PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O HOMEM DAS COUVES
Quando eu era criança, juntamente com amigos e colegas de escola, bem nos intrigávamos com aquelas estranhas manchas que se viam na Lua, sobretudo quando ela estava em fase de Lua Cheia.
A senhora professora, na escola, e um outro velhote mais erudito lá nos iam dizendo que a Lua era muito semelhante à Terra e que, como esta, estava dividida em continentes e oceanos e, por conseguinte, as manchas escuras que se viam eram os continentes enquanto as partes mais claras correspondiam aos oceanos.
Mas esta não era a opinião mais autorizada e convincente que circulava pela freguesia. Em casa os pais e os avós e na igreja as catequistas e as beatas afirmavam a pés juntos e até com fundamentos na Bíblia e na Doutrina Cristã, que não era assim e que essas malfadadas e desditosas opiniões rondavam a heresia e aproximavam-se da apostasia. Por isso convidavam-nos a um olhar mais cuidado, meticuloso e atento para o astro mais brilhante do firmamento depois do Sol. Se na realidade olhássemos a Lua com mais atenção, com mais cuidado e, sobretudo, com muita imaginação, veríamos lá um homem com um molho de couves às costas. Na realidade, assim era, pois, segundo esses acérrimos defensores da fé, dos bons costumes e da verdade, aquelas manchas eram, nada mais nem nada menos do que a imagem ou a figura de um homem com um molho de couves às costas. O desgraçado, em vida, tinha sido um descrente, um malvado, um ateu que não respeitara, nem a lei de Deus, nem os mandamentos da Santa Madre Igreja. Um homem sem escrúpulos, sem dignidade e sobretudo sem fé que nem ia à missa e, ainda pior, trabalhava aos domingos, nomeadamente acartando, às costas, molhos de couves.
Mas o energúmeno, após a sua morte, foi castigado por Deus, sendo colocado por Ele na Lua, carregando um molho de couves, ficando ali e para sempre com aquele enorme peso às costas, a fim de que todos o vissem, revissem e servisse como exemplo de que se não deve trabalhar ao domingo, dando cumprimento à lei de Deus e aos mandamentos da Santa Madre Igreja.
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AÇORES AS 9 MARAVILHAS DO MUNDO
Foi colocado, no dia 7 de Abril, no “You tube”.pelo canal “AndCura” um vídeo de excelente qualidade sobre as ilhas açorianas, com o título “Açores – As 9 Maravilhas do Mundo. Trata-se de trabalho muito interessante, com imagens de rara beleza e com a locução de um dos maiores actores portugueses de sempre, Ruy de Carvalho.
No vídeo podem observar-se imagens de todas as ilhas, das vilas e cidades mais importantes e ainda dos ilhéus das Formigas. Embora colocado apenas há seis meses o vídeo já conta com 3.369 visualizações.
Curiosamente e porque a ordem de apresentação das ilhas se inicia nas Flores, passando por Corvo, Faial, Pico, S. Jorge, Graciosa, Terceira, Santa Maria, Formigas e São Miguel, as primeiras imagens apresentadas no vídeo são precisamente da Fajã Grande, vista do mar, ou seja do ponto mais ocidental da Europa.
O vídeo pode ser observado no “You Tube” ou no próprio canal “AndCura”, nos seguintes endereços:
No You Tube:
http://www.youtube.com/watch?v=xSt5eGP4ofU
No AndCura:
http://www.youtube.com/user/AndCura#p/u/1/xSt5eGP4ofU
Este texto foi publicado no Pico da Vigia em 23/10/11
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TOTAIS E MÉDIAS - 6 MESES
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A BATATA BRANCA
A Fajã Grande era local de muito cultivo e produção de batata branca, de tal forma que esta, nos anos cinquenta, era considerada elemento essencial no cardápio diário de todas as famílias da freguesia. Crê-se, no entanto, que nem sempre terá sido assim, uma vez que, como reza a história açoriana, este tubérculo só deu entrada nas ilhas dos Açores no terceiro quartel do século dezoito, alguns anos depois da chegada da batata-doce e cerca de cem depois da introdução da cultura do milho.
A batata branca, na Fajã, era cultivada sobretudo nas terras mais próximas do mar, nomeadamente, nas Furnas, no Areal, no Porto e no Estaleiro, onde era semeada em alternância com o milho e tinha como objectivo principal alimentar não apenas as pessoas mas também os porcos. Mas a batata branca de melhor qualidade e de melhor produção era semeada e cultivada nas courelas e nos pequenos terrenos junto das habitações, onde era muito adubada, muito bem tratada, de maneira a crescer sempre viçosa e a estar sempre disponível para as primeiras necessidades alimentares de cada família.
Na realidade, a batata revelou-se sempre de grande importância na economia fajãgrandense pois, para além de ser consumida por pessoas e porcos, também se utilizava a sua rama, logo que cortada e ainda fresca, para alimento das vacas. Além disso, alguns dos maiores produtores vendiam a batata excedente das suas colheitas, não só na Fajã mas também noutras freguesias da ilha.
Diziam os antigos que até à década de cinquenta do século passado, a batata branca era cultivada, na Fajã, em menor quantidade do que a batata-doce, sendo essa cultura feita quase exclusivamente nas courelas, junto às habitações. Sabe-se também que esta fraca produção de batata branca na primeira metade do século passado se deveu, sobretudo, a uma doença ou maleita que atingiu este tubérculo e que o tornava incapaz de ser utilizado para consumo. A importação da batata branca para consumo, de outras ilhas, nomeadamente do Faial e São Miguel ficava muito cara, por isso a sua utilização, como alimento, nessa altura, decresceu bastante na Fajã, sendo substituída não apenas pela batata-doce mas também pelo inhame.
A partir de 1947, ano em que o governo português autorizou a importação da semente de batata, a junta começou a disponibilizar, por toda a ilha das Flores, semente de excelente qualidade. Essa a razão por que se verificou, a partir de então na Fajã Grande, um aumento substancial da sua produção e, consequentemente, do seu consumo. A partir de então o seu cultivo estendeu-se às terras do Areal, das Furnas e do Porto. A semente importada era de boa qualidade e vendida a um preço acessível. Tratava-se das célebres batatas Arran-Banner, Arran-Consul e Up to date, designadas popularmente por Arranbana, Arranconsul e Aptudeite, importadas da Europa. Foi então que se começaram a semear grandes extensões de terreno com as novas espécies que se reproduziam em larga escala, e que constituíam uma parte importante da alimentação das pessoas e dos animais.
Assim as batatas brancas, sobretudo cozidas, começaram a ser o acompanhamento mais frequente de qualquer conduto, sobretudo à refeição do meio-dia. Por vezes e nas casas mais pobres, até eram comidas sem nada ou com fatias de abóbora ou maçarocas de milho que eram cozidas juntamente com elas. Era sobretudo as batatas brancas que acompanhavam o peixe frito ou cozido, a molha de carne, as tortas, uma ou outra lata de conserva, a carne de porco e até a linguiça frita. Além disso eram elemento essencial, tanto na sopa de couve como na de agrião e ainda eram utilizadas, sobretudo à ceia, geralmente as que sobravam do jantar, para fazer o tradicional “mangão”.
Acrescente.se que a batata branca é originária dos Andes, no Peru, donde foi trazida, em 1570, para a Europa pelos conquistadores espanhóis, ao que parece, por mera curiosidade botânica. Porém, com o com o passar do tempo, a batata, um alimento muito rico em vitamina B e C e, sobretudo, em ferro e zinco, tornou-se num dos vegetais mais utilizados na alimentação humana, não apenas no velho continente, mas em todo o mundo. A Fajã Grande não foi excepção.
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REPROVE-ME
Educadíssimo, entrava na sala esquivando-se a atropelos e empurrões, não se emaranhava em confusões nem em barafundas, alienava-se a berreiros e algazarras e agarrava-se à delicadeza e às boas maneiras como se fossem apanágio das suas atitudes e do seu comportamento. Depois sentava-se como que amordaçado na sua cadeira, abria com acentuado esmero e desmedida pachorra a mochila que carregava a tiracolo e ia colocando, arrumadamente, sobre a mesa, à sua frente, livros, cadernos, canetas, enfim, tudo o que fosse indispensável ao trabalho de aluno aplicado.
Os outros num alvoroço excessivo, numa atribulação gritante e numa algazarra desmedida, embebidos na ânsia de que quanto mais curta fosse a aula melhor. Ele, o Bruno, a desejar lá bem no seu íntimo, que se calassem, que se sentassem, que ouvissem o mestre e os seus ensinamentos.
Por fim, açulados com os apelos do professor, os outros lá se iam calando, acomodando, deixando que a aula se iniciasse. E a aula começava, com os outros a perguntar, a questionar, a interromper e, por vezes, a alienarem-se e a distraírem-se. Ele, o Bruno, sempre calado, sempre atento, sempre a observar o que se passava dentro da sala, apenas a responder, adequada e correctamente, quando interrogado. Mas nas fichas e nos trabalhos de avaliação os outros a empenharem-se, a elaborar respostas correctas e a conseguir resultados positivos. Ele, o Bruno, a desmazelar-se, a elaborar, como que de propósito, respostas erradas e a obter resultados negativos.
