PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TERESINHA DE JESUS
Uma dos jogos ou brincadeiras muito frequentemente realizadas pelas meninas, na Fajã Grande, na década de cinquenta, era a “Teresinha de Jesus”. Tratava-se de uma espécie de baile ou dança de roda que as raparigas organizavam, para se divertirem, nos recreios da escola, nas tardes de domingo, nos serões das Alvoradas das Casas do Espírito Santo ou noutros lugares e momentos onde tivessem oportunidade de o fazer. Dando as mãos umas às outras, formavam uma grande roda e iam circulando, embaladas pelo som do canto das suas próprias vozes. Cantavam a música “Terezinha de Jesus”, uma melodia bastante harmoniosa e fácil de decorar. Uma vez que este baile também era realizado pelas raparigas mais crescidas e já namoradeiras, havia quem entendesse esta brincadeira como uma espécie de jogo amoroso ou uma charamba que teria sido trazida para as ilhas pelos primeiros povoadores, uma vez que sabe que remonta aos tempos mais recuados do povoamento das ilhas e que era conhecida noutras paragens, nomeadamente, na Madeira, de onde se cuida que possa ser originária.
Na Fajã Grande era realmente considerada uma espécie de cantiga de amor, em que as meninas, sobretudo as mais crescidas, aproveitavam a oportunidade para manifestarem os seus sentimentos ou fazerem uma espécie de corte ao seu amado, aquele a quem, se não davam a mão, pelo menos dirigiam um olhar carregado de simbolismo, de emoção e, por vezes, até comprometedor.
“Teresinha de Jesus deu uma queda
Foi ao chão
Acudiram três cavalheiros
Todos de chapéu na mão
O primeiro foi seu pai
O segundo seu irmão
O terceiro foi aquele
Que a Teresa deu a mão
Teresinha levantou-se
Levantou-se lá do chão
E sorrindo disse ao noivo
Eu te dou meu coração
Dá laranja quero um gomo
Do limão quero um pedaço
Da morena mais bonita
Quero um beijo e um abraço.”
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ÉCLOGA DOLENTE
Aos anos que partiste (16 de Janeiro de 1966) mas ainda hoje persiste, na minha memória, a tua imagem: o enrugamento rúbeo das faces, a tez escurecida, o olhar aparentemente distraído mas persistente e apreensivo, rosto macilento, mascarado de boa-disposição quando, afinal, bem lá no teu íntimo, havia mágoa, sofrimento e dor em demasia. As tuas palavras eram raras, por vezes, até, mal pronunciadas e irreverentes mas sempre seguras, eloquentes, destemidas e verdadeiras, sobretudo, verdadeiras. O teu pensamento, muitas vezes, como que voava e se esvaía por entre horizontes perdidos e desfeitos, mas acarretavas, permanentemente, na memória, o “encanto” dos teus dias, (se não me entenderes esclareço que me refiro à minha mãe) tão precocemente arrancado do teu e do nosso quotidiano. Para ti, para mim e para os outros cinco fingias estar bem, mas todos sabíamos, que carregavas aos ombros, uma mágoa demolidora, uma dor aniquilante, um tormento desolador que mais tarde havia de destruir-te por completo, exterminar-te totalmente, deixando-nos sós, numa enorme desolação. Para todas as nossas perguntas tinhas sempre uma resposta, mesmo que fosse repleta de silêncio mas sempre motivadora e corajosa. Sei que te ufanavas de estar ao nosso lado e se, por vezes, te escondias ou afastavas, sozinho, era para não vermos as lágrimas que, abundantes, te corriam dos olhos e a melancolia que te ornava o peito. Esse teu optimismo mascarado consternava-me, porque eu sabia que não te conformavas com o nosso destino, que preanunciavas o nome das estrelas com temor e cuidavas que, em cada noite, o seu brilho se ia desvanecendo. Não soubeste, afinal que as estrelas, apesar de eternas, são empurradas pelo vento que, acicatado pelas nossas angústias, nos sopra dentro do peito e lhes muda os rumos e estimula o brilho. Por isso ficaste deveras preocupado comigo e com os outros e desgastaste, nesse soterrar de apreensões inquietantes, a tua precária saúde. Sei que é tarde para te dizer ou lembrar tudo isto, mas roubaram-me o tempo, levando-te antes que to dissesse.
