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O NAUFRÁGIO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA AO LARGO DAS FLORES E DO CORVO

Quinta-feira, 23.01.14

É por de mais conhecida a passagem pelos Açores do grande orador e escritor português, o padre António Vieira. Esta presença de Vieira, nalgumas ilhas açorianas, verificou-se no ano de 1654 e terá sido meramente casual, pois aconteceu devido a um naufrágio de que foi vítima a embarcação em que viajava, oriunda do Brasil e com destino a Lisboa. Mais curioso ainda é o facto daquele naufrágio se ter verificado relativamente perto das ilhas do grupo ocidental açoriano – Flores e Corvo, embora aquele célebre orador, ao que se crê, não tenha aportado a nenhuma destas ilhas.

Reza a história que, algum tempo depois de proferir o mais que conhecido "Sermão de Santo António aos Peixes" em São Luís, no estado do Maranhão, no Brasil, o padre António Vieira embarcou, às escondidas das autoridades e dos brancos, a 17 de Junho de 1654, com destino a Lisboa, a bordo de um navio da Companhia de Comércio, que carregava açúcar do Brasil para a Metrópole. No entanto, o padre António Vieira só chegou a Lisboa em Novembro do ano seguinte, depois da mais tormentosa de todas viagens que alguma vez realizou. O padre António Vieira vinha em missão diplomática, cujo objectivo era defender, junto do rei de Portugal, D. João IV, os direitos dos indígenas, escravizados pela ganância e pela cobiça dos colonos portugueses. Após cerca de dois meses de viagem, já à vista das ilhas das Flores e do Corvo, a Oeste dos Açores, abateu-se sobre a embarcação em que viajava o ilustre orador, uma violenta e terrível tempestade. Uma rajada mais forte de vento terá arrancado uma das velas, deixando a embarcação à deriva. No meio do mar revolto, entre um vento fortíssimo e ondas altivas, na iminência do naufrágio, o padre António Vieira cuidando que a embarcação não resistiria à tormenta, concedeu a todos os tripulantes e outros passageiros a absolvição geral, bradando: "Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas, que tendes a vosso cargo; olhai que aqui se perdem connosco."

Após essa exortação, todos fizeram em conjunto, a Nossa Senhora a promessa que lhe rezariam um terço todos os dias, caso escapassem à morte, por demais, iminente. O navio permaneceu adernado durante mais um quarto de hora, até que os mastros se partiram. Felizmente e com o peso da carga, o navio voltou à sua posição normal, mas permanecendo à deriva, ao sabor do vento, das ondas e das correntes, durante algumas horas.

No entanto, uma embarcação passou por ali e, vendo-os, aproximou-se. Por azar dos azares, tratava-se de um navio de piratas holandeses que tudo saquearam e deixaram Vieira e os companheiros sem roupas e sem bens. Mas como que por milagre, os piratas, acabaram por condoer-se dos náufragos e recolheram-nos, mas afundaram a sua embarcação. Nove dias mais tarde, consta que todos os tripulantes, despojados de seus bens pessoais, foram desembarcados, às escondidas e em lugar ermo, na ilha Graciosa, onde o padre António Vieira, com o auxílio dos religiosos da Companhia de Jesus, procurou providenciar roupas, calçado e dinheiro para todos, durante os dois meses que permaneceram na ilha, após os quais, seguiram para Terceira, onde Vieira pretendia arranjar uma embarcação para que ele e os seus companheiros de infortúnio pudessem seguir para Lisboa. Em Angra, o padre António Vieira ficou instalado no Colégio dos Jesuítas, onde permaneceu algum tempo. Foi durante o tempo que permaneceu em Angra que terá instituído a devoção do terço, que pela primeira vez foi cantado na Ermida da Boa Nova. Além disso foi muito solicitado a pregar em diversos templos da ilha, destacando-se o sermão que proferiu na Igreja da Sé, na festa da Senhora do Rosário. Consta que a catedral se encheu de fiéis como nunca, embora sem presença de bispo diocesano, pois, nesses anos, entre os governos de Dom Frei António da Ressurreição e Dom Frei Lourenço de Castro, a sede da diocese estava vacante.

