PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
SABORES E DISSABORES DO PICO
Quem visita o Pico no inverno não deixa de ter um ou outro dissabor. No entanto, como são tantos e tão sublimes os sabores que se nos deparam, nos circundam, em que, necessariamente, nos envolvemos e que, na ilha montanha, nos são, diariamente disponibilizados, os primeiros quase se esquecem ou, pelo menos, sublimam-se com relativa facilidade.
A ilha, flagelada por desleixos, incompetências, conflitualidades ou esquecimentos, na realidade, ainda não possui estruturas de acesso que, definitivamente, se oponham a intempéries, chuvas torrenciais, ventos, tempestades e outros reveses climáticos e enigmáticos. Causam transtornos inevitáveis, geram situações incomodativas e inculcam desesperos angustiantes. No entanto, o estigma provocado pelas más condições climatéricas, sobretudo pelo quase constante vento ciclónico com que a ilha é assolada, com alguma frequência, nesta altura do ano, nunca será curado, por mais vontade, competência e capacidade que se tenha. Pode sim, menorizar-se, aliviar-se, talvez mesmo combatê-lo com alternativas viáveis. As ligações aéreas com as restantes ilhas escasseiam no inverno e os aviões “grandes”, para o continente, fogem do Pico como o diabo da cruz. Para se viajar do Pico para o Porto e vice-versa, ou se faz uma escala por Lisboa e pelo Faial ou se pernoita em São Miguel. Além disso os preços são elevados e não há alternativas viáveis. Das ligações marítimas, limitadas, por natureza no inverno, também chegam ecos de viagens, por vezes incompreensivelmente, canceladas, portos encerrados, alternativas bloqueadas. A ferocidade do tempo (e não só) não se compadece com necessidades ou exigências e condiciona, a todos os níveis, não apenas o demandar, mas sobretudo, o viver nas ilhas, especialmente no inverno.
Mas o Pico, mesmo em pleno inverno, na sua excelência endémica, natural e pura, atrai, purifica, eleva e transcende. O chão mantem o bafo da lava e é da lava que emerge o sabor do pão. As vinhas nascem e florescem no rastro dos vulcões e o vinho tem o perfume e o paladar do enxofre vulcânico. O Pico ainda não se perdeu, por completo, no burburinho estonteante da modernidade, nem se desvaneceu na onda atraente e avassaladora do consumismo. Talvez se enfeitiçou por uma e por outro, mas cedo percebeu e recuou. Voltou a perfumar-se com os sabores das marés e os acres respingos da maresia e abrigar o seu destino na íngreme sinuosidade das veredas e maroiços, no aconchego acolhedor das casas e adegas, feitas de basalto puro.
No Pico, os homens ainda atravessam veredas íngremes, subjugados ao peso abrupto dos cestos de batatas ou dos molhos de couves, ainda atiram, com destreza, o alvião à terra e foicinho aos silvados. No Pico ainda se seca milho no forno, se pescam sargos no reboliço das marés e ainda se passa o vinho nas adegas. Há batata-doce a secar ao Sol, milheirais ressequidos, laranjais pejados de citrinos e nos pastos saltam bovinos à porfia. O bolo mantém o sabor adocicado da farinha e o bafo quente do tijolo, as postas de peixe enchem terrinas, ornadas de salsa e o caldo, suculento, fumega nas tigelas, mesmo envelhecidas e de rebordos lascados. As adegas mantêm as portas escancaradas, encenam descansos e emoções, purificam trabalhos e canseiras, envolvem sonhos e esperanças e permanecem como reservas naturais da alegria e do enfeitiçamento, como verdadeiros santuários, onde o vinho é deus e o bagaço e a angelica as primícias originais da sua criação.
O Pico é aquela montanha de lava, atirada pelos deuses sobre o oceano, onde cantam loas as gaivotas, onde a terra se mistura com o mar e onde o Sol ilumina as manhãs com uma luz estranha e enigmática.
O Pico de outrora renasceu, trazendo o doce perfume de sabores ancestrais sem regressar a um passado que, na sua história, nunca se perdeu. A memória nunca se apaga por completo, apenas se renova, genuína, perene e repleta de emoções.
PS – Acrescente-se ainda o “dissabor” da Internet. As “pens” pagas ao minuto, “gamam-nos” euros que nem máquinas de jogos. Demoram uma eternidade a abrir e fraquejam durante o percurso. Na freguesia onde vivo, São Caetano, há um café “O Cantinho” com “sinal” aberto, mas nem sempre acessível. O ciclone, pelos vistos, deixou mossas nas antenas. A Biblioteca Municipal da Madalena, ainda é o melhor local, mas implica uma deslocação à vila.
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MANUEL GREAVES
O escritor e jornalista Manuel da Silva Greaves nasceu na cidade da Horta, em 8 de Janeiro de 1878, tendo falecido em Fevereiro de 1956. Iniciou-se no jornalismo, ainda estudante do Liceu da Horta, colaborando em publicações da altura. Foi redactor de O Ocidente dos Açores, do O Atlântico e do Jornal Açoreano. Também colaborou com outros jornais do arquipélago, do continente, dos Estados Unidos da América e do Brasil. Os seus artigos de política partidária caracterizam-se pela sátira e pela ironia com que visava os adversários.
Como escritor regionalista, deixou vários livros de temática açoriana, onde o mar e os baleeiros têm lugar de realce. Deixou também alguns versos do género simbolista, dispersos pelos jornais, subscritos com o pseudónimo Narciso Rosado, que foram reunidos pela família e publicados postumamente.
