não era seminarista, então era o quê? Mas nessa novela o clímax era a descrição de uma ida do protagonista (o autor? seria autobiográfico esse livro? nunca o pudemos apurar) a Hong Kong para consultar um dentista especializado e que na viagem de barco se reencontra com uma jovem que por ele vivia apaixonada mas até ali sem ele saber. A tensão dramática adensa-se e, perto do final, há uma castíssima cena de beijo, na altura de tão explosivo efeito que os mais velhos e sabidos, os que nos recomendavam a leitura, esperavam pela nossa reacção: - Já chegaste à página… não sei qual agora, que para aqui trago tudo do saco da memória dos anos sessenta sem consulta aos livros que infelizmente perdi nas múltiplas andanças da vida.[4]

Li também as obras de etnografia:  O Romance de um Malaio e Por Terras do Sagrado Ganges, bem como o Beato João Baptista Machado – Mártir do Japão, Prémio João de Barros, da Agência Geral do Ultramar, que na altura me encheu de orgulho. Era o reconhecimento de um autor dos Açores, para mais meu professor. E o prémio não era desprezível: 15 mil escudos, se bem me lembro.  Havia um capítulo sobre “Goa Dourada”, o quarto creio eu, com uma descrição romantizada, altamente idealizada e mítica mesmo, da Roma do Oriente. Teria irritado Edward Said - se o autor de Orientalism lhe conhecesse a existência, talvez o citasse como exemplo da mitificação ocidental do Oriente. Mas o dito capítulo terá afinal tido alguma razão de ser por razões que adiante aduzirei. Orgulhei-me igualmente quando descobri que a Enciclopédia Luso-Brasileira (que eu consultava amiúde na velha biblioteca do seminário quando com um pequeno grupo de colegas lá trabalhava como voluntário sob a orientação do dr. José Enes) incluíra uma entrada com o nome do Monsenhor, ainda que lhe dedicasse apenas duas linhas. Ainda esse mesmo orgulho interior eu senti ao saber que as suas Regras de Gramática da Língua Inglesa, por onde nas suas aulas aprendemos inglês, eram também usadas no liceu. E, se não li o livro Os Lusíadas - Poema Católico, foi simplesmente porque o havia lido em artigos à medida que iam saindo na revista Atlântida, que ele dirigia. Mas voltemos ao tema de que prometi ocupar-me.

Os seus apartes eram lendários. Saíam-lhe com uma naturalidade assombrosa. De certa vez, numa prova oral do primeiro ano de Inglês perguntou ao António Filomeno Maia qual era o presente do indicativo do verbo to be. Nervosíssimo, o Filomeno gaguejou: I bee, you bee, he bees… E o Monsenhor: Pois, pois… Eu abelha, tu abelhas, ele abelha.

Noutra ocasião, ouviu-se na aula o ruído de um avião. Os alunos mais próximos da porta para o jardim, que estava sempre aberta, esticaram o pescoço para ver melhor. O Monsenhor: Ok, não distraiam o aviador.

Tinha uma predilecção por estórias que envolviam incongruências lógicas. Uma das suas clássicas era a dos grilos do padre Patagónia. Guardava-os o padre numa caixa de fósforos e todos os dias ia alimentá-los. Uma manhã, ao abrir a caixa, não os encontrou. Conclusão do padre Patagónia: Comeram-se um ao outro.

Entre essas predilectas incongruências lógicas figuravam os famosos silogismos que não apresentava como seus. Aliás, não reclamava nunca originalidade nas estórias que contava: Tudo o que é raro é caro

Um cavalo bom e barato é raro.

Logo um cavalo bom e barato é caro.

Outro exemplo de incongruência era o silogismo:

Quanto mais se estuda, mais se sabe;

Quanto mais se sabe, mais se esquece;

Quanto mais se esquece, menos se sabe;

Quanto menos se sabe, menos se esquece;

Quanto menos se esquece, mais se sabe;

Logo, não vale a pena estudar.

O inglês era, segundo ele, uma língua estranha sem lógica correspondente na nossa gramática portuguesa.  Uma palavra lê-se Roma, escreve-se Jerusalém e significa Jericó.

Em determinadas matérias controversas comentava: Sobre esta questão, as opiniões dividem-se. Há os que dizem que sim e os que dizem que não. Os que dizem que sim afirmam, os que dizem que não, negam. Eu não digo nem uma coisa nem outra, antes pelo contrário.