Nas reuniões dos conselhos de turma os professores, admirados e pasmados, sem entender o que se passava, indignavam-se, constrangiam-se, interrogavam-se, elaboravam planos de recuperação e comprometiam-se a desvendar o enigma. A directora de turma já chamara a mãe à escola, mas a senhora ainda se admirara mais do que ela com o incompreensível e estranho comportamento do filho. Mas prometeu que ele havia de mudar. Mas não mudou. Pelo contrário, quanto mais revelava ser um aluno de comportamento exemplar e de uma boa capacidade de aprendizagem, menos se empenhava nos trabalhos de avaliação.
Tão estranho comportamento levou-me a pensar que ali havia embuste e eu, um dos professores, havia de o descobrir, custasse o que custasse.
Certo dia, já perto do fim do ano, aproximei-me dele e de rompante, atirei-lhe:
- Sabes uma coisa? Mesmo com todas as negativas que tiveste nos testes, eu vou passar-te de ano.
Foi como se o céu lhe desabasse em cima. Voltou-se para mim com os olhos rasos de lágrimas e começou a implorar-me:
- Professor, não, não faça isso, reprove-me, reprove-me por favor.
Era o que faltava! Havia de passá-lo e até com um quatro ou com um cinco. E ele, o Bruno, cada vez mais lavado em lágrimas, mais indignado, mais revoltado, mais desesperado, a implorar com maior insistência;
- Reprove.me, professor. Reprove-me.
Coloquei-lhe o braço por cima do ombro, pedi-lhe que enxugasse as lágrimas e disse-lhe com alguma serenidade:
- Está bem. Vou fazer-te a vontade. Vou reprovar-te, mas com uma condição. Concordas?
- E qual é a condição, setor? – Perguntou apreensivo.
Respondi-lhe:
- Só te reprovo se tu me explicares porque é que queres que te reprove.
Calou-se por uns momentos e ficou pensativo por mais alguns. Depois olhou-me com uns olhos cheios de verdade e um rosto expectante de ternura e explicou. Explicou que os pais eram muito pobres e que precisavam dele para trabalhar. Explicou que se passasse de ano o pai não o deixava ir para o terceiro ciclo e havia de ir trabalhar… trabalhar que nem um escravo… Além disso, em casa passava fome e ali, na escola tinha almoço do bom e do melhor e com o pratinho sempre cheio. Que o deixasse ficar ali, na escola, pelo menos mais um ano, sem ir trabalhar e a ter comidinha boa e em quantidade
E como mais uma vez me pedisse que o reprovasse, reprovei-o mesmo, eu e alguns dos outros professores.
Acresce dizer-se, que no ano seguinte ele, o Bruno, foi um dos melhores alunos da turma
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MIGUEL STREET D’ARRIAGA
Miguel Street d’Arriaga nasceu na cidade da Horta em 1828, tendo falecido em Lisboa, em 1894, Membro da ilustre família dos Arriagas, cursou Direito em Coimbra, onde esteve ligado ao grupo de poetas do «Novo Trovador». Depois de formado ingressou na carreira administrativa, tendo exercido o cargo de secretário-geral do Governo Civil, primeiro em Aveiro e depois na Horta.
Na sua cidade natal, atraído pelo jornalismo, foi co-fundador e redactor do jornal O Faialense. Como poeta, de pendor nitidamente romântico, deixou muitas produções espalhadas por revistas e jornais da época. Mas foi o teatro que maior interesse lhe despertou, evidenciando as suas capacidades de dramaturgo através de peças como Nobreza e Amor, A Condessa e o Caixeiro, Filha do Morgado, As Lições de Guitarra e outras.
Miguel Street de Arriaga foi, também, animador de saraus de poesia e arte e influenciou a criação do Grémio Literário Faialense.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A VELHA DEBAIXO DA CAMA
(Aravia Popular)
A velha debaixo da cama,
A velha criava um rato,
Na noite em que se danava,
O rato chiava
E a velha dizia:
Ai meu Deus que se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um gato,
Na noite em que se danava,
O rato chiava, o gato miava
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um cão.
Na noite que se danava.
O rato chiava, o gato miava, o cão latia
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um macaco.
Na noite que se danava,
O rato chiava, o gato miava, o cão latia
O macaco pulava
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um galo.
Na noite que se danava,
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia,
O macaco pulava, o galo cantava
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um porco.
Na noite que se danava,
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia,
O macaco pulava, o galo cantava, o porco grunhia
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um bode.
Na noite que se danava,
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia,
O macaco pulava, o galo cantava, o porco grunhia.
O bode berrava
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um jumento.
Na noite que se danava,
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia,
O macaco pulava, o galo cantava, o porco grunhia
O bode berrava, jumento rinchava
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criava um leão.
Na noite que se danava
O rato chiava, o gato miava, o cachorro latia,
O macaco pulava, o galo cantava, o porco grunhia
O bode berrava, jumento rinchava, o leão ugia
E a velha dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo.
Tanto bem que eu te queria!
A velha debaixo da cama,
A velha criou uma cobra.
A cobra mordeu o rato, o rato mordeu o gato, o gato mordeu o cachorro,
O cachorro mordeu o macaco, o macaco mordeu o porco, o porco mordeu o bode,
O bode mordeu o jumento, o jumento mordeu o leão e o leão mordeu a velha!
A velha?!
E o que que houve, depois, com a velha, compadre?
A cobra mordeu a velha e a velha morreu...
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TOP PÁGINAS - 6 MESES
- Página inicial - 1.821
- AMANHECER EM SÃO CAETANO - 87
- OS HIPOGEUS DESCOBERTOS NO CORVO E A COVA DA JUNÇA - 75
- A FREGUESIA DE SÃO CAETANO OU UM PARAÍSO ENCAFUADO ENTRE O MAR E A MONTANHA - 47
- GASTRONOMIA DO PICO - 43
- O JOÃO DE FREITAS - 42
- A BAÍA DAS ROSAS - 39
- O PADRINHO DO CRISMA DE MEU PAI - 37
- O SEMINÁRIO DE ANGRA - 35
- UM CABIDO DESCABIDO - 34
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QUATRO MOTIVOS DA FAJÃ GRANDE – III
(À maneira de Cesário Verde, propositadamente)
A agitação dos dias de baleia!
Marinheiros correndo para o porto.
Iguala o Universo um grão de areia
e o Nada é um doutor de olhar absorto.
A bomba que rebenta na vigia
sacode o ar num sobressalto de asas.
A vida igual de sempre dir-se-ia
outra na lida habitual das casas.
Mas à agitação se segue logo
uma ansiedade vã sobre a paisagem:
em cada coração crepita um fogo
à espera apenas de uma leve aragem.
Depois qualquer sinal no horizonte
parece um barco – e uma baleia morta?
Um binóculo espreita ali de fronte
e um vulto de mulher assume à porta.
Inquieto, alguém pergunta: - Que é? Que foi?
Um corção lento cruza a dúbia praça;
reflecte a placidez do olhar do boi
a morna placidez da tarde baça.
Mas não há uma vela pelo mar!
As horas passam, moles, arrastadas…
A noite vem… Os botes sem chegar!
E um choro enche as casas desoladas.
Pedro da Silveira in Treze Poemas da Ilha das Flores
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MINHA AVÓ JOAQUINA
Joaquina Fagundes de Sousa nasceu na última década do século XIX, mais concretamente em 1890, no lugar da Cuada, na ilha das Flores. Foram seus pais António Maria de Sousa e Maria José Teodósio. Devido ao falecimento da mãe, quando ainda muito criança, Joaquina foi dada pelo pai a um casal, ele José Cristiano Ramos e ela Margarida Jacinta, a fim de que a criassem e educassem. Este casal, já de idade avançada, tinha apenas um filho e este há alguns anos que havia falecido num acidente de que foi vítima, na Rocha dos Paus Brancos. Além disso, Margarida também faleceu alguns anos depois da adopção, acabando Joaquina por ficar, novamente e pela segunda vez, órfã de mãe, neste caso de mãe adoptiva. No entanto “Pai Cristiano”, como minha avó carinhosamente sempre chamou àquele que a havia adoptado, tratou-a e criou-a com muito carinho, amizade, dedicação e desvelo. Segundo os relatos que ouvi, em criança, vezes sem conta, narrados por ela própria e, sobretudo, pela maneira carinhosa como a ele se referia, tratava-se, realmente, duma pessoa extremamente bondosa, honesta e magnânima. Nas suas orações diárias, sobretudo depois de rezar o terço em família, minha avó pedia sempre que se rezasse um Padre-Nosso por alma de “Pai Cristiano”.