Entre as suas obras, destacam-se: Notas de Arte, Vigílias, De Bond, O Meu Tempo, Histórias que me contaram, Aventuras de Baleeiros e Outras Histórias que ouvi
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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AS BOCAS DO MUNDO
(CONTO TRADICIONAL)
Era uma vez um velho que vivia com o seu neto e tinham um burro. Certo dia resolveu o velho ir a uma feira. Como não queria deixar o neto sozinho em casa, decidiu levá-lo consigo, juntamente com o burro. O burro seguia à frente o velho e o neto, caminhavam a pé, atrás do burro. Passaram por um lugar onde havia muitas pessoas. Estas, ao vê-los a caminhar a pé, atrás do burro, e este sem ninguém em cima, começaram logo a murmurar e criticá-los:
Que idiotas! Porque não vão montados no burro, seus patetas?
Então o velho pegou no menino e sentou-o em cima do burro, continuando ele a caminhar, atrás, a pé. Passaram num outro lugar onde também estavam muitas pessoas que voltaram a murmurar e a criticá-los:
- Olhem para o velho que não tem vergonha. Ele que é mais velho, vai a pé e o atrevido e preguiçoso do rapaz, todo pimpão, refastelado em cima do burro.
Então o velho trocou com o neto. Montou ele o jumento e o rapaz seguia atrás a pé. Passaram noutra aldeia e as pessoas de novo murmuram e criticaram o velho por ser um ingrato e sem consciência, montando, muito bem instalado, o burro e a pobre criança, desolada, a pé.
Então o velho, pegando no neto, sentou-o, juntamente consigo, em cima do burro. De novo passaram noutra aldeia e as pessoas de novo murmuraram e criticaram, dizendo que o velho não tinha consciência, nem pena do pobre do burro. Iam os dois ingratos montados em cima do desgraçado do burro.
Então o velho disse ao neto:
É para que saibas como são as bocas do mundo que nunca se conseguem calar. Quer vá a pé, quer em cima do burro, quer com ele às costas, sempre hão-de murmurar, criticar e, até, condenar.
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VULCÕES DE MÚSICA
A ilha do Pico, celebrou de forma peculiar e intensa, o dia da mártir Santa Cecília. Demudado, por razões mais que óbvias, da sua data litúrgica - 22 de Novembro - para o domingo anterior, o dia da padroeira dos músicos, havia de galvanizá-los, na ilha montanha, em desfiles musicais, em eventos, deslumbrantemente, harmoniosos e em manifestações, delirantemente, melodiosas, aspergindo a sua música aos quatro ventos. O concelho da Madalena, como aliás toda a ilha do Pico, um “viveiro natural” de aprendizes da arte de bem cantar e tocar, uma espécie de “santuário protegido” de músicos e maestros, uma “reserva preservada” de melodias, instrumentos e cânticos populares, assumiu como sua, a manhã de domingo – 18 de Novembro – e congregou nas ruas da vila, sede de concelho e junto à igreja matriz, as três filarmónicas do concelho – Sete Cidades, União e Progresso Madalenense e Lira de São Mateus - os grupos corais ou capelas de todas as freguesias da chamada zola pastoral da Madalena - Bandeiras, Madalena, Criação Velha, Candelária, São Mateus e São Caetano - assim como os ranchos folclóricos (também um existente em cada freguesia do concelho) e ainda o Coral da Madalena e a Tuna da Candelária. Por estimativa, cuida-se que terão participado activamente nesta tradicional e sumptuosa celebração vivencial da música, cerca de quatrocentas pessoas, pese embora algumas delas pertençam a mais do que um agrupamento musical. Momentos houve em que, aparentemente, parecia que o número de participantes era superior ao número de elementos do público presente. Se tivermos em conta que a população do concelho da Madalena do Pico, actualmente, é de cerca de quatro mil habitantes, poder-se-á concluir que cerca de dez por cento dos mesmos, pertence a um agrupamento musical radicado no concelho, dedicando os seus tempos livres ao ensaio, ao estudo e à prática musical. Isto significa que o concelho Madalena, decerto, ocupará lugar de relevo no top da liderança nacional, como o concelho do país com mais músicos e também com mais ranchos folclóricos por metro quadrado.
Após o desfile, as portas abriram-se e a Matriz engoliu, na totalidade, aquele acervo de músicos, cantores, tocadores e bailadores, sem distinção de vozes ou de tipo de instrumentos, para uma celebração eucarística que apenas teve um senão – ser extremamente demorada. Mas o magnífico e histórico templo madalenense, dotado de excelentes condições acústicas e com os seus altares a abarrotar de talha dourada, explodiu, impiedosamente, como se dele se soltassem labaredas de som, chamas vulcânicas, não de lava, como durante crises sísmicas sucessivas que em tempos remotos assolaram a ilha, mas sim chamas de solenes e suaves melodias musicais. Era como se ali, bem no coração da terra picoense, tivessem rebentado vulcões que em vez de lava expelissem a excelência dos acordes musicais, a polifonia das vozes, a harmonia dos instrumentos e o encanto, embevecido, das melodias – verdadeiros vulcões de música.