As estatísticas, como as demais modernices, mereciam-lhe gracejos. Não acreditem nas estatísticas! Um homem come dois pães e outro não come nenhum, e vai as estatísticas dizem que cada um comeu um pão. Emparceirava, pelo menos aqui e não só, com Benjamin Disraeli, segundo quem havia lies, damn lies and statistics.

Ainda como exemplo de incongruências paradoxais, contava aquela história de um homem que quis habituar o seu cavalo a viver sem comer, mas teve pouca sorte. Foi aos poucos cortando mais e mais a ração do animal e, quando o cavalo já estava mesmo quase habituado a viver sem comer, morreu.

Nesta ordem de ideias, contava a do homem que foi votar e encontrou um amigo:

- Para onde vais?

- Vou votar.

- Em quem?

- Em Fulano.

- Então vamos para casa. Não vale a pena perdermos tempo. Eu ia votar por Sicrano! – que era da oposição.

Não era nenhum exemplo de pedagogo aggiornado, o Monsenhor Lourenço. Usava nas aulas os antigos métodos, que lhe pareciam mais eficientes do que as novidades pedagógicas, e advogava-os igualmente para a religião. Queixava-se dos métodos modernos de missionação que faziam apenas pesca à linha, obtendo uma conversão de cada vez, ao contrário dos antigos que pescavam cristãos à rede, em massa.

Muitas vezes lia monotonamente do compêndio e eu confesso que foi nas suas nas aulas de História Eclesiástica que devorei todos os quatro volumes de Un Periodista en el Concilio, do padre jornalista espanhol José Luís Martín Descalzo que admirava muito como repórter do Vaticano II. Fazia-o alegando juvenil e parvamente que a história contemporânea da igreja relatada por Martín Descalzo era mais importante que a do Manual de História Eclesiástica, de Bernardino Llorca S. J.. Para tal, tive sempre a cumplicidade de colegas que me encobriam e, com as suas costas me ajudavam a esconder dos olhares do Monsenhor. Ou julgar esconder, porque afinal não era possível iludi-lo. Olho de rato, era muito sabido e conhecia a psicologia humana muitíssimo bem. Não raras vezes atirava a sua piada, mas nunca protestou.

Não gostava de chamar os alunos a exporem a lição. Como que tinha rebuço em apanhar alguém em flagrante impreparação. Contava a história de um professor que tinha idêntico problema e acabava chamando à lição quem acontecia cruzar olhares com ele. Os alunos, tendo-se apercebido disso, um dia ficaram na aula todos de cabeça baixa deitada sobre os braços cruzados em cima das carteiras. Ele ficou quieto e em silêncio, como a aula inteira. Passados vinte minutos de desconforto da rapaziada, um aluno espreitou pelo canto do olho e o professor captou-lhe o olhar: Exponha você a lição. O Monsenhor resolvia o seu problema usando uma latinha, e chamava um aluno para ir tirar um número à sorte.

Havia algo dele mesmo na história que contava do professor que estava a examinar um aluno que não sabia nada. Perguntava-lhe por exemplo qual a capital da França. O aluno, moita. O examinador dizia: Paris. E pedia: Repita lá! E o moço repetia. E por aí fora. A cada pergunta sem resposta, o examinador acabava dando-a ele próprio, mas exigia que o examinando a repetisse de seguida. No final, deu-lhe um dez, a nota tangente da altura.

Como? – atalhou o examinador assistente. - O rapaz não sabia nada.

- Não sabia, mas ficou a saber.

- Mas ele não sabe mais nada!

E da bonomia do homem veio a sentença salvadora:

- Sobre o que não lhe perguntei não posso ajuizar.

Era muito parco nas notas. Dizia que só dava notas de porco – 9/10. Explicava que 20 era para Deus, que sabe tudo. 19 para o professor. 18 seria para um aluno que soubesse tanto como o professor mas não pode ter a mesma nota por ser aluno. 17 era para o melhor aluno da aula, que aliás rarissimamente dava a alguém.