Joaquina cresceu, tornou-se jovem e, apenas com dezoito anos, casou, na igreja paroquial da Fajã Grande, no dia onze de Janeiro de 1909, com José Fagundes da Silveira, recentemente regressado da Califórnia.
Joaquina, com uma estatura fraca, aliada a uma saúde frágil e um temperamento débil, nunca se dedicou muito aos trabalhos nos campos, a não ser no semear e apanhar do milho ou na semeadura e colheita das batatas. Viveu a maior parte da sua vida dentro de casa, pariu treze filhos e teve o infortúnio de assistir ao falecimento de dois deles, um recém-nascido, que ficou sempre lembrado como o José do Céu e uma filha, Angelina de seu nome, precisamente aquela que foi a aminha mãe. Para além de gerar e criar todos estes filhos, Joaquina dedicou-se sempre ao arranjo e amanho da casa e da cozinha, embora, alguns anos mais tarde, tivesse a preciosa ajuda das filhas. Foi a primeira mulher e talvez a única, na Fajã Grande, a ser nomeada ”Mordoma das Almas”, cargo que desempenhou com grande dedicação e exímia competência, sobretudo nos meses de Outono, durante os quais se realizava, sob a sua orientação e comando, em toda a freguesia, a uma grande derrama pelas almas. Além disso era uma óptima tecedeira e uma excelente costureira. Bem me lembro duma colcha de cama que ela me fez com competência e mestria, quando foi decidido que eu ia estudar para o Seminário. Tendo consciência que estávamos impossibilitados de comprá-la, prontificou-se, de imediato, para a fazer. Arranjou dois bons bocados de fazenda enramados, um azulado e outro castanho, coseu-os em três dos lados, formando uma espécie de saco, dentro do qual colocou escondidas, algumas peças de roupa velha, devidamente alisadas. Depois coseu a extremidade equivalente à boca do saco, alinhavou, chuleou e voltou a chulear a futura colcha de alto a baixo e de lado a lado, em linhas perpendiculares e paralelas, de tal maneira que formaram uma espécie de tabuleiro de xadrez, de forma a simular uma colcha acolchoada. Uma obra-prima!
Quando criança adorava ir para a casa da minha avó Joaquina. Presenteava-me sempre com uma fatia de pão de milho ou de trigo com doce. Que bom que era o pão com doce da minha avó Joaquina. Quando tinha em casa fruta da sua horta do Delgada dava-me sempre alguma, mesmo que fosse apenas metade de uma ameixa
Já velhinha, o seu passatempo preferido era o jogo da cacina. Jogava com excelência, com um sentido apurado do jogo, com um domínio sobre o adversário, sabendo em qualquer momento de cada partida as cartas que já haviam saído e as que estavam por jogar. Quase todos os dias, à tardinha, sentava-se à janela da sala, com vista sobre a freguesia e sobre o mar. Dizia que estava a ver o pôr-do-sol, não tanto para apreciar o espectáculo, mas sim para acertar o relógio de parede. É que tinha ela em sua posse uma tabela que lhe indicava a hora em que o Sol se punha em cada dia do ano. Depois corria para o relógio e acertava-o por aquela hora. Curiosamente o relógio da minha avó Joaquina andava sempre atrasado, muito provavelmente porque aquela tabela diria respeito a outro fuso horário
Minha avó faleceu, calma, serena e em paz, numa tarde invernosa de Dezembro, aos setenta e seis anos de idade.
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O MILHO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
No meu tempo também era nestas alturas, nos fins de Setembro que se apanhavam os milhos das terras que ficavam à beira-mar. Em Outubro os das terras do interior, pois estando estas mais longe do mar, e tendo que ser trilhadas o milho também era semeado mais tarde. Era uma época muito bonita e agradável, esta em que se procedia às apanhas dos milhos. Eram autênticos dias de festa nas casas dos lavradores.
Quando as maçarocas, depois de desfolhados os milheirais, estavam maduras, marcava-se o dia da apanha e acarretar das maçarocas para as ou para as lojas, para de imediato as encambulhar e pendurar nos estaleiros. E esse dia era um dia especial e devia ser marcado com antecedência para não coincidir com os dias em que os vizinhos e amigos também apanhavam o seu milho, a fim de se poderem ajudar uns aos outros. Homens, mulheres e crianças, nesses tempos as crianças ainda não iam para a escola como hoje em dia, alta madrugada, muitas vezes ainda noite escura, demandavam a terra ou cerrado. Uns começavam a apanha e outros iam carregando os cestos para os carros de bois com as “ceiras” de vimes que iam enchendo a “acaculando bem acaculadas” até fazer enormes carradas. Se as terras eram mais pequenas ou ficavam perto de casa o milho era acarretado às costas. Os carros eram puxados por vacas a quem se iam dando maçarocas para as compensar. Uma ou duas mulheres a meio da manhã vinham para casa para fazer o almoço a que todos os que ajudavam tinham direito. Às vezes quando a apanha era muito demorada e se prolongava pela tarde, as mulheres iam levar o jantar ao serrado onde se colhia o milho.
De tarde e à noite era a hora de encambulhar. O milho era colocado, geralmente na cozinha, formando um grande monte em forma de pirâmide. As pessoas sentavam-se à volta em cima do fundo de um cesto ou de pequenos bancos de lavar os pés. Munidas de um molho de fios de espadana, iam escolhendo as maçarocas as maçarocas uma a uma, separando as maiores e mais bem protegidas de casca. Puxavam-lhe uma folha de casca, juntavam umas quinze ou vinte, juntavam-lhes as folhas retiradas, enrolavam-nas bem enroladas, torciam o rolo na ponta e amarravam-no com um fio de espadana. Estava feito o cambulhão. Amontoados num canto da cozinha aguardavam que as crianças os transportassem para junto dos estaleiros onde seriam dependurados, tarefa geralmente executada pelo dono da casa. Se não se conseguia encambulhar todo de dia aproveitava-se o serão e a ajuda de amigos e vizinhos. Era também à noite que descascavam as maçarocas rejeitadas para os cambulhões. Mas deixava-se uma folha presa em cada massaroca, afim de com ela também se fazerem cambulhões, bem mais pequenos e que eram pendurados dentro do estaleiro, de baixo dos que tinham casca, a fim de que estes os protegessem da chuva. Se a dona da casa já não tinha milho velho aproveitava estas maçarocas e, descascando-as por completo, acendia o forno e depois de cozer o pão ou as escaldadas, secava-as lá dentro. Outras vezes e se o tempo estava bom, o milho, já debulhado, era despejado nos pátios e secado ao Sol, sendo que havia de estar sempre de vigia, uma criança, a enxotar as pombas que se atiravam a ele desalmadamente.
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COMO SE VOTA PARA A ASSEMBLEIA DE FREGUESIA NAS FREGUESIAS COM MENOS DE 150 ELEITORES
Se consultarmos os mais recentes quadros de resultados eleitorais, relativamente às eleições autárquicas para a Assembleia de Freguesia, em qualquer uma das freguesias com menos de 100 ou de 151 eleitores, deparamo-nos com uma ou outra destas frases: “A freguesia que escolheu não se encontra apurada.” ou “Assembleia de freguesia substituída pelo plenário de eleitores.”
Isto acontece porque nas freguesias com150 ou menos eleitores inscritos a eleição para a Assembleia de Freguesia, na realidade, faz-se de forma substancialmente diferente da habitual.
Nestas freguesias, de acordo com a legislação em vigor, o plenário dos cidadãos eleitores elege três dos seus membros, os quais, uma vez eleitos, formarão a Junta de Freguesia local. Esta eleição, no entanto só se pode verificar se estiverem presentes pelo menos 10% dos cidadãos eleitores recenseados na freguesia.
A especificidade desta situação, no entanto, e segundo noticiam alguns jornais regionais, leva a que, em caso de não eleição dos membros, cada freguesia accione os mecanismos mais diversos e, por vezes, pouco consensuais e pacíficos para a resolução do problema. É que, segundo os analistas, os procedimentos a terem-se em conta em tais casos não parecem estar muito claramente definidos na lei eleitoral, o que origina várias confusões e situações enigmáticas, algumas delas a prolongarem-se nos tribunais à espera de solução.
Segundo o presidente da Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE) o número cada vez maior de freguesias com poucos habitantes e os problemas inerentes às eleições nas mesmas são razões que tornam urgente a "reorganização administrativa do território”.
De acordo com o Jornal da Guarda existiram nestas eleições autárquicas “118 freguesias com 150 ou menos eleitores recenseados, onde a Assembleia de Freguesia foi substituída por plenários de cidadãos eleitores, situação registada em várias Freguesias do distrito da Guarda. A desertificação das aldeias do Interior do país tem sido responsável pelo aumento do número de Freguesias que elegem os seus representantes em plenários de cidadãos.”