Uma semana mais tarde, Vieira passou à Ilha de São Miguel. A sua estadia em Ponta Delgada também ficou historicamente ligada à pregação, na Igreja que os Jesuítas possuíam nesta cidade, a igreja de Todos os Santos, do memorável sermão em louvor de Santa Teresa. O estilo vigoroso e inconfundível que o celebrizou como pregador encontra-se bem visível neste sermão, onde também é comentado o naufrágio de que fora vítima, meses antes, fora da ilha das Flores, em metáforas que apelam, com veemência, à emoção. Vieira inicia o sermão com a citação da passagem evangélica das dez virgens: “Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes”. E depois continua: “Acaso, e bem acaso, aportei às praias desta ilha; acaso e bem acaso entrei pelas portas desta cidade; acaso e bem acaso me vejo hoje neste púlpito, que é verdadeiramente o poço de Sicar, onde se bebem as águas da verdadeira doutrina”.

Logo a seguir refere-se ao naufrágio, explicando-o com uma passagem do Antigo Testamento: “Por certo que não foi tão grande a tempestade de Jonas como aquela em que eu e os companheiros nos vimos. O navio virado no meio do mar, e nós fora dele, pegados ao costado, chamando a gritos pela misericórdia de Deus e de sua Mãe. Não apareceu ali baleia que nos tragasse, mas apareceu — não menos prodigiosamente naquele ponto — um desses monstros marinhos que andam infestando estes mares. Ele nos tragou, e nos vomitou depois em terra”.

Dali o padre António Vieira partiu para Lisboa, a bordo de um navio inglês, onde chegou em Novembro desse ano, curiosamente, após atravessar nova tempestade.

 

Dados retirados da Internet

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publicado por picodavigia2 às 20:47

O DESCANSADOURO DA ESCADA MAR

Quinta-feira, 23.01.14

Em área, o Descansadouro da Escada Mar, era, sem sombra de dúvida, o maior de quantos descansadouros existiam na Fajã Grande, ultrapassando de longe os maiores, como o do Alagoeiro ou o do Pico Agudo.

Assim, ocupando uma extensa área, mesmo ali quase de debaixo da Rocha, um pouco a seguir ao Cabeço da Silveirinha, o Descansadouro da Escada Mar integrava e situava-se, praticamente, a meio do longo caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros, precisamente no cruzamento que dava para o Pocestinho. Este Descansadouro servia para pausa e repouso aos homens que vinham carregados com molhos, cestos ou sacos, transportando, às costas, incensos, lenha, inhames, maçãs, erva-santa, fetos e muitos outros produtos dos lugares do Curralinho, Lavadouros, Alagoinha, Mateus Pires, Pico Agudo, Paus Brancos, do Pocestinho e de toda a zona da Rocha, desde a Silveirinha até aos Lavadouros. Por isso eram muitos os habitantes da Fajã que, exaustos e cansados, no regresso destas paragens, ali interrompiam a sua caminhada, fazendo uma pausa. Fumava-se (trocando-se lume e cigarros), conversava-se, faziam-se contractos e acordos e, sobretudo, descansava-se porque as distâncias eram longas, o piso do caminho e, sobretudo, o das canadas contíguas era muito íngreme e sinuoso, e as cargas eram pesadíssimas.

O facto de este Descansadouro ser muito espaçoso e ter uma posição estratégica relativamente aos caminhos que servia, permitia que ele fosse também utilizado para descanso dos animais quando puxavam o corsão ou o carro. Poucos dos outros descansadouros da freguesia se podiam vangloriar do mesmo, sobretudo devido à descomunal exiguidade de que eram detentores e que não permitia o estacionamento daqueles meios de transporte e carregamentos.

No Descansadouro da Escada Mar ou Escada do Amaro, como se chamava nos tempos primitivos, as paredes destinadas a colocar as cargas estavam dos lados norte e leste, neste caso ficando de costas para a rocha. Uma e outra destas paredes, de tão altas que eram, protegiam os que ali se acaçapavam ou se encostavam, evitando os ventos mais fortes e a chuva. Além disso, junto à parede norte havia uma tosca bancada de pedra onde os homens se sentavam e abrigavam.