A propósito da atribuição de notas, há uma história que uso com frequência aplicando-a a situações diversas da vida. Às vezes o Monsenhor corrigia testes na aula. Estava um dia a fazê-lo e ia comentando em voz alta. Chegou ao fim de um a que deu um 9. Começámos a torcer para que desse um 10: Monsenhor, quem dá nove dá 10. E o Monsenhor: Pronto. Lá vai 10.

Entusiasmados com o bom sucesso, começámos a pedir: Quem dá 10, dá 11! - e o Monsenhor cedeu e subiu a nota. E o fomos prosseguindo a ponto de a classe entrar em delírio quando se atingiu o 17. Ainda assim, continuámos a incitá-lo a ir mais longe: Quem dá 17, dá 18. O Monsenhor achava que isso era ultrapassar a sua proverbial escala e parou. Bom, vamos lá a ver: que nota é que eu tinha dado no início? E todos em coro: 9! Ele, sempre muito sereno: Ah! De 9 para 18 a diferença é muito grande. Fica o 9.

Achei sempre espantosa esta estória como exemplo de se esticar demasiado a corda das normas e princípios. É sempre possível argumentar em favor de um pequeno jeito ou ajustamento a uma situação, mas isso só pode fazer-se até um certo ponto. Há que draw the line, como se diz em inglês. Em questões de ética, tanto em aulas como na vida real, tenho recorrido inúmeras vezes a esta sapientíssima e pedagógica – diria mesmo salomónica - decisão do Monsenhor Lourenço. O meu grande amigo Eduíno de Jesus lembrou-me que na antiga Retórica a memoratio não significava “decorar”, mas sim reunir coisas de memória para ilustrar. Nesse capítulo, o Monsenhor Lourenço tem sido para mim uma verdadeira Fonte de Hipocrene.

Logicamente incongruentes eram as histórias do ingénuo Caldas Aulette, autor de um famoso dicionário, de que contava muitas, mas que – confesso – confundo por vezes com as que contava do famoso Dr. Assis, celebrada ingénua figura coimbrã da viragem para o século XX[5]. Um dia ofereceram (creio que ao Dr. Assis) uma bonita bengala. Na rua alguém a elogia e ele reage:

- Sim, muito bonita. Só é pena ser muito grande.

- Por que não a corta?

- Porque, se cortar, vou eliminar a parte mais bonita, que é este belo castão.

- Pois corte-a por baixo.

- Não, que ela fica grande é em cima!

Eram muitas as estórias que contava do Dr. Assis. Recordo uma das suas charadas: Contrário do princípio em francês; muito apreciado na mulher, com cedilha. Dá a primeira cadeira na Universidade: Finanças. Isto é, a cadeira que ele, Dr. Assis, leccionava.

Havia nele um sentido pragmático algo inglês. E muito humor nessa cultura cultivado. Na cultura popular da sua Terceira também abunda o humor[6], mas deve tê-lo alimentado sob a influência da cultura inglesa que conhecia muito bem. Privilegiava o raciocínio pragmático e era avesso a elucubrações abstrusas. A gente lê uma frase e não entende, conclui: - Burro eu! Lê-se outra vez. Não entende? Burro eu ou burro tu! Lê-se uma terceira vez e, se ainda não se entende, Burro tu!

Uso inúmeras vezes esta estória nas minhas tiradas contra o uso pedante do jargão académico. Servi-me dela como fundo num conto do meu livro (Sapa)teia Americana a que dei mesmo o título de “Burro Eu!”

Outra:Um homem vai a uma corrida de cavalos e o cavalo X ganha a corrida. O apostador conclui: - Foi sorte. O cavalo ganha nova corrida e ele concluiu: - Coincidência. O cavalo ganha a terceira corrida e ele aposta no cavalo.

Eram muitas as suas máximas:

O bom soldado nunca deve perder a cabeça. Se não, onde é que há-de pôr o capacete? E as suas observações do género: A maior invenção da História diz-se que foi a roda. Não. Foi o botão. Imaginem o que lhes aconteceria nas calças se não fosse o botão! Como fechariam a braguilha?

Ou esta outra: O bom soldado deve dar o sangue pela pátria até à penúltima gota; a última é para fugir.

Entre nós, vários dos seus ditos se transformaram em expressão corrente, como aconteceu com uma saída sua. Explicava-nos:

-          O Sr. Reitor veio dizer-me que esta aula é secundária e acaba a 18 de Março. Devo dizer-vos que recebi a notícia não só com resignação mas até com entusiasmo.