Segundo o mesmo Jornal, a Guarda, em dez dos seus catorze concelhos, é o distrito que tem maior número de freguesias nesta situação, num total de 40: Almeida (12), Guarda (6) e Sabugal (6), Pinhel (5), Figueira de Castelo Rodrigo (4), Fornos de Algodres (2) Meda (2), Celorico da Beira (1), Trancoso (1) e Vila Nova de Foz Côa (1).
Nos Açores esta situação verifica-se apenas na ilha das Flores, mas em cinco das suas onze freguesias: Mosteiro, Fajãzinha, Lajedo, Caveira, Cedros. O Corvo, por sua vez é o único concelho onde não há eleições para a Assembleia de Freguesia.
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CAIR DAS FOLHAS
(UM SONETO DE VALÉRIO FLORENSE)
“Fantástico palácio em um país distante,
Castelo de ouro e azul tingido de alvorada,
Que tentei conquistar, numa altiva arrancada,
Feito um divino herói, um cavaleiro andante.
Meus lindos ideais de idade louca e amante,
Meus sonhos juvenis, meu Graal, minha espada
E coroa de louro – auréola ambicionada –
Tudo, tudo se esvai e fina, instante a instante.
Em seu lugar me fica um pardo desalento
Que vem caindo na alma, frio como gelo,
Tristeza tumular de um bem que se não alcança.
Também por este Outono, triste e nevoento,
Vão formando no chão um tapete amarelo
Folhas de Primavera, outrora cor de esperança.
Nordeste, 1-X-43”
Retirado do livro “CAMINHOS” de Valério Florense, pseudónimo literário do P.e José Luís de Fraga, composto e impresso na tipografia “A Crença”,em Vila Francado Campo, em 1966.
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ANTONICO PASSARICO
Antonico, Passarico,
Foi ao Pico
Escanchado num burrico.
O burrico saltitou
E o Antonico lá ficou.
Aravia popular fajãgrandense.
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O TRAVO DA MORDAÇA
Quiseras falar,
Contar ao mundo
Que amas a verdade
Que lutas pela justiça
Que caminhas junto com a paz
Que investes em prol do amor!
Mas açaimaram-te,
Colocaram-te uma mordaça
Consubstanciada com uma timidez,
A gerar uma tremenda insegurança,
A cercear o caminho da audácia.
- mordaça amarga.
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A FACA E A LAPA
Olho na faca, olho na lapa.”
Aqui transcrevo de memória, mais um interessante e típico adágio muito utilizado na Fajã Grande. O seu uso não se referia, no entanto e apenas, ao tão frequente hábito fajãgrandense de apanhar as lapas, actividade que exigia muita habilidade e perícia, ao mesmo tempo que envolvia algum perigo ao apanhador das lapas que, eventualmente, se podia cortar com a faca ou escorregar, ser apanhado por uma vaga maior e cair ao mar. Por assimilação e em sentido figurado, este adágio aplicava-se também a qualquer outra actividade que exigisse alguma perícia e em que, eventualmente, se corresse algum perigo. Do mesmo modo que o apanhar das lapas com uma faca, todo esse tipo de actividades devem executar-se sempre com a máxima atenção e muito cuidado.
Bons conselhos nos davam os nossos antepassados com os seus ditos ou adágios.
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SEIS MESES
O actual blogue “Pico da Vigia 2” teve o seu início no dia 31 de Maio de 1013, precisamente há seis meses. A sua criação, nessa data, deveu-se à necessidade de substituir o blogue anterior “Pico da Vigia”, um blogue, sobre pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas, iniciado a 8 de Março de 2009. Este blogue tinha o seu suporte na plataforma de blogs da iol, que em medaos de Maio de 2013, havia bloqueado por completo. Assim e porque o “Pico da Vigia 2”, seguindo o exemplo do que o precedeu, pretendia ser um blogue exclusivamente de palavras e de escrita, era imperioso que se fizesse a trasfega dos textos, a fim de que os mesmos não se perdessem e se pudesse ter acesso aos mesmos. Apesar de algumas tentativas não foi possível fazer essa trafega directamente. Houve pois necessidade de a fazer texto a texto, com a agravante de alguns terem perdido a actualidade.
Mas essa tarefa tem sido bastante demorada, uma vez que se tratava de mais de um milhar de textos. Por isso mesmo tem sido feita aos poucos e essa a razão por que nalguns dias surge uma grande quantidade de textos colocados no blogue. Há que acrescentar ainda os textos novos.
Até ao momento e durante estes seis meses foram colocados 735 textos, dos quais 127 são “estórias” relacionadas com a Fajã Grande ou desenrolando-se naquele espaço. Talvez por isso, apesar dos inconvenientes de mudar o httl, a adesão em termos de visitantes tem superado todas as expectativas. O número de visitantes, também, tem sido muito bom. Basta recordar que nos últimos dois meses, tivemos 2584 visualizações, o que dá uma média de 43 por dia e 1783 visitas o que corresponde à média de 30 leitores por dia, números que têm vindo a aumentar, um vez que, ontem, por exemplo, as visualizações foram 65 e as visitas 52.
A todos os que visitaram, mesmo que tenha sido uma única vez, o blogue Pico da Vigia a minha gratidão sentida. Aos que, a partir de agora, acederão, ao Pico da Vigia 2, as boas vindas sinceras.
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UMA VACA POR VINTE ESCUDOS
O Freitas tinha apenas uma vaca, uma só vaca. As relvas que herdara, uma dos pais lá para as bandas da Alagoinha e uma outra, ali bem perto, no Batel que os sogros lhe haviam deixado não chegavam para mais. Apesar de tudo o animal andava gordo, bonito e anafado que era um regalo ver. Era a menina bonita dos seus olhos e jurava a pés juntos que não a venderia nunca, nem por todo o dinheiro do mundo. Um exagerado, este Freitas! Mas verdade é que a sua Lavrada andava limpa que era um primor, bem tratada que nem uma princesa, mantinha-a asseada que nem uma donzela e, além disso, era boa de leite e de crias. A Lavrada do Freitas era, sem sombra de dúvidas, uma das melhores, mais bonitas e mais valiosas vacas de quantas existiam na Fajã.
Mas o Freitas era um gabarola e não cessava de exorbitar atributos e qualidades que o animal não possuía. Tais exageros faziam com que, ao passar com ela à Praça, nas idas e vindas para a Alagoinha ou para o Batel, os rapazes se metessem com ele, insinuando que aquilo nem era vaca de andar pelos caminhos de tão magra e pestilenta que era, que havia de ter vergonha de trazer aquele “cramelhano” pelas ruas que nem “mojo” tinha que se visse ou que desse leite para saciar a fome dum pinto.
O Freitas ia ouvindo, com resignação, afrontas e insultos diários, cuidando, no entanto, que aquilo era inveja, inveja pura. E já quase nem lhes dava ouvidos. Eles, porém, insistiam cada vez mais, na esperança de que um dia a paciência do Freitas havia de rebentar de vez.
Certa tarde, em que o Freitas, cansado das lides diárias e atribulado com as consumições caseiras e já quase noite escura, levava a vaca ao Batel, o Albino, sentado na banqueta da Casa do Espírito Santo de Baixo, para o açular ainda mais, atirou de rompante:
- Essa vaca não vale nada! Queres vinte escudos por ela?
O Freitas que sabia bem que o Albino era um pé rapado e cuidando que ele, como sempre, não tinha tostão consigo, na tentativa de anular a afronta retorquindo com uma outra que calasse aquele impostor de uma vez para sempre, contra atacou, com um sorriso de gozo e escárnio:
- Se os tens aí, é para já!
Palavras não eram ditas, o Albino levanta-se de um pulo, aproxima-se do Freitas e retira de um dos bolsos das calças, uma nota vinte escudos, exclamando:
- Estão aqui! A vaca é minha!
O Freitas ficou lívido que nem um defunto e branco que nem a cal. Emudeceu por completo! Parecia que a Rocha, desde as Águas ao Curralinho, lhe caíra em cima, amassando-o e destruindo-o por completo. Era um homem desgraçado!... O homem mais desgraçado do mundo!... Mas era um homem de palavra e, como o Albino, com ar muito sério, permanecesse ali na sua frente com uma mão a estender-lhe a nota e com a outra a pegar-lhe na corda da vaca, exigindo que cumprisse o contrato, pasmado, mudo, incrédulo, com ar apatetado, cedeu. Recebeu os vinte escudos e, com os olhos rasos de lágrimas, entregou o animal. O Albino passou-lhe uma corda pela cabeça e, perante o espanto de todos que tentavam, infrutiferamente, acalmar o Freitas, levou-a para o seu palheiro.
O Freitas passou três dias de sofrimento e amargura e outras tantas noites de insónia e desassossego. Não comia, não dormia, não trabalhava, não descansava, enlouquecia de dia para dia.
Mas o Albino que guardara a vaca no seu palheiro, tratando-a como se fosse sua, ao fim de três dias, com receio de que o Freitas definhasse por completo, veio trazer-lhe o animal. O Freitas nem queria acreditar e, abraçando-o, jurou que não mais se meteria noutra semelhante.