Situado no interior de um pequeno planalto, que abrangia quase todo o lugar da Escada Mar, este Descansadouro, no entanto, não beneficiava de nenhuma vista agradável e bela, nem de fornecimento de água, pois por ali não havia nenhuma nascente. No entanto, situado na proximidade da rocha, que o cercava e protegia parcialmente, esta concedia-lhe uma impressionante imponência, uma enorme monumentalidade e uma graciosidade única e inexaurível. Dominava-o um enorme e transcendente silêncio, envolvia-o uma solene e estranha magnanimidade, cercava-o um perfume de frescura e povoava-o, nos momentos de ausência humana, uma espécie de paz contemplativa, serena e inebriante.

Meu pai, tinha ali mesmo em frente uma relva, pouco fértil e produtivamente muito debilitada, a ponto que dali nada se tirava a não ser fetos secos, após a ceifa do verão. Mas mesmo assim a safra era muito limitada. Por isso, era quando vinha, acompanhado de meu pai, do Pocestinho ou do Pico Agudo, lugares onde tínhamos terras de mato, carregadíssimos com molhos de lenha, erva-santa, cana roca, incensos ou cama para o gado que o repouso no Descansadouro da Escada Mar me sabia como mel na sopa.

Descansadouro da Escada Mar um testemunho idílico num passado austero e rígido, mas intransigente e dignificante, uma quimera desfeita a perder-se sobre memórias soltas, dispersas e esbatidas.

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publicado por picodavigia2 às 17:48

BONABOIÃO

Quinta-feira, 23.01.14

Enquanto o fronteiro, D. Paio de Farroncóbias, embainhava a espada, Pedro Fogaça aproveitava para se ir informando sobre as intenções de el-rei de Leão, D. Afonso VII, relativamente a uma possível aceitação da independência do Condado. O fronteiro esclareceu:

- D. Afonso VII está preocupado com as ataques do rei de Navarra e com a necessidade de os travar e impedir, por isso, não pode, pelo menos nos próximos tempos, atacar-nos. Foi essa a razão por que D. Afonso Henriques lhe prestou vassalagem e assinou com ele a paz, em Tui. Sabe muito bem o Príncipe que el-rei de Leão, nestes últimos tempos, não o atacará e, por isso mesmo, pôde voltar-se para sul, com o intuito de afastar os infiéis sarracenos e alargar as fronteiras do nosso Condado. E em boa hora o fez, pois com esta retumbante vitória, decerto que os sarracenos irão cessar, pelo menos durante algum tempo, os seus combates e o primo há-de temê-lo cada vez mais. A assinatura com D. Afonso VII de um Tratado de Paz e a vassalagem que lhe prestou, foram apenas estratégias, reveladoras da grande perspicácia do Príncipe, para conseguir obter uma paz periódica que permita uma investida a sul. Tratou-se de um tratado de interesses, ilustre Pero Fogaça, senhor de Lubisonda - e batia-lhe com a palma da mão nas costas, – de um verdadeiro tratado de interesses, ao qual de facto D. Afonso Henriques não se submeteu nem se submeterá jamais. Por isso, não desistimos, nem nunca desistiremos da independência deste Condado. Viva Portugal! Viva El-rei D. Afonso Henriques! Além disso, várias mesnadas de muitos ricos-homens se têm levantado contra os galegos. Há dois dias que me separei de sua Alteza, porque ele pretende voltar à Galiza, para exigir de Afonso VII a independência. Eu, amanhã, seguirei para a minha querida cidade Trancoso, a fim de impedir quaisquer levantamentos que por ali se façam.

Pernoitou D. Paio de Farroncóbias na humilde mas abastada casa do honrado Pêro Fogaça. O alcaide de Trancoso, ao entrar, foi recebido pelo filho de Pedro Fogaça, o jovem Banaboião que não cabia em si de contentamento, pois pela primeira vez via o temível fronteiro, esposo de Iluminata, que ostentava no rosto várias das vinte cicatrizes que lhe cobriam o corpo de guerreiro valoroso. Acolheram-no também a mulher de Pedro Fogaça, Aldonça e seu tio Gonçalo Guterres, vigário da Vacariça. Ao ser-lhe apresentado o clérigo, perguntou-lhe D. Paio se, por ter o mesmo nome, descendia da nobre e ilustre família de D. Hermínio Guterres que outrora fora adaião da Sé de Braga, seu confessor quando criança e que fora ele quem, ao lado do Arcebispo Primaz, D. Germano de Santamaria, o baptizara, na mesma Sé de Braga. Ao que o vigário Gonçalo Guterres respondeu afirmativamente, informando-o de que D. Hermínio Guterres, seu tio, morrera, aos noventa e cinco anos, com fama de virtude e santidade. O fronteiro vangloriou-se por estar na presença de uma família tão cristã e com tão grande luzimento de virtudes teologais.