Uma dos seus conselhos irónicos era supostamente o de um lente de Coimbra, que recomendava aos alunos a lavagem frequente dos pés. Não calculam o prazer, o alívio que se sente nos primeiros quinze dias depois de lavados.

Havia ainda os seus àpartes quando ia lendo o compêndio em voz alta. De uma vez, era o referido Manual de História Eclesiástica: “Porém, ao querer pôr-lhe a coroa, Napoleão tomou-a em suas mãos e pô-la em si mesmo, coroando logo a seguir a sua esposa.”

Comentário do Monsenhor:  Hoje as esposas é que coroam os maridos!

A ler um texto sobre a Índia portuguesa: “O grosso das tropas que até há pouco havia na Índia é descendente dos antigos europeus que se conservaram até hoje com sangue europeu puro” – e o àparte:  … a não ser um ou outro que se tingiu, mas por… contrabando.

Sobre uma passagem que referia camelos, comentou: No Oriente, camelos são aqueles que se casam.

Tinha o que se chama a resposta sempre na ponta da língua. As saídas surgiam-lhe com frequência em trocas com os alunos. Sirva de exemplo uma sobre bastardos, a que chamava “filhos de trás da porta” (bastardos):

- D. Afonso IV é talvez o único rei de quem não se conhecem filhos bastardos.

O Carlos Fagundes interrompe:

- E D. Pedro V?

- Esse não teve tempo, coitado.

Na última aula do período pedíamos-lhe uma vez que nos desse um feriado:

 - Não pode ser – disse ele e apontou para as salas ao lado. Estamos rodeados de graúdos: o reitor, o prefeito de estudos… É   perigoso.

Eu intervim:

- Ó Monsenhor, na aula anterior o dr. José Nunes, que foi reitor no ano passado, deu só um quarto de hora de aula.

E o Monsenhor:

- Por essas e por outras é que ele saiu.

De outra vez estávamos à procura de uma dispensa de um exercício escrito (ou tema, como chamávamos os pontos).

- Monsenhor, esta semana já temos quatro!

- Tudo de História?

- Não, senhor: um de Direito, outro de Moral e outro de Dogma, mais agora este.

- Bom, se os outros decidirem não fazer o seu, eu sou capaz de fazer o mesmo.

Noutra aula, lê:

- O rei podia depor um bispo-conde. Ou um arcebispo-bispo-conde.

Interrompi:

- Monsenhor, li num livro que o antigo arcebispo, bispo-conde de Coimbra chamava-se D. Ernesto e os estudantes chamavam-no o ABCDE.

O Octávio atalhou: 

- Ele já morreu!

E o Monsenhor:

- Ah! Então tem mais uma letra: F – Falecido.

De uma vez, na aula número 10 entra um aluno vindo de outra sala. Pede autorização para procurar um ponteiro que faltava na sua sala. O Monsenhor autoriza-o. O aluno percorre os cantos da sala e, sem êxito, desiste:

- Não encontro ponteiro nenhum - e saiu.

E o Monsenhor:

- Eu cá tenho o meu comigo.

Outros ditos famosos eram: Há dois tipos de profetas: os maiores e os menores. Os maiores são os que acertam sempre;  os menores, são os que nem sempre acertam.

De vez em quando, na sequência de qualquer referência à França, acrescentava: … a filha mais velhaca, perdão, mais velha da Igreja…

Eram várias as suas estórias parlamentares:

Um padre-deputado falava no Parlamento e entra uma pomba na sala. Um deputado, conhecido por aparecer frequentemente bêbado, comenta alto: - Lá vem a inspiração do Espírito Santo! O padre deputado riposta: - Não. É a pomba que vem à procura do borracho![7]

Outro deputado afirma de punho cerrado e com veemência:

- Eu cá só tenho um partido!

Da bancada da Oposição respondem-lhe:

- Esteja calado, se não parto-lhe o outro!

Mais uma ainda da sua série sobre o Parlamento:

Um deputado: V. Ex.cia dá uma no cravo, outra na ferradura!

Outro deputado: Porque V. Ex.cia não pára quieto com o pé.[8]

Ainda outra figura política preparava uma intervenção para ler no Parlamento anotando na margem do seu discurso: Argumento fraco. Ler mais alto.

Eram inúmeras as estórias locais.