Mas verdade é que por toda a freguesia o Freitas foi elogiado por ser “um verdadeiro homem de palavra”.
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CRUZEIRO ALEMÃO BREMEN NAS FLORES
O navio cruzeiro Bremen estará hoje, (dia quinze de Outubro de 2011), na ilha das Flores, com cerca de 180 passageiros e 107 tripulantes a bordo, números que excedem a população de algumas das freguesias da ilha. Este cruzeiro alemão, que saiu do porto de Lisboa no dia 9 deste mês e que chegou a Ponta Delgada no dia 12, estará nos Açores durante sete dias, visitando a ilha das Flores e do Corvo precisamente no dia de hoje, sábado, dia 15 de Outubro. Até 19 deste mês, no entanto, o mesmo cruzeiro, sob o lema “Em cada Ilha um Paraíso” visitará as restantes ilhas açorianas, nos seguintes dias: São Miguel no dia 12, Terceira dia 13, Graciosa dia 14, Pico dia 16, Faial e São Jorge dia 17, ilhéus das Formigas dia 18 e ilha de Santa Maria dia 19.
Segundo os meios de comunicação social locais, esta visita é encarada como de grande interesse para a Região e para cada uma das ilhas em particular, a que as Flores não é excepção, uma vez que irá “potenciar a Região como destino para o importante nicho de mercado [turístico] alemão e não apenas ponto de paragem em roteiros transatlânticos.”
No caso específico das Flores, trata-se de uma visita que pretende oferecer aos seus passageiros, maioritariamente alemães, a possibilidade de conhecer e descobrir uma das mais belas e interessantes ilhas açorianas, uma vez que o objectivo primordial deste tipo de cruzeiros é proporcionar aos amantes da natureza, que apreciam o contacto directo com a mesma na sua pureza original, nos recônditos mais estranhos e desconhecidos do planeta, pelo que encontrarão, tanto nas Flores como no Corvo, uma rica oportunidade e uma enorme possibilidade de concretizarem um dos objectivos principais da sua viagem.
Inaugurado em Novembro de 1990, o navio de cruzeiros Bremen foi construído nos estaleiros Mitsubishi Heavy Industries, no Japão, chamando-se, inicialmente, “Frontier Spirit”. O Bremen mede 111 metros de comprimento, 17 de largura e 4,8m de calado. Desloca 6,752 toneladas de arqueação bruta e atinge a velocidade de 15 nós, tendo capacidade para 180 passageiros e possui 107 tripulantes. Vocacionado para cruzeiros de expedição, o navio Bremen oferece aos seus passageiros a possibilidade de rumar aos locais mais inóspitos do planeta, como são os casos do Ártico e da Antártida. Agora o seu destino foram as ilhas açorianas. Acrescente-se que este navio cruzeiro não possui a bordo casinos, bingos, jacuzzis, nem grandes áreas comerciais ou de entretenimento constante, uma vez que o seu objectivo principal é proporcionar aos seus passageiros o contacto directo coma natureza e com a vida selvagem, mas oferecendo-lhes excelentes e confortáveis condições para viajar.
Notícia publicada em 15/10/11, no Pico da Vigia.
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A LENDA DAS LAGOAS DAS LAJES (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Sábado, 15 de Junho de 1946
Contava meu pai que havia, nas Lajes, um homem muito rico e que possuía muitas terras. Esse homem tinha dois filhos que viveram sempre em paz e alegria. Porém, após a morte do pai tudo se alterou na vida daqueles irmãos, passando os dois a tornarem-se gananciosos, odiando-se um ao outro e tornando-se grandes inimigos. Cada um desejava ficar com toda a herança que o pai lhes havia deixado, ficando o outro sem nada. Por isso cada um deles, sem que o outro soubesse, correu com uma demanda no tribunal. Mas nada conseguiu, nem um nem outro. Segundo as decisões do juiz, a herança deveria ser dividida equitativamente pelos dois. Não havia volta a dar-lhe. Apesar de tudo a ambição, a inveja e o ódio ainda mais aumentaram, o que fez com que cada um deles ficasse a pensar e arquitectar a maneira como havia de se livrar do outro, sem ninguém desconfiar.
Certo dia resolveram ambos ir visitar duas belas pastagens que o pai lhes havia deixado nos matos, para além da Boca da Baleia, já quase por cima do Lajedo. Cada um deles planeou matar o outro, assim que lá chegasse e assim tornava-se o único herdeiro da riqueza paterna.
Iniciaram a viagem e caminharam lado a lado, sem falar um com o outro para que não se denunciassem. Ao chegarem às pastagens, ambos ficaram admirados e surpreendidos pela ausência das terras, pois no seu lugar existiam agora duas lagoas, uma de margens altas e com verde dos arvoredos a reflectirem-se nas suas águas límpidas e transparentes e a outra rasa, a confundir-se com os pardos verdejantes que a rodeavam e com o azul celeste a reflectir-se na sua superfície.
Os dois irmãos compreenderam a mensagem que uma e outra visão lhes transmitiam. Era um aviso do pai para que fizessem as pazes, cessassem as invejas e os ódios e se tornassem amigos.
Regressaram a casa, felizes e contentes e, algum tempo depois, dividiram entre si as restantes propriedades que o pai lhes deixara. Mas as duas lagoas lá permaneceram tal e qual os irmãos as viram e assim perduram, até hoje.
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GANHOA
Ganhoa é uma palavra típica e exclusivamente açoriana. Trata-se do nome com que, popularmente, se designa uma espécie de gaivota muito comum em todas as ilhas do arquipélago. Trata-se da Gaivota-de-patas-amarelas ou Ganhoa, uma das aves marinhas mais fáceis de identificar. De facto, não há outra que nidifique nos Açores que com ela se possa confundir. Os adultos são brancos com excepção do dorso e das asas que são cinzento-claro e das pontas das asas que têm manchas pretas. As aves adultas têm as patas amarelas e um anel orbital de cor laranja escura e em alguns indivíduos quase vermelha. O bico também é amarelo e possui uma pequena mancha vermelha na ponta da mandíbula inferior que se estende ainda claramente à mandíbula superior. No inverno, os adultos adquirem uma plumagem acastanhada na cabeça. Nos juvenis, a plumagem varia ao longo dos três primeiros anos permitindo assim identificar a idade. Os juvenis do primeiro inverno são acastanhados e têm o bico preto e as patas e tarsos cor-de-rosa seco e, ao contrário dos adultos, apresentam uma faixa preta na extremidade da cauda.
A Ganhoa nidifica e tem o seu habitat em todas as ilhas dos Açores, onde existem mais de 4200 casais, distribuídos por 32 diferentes colónias. O número de Ganhoas açorianas já foi avaliado por duas vezes, em 1984 e em 2004, tendo-se verificado um aumento de quase 60% no número de casais reprodutores durante esse período. Sabe-se que a colónia da Lagoa do Fogo na ilha de São Miguel é a única que se situa no interior de uma ilha, estando todas as outras localizadas em falésias, zonas costeiras ou ilhéus. As maiores colónias localizam-se na Lagoa do Fogo e nos ilhéus do Topo, na ilha de São Jorge e das Cabras, na ilha Terceira. Estudos recentes, realizados pela professora da Universidade dos Açores, Verónica Neves, indicam que as Gaivotas estão a estender a sua distribuição nos Açores e nos últimos anos a espécie foi também observada a nidificar nos ilhéus da Vila, em Santa Maria, das Contendas, na ilha Terceira e no de Vila Franca do Campo, em São Miguel.
Estas aves podem ser observadas nas principais colónias de nidificação ao longo de todo o ano. Começam a construir o ninho em Abril e as posturas de dois a três ovos, castanhos e com manchas escuras, ocorrem entre meados deste mês e meados de Maio. As primeiras crias eclodem no início de Maio e tornam-se voadoras a partir de finais de Junho, inícios de Julho.
A Ganhoa é uma espécie oportunista e sinantrópica, estando bastante associada ao homem e beneficiando do alimento abundante disponível em lixeiras. Nos regurgitos produzidos pelas Gaivotas é possível encontrar um pouco de tudo, papel, vidro, plástico, etiquetas plásticas de marcar frangos, beatas de cigarro, etc. Na colónia dos Capelinhos na ilha do Faial, um adulto chegou mesmo a regurgitar cogumelos e milho quando estava a ser anilhado. É nas ilhas de maior densidade populacional como São Miguel e Terceira que a proporção de lixo na dieta das Gaivotas é maior. Mas, para além da forte associação aos detritos humanos, as Gaivotas também caçam e pescam muito bem. A sua dieta inclui Pombo-da-rocha, Canários e outros pequenos pássaros, incluindo as crias das Cagarras. Embora raros, os casos de canibalismo também ocorrem e algumas Ganhoas adultas podem matar e ingerir crias de ninhos vizinhos. As Ganhoas seguem com frequência barcos de pesca e é provável que muitos dos peixes de que se alimentam sejam obtidos dos desperdícios e do engodo lançados ao mar pelos pescadores. Mas também são capazes de capturar peixes e mesmo caranguejos e outros crustáceos.