Lembro-me de que quando saías de casa logo pela manhã cedo, caminhando no frio e na escuridão, na labuta quotidiana, no que consideravas ser o teu dever, deixavas-nos quietos, sossegados, no silêncio da madrugada, para não nos desfazermos, pois cuidavas que eramos nuvens de cristal. Sozinho, levavas as rezes aos campos, rachavas a lenha no madeiro duro, lançavas a mão à enxada como quem joga os dados sobre a mesa, numa palavra, arriscavas gastar o teu suor numa esperança guarnecida de fantasia. Depois era o trato amargo do arado a rasgar regos de inconstância sobre os projectos que não conhecias mas sabias que existiam. As mãos ficavam-te calejadas, os músculos tensos, os pés inchados, os ombros, inteiriçados e até os teus olhos tornavam-se velados e perdiam aquele brilho estonteante das madrugadas de outrora em que o reboliço da juventude te devia ter enchido de encanto. Vinhas, então, acordar-nos, para ouvirmos o canto dos pássaros, saborearmos o adocicado dos frutos, sentirmos o perfume das flores e corrermos atrás do esvoaçar das borboletas.
Deixaste-nos uma nobre herança. Revejo-te nela e recordo-te quando te confrontavas com a verdade, com a lealdade, com a sinceridade e com a honestidade, apesar da pobreza nobre e digna que te abalroava o quotidiano. Contestaste a opressão, disseste não à violência e pediste aos pérfidos que abandonassem as insídias, aos intolerantes que se transformassem em crianças e aos intransigentes que, pelo menos durante um dia, espalhassem uma nesga de docilidade.
Agora estás em silêncio, longe, muito longe, no espaço e o tempo. O tempo não volta, o espaço é infinito e é impossível transformar a morte em vida ou colar o passado no presente. Agora apenas posso conservar a memória (com a agravante de ser dolente) dos tempos de outrora, que desperdicei sem ouvir com mais atenção a tua voz de silêncio eloquente, sem ver com maior rigor o teu olhar sombrio, sem te acompanhar com deslumbramento no teu caminhar ofegante. Por isso, hoje (16 de Janeiro de 2014) persiste, na minha mente, apenas a tua imagem: o enrugamento rúbeo das faces, a tez escurecida, o olhar aparentemente distraído, o teu rosto mascarado de boa-disposição.
Ah! Ficou-me também a sublime herança da tua honestidade!
A morte pode acabar com a vida e creio que acaba mesmo, mas não desfaz a memória dos que partiram, muito menos a memória de um pai.
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“SENHORA DO PRANTO” DE JOSÉ AUGUSTO BORGES
Da autoria de José Augusto de Melo Borges e sob a égide da Câmara Municipal do Nordeste, ilha de São Miguel, foi recentemente publicado o livro Senhora do Pranto – Caminho de Fé.
Numa linguagem simples, comunicativa, esclarecedora, raiada de jactos de fé, ornada com vivências pessoais e enriquecida com dados históricos e com testemunhos de alguns devotos, mas acessível aos mais humildes dos crentes que demandam aquele pequeno “santuário” mariano, José Augusto Borges relata-nos vivências, testemunhos, lendas e estórias daquele que é considerado um dos mais antigos e emblemáticos templos religiosos, não apenas do concelho do Nordeste mas até de toda a ilha de São Miguel.
Construída no ano de 1522, a pequenina ermida situada na Lomba de João Soares, precisamente no extremo da freguesia de São Pedro de Nordestino, já na fronteira com a Lomba da Fazenda, está ligada a algumas interessantes lendas, já referidas por Gaspar Frutuoso. Naquele ano, altura em que começou uma grande peste em Ponta Delgada, um moço guardador de gado avistaria Nossa Senhora e a Virgem ter-lhe-ia ordenado, entre outras tarefas, a da construção duma ermida, ali, naquele andurrial, sobre o mar. O povo, eivado de fé, tê-la-á construído, de imediato. Durante as obras, escreve frei Agostinho de Montalverne, a água teria milagrosamente aparecido e, depois de pronto, o templo seria de muita romagem. Conta ainda Gaspar Frutuoso que outros factos sobrenaturais se repetiram em 1563, por ocasião de um grande terramoto. Não obstante toda esta crença e devoção, a ermida passou, ao longo dos séculos por vicissitudes diversas, chegando mesmo a ser abandonada ao descalabro, durante alguns anos. Mas a devoção no povo nunca se extinguiu, procedendo-se sempre a vários restauros, com destaque para o último, verificado já na segunda década do século XXI.