Pero Fogaça, embevecido por tão sublimes elogios, retorquiu que fora já no pendor da vida tão repleto de bens que não os media nem os merecia, que nem conhecia ou sabia o que tinha de seu, mas que, durante muitos anos, grande desventura caíra sobre si e sobre sua esposa, a virtuosa D. Aldonça. Queixara-se, anos a fio, da esterilidade de sua esposa o que lhe pesava como praga ou castigo divino. Mas que enfim, Deus Nosso Senhor e Pai Omnipotente, não tanto em seu merecimento mas antes em sua misericórdia infinita e suprema bondade, se apiedara deles e que, tal e qual fizera outrora a Zacarias e Isabel que na sua velhice haviam concebido, gerado e criado o precursor messiânico - S. João Baptista, - também a ele e a sua esposa, a humilde e virtuosa D. Aldonça, fora dada a graça, não tanto por seus méritos e virtudes, mas por intercessão junto de Deus Padre Nosso Senhor e do seu muito virtuoso tio D. Hermínio Guterres, a graça de na sua velhice terem um filho varão, aquele jovem que ali estava, na presença do mui nobre cavaleiro - Banaboião. Deus amerceara-se deles e com alguma razão o fizera, pois servos de Deus mais submissos e obedientes ao Criador não os havia por Lubisonda e arredores. Davam esmolas aos pobres, cumpriam os mandamentos da Santa Lei de Deus e as determinações da Santa Igreja de Roma. A sua generosidade era tanta que poucos por ali não eram seus afilhados, repartindo com todos os seus bens e haveres

Banaboião ajoelhou-se diante do nobre cavaleiro e este colocando-lhe a mão de guerreiro experiente sobre o ombro interrogou-o de seus intentos bélicos e a vontade de o seguir na sua mesnada.

Pêro Fogaça logo se antecipou, informando-o de que sua estimada e casta esposa Aldonça em seu desespero de esterilidade prometera vezes sem conta a Deus, à Virgem e aos Santos de suas devoções, que a ter um filho varão ele havia de consagrar-se ao Altíssimo e subir o altar para celebrar os santos mistérios. Mais acrescentava o generoso e honesto mercador que sempre se opusera a tal sacrossanta intenção, sabendo mesmo que poderia ofender a Deus Nosso Senhor e que por sua vontade Banaboião havia de seguir era a carreira de mercador, dando continuidade aos seus negócios como ele dera aos de seu pai e este aos de seu avô, sempre com honra, dignidade e a mais nobre solicitude. Um filho que Deus lhe desse, haveria de continuar-lhe os negócios. Porém se a promessa de Aldonça se concretizasse e Banaboião subisse ao altar teria na mesma a sua bênção. Aldonça rogara-lhe pela sagrada paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo que não afastasse o filho do regaço materno, não o deixasse seguir para Salamanca, nem sequer o mandasse tirar graus com os Cónegos de Santa Cruz, nem muito menos o iniciasse nas lides comerciais, apagando-lhe os fulgores da vocação religiosa. Por isso o afastava de todo o convívio com o sexo feminino, exceptuando-se sua mãe e a jovem Ximena, casta e pura como cecém.

Banaboião corou.

Fonte de Inspiração – Aquilino Ribeiro São Bonaboião Anacoreta e Mártir

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publicado por picodavigia2 às 16:27

HERMENEGILDA LACERDA

Quinta-feira, 23.01.14

Hermenegilda Teles de Lacerda nasceu na Horta, em 30 de Junho de1841, tendo falecido na mesma cidade, em 1895. Escritora de valor e de fecundidade pouco vulgar,  cultivou a poesia, que trabalhou à maneira romântica da época, a ficção em prosa, a crítica literária e artística e a crónica de costumes, deixando numerosos artigos sobre as mais diversas matérias, dispersos nas páginas dos jornais açorianos e de alguns jornais e revistas do continente e do Brasil. Foi também presença considerada de talento incontestável nas palestras do Gremio Litterario Fayalense. Era bisneta de Manuel Inácio de Sousa e neta de Francisca Cordélia de Sousa.