A Ganhoa é, segundo Verónica Neves, a única ave marinha residente no arquipélago ao longo de todo o ano, todas as outras realizam migrações, afastando-se mais ou menos dos seus locais de nidificação. É uma espécie bastante cosmopolita e não possui ameaças graves nos Açores. Pelo contrário, constitui ela própria uma ameaça para outras espécies de aves marinhas, nomeadamente, para as mais pequenas e sensíveis como os Painhos e Garajaus, pois alimentam-se de Painhos adultos e de ovos e crias de Garajau e competem com os Garajaus por locais de nidificação.
Dados retirados de: Neves V. C., Population status and diet of the Yellow-legged Gull in the Azores.
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MÚSICA DE CANA
A criação de uma Filarmónica na Fajã Grande, no início da década de cinquenta, a chegada à freguesia dos instrumentos, vindos de Lisboa, a Bordo do Carvalho, as lições de solfejo, os ensaios quase diários, na Casa do Espírito Santo de Cima e, sobretudo, a primeira actuação da Senhora da Saúde, no dia sete de Setembro de 1951, a abrilhantar a festa em honra da sua homónima, foram acontecimentos ainda hoje presentes na memória de muitos e que marcaram, significativamente, não só a vida mas também os costumes de uma boa parte da população da Fajã, muito especialmente dos homens e rapazes, nomeadamente dos que constituíam o seu elenco. Mas as próprias crianças da freguesia também se imiscuíram e emaranharam de tal forma com a chegada da Filarmónica Senhora da Saúde, designada, simplesmente, por “a Música”, que até alteraram as suas tradicionais e quotidianas brincadeiras.
Na realidade não havia ensaio, nem muito menos cortejo em que Filarmónica participasse, nem se verificava uma actuação em público que a Música realizasse, sem que toda a ganapada da freguesia não estivesse presente, quer ouvindo os diferentes sons que iam saindo de todos e de cada um dos instrumentos, quer, no caso dos cortejos, correndo em procissão atrás dos músicos e das suas atraentes fardas azuis e brancas. E mesmo quando a Senhora da Saúde era convidada e ia actuar à Ponta ou à Fajãzinha, lá ia a miudagem toda atrás. Um enlevo! Mas um enlevo que cedo se alastrou de forma contagiante e galopante, passando a dominar tudo e todos, a sobrepor-se e até a fazer esquecer muitos outros folguedos, divertimentos e brincadeiras.
O sonho da criançada era ter também uma Música, em ponto pequeno, claro, mas que tocasse, que desfilasse e que percorresse as ruas da freguesia a fim de que todos ouvissem os seus belos acordes e se deleitassem com as suas suaves melodias. Sonhavam os fedelhos imitar os adultos. Se bem o sonharam melhor o fizeram e, cedo se generalizou a ideia de que seriam as canas, tão abundantes na Ladeira e no Outeiro, que devidamente cortadas e trabalhadas, haviam de transformar-se em pequenos instrumentos musicais, nos de sopro, claro, porque bombo, pratos e tarola arranjar-se-iam doutra forma. O bombo era o mais difícil de conseguir. Talvez alguém tivesse um tambor de tocar pelos Reis e Ano-Novo que os havia numa ou noutra casa, mas servia muito bem uma simples peneira das grandes, estragada e abandonada, forrada de papelão que alguém surripiasse lá em casa. A tarola até podia ser a simples tampa de um barril de cal que os comerciantes deitavam fora e os pratos duas tapas de caldeirões ou tachos de alumínio que se haviam de procurar na lixeira das Furnas. Os restantes instrumentos, esses sim, haviam de ser feitos de canas, com muita mestria, arte e engenho.
Canas, havia-as, em grande quantidade, ali perto, na Ladeira, no Outeiro e até no Pico. Mas era preciso saber escolher as melhores. Nem muito secas, nem muito verdes e umas mais grossas outras mais delgadas. Era preciso, também, junto a um dos nós, descobrir a película, isto é, ir cortando a cana, muito suavemente, com uma navalha, até ficar a descoberto a película interior, tarefa ingrata e difícil, pois vezes sem conta, com a cana já cortada ou com o instrumento já construído, esta película rompia-se. Era a película que produzia o som, quando se soprava na outra extremidade do canudo, som que se diferenciava consoante a maneira de soprar, a espessura e o tamanho da cana e ainda com a área maior ou menor de película descoberta. A restante parte de cada instrumento era feita também com canas, com vimes e com espadanas que se iam juntando e amarrando ao tubo inicial e que continha a película já descoberta. A requinta e os clarinetes eram fáceis de elaborar. Bastava, apenas, que a seguir o tubo com a película se deixassem mais dois ou três nós da própria cana, nos quais se abriam buraquinhos, destinados apenas a simular os buracos e as chaves que continham os clarinetes a sério. Depois os trombones que também eram de fácil execução, exigindo, no entanto três canas. Uma semelhante à dos clarinetes, mas mais curta, uma segunda pouco maior do que esta e uma terceira bastante comprida. Para a execução de um trombone eram também preciso um vime ou outra vara maleável e fios de espadana. Os vimes, devidamente cortados, ligavam as pontas das três canas: a da película que se estendia à frente do rosto ligava-se à cana grande, sendo amarradas com a espadana, na posição horizontal. Depois unia-se a parte de trás da cana grande, com outro vime, à outra cana mais pequena, mas na posição vertical, e amarrava-se também com espadana, de maneira a que, esta terceira cana se projectasse, enquanto se soprava a primeira cana, atrás da orelha esquerda. Estava o trombone feito. Com técnicas semelhantes faziam-se os cornetins, as trompetes e até os saxofones, mas estes com as canas dobradas e amarradas em forma de z. Mais difíceis de fazer eram os Contrabaixos, os Bombardinos e as Trompas e, por isso mesmo, raramente, constituíam o conjunto dos instrumentos musicais.
E estava a Música pronta. Escolhia-se o maestro com a sua batuta, enfileiravam-se os tocadores, de dois a dois ou três a três e desfilava-se pela Assomada e pela Rua Direita que era um primor. Nem a Senhora da Saúde a sério! Só que de vez em quando uma ou outra película rompia-se, depois mais uma e outra, três, quatro e, por vezes, até a banda toda. Mas verdade é que mesmo sem película todos tocavam os seus instrumentos, parecendo tudo aquilo, em tais situações, uma perfeita e verdadeira “Cana Rachada”.
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CASA COM JANELAS PARA| O SOUSA
Casa pobre, humilde, modesta e muito antiga, mas com duas janelas voltadas para o rio Sousa. As paredes de um castanho amarelado, de tal maneira despidas de cal, deixavam ver os pedacinhos de xisto com que haviam sido construídas e que, semelhantes a tabuinhas, se sobrepunham e entrelaçavam uns nos outros, em camadas simétricas e rendilhadas que iam do chão ao telhado e se prolongavam ao longo dos muros e paredes circundantes. Tinha um aspecto muito tosco e rústico, com portadas de madeira carcomida pelo tempo, sem grandes vidraças e com dois andares. No rés-do-chão ficavam as lojas de arrumos, uma adega muito pequenina, a cozinha e a retrete. O primeiro piso, a que se tinha acesso apenas por uns degraus exteriores também de xisto e ladeados por um corrimão de ferro enferrujado, era constituído por uma sala e dois quartos e eram estes que tinham as janelas voltadas para o Sousa, porque a casa, na realidade, ficava muito perto, mesmo nas margens deste afluente do Douro, um rio de águas límpidas, cristalinas e azuladas, repletas de uma imensidade de barbos, carpas, bogas e outros pequenos peixes que se movimentavam em loucas correrias, em constantes rodopios e em simulados ziguezagues. O Sousa deslizava calma e suavemente, atravessando uma planície onde, de um lado e outro das suas margens, se escarrapachavam campos atulhados de milho e com ramadas de vinha a servir-lhe de tecto e se acomodavam terrenos divididos por beiradas de amieiros, choupos e videiras, todos muito férteis e produtivos. No Inverno, enquanto aguardavam as sementeiras, os campos com as vinhas despidas de folhagem, tinham um aspecto avermelhado e escurecido, mas na Primavera revestiam-se com o verde dos milheirais, dos legumes e das vides e no Verão começavam a amarelecer até alourarem por completo no Outono. A ladear a casa e também com as portas voltadas para o rio, as cortes onde os animais se aninhavam, refastelando-se em descanso à espera de sustento e da do destino.
Casa com janelas para o Sousa gasta e desfeita pelo tempo!