De tarde o epicentro desta intensa actividade musical transferiu-se para as Lajes, vila histórica e baleeira, que também havia de reunir, na sua imponente matriz, ornada de traços a simularem o gótico, a expelir suaves melodias, grande parte dos músicos que também proliferam neste concelho. Se o número de ranchos folclóricos é bem menor do que o do concelho da Madalena, o mesmo não acontece com as bandas musicais. São seis as existentes no concelho das Lajes, embora apenas uma tenha actuado durante a celebração eucarística, na homenagem prestada a Santa Cecília. O protagonismo, porém, na Matriz da vila baleeira centrou-se na actuação dos grupos corais das seis paróquias do concelho e ainda no Grupo Coral das Lajes do Pico.
As celebrações em homenagem à padroeira dos músicos continuarão noutras localidades do Pico, nomeadamente, no Santuário do Senhor Bom Jesus, no próximo dia vinte e dois.
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O BOICEIRO (VERSÃO REDUZIDA)
Quando eu era criança, por tudo e por nada, lá vinha a temível ameaça do “Boiceiro”- um horrendo instrumento de tortura e punição - excessivamente doloroso e destinado a punir as crianças que não cumpriam quer os mandamentos da Lei de Deus quer os preceitos da Santa Madre Igreja. Assim, perante qualquer pensamento mau, palavra obscena, desobediência ou acto indigno, vinha a decisão terrível, apavorante e aterradora:
- Para a próxima, vais sentar-te no “Boiceiro”.
Sabia-se, apenas, que o excêntrico instrumento de tortura tinha a forma de uma cadeira, com uma diferença - e que diferença, meu Deus - o assento. Este estava cravejado de pregos enormes e aguçados, com a ponta virada para cima, com a denodada intenção de penetrar, sanguínea e dolorosamente, no rabiosque do infractor, castigando-o pelas faltas praticadas ou pelos delitos cometidos.
Mas o estranho é que o “Boiceiro”não se via e, consequentemente, o que mais atormentava os prevaricadores, era a sua ameaça permanente. Sabia-se apenas que estava algures, na igreja, atrás do altar-mor, sempre disponível para castigar os jovens e inexperientes pecadores.
Eu, como todos os outros da minha idade, pelava-me de medo com a contínua intimidação de tão pavoroso suplício. Admirava-me, no entanto, que a estroinice de que era acusado, nunca tivesse sido devidamente castigada naquele inferno terreno e, por isso, sentia, cada vez mais, uma enorme vontade de desvendar e conhecer o heteróclito mistério em que estava envolta tão abominável e execranda herança inquisitorial.
Certa tarde, as tias Graça e Luzia, escalonadas para enfeitar a igreja, decidiram que eu as acompanharia em tão sacrossanta tarefa. Enchi-me de alegria e contentamento. Mais feliz fiquei, quando, ao chegar à igreja, percebi que as tias iriam abrir a porta que estava atrás do altar-mor para ir buscar baldes, vassouras e outros apetrechos necessários à limpeza do templo. De imediato, me concentrei na forma de, sem elas darem conta, tentar explorar as traseiras da capela-mor, na tentativa de ver de perto, talvez mesmo tocar no tão famigerado “Boiceiro”, desvendando assim o enigmático mistério da sua existência.
Esperei que as tias se ausentassem. Aguçava-se-me o desejo de ver a tão torturante e punitiva cadeira. Não tinha ainda acabado de substituir o pavio da lâmpada do Santíssimo e de a abastecer de azeite, quando as tias decidem sair para sacudir as carpetes da capela e apanhar mais algumas flores, deixando-me ali, sozinho, com a obrigação de não mexer ou tocar em coisa nenhuma e com o único objectivo de informar, fosse quem fosse, da sua ausência. Transformado em verdadeiro guardião do templo, esperei um pouco e, de imediato, fui espreitar, sorrateiramente, por trás do altar-mor. A porta estava semiaberta.
Estarreci de emoção hesitante. Por um lado pesava sobre mim uma excessiva curiosidade, mas por outro assustava-me não apenas o espectro do enigmático grilhão mas também a entrada em tão desconhecido recinto e ainda a hipótese, quase certa, de ser apanhado com a boca na botija. Dizia-se que, para além do altar-mor, existia uma espécie de “Sancta-Sanctorum”, que só os “eleitos” podiam transpor.
As tias demoravam e isso trouxe-me um medo enorme mas aguçou-me a curiosidade. Era agora ou nunca. Olhei timidamente para o Sacrário, diante do qual fiz uma genuflexão e, pé ante pé, ultrapassei o altar, penetrei no vão que o separava do retábulo doirado da capela-mor, onde estava encravado o camarim. Empurrei a porta semiaberta. Esta rangeu, abriu-se lentamente e eu entrei.