Construída sobre uma lomba junto do mar, no silêncio da natureza e afastada dos burburinhos dos povoados e até da vista dos que passam nos caminhos circundantes, esta ermida, verdadeiro testemunho de crença e fé das gentes do nordeste micaelense, guarda, no seu interior uma valiosa imagem da Virgem com um conjunto de capas anexo e uma tela representando a descida da Cruz, estando uma e outra, bastante longe das primitivas, nomeadamente a tela que, se cuida que, tendo ido a restaurar, terá sido substituída por uma outra, em tudo semelhante.
O livro está dividido em duas partes. Na primeira, o autor, misturando a história e a realidade com a ficção, relata-nos a “estória” de uma jovem – Maria de Lurdes – cuja vida, desde o namoro e casamento dos pais, se prende intimamente com a ermida e com a devoção à Senhora do Pranto. Através de um relato fictício mas sempre fundamentada em vivências reais, a que o autor não é alheio, o leitor vai construindo, por entre os modos de vida, os costumes e as tradições dos nordestinos de antanho e sobretudo pelas suas vivências religiosas sempre direccionadas para a invocação da Senhora do Pranto, “caminhos de vida” diversos e diversificados, sempre aureolados pelo apoio e auxílio, por vezes milagroso, da Senhora – Senhora de encontros, de aflições, de estudantes, de pescadores, de militares em guerra, de romeiros e de emigrantes, proporcionando a todos os mais sublimes momentos de alegria, as mais emblemáticas vidas de felicidade, os mais sensatos e profícuos caminhos que, através da fé e da oração, conduzem à salvação, sobre a poderosa intercessão da Mãe de Deus - a Senhora do Pranto, também designada por Senhora da Vida.
Na segunda parte José Augusto Borges relata, de forma rigorosa e documentada, os aspectos mais significativos da história da ermida, referindo as principais obras de restauro, nomeadamente, as últimas, inauguradas em Fevereiro de 2012, as quais fizeram da ermida da Senhora do Pranto “um dos marcos do património cultural e arquitectónico do Nordeste”. Por tudo isso e, sobretudo, por ser um local de paz, onde tudo o que “o envolve torna-o um sítio privilegiado para nos encontrarmos com Deus, connosco e com os outros”. No alto da Lomba onde se situa a ermida ficamos “completamente isolados de todo e qualquer casario, temos uma visão paradisíaca à nossa volta: a nascente o mar azul que toca o céu na linha do horizonte e a oeste a montanha que se ergue até ao céu.” Por tudo isto, segundo o autor, a ermida da Senhora do Pranto deve integrar o “roteiro religioso” da ilha do Arcanjo.
Recorde-se que José Augusto Borges que fez uma boa parte da sua formação académica no Seminário de Angra, foi bancário em Ponta Delgada e na Ribeira Grande, reformando-se como gerente em 2002, já havia publicado um primeiro livro sobre esta ermida, intitulado Lágrimas de Fé.
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MESTRE JORGE
Durante muitos anos e ao longo da década de cinquenta, o Senhor José Jorge, mais conhecido na freguesia por “Mestre Jorge” ou simplesmente, “O Sapateiro”, foi o único sapateiro existente na Fajã Grande. Mais tarde, a ele se juntou outros, nomeadamente o Serpa da Ponta que tinha oficina na Via d’Água, nos arrabaldes do Porto e o José Maria que, depois de alguns anos a trabalhar na Quada, assentou arraiais e montou a sua modesta sapataria na Fontinha.
Mestre Jorge disfrutava de pequena mas interessante oficina na Assomada, precisamente na loja da casa onde morava e que era contígua ao palheiro do gado. No entanto, esse edifício, que ao longo de anos, forçou a rua da Assomada a delinear uma enorme e acentuada curva, logo a seguir à Praça, a quando da abertura da estrada entre o Porto da Fajã e a Ribeira Grande foi demolido por completo, sendo construída, em sua substituição, uma outra casa, no mesmo local, mas mais encostada ao Outeiro, dando assim menos sinuosidade e mais largura à nova via.
Mestre Jorge não se dedicava a tempo inteiro ao fabrico, conserto e reparação do calçado. Criava duas vacas e trabalhava nos campos, tarefas em que era ajudado pelos filhos, permitindo-lhe, assim, dedicar grande parte do tempo ao ofício a que por gosto e dedicação se entregara.