Da sua vasta obra literária, destacam-se: Teatro - Entre dois deveres, A verdadeira nobreza, O apóstolo; Deus existe e Heroismo de mulher. Romance: A mariquinhas da gruta; O eremita da ilha do Faial; Uma narrativa ao ar livre, Uma recordação dos 14 anos, Da fatalidade à felicidade, A voz da natureza, Faze bem não olhes a quem e O valle da feiticeira. No Brasil publicou a colectânea de poesia: Horas crepusculares.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 09:47

AS FURNAS

Quinta-feira, 23.01.14

As Furnas eram incontestavelmente, na década de cinquenta, de entre os lugares despovoados da Fajã Grande, um dos mais importantes. Esta relevância vinha-lhe, sobretudo, do facto de as Furnas serem, juntamente com o Porto, uma espécie de “celeiro da freguesia”. Na realidade o lugar das Furnas, para além de extenso em área, possuía terrenos muito férteis e produtivos. Era ali e também no Porto que se situavam os maiores, mais férteis e mais produtivos cerrados da Fajã Grande. Com uma área muito extensa e localizado junto à orla marítima, o que de alguma forma prejudicava, por vezes, as colheitas, o lugar das Furnas tinha a norte o interessante, quanto ao nome, lugar do Rolinho das Ovelhas e a sul o ainda mais extenso lugar do Areal, sendo que a própria fronteira entre estes dois lugares era de difícil definição, cuidando-se que as Furnas abrangeriam todo o espaço que ia desde o Rolinho das Ovelhas até à zona do Redondo e o Areal, a partir daí até à rocha do Pico do Areal. A leste, as Furnas faziam fronteira com a Rua Nova e as Courelas e a oeste com o Oceano Atlântico, em cuja orla marítima se situavam os lugares do Respingadouro, do Caneiro das Furnas, da Ponta do Baixio, da Coallheira, da Retorta e do Redondo.

O acesso às Furnas fazia-se por um caminho de carros que partia da Rua Nova e das Courelas e se cruzava mesmo no início deste lugar, atravessando-o de leste a oeste, permitindo, assim, o acesso não apenas à maioria das propriedades que ali abundavam, mas também ao campo de futebol, ali localizado, e ao mar. Através deste caminho, no entanto, não se tinha acesso a muitas das propriedades. Para aceder a estas circulava-se através de algumas canadas, algumas autênticos maroiços. Dentro das Furnas, para além do caminho principal, apenas havia um outro, curto, estreito e sinuoso, bem no centro do lugar e que dava acesso ao cerrado do Guarda-Furtado. Muitas terras, no entanto ficavam mais distantes e o acesso, impossível mesmo pelas canadas existentes, era assegurado pela cedência dos terrenos situados entre elas e o caminho. Embora sem ser acessível a carro de bois, também se podia chegar às Furnas por uma canada que existia junto ao mar, que ligava o Porto ao Areal e que se destinava, sobretudo, aos pescadores e aos apanhadores de lapas. Para além de produzirem, milho, batatas brancas e doces, couves, abóboras e feijão, nas Furnas, junto a muitas terras, havia maroiços e noutras, currais anexos, onde se produzia uvas e figos, umas e outros de excelente qualidade.

Mas a importância das Furnas também lhe advinha por ser lá, junto ao mar, entre o Respingadouro e o Caneiro das Furnas que se localizava o campo de Futebol da Fajã Grande. O chamado “campo maior”, onde se realizavam, nas tardes de domingo, os jogos de futebol e um pequeno, na parte norte, destinado às crianças. Este campo sucedeu a um primeiro que existiu na freguesia, no lugar do Estaleiro, entre o Porto e o Calhau Miúdo, mas que teve duração efémera. Inaugurado na década de trinta, o campo do Estaleiro foi palco do primeiro jogo de futebol na Fajã Grande. No entanto, alguns anos depois deu origem a um cerrado num serrado que posteriormente foi dividido por “malhões” dado que pertencia a três donos: ao Laureano Cardoso, ao António Barbeiro e ao Chileno. Mas a 8 de Setembro de 1940, festa da Senhora da Saúde foi inaugurado, em sua substituição, o campo das Furnas, onde nos anos seguintes se realizaram diversíssimos jogos. O apogeu da prática futebolística na Fajã Grande, com o epicentro nas Furnas, foi durante os anos cinquenta, onde a equipa local, o Atlético disputou variadíssimos jogos com o Sporting e a União de Santa Cruz, o Rádio Naval das Lajes e a académica da Fazenda.