No minúsculo e apertado cubículo pairava um silêncio sepulcral, apenas entrecortado, levemente, pelo tiquetaque do relógio. Lívido, olhei ao redor, sem ver nada ou coisa nenhuma. O temor, no entanto, foi-se desanuviando à medida que os meus olhos se iam habituando à tenebrosidade da betesga. De um lado prateleiras com garrafas de vinho de missa, latas de azeite para o Santíssimo, caixas com moedas do tempo dos afonsinos e andores encavalitados em cima uns dos outros. Do outro, caixotes cheios de maços de velas de estearina, as lâmpadas que acompanhavam as procissões, muitas cruzes e uma data de guiões. Num canto, debaixo das escadas que davam para o piso superior, a imagem do Senhor dos Passos. Uma dor de alma! Jesus num dos mais dolentes momentos de tortura e sofrimento da Sua Paixão. Sentado numa pedra, quase nu, mãos atadas por um cordão amarelado, segurando uma cana a fazer de ceptro e com uma enorme coroa de espinhos cravada na cabeça, lá estava o “Ecce Homo”. Do crânio, perfurado pelos espinhos, saíam-Lhe gotas de sangue que corriam pelo rosto e se perdiam nas barbas ou Lhe salpicavam o tronco e os joelhos. Os ombros avermelhados e o tronco despedaçado faziam entender que havia sido fortemente chicoteado. O seu rosto apresentava-se, simultaneamente, sofredor e angustiado mas confiante e meigo. Fixei-o e senti uma enorme compaixão. Bem me apetecia libertá-Lo totalmente daquele suplício que me fazia lembrar ao que ali viera, com a insignificante diferença de que as picadelas de Jesus eram na cabeça e as minhas haviam de ser no rabo. Ao lado, uma portinhola, com quatro vidros pequenos e toscos a encimá-la, por onde entrava uma claridade pouco clarificante, permitia-me observar melhor a imagem dolente. Espreitei pelos vidros e o meu temor aumentou significativamente. A porta comunicava com o cemitério, onde se visionava uma enorme quantidade de campas, vários jazigos e algumas sepulturas recentes, todas encimadas por cruzes e sobre as quais pairava um silêncio ainda mais assustador. Apesar de aterrorizado, continuei a procurar o “Boiceiro”. Mas nada. Apeteceu-me sair. E se as tias já tivessem chegado? E se aparecesse alguém? Voltei a hesitar por momentos. Mas tinha chegado até ali, continuaria a pesquisa. Decidi subir as velhas e frágeis escadas que permitiam o acesso ao piso superior. Galguei-as a medo, à medida que tentava descortinar o que existia naquele recanto ainda mais enigmático, mais escuro e mais tenebroso do que inferior. Apenas uma fresta, no alto da parede, permitia uma luminosidade mínima, necessária para se identificar o que ali estava. Logo à entrada o esquife em que nas endoenças era transportado o Senhor morto, deposto da cruz. A seguir o S. Miguel, de botas altas, calções e traje nobre, com uma balança na mão direita e uma espada na esquerda. O Arcanjo aguardava serenamente o juízo final, para pesar o bem e o mal praticado pela humanidade. Mais além pendurada na parede a matraca substituta dos sinos na Parasceve e, ao lado, a Senhora da Soledade, totalmente nua, mas com os seios atrofiados e sem parrameiro. Ao fundo do cubículo a essa!
Estarreci por completo. Cheio de medo, dei um enorme grito ao ver aquele horrível catafalco donde via emergir o velho “Laranjinho” – o enigmático representante de todos os finados da freguesia - lembrado no dia dois de Novembro. Totalmente apavorado, desci as escadas em lances de três e quatro degraus, saí pela porta de trás do altar-mor e, esbaforido, corri desalmadamente até à rua, jurando nunca mais ali voltar.
Quanto ao “Boiceiro”havia de permanecer ainda por mais alguns anos, na minha mente, como ameaça mítica, punitiva e assustadora.
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O ROCHÃO TAMUSGO
O chamado “Rochão Tamusgo” era um lugar situado nos matos da Fajã Grande e que hoje, muito provavelmente, será de acesso muito difícil e de lembrança quase indecifrável, talvez mesmo esquecido por completo. Este lugar, com tão estranho e enigmático nome, situava-se por cima da Rocha dos Paus Brancos, a qual possuía uma estreita e sinuosa vereda que dava acesso aquele lugar. No entanto, o caminho vulgarmente utilizado por homens e animais que para lá necessitavam de se dirigir, era o da Rocha, finda a qual, viravam a sul, seguindo pelos atalhos que davam para o Rochão do Junco e Curral das Ovelhas. Embora mais longe e também de mais difícil acesso, tornava-se uma melhor opção relativamente à quase intransponível subida da Rocha dos Paus Brancos, dotada de um piso sinuoso e escorregadio, a abarrotar de água, de densa vegetação e de silvados por tudo o que era sítio.
O lugar do “Rochão Tamusgo” era todo ele ocupado por algumas pastagens pertencentes a particulares. No entanto a dificuldade do seu acesso aliada à fraca qualidade das suas pastagens faziam com que apenas ali colocassem gado alfeiro. A sua proximidade da borda da Rocha era tal que, por vezes, cá de baixo, era possível verem-se muitos dos animais que ali pastavam.
A sul, o “Rochão Tamusgo” era ladeado pela Burrinha, a este pelo Rochão do Junco e a oeste pela Rocha dos Paus Brancos. A norte, porém, o “Rochão Tanusgo” como que se afunilava, encravando-se entre as relvas do Cimo da Rocha.
A origem deste topónimo, no que à estranha palavra “Tamusgo” diz respeito, dado que a mesma não existe na língua portuguesa, nem como substantivo próprio ou comum, revela-se um pouco ambígua e intrigante. Por um lado o nome poderá ser uma deturpação da palavra de “tamujo” ou “tamuje” atribuído a um arbusto existente nas ilhas açorianas. Neste caso, do topónimo “Rojão Tamujo” inicial, poder-se-ia ter derivado e chegado a “Rochão Tamusgo”, o que parece pouco provável. Na língua portuguesa, porém, existe o verbo “tamuscar” com o significado de “dormitar”. Para que esse verbo estivesse na origem daquele topónimo teria, obviamente, que ser utilizado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, “tamusco”, deturpando-se, sob a forma de “tamusgo”. Mas muito estranho seria que alguém “dormitasse” por ali com alguma frequência a tal ponto de dar conhecimento público desse facto, usando a forma verbal “eu tamusco” – “Rochão onde eu tamusco” e “Rochão Tamusgo”.