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O NAITIGÃO
Há semanas que ela andava excessivamente entusiasmada com a preparação do enxoval para o seu casamento. Pais comerciantes e sogros lavradores remediados conjugavam as condições necessárias e os meios adequados para que a festa fosse de arromba e o enxoval de luxo ou que ao menos ombreassem com os melhores que, até então, a freguesia inteira tinha presenciado.
Desde há muito que se haviam apaixonado um pelo outro e iniciado o namoro. Sem grande oposição dos progenitores, ambos de boas famílias, ambos com comportamento exemplar e com algumas posses, começaram a frequentar a casa de um e do outro e, algum tempo depois, foi feito o pedido, foram anunciados os proclamas nas missas dos três domingos da praxe e, por fim, marcada a data do casamento. A mãe dela, que o pai já havia falecido, como era costume na Fajã, pagava as despesas mas os pais dele também se comprometiam a colaborar empenhadamente nos arranjos e a ajudar nos preparativos para boda. Mas o enxoval era totalmente da sua responsabilidade. Havia de ser ela própria a escolher os tecidos, a seleccionar os modelos, a conjugar as cores, enfim a indicar e a escolher tudo o que mais gostasse e, em sua opinião, lhe ficasse melhor. Com vestidos, casacos e blusas até nem se preocuparia muito. Mas havia duas coisas de que não podia abdicar de se esmerar na escolha: o vestido de noiva e o “naitigão” para a noite de núpcias.
O vestido, porém, não trouxe grandes dificuldades, desassossegos ou consumições. A senhora Elizinha, a costureira escolhida pela família, tinha muitas revistas, algumas até vindas da América, com vestidos de noiva para todos os gostos e de todos os feitios, por isso, a escolha foi fácil e acessível. Agora o “naitigão”, esse fiava mais fino, era mais difícil de optar, apesar de ela saber muito bem o que queria e desejava. Havia ser de tule, de um tule discreto, de cor creme e pouco transparente e havia ser curto, bastante curto, por meia perna e cavado… sem mangas. Sonhava que assim se lhe apresentaria naquela noite única e mágica, mais sensual, mais atraente, mais apetecível, mais mulher. A Irene, a amiga de sempre, havia-lhe jurado a pés juntos que, na noite de núpcias, havia noivos que até tiravam a camisola interior e ficavam em tronco nu. Talvez ele também o fizesse e com um “naitigão” de cavas havia de poder abraçá-lo melhor, sentir o calor do seu corpo, o carinho dos seus braços, a excelência da sua ternura, o enlevo do seu carinho. E ele também havia de gostar de a ver assim, apreciar a sua beleza, excitar-se coma suavidade da sua pele, talvez até lhe beijasse os braços, como tentara fazer certo dia, numa aba mais escondida de uma parede da ladeira das Covas, quando regressavam da Ponta, da festa da Senhora do Carmo. Ele puxou-a para a frente dos outros, começaram a correr como se fossem loucos sem, no entanto, conseguir esquivar-se por completo do grupo.
Em casa da senhora Elizinha o vestido e o “naitigão” começavam a tomar forma e feitio. Já tinha feito duas provas e preparava-se para a terceira. Estava tudo quase pronto. Mas era sobretudo o “naitigão” mais do que o vestido que começava a ser gabado, elogiado e cobiçado por amigas e vizinhas que o viam e a invejavam cada vez mais. Só que entre as candidatas a apreciadoras de tão excelsas e invulgares vestimentas, apareceu, certa tarde, uma futura cunhada. Uns anos mais velha do que ela, solteira, assumidamente casta, presumivelmente virgem, muito da igreja, muito de missas, de novenas e de devoções e, como se isso não bastasse, muito mandona e muito habituada a ser ela a decidir e a resolver tudo o que à sua família dizia respeito, de acordo com os seus princípios religiosos e os seus valores morais.
Ao entrar em casa da Elizinha, ao apreciar o enxoval e ao deparar com o “naitigão” de cavas desesperou, exasperou, gritou e berrou de tal modo que ninguém a calava. Que aquilo era uma grande pouca-vergonha, que era um descalabro, um horror. Mas aquilo não ficava assim. Ai não ficava não. Havia que impor dignidade, decência e respeito e se, a mãe dela o não fizesse, havia de ser ela própria a fazê-lo. Por isso procurou, de imediato, a futura noiva, com a denodada intenção de a demover de tão vil, energúmeno e quase sacrílego “naitigão”.
- Um “naitigão” de cavas, e ainda por cima curto e transparente! Nem pensar! Isso são coisas do demónio, desejos do “coiso-mau”. Lembra-te que o teu corpo é morada de Deus e da Santíssima Trindade. Nunca o hás-de profanar com tão grande, vil, indigna e imunda pouca-vergonha.
E voltando a casa da Elizinha, deu ordens rigorosas e indiscutíveis de que fizesse um “naitigão” decente, de flanela, mas da boa, comprido até aos artelhos e com mangas, como era apanágio das meninas de bem da freguesia.
- Com mangas, ouviu bem? Com mangas e bem compridas. – Repetiu vezes sem conta à Elizinha.
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ALBANO CORDEIRO
Albano Cordeiro nasceu na Ribeira Grande, ilha de S. Miguel, em 29 de Outubro 1914, onde faleceu, em Abril 1964. Albano Cordeiro foi um poeta de inspiração tradicional, romântico e sentimentalista, de cuja produção sobressaem sonetos ao gosto de Antero de Quental.
Viveu toda a sua vida na cidade natal. A sua obra reunida em três pequenos livros, o último dos quais, Mercê da Saudade, foi publicado postumamente. As outras publicações foram: O Poema de uma Juventude e Regresso.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O LUGAR DA ESCADA-MAR
A Escada-Mar era um dos lugares mais belos e mais airosos de todos os lugares da Fajã Grande. Situava-se num enorme planalto, sobranceiro à Silveirinha e tinha como fronteiras, a sul a Alagoinha de Baixo e os Paus Brancos, a oeste o Pocestinho, a norte a Silveirinha e a leste o Cabeço da Rocha e a própria Rocha. Aliás era esta proximidade da Rocha, pela qual a Escada-Mar era como que protegida, que conferia àquele lugar uma maior graciosidade, uma inexaurível beleza e uma invulgar singularidade. Por um lado beneficiava da proximidade da Rocha, precisamente no local onde esta atingia a sua maior altitude e no sítio em que estava cada vez mais atafulhada de verde, de tufos e de regatos, junto de quem a Escada-Mar parecia aninhar-se. Além disso a sua situação altaneira, o descampado de que estava aureolada e o perfume que emanava das ervas e plantas que cobriam o seu chão, tornavam a Escada-Mar um lugar ímpar e extraordinário.
Segundo algumas pessoas de idade mais avançada e também de acordo com alguns registos de propriedades situadas naquele local e que se encontravam inscritas no Registo Predial de Santa Cruz das Flores, o verdadeiro nome deste invulgar e original lugar, noutros tempos, seria o de “Escada do Amaro”, verificando-se assim uma evolução fonética provocada pela forma de falar do povo fajãgrandense, pautada fundamentalmente por critérios de facilitismo e simplicidade. Quem seria este Amaro que deu nome à Escada-Mar? Será de todo impossível sabê-lo. Com certeza que seria algum habitante da Fajã que por ali tivesse uma ou mais propriedades. Porquê “escada”? Poder-se-ão encontrar duas razões para explicar a presença da palavra “escada” neste topónimo. Uma delas, talvez a mais evidente e razoável, seria a seguinte: como o local ficava num planalto sobranceiro à Silveirinha, era preciso subir para lá chegar. Nos anos cinquenta a Silveirinha ligava-se ao planalto da Escada-Mar por uma ladeira que fazia parte do velho caminho entre a Fontinha e os Lavadouros. Mas antes da construção deste caminho e, consequentemente, antes da tal ladeira existir, possivelmente o acesso àquele local poderia ser feito por uma escada ou por degraus de pedra, que muito provavelmente se situariam numa propriedade de um tal Amaro. Esta poderá ser a explicação mais plausível, mas não única. Existe uma outra explicação, embora menos provável: poderia também um certo Amaro ter levado para ali uma escada para usar em qualquer uma das suas actividades, como por exemplo na apanha de fruta ou outra. No entanto a justificação anterior parece mais lógica, plausível e provável.
A Escada-Mar ou Escada do Amaro apesar de ser um local de grande beleza e de excessiva agradabilidade, era, no entanto, uma zona de terrenos pouco férteis e bastante pobres, uma vez que ficava situado numa zona de transição entre os férteis terrenos de cultivo da Silveirinha e as terras das árvores frondosas do Pocestinho e do Pico Agudo e ainda entre as viçosas relvas da Alagoinha. Era pois uma espécie de zona neutra (nem de cultivo, nem de mato, nem de relvas) e, por isso mesmo, por ali havia apenas algumas relvas de erva pouco viçosa e uma ou outra terra de cultivo de fraca produtividade. Além disso e, como ficava perto da Rocha, os terrenos por ali existentes estavam crivados de pedras e calhaus os quais, muito provavelmente, em tempos idos, se haviam despegado daquele alcantil e caído ali. Mas na década de cinquenta, não se podia considerar a Escada-Mar uma lugar de risco, uma vez que a Rocha já estava bastante calcificada e enrijecida.