O lugar das Furnas ainda se celebrizou porquanto nele se localizava a maior lixeira a céu aberto, da freguesia. Situava-se precisamente, por cima da Furna das Mexideiras, ali bem perto do Caneiro das Furnas e para lá era despejado quase todo o lixo da freguesia: camas velhas, portas desfeitas, utensílios de cozinha inutilizados, colchões esfrangalhados, garrafas partidas, caldeirões esburacados, grelhas carcomidas pela ferrugem, latas furadas, enfim tudo aquilo que devido ao seu estado de envelhecimento e degradação já não servia rigorosamente para nada. Era também na orla costeira das Furnas que se situavam alguns dos melhores pesqueiros da Fajã, nomeadamente o Respingadouro, a Retorta e sobretudo o Caneiro das Furnas., sendo que a Retorta serviu muitos anos de zona balnear das mulheres a quem, na altura, era praticamente interdito tomar banho quer no Porto Velho, quer no Cais, zonas destinadas aos homens.

Dada a sua localização relativamente próxima das casas e da igreja, as procissões das Rogações, realizadas nas têmporas de Setembro e destinadas a implorar a chuva para os campos, passavam no caminho circundante ao lugar das Furnas.

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publicado por picodavigia2 às 09:16

O TERÇO

Quinta-feira, 23.01.14

Todas as noites, mal terminava a ceia, minha avó, sentada em cima duma caixa verde que ficava enfiada num dos cantos do quarto de jantar, entre o armário onde se guardava a loiça e o tabique da cozinha, benzendo-se e persignando-se, iniciava as rezas:

- In nome du Pai, du Filhe e du Sprite Sante.

- Amen! – Respondíamos nós, em uníssono, ao mesmo tempo que, seguindo o seu exemplo, também nos benzíamos com a mão direita, persignando-nos, de seguida, desenhando com a ponta do polegar três cruzes: uma na testa, outra na boca e uma terceira no peito.

O pequeno quarto de jantar, agora transformado em santuário, com uma janela de vidro no tabique, ficava lado a lado com a cozinha, com a qual parecia geminado. Preso na janela estava um candeeiro a petróleo, de tal forma encastoado que a única e débil luz que emitia, iluminava, simultaneamente e num perfeito e delineado esquema de rentabilização de recursos e de poupança, aquelas duas divisões da casa.

Depois da morte do meu avô, coube à minha avó o direito e a responsabilidade de presidir às rezas nocturnas, ou seja, ao Terço, lá em casa. Segundas e quintas, mistérios gozosos, terças e sextas os dolorosos e, finalmente, às quartas e aos sábados os gloriosos. Aos domingos era dia de folga - o terço era rezado na igreja, antes da missa.

O quarto enchia-se de gente. Meus tios e tias, obrigados a permanecer em casa durante a reza, eram muitos e, além disso, vínhamos nós, que também não éramos poucos e, por vezes, uma ou outra vizinha, acompanhado da família, que ali vinham fazer serão. Uns sentavam-se à volta da mesa, outros nalguma cadeira que por ali rareava ou no banco de lavar os pés e, a maioria, no chão.

- Primeire mistérie – clamava minha avó, rápida e dolente – Agonia de Nosse Sinhô no Horte das Aliveiras. - E sem hesitar ou fazer qualquer prosa ou comentário, atirava de rajada: - Padre Nosso quastás no Céu, santeficade seju vosse nome….

O quarto, de imediato, parecia não caber em si de êxtase com a resposta pronta, volumosa e abruta de todos os presentes que, em uníssono rezavam:

- “O Pan’osso de cada dia nos dai ehoje….”.

Da cozinha, chegava como em eco a voz lenta, grossa, pausada e rouca dos homens que ali haviam ficado, uns por serem menos afectos a rezas, outros por não caberem no quarto.