Sendo assim, a explicação, em minha opinião poderá ser outra. A apanha do musgo nos matos, para encher colchões e almofadas foi sempre prática muito habitual na Fajã Grande, por parte das mulheres. Um dos locais muito procurados para a apanha do dito cujo era toda aquela zona, desde o Cimo da Rocha até à Burrinha. Aquele local, assim como o Rochão do Junco, eram os privilegiados para apanha do musgo, portanto, ali seria um local onde há musgo, “está musgo” ou “tamusgo”. Como era uma enorme zona inclinada sobre a Rocha, era um “Rochão” que para se identificar e distinguir do seu vizinho “Rochão do Junco” se passou a chamar “Rochão Tamusgo”.
Assim e muito provavelmente se terá formado este interessante e bonito nome de um lugar da Fajã Grande que fez parte da sua história, que teve um papel interessante e de alguma forma significativo na sua economia e nos seus costumes e que hoje se perdeu quase por completo.
Curiosamente topónimos semelhantes existem noutras ilhas açorianas, nomeadamente, no Pico, mais concretamente na Candelária, onde existe “O Cabeço do Tamusgo” uma elevação que faz parte do alinhamento vulcano-tectónico do Cabeço Bravo e do cabeço do Pé do Monte, este junto ao lugar do Monte.
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O CAMINHO DO CIMO DA FONTINHA AO ALAGOEIRO
Em plena década de cinquenta, podia dizer-se, em boa verdade, que a rua da Fontinha, inserida no lugar com o mesmo nome, terminava junto à casa de Tio José de Teodósio. A partir daí iniciavam-se outros lugares. Em primeiro o Tanque, embora encafuado um pouco mais para os lados do Outeiro e da Bandeja, depois o Cruzeiro e, finalmente o Alagoeiro. Todos estes lugares eram despovoados, excepto o Alagoeiro, mas neste, os habitantes eram poucos, uma vez que ali morava apenas uma família. No entanto, no que a edifícios dizia respeito, já não era bem assim. É verdade que o Tanque não possuía nenhum tipo de construção, mas no Cruzeiro existiam três e o Alagoeiro, para além da casa de habitação referida, dispunha de mais três edifícios, um dos quais era a Casa da Água, esta já na fronteira com a Fontecima.
Este caminho que ligava o Cimo da Fontinha ao Alagoeiro, era curto mas largo, perfeitamente acessível a carro de bois e era como que uma continuidade do arruamento da Fontinha. O piso era de pedra fixa, do tipo calçada romana, com uma pedra maior no centro, designada por “pedra-mestra”, fixando-se as outras, mais pequenas, ao seu redor. As paredes que o ladeavam, sobretudo as do lado sul, eram bastante altas, circundando e separando os terrenos agrícolas que por ali proliferavam. Logo a seguir à casa de Tio José Teodósio, o caminho fazia uma enorme e suave curva, que só terminava no fim do do Tanque, precisamente no local, onde o caminho se bifurcava, porque aí e na direcção sul, havia uma vereda que dava acesso, precisamente às terras do Tanque e que depois seguia para a Bandeja. Quase no mesmo local, mas na direcção oposta, iniciava-se uma outra pequena vereda que ligava este caminho à canada do Mimoio Tratava-se, neste caso, de um atalho muito curto e de difícil circulação, construído quase todo ele sobre maroiços e inacessível a animais, servindo apenas de cesso a uma ou outra propriedade e, no caso do Mimoio, sendo utilizado apenas como forma de “encurtar” o caminho para aquele sítio.
Voltando ao caminho entre a Fontinha e o Alagoeiro, após este cruzamento, o dito caminho formava uma pequena recta, finda a qual estávamos no lugar do Cruzeiro. Era aí, bem no centro, num pequeno largo, onde se iniciava, a sul, a subida para a Bandeja e Queimadas que existia uma espécie de “zona industrial” da Fajã Grande. Na verdade ali haviam sido construídos três edifícios de tamanhos e com funções diferentes. Era no primeiro e o maior que se fabricava a manteiga da Cooperativa, enquanto o segundo, um pouco mais pequeno e de feito de pedra solta, era destinado ao fabrico das caixas de madeira, onde as latas eram encaixotadas para exportação e o terceiro, um minúsculo cubículo, servia de arrecadação.
De seguida e após mais uma pequena recta estávamos no Alagoeiro, onde existia um grande largo e, onde para além de uma casa de habitação onde morava o Luís Fraga, havia um palheiro, uma casa velha e a Casa da Água. O Alagoeiro constituía o maior, o mais importante e o mais emblemático Descansadouro de quantos existiam na Fajã Grande.
Este caminho era um dos mais movimentados da Fajã Grande, uma vez que por ele transitavam, não só as pessoas que pretendiam deslocar-se àqueles três lugares e aos circundantes mas também as que demandavam a Ribeira, as Águas, a Figueira, os Matos e todos os lugares que iam do Batel ao Curralinho, situados nas abas da Rocha e que não eram poucos. Da mesma forma, muito gado por ali transitava, uma vez que para todas aquelas zonas havia muitas pastagens.