Mestre Jorge tinha fama de ser um sapateiro, sábio, competente e trabalhador. É que para além de consertar todo o tipo de calçado e até remendar botas de borracha, frequentemente usadas pelos homens quando ceifavam erva nas lagoas exageradamente encharcadas, ele próprio também fabricava tamancos e galochas, um tipo de calçado mais rudimentar, mas muito usado na altura, na Fajã Grande: os tamancos pelos homens e as galochas pelas mulheres. Além disso era mestre Jorge quem fazia as botas dos jogadores de futebol, assim como a própria bola, cuja manufacturação era bastante complicada e de difícil execução. Construída com pequenos pentágonos de couro, depois de cosidos uns aos outros, a bola pronta, mas do avesso, pelo que tinha de ser revirada através de um pequeno orifício, tarefa difícil e delicada que só um hábil artista conseguia. Depois era meter lá dentro a câmara-de-ar, enchê-la e coser o buraco, mas de tal maneira a se poder abrir quando fosse necessário injectar mais ar na bola.
Mestre Jorge era meu vizinho e grande amigo do meu pai. É que para além da vizinhança, partilhavam a idade e comungavam um passado de juventude comuns. Por isso mesmo habituei-me sempre a respeitá-lo. Além disso os filhos eram pela minha idade e de meus irmãos, pelo que muito partilhávamos em folguedos, brincadeiras e até em trabalhos, ajudando-nos e auxiliando-nos reciprocamente.
Mestre Jorge, casado, em segundas núpcias, com uma senhora de nome Conceição, irmã do José Ti’Anina, teve cinco filhos. Quatro ainda residentes na Fajã Grande: a Madalena, a Hermínia, a Anina e o António. Apenas um, que durante a infância residia em casa de uns tios nas Courelas, o João Luís, emigrou. Do primeiro casamento, enviuvou muito novo, e teve apenas um filho, o José Jorge, na altura já casado, a morar no cimo da Assomada e que mais tarde também emigrou.
Mestre Jorge um homem que com o seu trabalho, dedicação, competência e, sobretudo, com a sua “arte” de sapateiro ajudou a edificar, construir e fortalecer a história da Fajã Grande, tornando-se uma das mais suas emblemáticas personagens da década de cinquenta.
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CURRICULUM VITAE
João Joaquim Fagundes Júnior, filho de António Lourenço Fagundes e de Maria de Jesus Fagundes, neto paterno de José Lourenço Fagundes e de Mariana Joaquina de Jesus e materno de António Joaquim Fagundes e de Policena Joaquina da Silveira, nasceu a 18 de Outubro de 1902, na freguesia da Fajã Grande, Concelho das Lajes, ilha das Flores, Açores. Foi baptizado na igreja paroquial da mesma freguesia, pelo vigário Joaquim Ferreira Campos, onde também fez a primeira comunhão. Crismou na mesma igreja, em 1925, a quando da visita pastoral às Flores, do bispo diocesano, D. António Augusto de Castro Meireles, sendo seu padrinho, Manuel Luís de Fraga, na altura, aluno do Seminário de Angra. Casou na igreja paroquial da Fajã Grande, com Angelina da Natividade Fagundes, no dia 28 de Maio de 1938, oficiando o casamento, o pároco padre Manuel de Freitas Pimentel. Deste casamento nasceram seis filhos: José, Maria, António, Carlos Vitória e Francisco. Faleceu em 16 de Janeiro de 1966, na Casa de Saúde de São Rafael, da Ordem Hospitaleira de São João de Deus, de Angra do Heroísmo, ilha Terceira e, após a missa cantada pela capela do Seminário de Angra e de corpo presente, seguida de solenes exéquias na capela de São João de Deus, presididas pelo Reitor daquele Seminário, cónego Dr Artur Pacheco Custódio, foi sepultado, nesse mesmo dia, no cemitério municipal da cidade de Angra do Heroísmo.
João fez a instrução primária na Fajã Grande, tendo aprendido apenas a ler e a escrever, sem, no entanto, fazer o exame final. O excessivo trabalho em que já se envolvia, apesar de criança, e a manifesta de falta de tempo e de dinheiro impediram-no de se deslocar a Santa Cruz, onde aquele exame era feito. Aos onze anos já trabalhava nos campos e tratava dos animais. Ainda criança aprendeu com o pai, a cavar, a lavrar, a sachar, a semear, a plantar, a estrumar, a ordenhar e a realizar todo o tipo de trabalho relacionado com o amanho da terra e tratamento do gado.
Com a doença e idade avançada do seu progenitor, sessenta anos mais velho do que ele, e depois da partida para a América de todos os irmãos, João passou a ser o único responsável por todo trabalho agrícola das terras que o pai possuía, assim com do tratamento dos animais bovinos que criava. Durante muitos anos e após o falecimento do pai, João ainda teve a seu cuidado a mãe idosa e acamada e uma irmã doente mental. Ambas foram tratadas por ele, mais tarde com a ajuda de Angelina, com carinho, dedicação e cuidado, mesmo após a chegada dos filhos.