… E a oração continuava, monótona e sincronizada. Alternavam-se, à vez, as Ave-Marias com as Santa Marias, até ao Glória, depois do qual tudo voltava ao início, com uma pequena diferença: o Padre Nosso assim como a Ave Maria, agora, eram pertença do coro dos circundantes. À minha avó sobravam o “Pão Nosso” e a “Santa Maria”…

A reza era prolongada, lenta, morna, martelada e, além disso, iluminada por uma luz frouxa e titubeante, onde os vultos se distinguiam mais pelas vozes do que pelas feições. A oração, à medida que avançava, ia-se tornando cada vez mais diluída, lânguida e como que desvanecida. Alem disso, depois de um dia de trabalhos exaustivos e de canseiras prolongadas e excessivas, a monotonia do Terço convidava ao sono, ao tédio, ao enfado e ao aborrecimento. Por isso ainda nem ia a meio e já alguns dormitavam, intermitentemente, outros bocejavam e a maioria distraía-se, debulhando as contas maquinalmente. Um ou outro mais folgazão, interrompia a reza com graçolas mais impróprias do momento do que ofensivas de quem quer que fosse, muito menos de Deus ou da Virgem. Mas minha avó não contemporizava. Brincar com as coisas de Deus é que nunca. De imediato, interrompia a reza para enxotar o “Eira-Má”, o “Coiso-Mau”, o “Demónio” que, na opinião dela, era o responsável por aquele descalabro, por aquela pouca vergonha, metendo-se no corpo do provocador. Depois exorcizava, com convicção:

- Sume-te daqui, excomungado e vai-te pru quintu dus infernos, quei nam quer cair em tantaçães. - E voltava a benzer-se vezes sem conta, como se iniciasse, novamente, a reza, para, de seguida, voltar a esconjurar. – Eu me benzo do Coiso-Mau! Reda vaz, Satanaz! Eu tí’sconjuro, Cão-da-Meia Noite!

Perante as ameaças de que a reza ficaria por ali, lá se calavam os incautos provocadores, permitindo que o Terço continuasse e chegasse, pelo menos, ao “Nosse Sinhô cruade despinhos”.

 - Tal qual a image do Sinhô dos Passes que temes na noss’igreja, - comentava, em voz baixa, cheia de fervor e crença, tia Graça, muito afeita e conhecedora de todas as celebrações e novenas que se faziam na igreja da freguesia.

…E após muitas Ave Marias e alguns Padre Nossos, lá chegava minha avó ao Calvário, à “crucefixão e morte de Nosse Sinhô” e por fim à “Salve Rainha”, sinal de que o longo e monótono Terço tinha ali o seu fim. Mas minha avó não ia nos ajustes. Depois da Ladainha, rezada num latim típico e invulgar, o fundador e pregador do Santo Rosário – São Domingos – merecia, todas as noites uma oração especial, a que se seguia uma série infindável de “Padre Nossos”, quase tantos como os do Terço, por alma de pai, d’avô, d’avó, de Pai Cristiano, de José do Céu, d’Angelina, “por todes os nosses parentes, amigues e benfeitores e p’las do Purgatórie, especialmente, p’las que mais precisarim”. Depois, uma segunda série, a comtemplar as intenções deste e daquele, a saúde de todos, sobretudo, a dos que haviam partido para longe – para a América.

A noite, apesar de longa, já ia avançada. Mas os homens, ainda, acendiam um cigarro e formavam círculo à volta da mesa, para a sueca. As mulheres, aproximavam-se mais da lamparina, agora com o pavio alevantado, e pegavam nas cardas, no fuso ou nas agulhas e nós, as crianças, sentavamo-nos, à volta da minha avó, ávidas de ouvir mais um conto:

- “Era uma vez uma princesa que numa noite foi três vezes ao Inferno…”

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publicado por picodavigia2 às 08:45

ACHADOS

Quinta-feira, 23.01.14

Na Fajã Grande, nos anos cinquenta havia a convicção de que o mar era “muito rico”, chegando mesmo a considerar-se que seria “mais rico do que a terra”. E o povo tinha razão, apesar de, neste seu juízo de valor, não aludir à importante fonte alimentar que o mar continha - o peixe. Referia-se, pelo contrário, a riquezas materiais, a tesouros e outros bens de valor que estariam algures, nas profundezas dos oceanos e que, de um dia para o outro, poderiam muito bem serem trazidos pelas ondas, sobretudo quando bravas, fortes e altivas, despejando-os na orla marítima, vulgarmente chamada “costa”. Era esta ideia que levava muitos homens, na altura, sobretudo em dias de mar bravo, a “correr a costa”, isto é, a percorrer toda a zona marítima desde o Canto do Areal até ao Rolo, na mira de encontrar tudo aquilo que o mar possuía e agarrar no que muito bem encontrassem e conseguissem arrastar para terra.