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O JOGO DAS PEDRINHAS
Um dos jogos mais populares entre a criançada, na Fajã Grande, nas décadas de quarenta e cinquenta, era o Jogo das Pedrinhas. Embora comum a ambos os sexos, o Jogo das Pedrinhas, talvez porque os espaços em que se realizava circundavam, geralmente, as proximidades das habitações, era praticado, sobretudo, pelas meninas, que para tal se muniam, de cinco pequenas pedras, preferencialmente, lisas e arredondadas. As pedrinhas, geralmente, eram adquiridas na altura do jogo, mas havia jogadoras mais exímias, qualificadas e experientes que possuíam conjuntos de pedrinhas, que guardavam bem guardados, mantendo, assim, as mesmas pedras sempre que jogavam, cuidando que se habituavam melhor e se adaptavam mais facilmente ao jogo, o que lhes traria maior qualidade, mais rigor e competência, obtendo assim, melhores performances e resultados de excelência. Muitas raparigas havia que, até se davam ao luxo, de treinarem sozinhas para depois se desforrarem nas adversárias.
A segunda tarefa consistia na escolha do local do jogo, que necessariamente devia ser uma superfície lisa, que podia ser o chão de casa, um pátio ou balcão, por vezes até um simples degrau de escada cimentado ou a soleira duma porta.
De seguida iniciava-se o jogo, começando este por um etapa inicial que tinha como objectivo sortear a ordem de saída de cada jogador ou jogadora. Para tal, cada participante, à vez, colocava as suas cinco pedras na palma da mão e, dando uma volta com a mesma, tentava apanhar o maior número possível de pedras com as costas da mão, fazendo o gesto contrário para ver quantas pedras, finalmente, conseguia apanhar com a mão depois da segunda volta, terminando assim a sua jogada. Caso houvesse empate, relativamente ao número de pedras conseguido, o jogo continuava até que um jogador conseguisse apanhar o maior número. Depois iniciava-se, propriamente, o jogo, em que normalmente não participavam mais de três jogadores. O jogador que vencera a etapa inicial juntava as suas pedras e as dos restantes jogadores, atirava-as todas ao ar, num gesto igual ao rito inicial, tentando apanhar o maior número possível, depois de as virar sobre as costas da mão. No entanto, neste revirar das costas da mão, o jogador tentava apanhar o número de pedras que mais lhe conviesse, naquele momento do jogo. Assim se apanhasse três pedras perdia a jogada, se apanhasse um número ímpar de pedras retirava apenas uma, mas se conseguisse capturar um número par, ganhava metade desse número. Todas as pedras ganhas eram retiradas, imediatamente, do jogo, sendo guardadas pelo jogador que as ganhava. Essas pedras chamavam-se “bezerras”. Caso o jogador apanhasse do chão qualquer número ímpar de pedras (excepto três) ganhava apenas uma “bezerra”. Continuando o jogo, o jogador vitorioso, atirando uma pedra ao ar de cada vez, ia aos poucos juntando do chão todas as que lá estavam, uma por uma, ou um número par de cada vez, sendo que nunca podia nem apanhar três ao mesmo tempo, nem deixar três ou uma na mesa. Se deste modo conseguisse apanhar todas as pedras do chão, ganhava uma “bezerra” e por cada número par que juntasse ganhava metade desse número em “bezerras”. Sempre que falhasse ou simplesmente se ao juntar uma pedra tocasse noutra, perdia o direito de continuar a jogar. Por isso, de seguida, o jogador que ficara em segundo lugar na fase inicial, adquiria o direito de jogar, utilizando todas as pedras ainda em jogo, procedendo de forma idêntica, seguindo as mesmas regras e tentando conquistar o maior número possível de “bezerras”. O mesmo faria, quando perdesse, o terceiro jogador e, mais tarde, o quarto, se o houvesse. Se no final desta espécie de primeira volta ainda sobrassem pedras não “bezerras”, o jogo continuava numa segunda ou mais voltas, até que os jogadores conseguissem transformar toadas as pedras em “bezerras”. Para se ganhar “bezerra” uma das duas últimas pedras, deviam atirar-se ao ar, rodar e apanhar, simultaneamente, as duas. A conquista da última pedra era a consagração final: atirava-se a pedra e antes de a apanhar o jogador vencedor, beijava as pontas dos dedos, como que a agradecer o sublime e agradável sabor da vitória.
O vencedor do jogo era, obviamente, o jogador que no final do jogo conseguisse maior número de “bezerras”. Seguiam-se outros jogos, sempre com as mesmas regras, escrupulosamente cumpridas, apurando-se no fim um vencedor absoluto.
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O PRINCÍPIO
Quando o Belarmino terminou o curso, na escola do Magistério Primário da Horta, respirou de alívio. Para trás ficavam as inúmeras dificuldades que havia sentido ao longo do percurso que agora terminava e que, a muito custo, se orgulhava de ter ultrapassado.
Por vontade dos pais ter-se-ia ficado pela 4ª classe. Impunha-se-lhe, como a outros da sua idade, o destino de ficar ali, na ilha, vergado ao peso da enxada, acartando molhos de lenha e cestos de inhames, condenado aos trabalhos inerentes a uma mísera agricultura de subsistência.
Cedo, porém, tentou libertar-se. Mas não foi fácil. Eram os entraves paternos, afirmando que trabalho digno de tal nome só o agrícola e eram os irmãos, acomodados às lides dos campos, que teimavam em contrariar adegeneração do último rebento.