Na Escada-Mar, um pouco antes do sítio onde o caminho se bifurcava, com uma saída para o Pocestinho, havia um enorme descansadouro, talvez o maior da freguesia e que servia para que descansassem os homens que vinham carregados do Pocestinho e de todos os lugares contíguos ao caminho que dava para os Lavadouros.
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MADRESSILVA
Fui plantar a madressilva,
Entre os rochedos do mar.
Nasceram bredos e cardos,
Sombras de lava, sem par!
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O DESASTRE DOS FANAIS (1819)
Um dos maiores desastres marítimos ocorridos com pessoas da Fajã Grande, depois do trágico desastre do Corvo, foi o que aconteceu no dia dezoito de Agosto de 1819, por fora dos Fanais. Assim como no desastre do Corvo, de 1942, o barco naufragado nos Fanais transportava quase exclusivamente passageiros naturais e residentes na Fajã Grande e que também se haviam deslocado ao Corvo, a fim de participarem na festa da Senhora dos Milagres. O acidente deu-se quando regressavam à Fajã. Sendo a festa no dia quinze de Agosto e o regresso tendo-se verificado apenas no dia dezoito, é muito provável que devido ao mau estado do tempo, a viagem de regresso tivesse sido adiada para aquele dia, sendo que, muito provavelmente o mar não estaria ainda nas melhores condições de navegabilidade, nem o tempo favorável à navegação. O barco regressava do Corvo com destino ao porto da Fajã Grande, sob as ordens do seu mestre e proprietário Francisco Coelho Rafael e, para encurtar distâncias, rumou em direcção a Ponta Delgada, ladeando, a partir daí, a costa noroeste da ilha das Flores, até à baía dos Fanais, junto ao ilhéu de Maria Vaz. O acidente deu-se por fora da baixa do Fanal, ainda na freguesia de Ponta Delgada e, muito provavelmente, devido ao mau estado do tempo e do mar. Mestre Francisco Coelho Rafael, de 76 anos, perdeu a vida e com ele mais dez pessoas, sendo uma do Corvo, outra da Fajãzinha e as oito restantes da Fajã Grande.
Da Fajã faleceu, para além do mestre, Leonardo José da Silveira de 26 anos e sua esposa, Maria de Jesus de 20 anos, que haviam casado no ano anterior, na igreja paroquial da Fajãzinha. Faleceram ainda alguns jovens, um de apenas dezassete anos, chamado José filho de João de Freitas, uma rapariga de nome Maria, de vinte anos filha de João António da Silveira. Faleceram ainda José António Galo de quarenta e três anos, Esperança de Freitas de cinquenta e oito e José de Fraga Henriques de quarenta. A jovem natural da Fajazinha que também faleceu neste desastre chamava-se Maria e tinha 20 anos. Não se sabe ao certo quantos passageiros o barco transportava nem, consequentemente, o número de pessoas que se salvaram.
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TABUINHAS E FORMAS
Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, praticamente, todas as casas tinham uma ou mais tabuinhas de madeira e várias tiras de lata, cada uma das quais se podia transformar numa espécie de círculo, de vários tamanhos. Eram os tradicionais utensílios necessários ao fabrico do queijo e ao seu posterior tratamento.
As tabuinhas eram fáceis de arranjar, pois eram simplesmente pequenos pedaços de madeira de criptoméria, geralmente excedentes do assoalhar ou tabicar da própria casa, da de um vizinho ou amigo ou de quem quer que fosse e que deles não necessitasse. Outras vezes tábuas pedidas nas lojas de comércio e que sobravam dos caixotes de sabão. Mas como nos anos cinquenta muitas famílias da Fajã procediam ao arranjo e melhoramento das suas casas, quer tabicando as salas e os quartos de cama, até aí sem forro e com os tirantes à mostra, quer assoalhando as cozinhas, muitas das quais, na altura, ainda tinham chão de terra ou de tijolo, era fácil arranjar as ditas tabuinhas. Mas havia também quem não as conseguisse obter. Nesse caso ou ficava com as que os antepassados lhes haviam deixado como herança ou adoptavam e adaptavam, então, a frágil madeira dos caixotes de sabão, que os comerciantes da freguesia, de vez em quando lá iam deitando fora. Num caso e noutro estas tabuinhas deviam ser sempre muito bem lavadas e limpas.
As formas feitas de lata, por sua vez, eram adquiridas no único latoeiro da freguesia, o Antonino de Francisco Inácio, pelas quais geralmente não levava dinheiro, uma vez que também eram resultantes das sobras das latas que ele próprio ia fabricando e vendendo. As formas deviam ser muito bem furadinhas pelos lados e eram presas nas pontas formando um círculo e sendo amarradas com um pano ou cordão, o que permitia torná-las maiores ou menores, consoante a quantidade de leite que se tinha disponível para fazer o queijo, assim como para apertar o queijo à medida que ele ia “curando”.
Depois era deitar o coalho no leite morno e esperar para que coalhasse. Uma vez coalhado o leite era colocado aos poucos dentro da forma, prensado com a mão, colocando-a, de seguida, sobre a tabuinha, ficando assim, suspensa em cima de uma selha, de forma a escorrer o soro pelos furos, permitindo que este fosse aproveitado para alimento dos porcos. No que às formas diz respeito, havia geralmente em todas as casas uma maior e mais alta, destinada, fundamentalmente, fazer os queijos com “crostes”, ou seja com o leite tirado às vacas nos oito dias seguintes a “dar bezerro” e durante os quais não podia ser vendido pois era impróprio para ser desnatado.
Depois de retirados das formas os queijos eram colocados a “curar” em armações de canas presas nos tirantes da cozinha, a fim de que nem as crianças e os gatos a eles se atirassem…
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MORCELAS
Na Fajã Grande, como em todos os outros lugares, freguesias ou regiões do país, as morcelas eram feitas por altura do Natal, normalmente nos dias que o antecediam, sendo confeccionadas no próprio dia da matança do porco.
Para a sua realização utilizavam-se as tripas grossas, o bucho e o velho, sendo tudo muito bem limpo, lavado, tornado a lavar, virado e revirado, areado com laranjas azedas, folhas de cebola e farinha e novamente muito bem lavado até ficar completa e absolutamente limpo. Como,”sem sangue não se fazem morcelas”, o sangue do porco era ingrediente obrigatório. Para tal o porco devia ser muito bem degolado a fim de “deitar” a maior quantidade de sangue possível, o qual era aparado num enorme alguidar, onde se juntava uns punhados de sal, mexendo-se constantemente com as mãos ou com colheres de pau, para que não coagulasse. Ao sangue de um porco normal ou médio devia juntar-se mais ou menos um quilo de arroz cozido, duas tigelas médias de rama de cebola picada e também cozida, duas mãos cheias de salsa picada, alhos igualmente picados, pedacinhos de carne e de toucinho da barriga e temperos variados: canela, cominhos, noz-moscada, cravo-da-índia, sal e malaguetas. Um pormenor curioso era o de que a rama da cebola depois de cozida deveria ser muito bem espremida, o que se fazia geralmente apertando-a dentro de uma toalha ou outro pano. Uma vez juntos todos os ingredientes, misturavam-se muito bem, provava-se e acertavam-se os temperos, deixando-se repousar durante algumas horas.
Só então se enchiam as tripas grossas, o bucho e o velho com todo este preparado, devendo atar-se, antecipadamente, uma das extremidades da tripa com um fio barbante ou outro que se tivesse mais à mão. As tripas não deviam ser muito cheias ou acoguladas a fim de não rebentarem, sobretudo durante a cozedura. Depois de encher a tripa, amarrava-se a outra extremidade, prendiam-se os fios das duas pontas uns nos outros de modo a que a morcela formasse uma espécie de semicírculo, prendiam-se pelos cordões em grupos ou cachos, em varas de vime e mergulhavam-se, durante algum tempo, em água a ferver e a que, antecipadamente, se juntara um mão cheia de sal. Para saber se as morcelas já estavam cozidas, retirava-se uma e bicava-se com uma agulha; se não vertesse sangue era sinal de já estarem cozidas e prontas a retirar.
As morcelas geralmente serviam-se cortadas às rodelas ou fritas em banha e comiam-se acompanhadas de pão de milho, de bolo, de batata-doce ou de inhame. Eram um excelente e saboroso manjar! Também se guardavam algumas, debaixo de banha, para se conservarem melhor e comerem mais
Era tradição, em muitas casas da Fajã Grande, cozer os pés do porco junto com as morcelas, os quais, juntamente com o bucho, constituíam a ceia no dia da matança, na qual participavam apenas as pessoas da casa e uma ou outra mais chegada ou amiga.