Contou, por exemplo, a propósito de uma famosa gralha num anúncio de venda de colchões em frente ao Paço Episcopal, a do visconde que telefonou ao director de A União, Dr. Cardoso do Couto, por causa de uma notícia que saíra, por sinal da mesma forma que tinha entrado na redacção: Fulano [ele, o visconde], vende uma égua e os arreios por lhe não servirem.

O Dr. Brasil, conhecido agnóstico de Angra, dava consulta gratuita aos pobres. Era comum agradecerem-lhe com a popular expressão Nosso Senhor lhe pague! O médico respondia: Não quero contas com ele, que é muito caloteiro!

O dr. Valadão (“Velho”) estava a aprender a conduzir. Nervoso, viu ao longe uma vaca e avisou o instrutor: Eu vou dar na vaquinha, eu vou dar na vaquinha! E deu mesmo. Vira-se para o instrutor: Eu não disse?

 

A mesma figura, na aprendizagem de condução com o instrutor a avisá-lo: Páre! Páre! O Dr. Valadão bate com o carro contra a parede. E o instrutor: Assim também, pára; sai é mais caro!

Numa freguesia da ilha havia uma rapariga que não era das melhores coisas que tinham vindo a este mundo. Um dia o marido parece que deu uma cabeçada e partiu os cornos. Diz-lhe ela: Calma! Daqui a dias nascem outros. Antes tê-los inteiros do que tê-los partidos.

Conservador assumido[9], não se poupava a emitir os seus comentários críticos ao que à sua volta ia vendo. Um dia, referindo-se a um nosso colega de curso que encontrou sem colarinho na rua, disse:

- Há dias encontrei na rua o José Manuel Franco. Fiquei sem saber se ele tinha desistido, ou se aquilo era o Concílio.

O Varão pediu dispensa no início da aula, prática comum quando um aluno por qualquer motivo não tinha podido preparar a lição do dia.

O Monsenhor: - Então vai ser chamado o vizinho do lado, o sr. Moules, porque se o senhor não estudou não vai poder ajudar o seu colega.

Terminarei com uma história que costumo contar quando se me oferece a oportunidade de dar um exemplo da finura de espírito e do sentido de humor do Monsenhor Lourenço. Era um dia cinzento de Fevereiro. Estávamos na sala número 4 (dizíamos “aula nº…”) junto ao jardim. Aula de História Eclesiástica e o capítulo daquele dia era sobre “A expansão da Igreja Primitiva”. Como sempre, o Monsenhor hesitava quanto a quem chamar à lição. Na carteira mesmo em frente da sua secretária, o Manuel Faria de Castro esfregava as mãos para se aquecer: Está frio, Monsenhor. E este:

- Pois. Faz frio, faria frio, porque é que o Faria não expõe a lição?

O Faria estava completamente in albis e, ainda não refeito da surpresa, começou a papejar sem conseguir arrancar frase que se ouvisse.

O Monsenhor, com mal-disfarçada ironia, ajuda-o:

- Com que então, a Igreja… estendeu-se muito, não foi?

A classe estala às gargalhadas menos o Faria que, nervoso, não se apercebeu do trocadilho ou não se riu porque o riso geral era à sua custa. O Monsenhor prossegue então num tom ainda irónico mas agora também malicioso:

- … e logo no princípio, não foi?

Há muitas mais estórias do Monsenhor e os colegas de outros cursos foram de certeza testemunhas de inúmeras outras que poderão também contar. Deveriam fazê-lo para se completar tanto quanto possível este retrato de uma personalidade brilhante e de mente tão rica.

Nestes dias li o livro Plato and a Platypus Walk Into a Bar. Understanding Philosophy Through Jokes, de Thomas Caathcart & Daniel Klein[10], um autêntico compêndio de Filosofia urdido com anedotas e ditos de humor. Com as de Monsenhor Lourenço poderíamos do mesmo modo compor uma espécie Livro da Sabedoria Segundo Monsenhor Lourenço. Na verdade, lembro-me de o meu antigo e estimado professor se ter uma vez referido a um livro dizendo que o pobre autor nele tinha posto tudo quanto sabia. Com ele, isso não foi possível. Os seus muitos livros são apenas uma pequena amostra de tudo o que ele sabia e o seu espírito criou. Incito, por isso, os meus colegas a colaborarem enquanto a memória lhes permite.