Foi a D. Ilda, que o acompanhara desde a primeira classe e que não cessava de louvar a inteligência do garoto, que demoveu o pai da sua persistente teimosia. Era o Bernardino a caminho do Externato de Santa Cruz, que Liceu nas Flores não havia, e os irmãos de enxada às costas e foice na mão, a percorrer os íngremes caminhos da Eira-daQuada e dos Lavadouros.
Terminado o 5º ano, seguiu para o Faial, com destino à Escola do Magistério, enquanto os outros ainda mais se agarravam à rabiça do arado e às enxadas, que agora não era só o sustento da casa... Não era bem aquilo que o Bernardino queria mas Universidade nos Açores era um mito...Quem optasse por estudar tinha apenas duas alternativas: o Magistério ou o Seminário. A escolha, para o Belarmino, foi inequívoca.
Os dois anos que passou na Horta não foram fáceis. Dinheiro apenas para a pensão... Livros emprestados... Gastos supérfluos, nem pensar... Além disso, pesavam constantemente, as ameaças paternas:
- Olha lá se me reprovas! Acaba-se tudo!... Há muitos fetos e cana roca para ceifar no Pocestinho e nos Paus Brancos!...
Nas férias, matava-se a trabalhar. Os outros atiravam-lhe para o lombo os molhos mais pesados e os cestos mais cheios, ripostando:
- Tens que trabalhar agora, para compensar a boa vida que levas durante o inverno.
Chegou o fim e com ele o concurso. Como lhe segredassem que as vagas nos Açores eram poucas e, porque há muito sonhara abandonar as ilhas, até porque a família também o faria, partindo, em breve para a América, resolveu concorrer para o Continente. A Graça, a colega de curso que por ele se havia perdido de amores desde há algum tempo, bem o tentava demover, assustando-o com Trás-os-Montes e com o Alentejo, locais onde, na opinião da apaixonada, proliferavam aldeias mais miseráveis e mais isoladas do que o Corvo ou as Fajãs de S. Jorge...
A decisão, porém, estava tomada e nada ou nenhum argumento o demoveu.
Seguiram-se dias de ansiedade, até que as listas saíssem. Saíram... No átrio da Delegação Escolar da Horta, os recém-formados acotovelavam-se, na ânsia da certeza duma colocação. Como era impossível ver fosse o que fosse, o Gregório ia apregoando:
- Judite Maria Ferreira Borges – Barro Branco, Graciosa.
- Manuel Belarmino Rodrigues - Sazes de Lorvão.
O Belarmino ficou branco e mudo.
- Marão?! Isso é em Trás-os-Montes, eu bem te dizia... – balbuciou a Graça
- Não é Marão, é Lorvão, Sazes de Lorvão, Penacova – esclareceu o Gregório, perante a indignação dos que ainda não tinham ouvido o seu nome.
À volta ninguém sabia onde ficava.
- Lá sítio bom, não deve ser - comentava uma outra colega. – Pelo nome... Antes a Fajã da Sanguinha em S. Jorge ou a Ponta da Achada em S Miguel...
Foi o Guedes, que pondo-lhe o braço sobre o ombro, aconselhou:
- Calma Bernardino! Olha que não deve ser tão mau como isso... Acho que Penacova fica perto de Coimbra. Mas quem te pode informar melhor é o professor de Didáctica, o Dr San-Bento. Ele é de Coimbra.
E foi o Dr San-Bento que o esclareceu e acalmou. Que sim senhor, que tinha tido uma grande sorte. Penacova era uma terra linda e maravilhosa, pertinho de Coimbra, aí a uns 20 quilómetros... Que era uma terra de sonho, de encanto paisagístico e de história, sobretudo de história, o que era mais importante do que a beleza paisagística. Era lá que ficava o mosteiro de Lorvão. Além disso, afirmava o Dr San-Bento que o povo era extraordinário e hospitaleiro. Que ele ia adorar. Depois interrogava:
- Foste colocado mesmo em Lorvão?
- Em Sazes de Lorvão...
- É lá perto – acrescentava o Dr San-Bento. – Sazes de Lorvão fica a uns dez quilómetros de Penacova. Também é uma terra muito bonita, embora não tenha uma história tão viva como Lorvão. Mas terás muitas oportunidades de vir a Lorvão e ver o admirável monumento que é o mosteiro de Santa Maria, um convento de grandes tradições históricas, de grandes lendas, fundado muito antes da nacionalidade, mas que teve, também, um papel importante na consolidação desta. Depois há pormenores interessantíssimo, que não podes esquecer quando lá fores. No sec. XII, os frades foram expulsos e o mosteiro foi ocupado por monjas, sob as ordens da Infanta D. Teresa, filha do nosso rei D. Sancho I. Ora existe lá um pluvial ou capa de asperges, daquelas que os só os padres e os bispos usam, que é a única que existe no mundo usada, oficialmente, por uma mulher, a abadessa do mosteiro. Usava-a por privilégio especial, concedido pelo papa, ao mosteiro. Outro pormenor interessante é o coro, separado da igreja por uma formosa grade de ferro, e que possui um magnífico cadeiral, constituído por cem cadeiras, o que também é recorde nacional. É um monumento fabuloso.