E não se enganavam estes aventureiros da busca de tesouros marítimos. Na realidade muitos eram os homens e até algumas mulheres, que nos dias de mau tempo, se dirigiam para junto da orla marítima, equipados com grandes e potentes “pexeiros”, vasculhando tudo o que fosse poça, caneiro, enseada ou baía. E verdade é que muita coisa era encontrada, pescada para terra e trazida para casa, sendo tudo o que o mar dava, praticamente aproveitado. Eram os célebres e tão desejados “achados”.

Os achados mais frequentes eram garrafas e frascos. As primeiras, sobretudo as de litro, eram muito apreciadas, assim como os garrafões que, com menos frequência apareciam. Depois de lavadas eram usadas para o vinho ou para o petróleo ou para a creolina e as mais pequenas para biberons de bebe ou para colocar o azeite doce, a tintura ou álcool. Os frascos serviam para guardar o doce. Outros achados, muito frequentes, eram as bóias de ferro ou de alumínio. De forma geralmente redonda, com capacidade entre 2/3 litros, depois de furadas junto à asa e bem lavadas por fora e por dentro, eram usadas para o transporte de água, uma vez que a conservavam muito fresca, para os homens beberem enquanto trabalhavam nos campos ou ainda para o transporte para as galinhas ou para outro uso qualquer. Também se encontravam tábuas, barris, lâmpadas usadas, latas, caixas e muitas outras bugigangas. Mas os achados mais desejados, porque muito valiosos, eram os fardos de borracha. Tratava-se de cubos de borracha maciça, alguns bastante grandes e que depois de secos e limpos poderiam ser vendidos e dar bom dinheiro. Na Fajã Grande era a Senhora Dias que os comercializava. No entanto, a pessoa que encontrava o fardo não chegava a receber o dinheiro, uma vez que a Senhora Dias tinha uma mercearia e entregava o valor estimativo do fardo de borracha em géneros e depois, ela própria os vendia ou exportava para o continente. No entanto este negócio, nos anos cinquenta, trouxe-lhe alguns dissabores, por quanto a lei não permitia que se comercializassem produtos encontrados no mar. A Senhora Dias acabou por ter que responder em tribunal, o que veio a prejudicar, sensivelmente, o negócio, tornando-se a procura dos fardos menos incentivada.

Entre as garrafas, as mais procuradas eram as fechadas, por quanto se cuidava que poderiam trazer dentro alguma mensagem, e entre estas, alguma que pudesse mudar a vida de quem a encontrasse. No entanto, as mensagens destinavam-se sobretudo aos estudos das correntes marítimas ou eram meras brincadeiras.

Outros objectos procurados eram os provenientes dos destroços dos navios naufragados: madeira, objectos de ferro, talheres, bidões, latas, etc. Havia também, nalgumas casas da Fajã Grande, camas, portas, candeeiros e louças encontrados nos destroços da Bidart, do Slavónia e de muitas outras embarcações. Muito interessantes, também, eram as bolas de vidro, brancas, azuis, verdes e castanhas que serviam para ornamentar as salas das habitações. Havia homens que se atiravam ao mar, mesmo quando bravo, simplesmente para agarrar uma garrafa ou uma bola de vidro.

A maioria dos achados, devido à sua longa permanência no mar, geralmente, na parte que flutuava debaixo de água, estavam cheios de minúsculos percebes, pelo que, depois de retirados do mar, sobretudo fardos e garrafas tinham que ser muito bem limpos e postos ao Sol, a secarem.

A procura de “achados” caracterizou a ligação ao mar durante muitos anos uma população, que exceptuando a caça a baleia, pouco se interessava pela exploração do mesmo mar.

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publicado por picodavigia2 às 07:45





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