Nunca o seu humor foi por qualquer um de nós tomado como agressivo ou ofensivo. Havia na sua personalidade uma bonomia sábia da vida, compreensiva das fragilidades humanas que, no enquadramento do seu aspecto físico algo curvado, frágil e, para nós jovens, já avançado em anos, lhe davam um estatuto ou auréola de avozinho querido dos netos porque a autoridade já não residia nas suas mãos e não lhe cabia impor disciplina ideológica ou vigiar os nossos pequenos desvarios de jovens. Em troca, de todos só recebia carinho, respeito e admiração.  

Não deixa de ser deveras curiosa a diferença entre uma obra escrita conservadora e a personalidade no fundo aberta e compreensiva de alguém reconhecendo que, sendo embora de outro tempo, que considerava bem melhor do que o novo, admitia ter esse seu tempo já vivido a sua época. Fora educado no Oriente, por onde circulou numa rede de baluartes da civilização ocidental e cristã – Singapura, Malaca, Goa, Macau. Repetia-nos com frequência: Quem não foi ao Oriente não conhecerá nunca a obra que os portugueses lá fizeram. Só anos mais tarde, quando tive oportunidade de visitar o Oriente, pude aperceber-me do prestígio que ali gozava ainda o Portugal de outrora (até nos táxis ouvi elogios rasgados a Portugal) e de como a Igreja católica, apostólica, portuguesa/goesa, era de facto uma realidade voltada para um passado de ouro que, mesmo se largamente mítico, se pressentia como realidade prestigiada e prestigiante. Os últimos exemplos que conheci foram os de um descendente de goeses, Miguel Rodrigues-Kamat, meu aluno na Brown, que me falava da Goa Dourada com a mesma letra e música ouvida ao Monsenhor Lourenço, como se tivesse lido o tal capítulo quarto da biografia do seu Beato João Baptista Machado. Fez mesmo uma tese de licenciatura em História sobre “The Golden Goa”. Hoje médico, ainda não alterou a sua visão romântica. E mais recentemente, tenho outro aluno, este chinês, o Yi Liu, de Beijing, que me chegou à Brown com uma também altamente positiva ideia de Portugal, como se o nosso país de hoje mantivesse o fulgor imperial de há quinhentos anos.

No início mencionei Edward Said e o orientalismo que ele abominava, mas acho que faria mais sentido evocar aqui a resposta indirecta de Ian Buruma e Avishai Margalit sobre o correspondente ocidentalismo que no Oriente encontraram[11]. Só que o caso de Monsenhor Lourenço é diferente tanto de Said como de Buruma & Margalit, pois tendo a visão que transmitia sido forjada no próprio Oriente, fora depois complexa e duplamente mitizada no seu regresso, ao deparar com um Ocidente que se afastava a passos largos dessa dourada visão do mundo.

Nessa minha primeira viagem ao Oriente, em 1982, senti-me impulsionado a escrever umas linhas ao Monsenhor Lourenço, com quem nunca mais contactara desde que do Seminário saíra, em 1969. Lembro-me de ter adquirido vários postais das ruínas da Igreja de S. Paulo, em Macau, e de os ter enviado a alguns amigos com a seguinte nota referindo-me à presença portuguesa naquelas paragens: “De pé ainda, mas os restos.” Não foi isso que escrevi ao Monsenhor. Não retive o texto verbatim, mas seguiu algo assim: “Vim aqui verificar in loco tudo o que já sabia por lho ter ouvido nas suas aulas.” Cerca de seis meses depois, eu recebia a notícia da sua morte. Mas um amigo próximo dele garantiu-me que ele recebeu o meu postal e o leu com lágrimas nos olhos comentando: “Nunca sabemos aquilo que ensinamos onde vai cair”.

Foi a última lição que do Monsenhor Lourenço recebi e é agora mais um dito que dele – com verdadeira saudade e carinho – conto, sempre que a ocasião se me oferece. Só tenho pena de não ter estado mais atento nas suas aulas para ter podido arquivar na memória muito do que de certeza irremediavelmente perdi. Mas dessas imbecilidades juvenis não vale a pena vir aqui lamentar-me. O Monsenhor Lourenço sabia dosear a nostalgia com sal irónico e não se comprazia em lamentações.