O Dr. San-Bento ainda acrescentou que se tratava dum concelho rural, mas muito desenvolvido e de grande atracção turística, com muito artesanato, com destaque para os palitos de Lorvão e que o concelho constituía um polo de interesse paisagístico muito interessante. Era atravessado pelo rio Mondego, predominando as culturas da vinha, do milho e da batata e a criação de gado suíno. E que ele iria encontrar crianças muito dóceis e amáveis. E, despedindo-se, concluiu:
- Terás óptimas condições para iniciar o exercício do magistério da melhor forma. Vais ter um princípio ideal. E é isso que te desejo.
A pedido do Dr. San-Bento, o Rodrigo, amigo do filho, veio receber o Bernardino a Coimbra e levou-o a Penacova, com a recomendação de, o mais cedo possível, realizar um périplo que o levasse à descoberta do concelho. Fê-lo no próprio dia.
Partiram de Coimbra, entrando em Penacova pelo Caneiro. O Rodrigo cedo se mostrou um excelente cicerone:
- O concelho de Penacova, começa aqui. Esta aldeia pertence a Lorvão – e acrescentava – Mas vamos primeiro dar uma volta pela vila, até Oliveira ou Friúmes e depois, então, vamos para a freguesia, onde vais principiar a trabalhar.
Aos olhos do Bernardino, porém, apresentava-se uma paisagem deslumbrante e bela. Serpeando um profundo vale, ladeado pela serras da Aveleira e de Gavinhos, entre um verde muito verde, salpicado de manchas brancas aqui e além, descia calmo, sereno e esverdeado, o Mondego. Nas encostas mais baixas campos cultivados, entrelaçados com pequenas habitações, protegidos por enormes pinhais perdendo-se e confundindo-se com o azul do firmamento. Depois os penhascos desérticos, sem o branco dos casarios, mas com um verde quase mítico. Mais além, casas isoladas, como que perdidas no verde da floresta. Seguindo sempre ao lado do rio, cedo apareceu Rebordosa, com as suas casas espalhadas por uma encosta verdejante, como que a empurrar o Mondego, obrigando a mais uma curva, a proporcionar aos campos de milho e às vides que se alargassem e estendessem mais facilmente pelo vale.
- Esta estrada dá para Lorvão – explicou o Rodrigo. – É perto. E dá para Sazes, mas a estrada por Penacova é melhor e passamos junto aos célebres moinhos de Gavinhos.
Penacova não tardou a aparecer, enquanto o Mondego, lá no fundo do vale, persistia em acompanhá-los. O casario agora concentrava-se mais, sobretudo na margem direita do rio.
O Rodrigo, vendo-o cada vez mais entusiasmado, à medida que ia apreciando as belezas maravilhosas da paisagem que surgiam em cada curva da estrada, explicava:
- Penacova, como o nome indica, é uma terra de contrastes e contradições. Porque é ao mesmo tempo altura e cova. Vista daqui de baixo é altura, nos penhascos e montes que a rodeiam enquanto vista de lá de cima é uma cova.
E a viagem continuou pelos miradouros de Emídio da Silva e do Penedo do Castro. Aí o Bernardino exclamou:
- Deslumbrante, meu amigo! Se a beleza suprema existe, ela está aqui!
- Bom - comentava o Rodrigo – isto dito por um açoriano é digno de crédito...
Depois do passeio a pé por algumas ruas típicas de Penacova, deixando o Mondego por algum tempo, dirigiram-se para Riba de Baixo, Miró, Vale Maior e depois para Friúmes, junto ao rio Alva. De regresso a Penacova, o Rodrigo ia explicando que mais a norte ficavam outras freguesias também de muito interesse: São Pedro de Alva, a terra onde nasceu o Presidente da República Dr. António José de Almeida, Paradela, Travanca, S. Pedro de Alva, S. Paio e Oliveira. E acrescentava:
- Antigamente, estas duas freguesias chamavam-se Oliveira de Farinha Podre e S. Paio de Farinha Podre. Mas o povo não gostava de tais nomes e conseguiu que o governo os mudasse. Parece que antigamente havia aqui um concelho com esse nome. Em Oliveira fica a barragem de Raiva. Antigamente havia lá um porto, quando rio era navegável. Mais acima, já fora do concelho, fica outra barragem, a da Aguieira.
O Sol começava a descer e a tarde aproximava-se do fim. Regressando a Penacova o Rodrigo propôs:
- O melhor é irmos até Sazes. Hoje não temos tempo para mais. Terás muitos dias para descobrires e conheceres o resto do concelho.
E meteram pela estrada do Buçaco. Pouco depois Midões. Viraram à esquerda. Surpreendentemente surgiu Sazes de Lorvão. O Bernardino exclamou, emocionado:
- Por mais terras que conheça, por mais escolas onde trabalhe, nunca esquecerei este dia em que cheguei àquela terra que marcará, para sempre, o princípio da minha vida profissional – Sazes de Lorvão!
À sua frente surgia-lhe uma aguarela maravilhosa: o verde das hortas e dos campos entrelaçado com as casas brancas, verdes, azuladas, separadas por ruelas e caminhos, à volta da pequena igreja de Santo André, que se impunha silenciosamente, com a sua torre sineira. Depois a ribeira de Sazes, mais campos, mais hortas, mais vides e sobretudo mais verde. Finalmente ao fundo, ainda mais verde, a imensa floresta, anunciando a serra do Buçaco.
O Rodrigo já lhe havia garantido alojamento. Mas foi depois de se despedirem, quando ficou só, que o Bernardino entendeu verdadeiramente que começara ali o princípio da nova etapa da sua nova vida, como professor.