João foi um agricultor sábio, competente e trabalhador. Conhecia como ninguém as sementes, as plantas, os arbustos, as árvores e até todas as mondas e ervas daninhas. Lia nos astros e nas nuvens informações sobre sementeiras e colheitas. Tanto se orientava pelo vento, como pela chuva ou pelo Sol e pelos musgos das paredes. Apesar do muito trabalho, nas horas vagas, João, enquanto jovem, dançava nos arraias e danças de carnaval, cantava em festas e foi folião do Espírito Santo, sendo-lhe entregue o papel de actor principal, na encenação de uma peça de teatro, ensaiada e apresentada na Casa do Espírito Santo de Cima, nos anos trinta.
Mas João não se limitava a trabalhar nos poucos campos que o pai lhe deixara. A fim de garantir qualidade no sustento e alimentação dos filhos e sonhar com um futuro melhor para eles, arroteou espaços bravios e desbravou terrenos incultos, transformando uns e outros em campos aráveis. Do Mimoio arrancou pedras, partiu calhaus, juntou pedregulhos e transformou aquele andurrial num dos melhores cerrados de milho da freguesia. Na Cabaceira cortou incensos, arrancou faias, levantou paredes e construiu bardos, no meio dos quais plantou árvores de fruta e cultivou inhames. Nas Águas juntou as pedras caídas da rocha, com elas fez maroiços, transformando aquelas encostas escarpadas em pastagens de relva verdejante. No Pocestinho arrancou cana roca, cortou “feitos” de modo a que aquele recôndito e inculto terreno produzisse incensos para o gado e lenha para o lume. Como se isso não bastasse ainda arrendou uma quinta na Cancelinha, considerando que as laranjas ali produzidas seriam um manancial de saúde e fortaleza para os filhos.
A casa que os pais lhe haviam deixado era pobre, velha, fria e descaída. João economizou, criou gueixos para vender e com esse dinheiro assoalhou a cozinha e tabicou a sala e o quarto, tornando-a mais confortável e acolhedora. Com a venda de outro boi canalizou água, colocando uma torneira na cozinha e uma pia de lavar roupa, no pátio traseiro, contíguo à casa, evitando, assim, que a filha continuasse a ir lavar à ribeira.
João, embora, a maior parte das vezes, comprando fiado, nunca ficou a dever nada nas lojas, pagando sempre o que comprava, Era leal nos seus contractos, honesto nos seus negócios, fiel aos seus compromissos, humilde nas suas atitudes, nunca faltando à palavra dada ou à promessa feita. Não ofendia, não intrigava, não fazia guerrilhas, nem enveredava por mexeriquices ou confusões. Ocupava-se com a sua vida, com o seu trabalho, com os seus filhos, com os seus problemas e com a sua precária saúde. Isso lhe bastava.
João, com a sua vida e o seu trabalho, apesar de pobre, deixou aos filhos o mais belo testemunho de honestidade, de nobreza de carácter, de dignidade, de singeleza, de correcção e de bons costumes.
Mas o infortúnio havia de o marcar. Para além de ter que se deslocar à Terceira, a fim de ser operado ao estômago, foi acometido de uma estranha e preocupante doença mental por três vezes, sendo que, outras tantas, foi internada na Casa de Saúde de São Rafael, em Angra do Heroísmo. Mas mesmo aí, João foi sempre um modelo de bondade e simplicidade, granjeando a amizade e a simpatia não apenas dos religiosos que ali trabalhavam, mas também e sobretudo dos outros doentes que, como ele, sofriam o infortúnio daquela terrível e desgastante maleita.
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A MEU PAI
(UM POEMA DE JOSÉ RÉGIO)
Foste simples, banal,
Bom, com defeitos, jovial,
E tão pegado à vida,
Que ainda, velho, velho, a não podias crer vivida.
Viveste para as coisas deste mundo,
Que seria melhor
Se o pudesses fazer conforme o teu humor.
Não é por ser teu filho que sou triste,
Demoníaco, angélico, diferente,
Descontente, nevrótico, perverso.
Mas se algo, em mim, resiste
De humildemente humano,
Amigo de viver conforme vai
Vivendo a gente consoante o ano...
A ti o devo, pai !
A ti o devo, se nasci.
E a ti o devo, se inda não morri.