[1] E-mail de 20 de Setembro de 2008.

 

[2] É breve a referência que na paródia lhe faço. Marte (o Dr. Valentim Borges de Freitas) ia falar em defesa dos alunos. Antes de começar a narrar essa sua intervenção, na estância 22,  os primeiros quatro versos referem-se assim a Saturno:

 

Muito perto e um pouco mais adiante

Estava o velho e ridente Saturno

Que o fizera rir havia um instante,

Mas já estava agora sério e seguro.

 

Onésimo Teotónio Pereira de Almeida, O Centenário (Paródia). Edição do Autor, 1963),

 

[3] Que Nome É Esse, Ó Nézimo? – e outros advérbios de dúvida (Lisboa: Salamandra, 1994),  pp.  43-47.

[4] Nos anos sessenta eu tinha todas os livros do Monsenhor, mas deixei-os nos Açores, juntamente com muitos outros, quando primeiro fui para Lisboa. Não poucos deles levaram descaminho. É, por isso, com imensa satisfação que registo aqui o facto de agora voltar a possuir um exemplar de Vitória.  Foi-me oferecido pelo meu amigo e antigo colega (um ano mais novo no curso) Heriberto Herculino Silveira Brasil, patrício do Monsenhor, pois é também natural das Cinco Ribeiras. Hoje meu @migo internético, convidou-me a almoçar no dia da homenagem do IAC e surpreendeu-me com essa bela oferta desfazendo-se do seu único exemplar. Cabe aqui um agradecimento muito sincero à sua generosidade.

Nesse almoço que teve lugar em S. Mateus à vista de bela água, e a que se juntou o Doutor Cipriano Franco Pacheco, ouvi  aos dois várias novas estórias que no final deste meu texto serão reproduzidas. Pus-me, entretanto, imediatamente a reler essa “novela folclórica”, como o autor lhe chama em subtítulo, e foi com imenso prazer que facilmente recordei inúmeras passagens da primeira e única leitura que do livro fiz há 45 anos. A título de exemplo, menciono os versos do Palito Métrico, do folclore académico coimbrão, que um colega do protagonista de Vitória tentou verter para português, também em verso. Assim, Filius ille putae, qui primus carmina fecit saiu: Aquele filho da mãe / Que primeiro versos fez, / Merecia na cabeça / O que tem bovina rez! (Angra do Heroísmo: União Gráfica Angrense, 1958), p.p. 136s. O Monsenhor contava esta estória nas aulas.

[5] Ver Alberto Costa, O Livro do Doutor Assis. Possuo a 10ª edição (Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1951), que não indica a data da primeira edição.

[6] Sobre essa faceta da personalidade do Monsenhor o Heriberto enviou-me uma achega biográfica preciosa e que transcrevo na íntegra: O humor do Monsenhor Lourenço não nasceu, propriamente, por geração espontânea. Ele pertence a uma família (em sentido genérico) conhecida, aqui nas Cinco Ribeiras, pelos "Bilhanas". Trata-se duma família célebre pelo seu sentido de humor. Um dos seus irmãos, o Marcial "Bilhana", que era casado com uma prima de minha mãe, era um exemplo disso. Naquilo que dizia, nas partidas que armava. Ainda hoje, quem dele se lembra, recorda a alegria que ele espalhava à sua volta, com ditos e brincadeiras. Uma prima do Monsenhor, já em 2º ou 3º grau, por acaso também casada com um primo de minha mãe, ainda hoje é um excelente exemplar do humor dos "Bilhanas". Acontecimento ou situação que aquela boca comente dá para partir a rir. E até o filho dela, com nome de Mago, Belchior, é hoje em dia uma das principais figuras dos terceirenses bailinhos de Carnaval. E sobressai (para além de ser um actor nato) imagina em quê: exactamente no humor. De há uns anos a esta parte, quando as pessoas, pelo Carnaval, aglomeradas em salões de sociedades recreativas esperam que passe um bailinho, é frequente ouvir-se a pergunta "quando é que chega o bailinho do Belchior?". (E-mail de 2 de Janeiro de 2009).

 

[7] O meu amigo e colega, Professor António Cirurgião, aposentado da Universidade de Connecticut, natural do Continente, também frequentou um seminário e diz que um seu professor contava essa estória e dizia que o deputado com fama de alcoólico era Brito Camacho. (E-mail de 11 de Dezembro de 2008).

[8] António Cirurgião informa-me que esta resposta foi também de Brito Camacho. (Idem)

[9] Não contarei aqui uma estória que reflecte bem o patriotismo português do Monsenhor, bem expresso na letra que, a pedido do Dr. Edmundo Oliveira, escreveu para o “Coro dos Soldados”, da ópera Fausto, de Gounod, que cantámos no orfeão. O excessivo passadismo nacionalista desses versos fez-me escrever uma paródia anti-salazarista. Mas essa narrativa ficará para um outro escrito, em outro contexto.

[10] (Abrams Image, New   York, 2007).

 

[11] Occidentalism. The West in the Eyes of Its Enemies (New York: The Penguin Press, 2002).

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publicado por picodavigia2 às 09:49

A LENDA DE HIRÃO-ABI

Domingo, 29.12.13

Conta uma antiga lenda que o arquitecto encarregado da construção do celebérrimo templo de Salomão foi Hirão-Abi ou Hiram Abiff. Hirão-Abi era natural de Tiro, antiga cidade fenícia, cujo rei, que curiosamente também se chamava Hirão, fez acordos comerciais com Salomão, por alturas da construção daquele grandioso templo, enviando para a Terra Santa ouro, prata, madeira de cipreste e de cedro, além de pedreiros, entre os quais se incluía o próprio arquitecto que chefiava a execução da obra, Hirão-Abi. Segundo a lenda, Hirão-Abi foi abordado três vezes por tantos outros pedreiros, Jubelas, Jubelos e Jubelum, que mais tarde mudaram os seus nomes para Abibala, Seterkin e Oterfut, respectivamente, porque sentiam uma grande inveja das aptidões de Hirão-Abi e, ocultando a sua verdadeira identidade, queriam conhecer o segredo da arte de bem construir, pois consideravam-na um verdadeiro mistério que, a todo o custo, haviam de desvendar. Pretendiam, assim, revelar o segredo do mestre pedreiro, no projecto de construção daquele magnífico templo, caso contrário perderiam a sua própria vida. Por duas vezes Hirão-Abi, apesar de ameaçado de morte, não cedeu às exigências dos três pedreiros, recusando revelar o seu segredo com a célebre frase: “Perco a minha vida, mas não revelo o segredo”. Porém, sendo abordado uma terceira vez, negando novamente e com veemência revelar o segredo, Hirão-Abi foi morto, perdendo-se, assim, aquele estranho segredo magistral. Os assassinos levaram o cadáver de Hirão-Abi para fora da cidade, sepultando-o e assinalando o local da sepultura com um ramo de oliveira, pondo-se, de seguida, em fuga. Os outros pedreiros, amigos e companheiros de Hirão-Abi começaram a persegui-los. O rei Salomão, porém, não terá sido alheio ao crime, pois Hirão-Abi despertara-lhe ciúmes, não só por também não lhe revelar o seu segredo mas sobretudo porque o suplantava no amor a Belkiss, a misteriosa rainha de Sabá. No entanto o rei de Tiro pediu que a morte de Hirão-Abi fosse rigorosamente punida e, para comover os executores, mostrou-lhes um filho que o mestre pedreiro tivera com Belkiss e exortou-os a que descobrissem os assassínios e vingassem a do mestre morte o mais depressa possível. Estes procuraram Hirão-Abi por toda a parte mas só o encontraram junto à sua sepultura. Hirão-Abi tinha ressuscitado.

Foi assim que Hirão-Abi, devido à sua conduta virtuosa, à sua piedade genuína a Deus e, sobretudo, devido à sua inflexível fidelidade ao segredo que lhe estava confiado, se tornou um símbolo para que, assim como ele, todos e cada um dos seres humanos possam receber o severo tirano, ou seja, a Morte, a fim de os transportar desta vida imperfeita para uma outa perfeita, gloriosa e celestial presidida por Deus, Supremo e Verdadeiro Arquitecto do Universo.

Cuida-se que esta lenda e a presumível conclusão que dela se tira estarão na verdadeira origem da maçonaria, ultrapassando assim a crença de que esta ter-se-ia originado muitos anos mais tarde, nas corporações medievais dos canteiros das grandiosas construções góticas das igrejas, mosteiros e castelos da Idade Média.

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