PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MANHÃ
É manhã…
Sobre o chão,
- solo ressequido -
cai uma chuva,
miudinha,
suave mas persistente,
mesmo teimosa…
Não é em vão,
este vagido!
Bagos de uva
- girândolas perfumadas -
sob sinfonia eloquente,
nascem em polvoros
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MIL
O Pico da Vigia assinalou, ontem a publicação do poste mil. Iniciado quase há quatro anos – 9 de Março de 2009, o Pico da Vigia tem mantido uma actividade permanente, embora uma outra vez, ocasionalmente, interrompida, com uma média de cerca de 250 postes por ano. Estes postes estão distribuídos por 49 “tags”, dos quais 31 incluem textos, directa ou indirectamente, relacionados com a freguesia da Fajã Grande, na ilha das Flores, Açores, com especial referência aos anos cinquenta do século XX, dando assim cumprimento ao seu objectivo primordial. Os mil postes estão assim distribuídos pelos 49 “tags”:
Autores Açorianos 34, Acidentes, Açores 7, Actualidade 42, Adágios 27, Alimentos 12, América 4, Alimentos Proibidos 61, Aravias 16, Blogue 7, Brincadeiras 1, Construções, Contos tradicionais 27, Corvo 1, Costumes 71, Descansadouros 9, Descritivo 16, Diário de Ti’Antonho 32, Douro Litoral 5, Edifícios 10, Estórias 137, Estórias d’alunos 16, Fantasias 1, Festas 18, Ficção 43, Ficção E 60, Filosofia 4, Flores 11, Grotas e ribeiras 4, Gourmet 20, Gracejos 2, Histórico 35, Jogos 19, Lendas 36, Léxico 14, Lírico 22, Lugares 31, Maleitas 9, Naufrágios 12, Outras estórias 23, Outros Autores 48, Pensamentos 20, Pessoas 34, Pico 27, População 21, Pico da Vigia Júnior 1, Pedro da Silveira 30, Rede Viária 15, S. Caetano 8, S. Miguel 5, Seminário de Angra 9,SI 48, Textos orais 20, Tradições 5, Transportes 5, Utensílios agrícolas 6, Utensílios domésticos 13 e Vários 19.
Recorde-se que num blogue os “tags” constituem agrupamentos temáticos que permitem uma mais fácil consulta de qualquer texto anteriormente publicado. Basta, para tanto, clicar num determinado “tag” e surgem de imediato todos os textos “tagados” no mesmo. Depois é apenas seleccionar o que se pretende ler.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 7 de Fevereiro de 2013, dia em que o número de posts colocados naquele blog, atingiu mil.
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O CANTEIRO DA BATATA-DOCE
Era pela altura do Carnaval, ou seja, no fim de Fevereiro ou princípio de Março que, na fajã Grande, se faziam os canteiros da batata-doce, sendo que por vezes se aproveitava o dia de Entrudo ou Terça-Feira Gorda, dado o seu carácter de feriado, para executar tal tarefa.
Os canteiros da batata-doce eram uma espécie de viveiros, feitos, geralmente, numa pequena courela ou na “terra da porta”, consequentemente, junto da moradia do próprio agricultor, a fim de que a “planta” uma vez nascida e crescida “estivesse mais à mão”. Era, no entanto, uma tarefa árdua e que demorava quase um dia, pois exigia muito trabalho e cuidados excessivos, uma vez que o seu objectivo era produzir a “planta boa” que depois seria plantada nos terrenos para tal preparados. É óbvio que as batatas-doces seriam tanto melhores quanto boa fosse a qualidade da “planta” e esta dependia, necessariamente, da forma mais ou menos perfeita de como se fazia o canteiro.
Como as batatas eram metidas na terra e no estrume para que fosse possível rebentarem em grande quantidade e produzirem mais do que uma colheita ou apanha de “planta”, era importante utilizar uma técnica que não as deixasse enfraquecer e, sobretudo, que evitasse que apodrecessem. Para tal era cavado na terra um enorme e profundo fosso, geralmente de forma quadrangular, cujo fundo era bem forrado com milheiros, formando uma espécie de gradeamento para que a água da chuva ao cair sobre o canteiro, penetrando a terra, não enxurrasse mas antes escorresse a fim de que as batatas não se deteriorassem. Depois cobria-se a camada de milheiros com terra e esta com uma boa quantidade de esterco de vaca, colocando-se ainda por cima deste uma outra camada de terra sobre a qual, então, se colocavam as batatas-doces deitadas, muito direitas e juntinhas, sendo por fim todas muito bem cobertas com uma grande camada de terra, muito bem alisada na superfície superior, para que a rama nascesse fofa e direitinha. Ao redor do canteiro era aberto um rego mais profundo do que a camada dos milheiros para que assim toda a água coada por aqueles escorresse para fora do canteiro. Finalmente e a toda a volta, mas do lado de fora do rego, semeava-se um carreiro de milho, o mais basto possível, o qual tinha uma dupla finalidade: ser uma espécie de bardo protector da “planta” e dar maçarocas para se assarem ou cozerem, uma vez que o milho dos campos tinha outro destino.
Passada uma ou duas semanas começava a rama da batata a nascer e a crescer muito verde e basta. Ao fim de três ou quatro semanas estava pronta a ser cortada e levada para os campos das Furnas, do Areal, do Porto, do Mimoio ou da Bandeja para ser plantada.
Na Fajã cultivavam-se dois tipos de batata-doce. Uma de cor avermelhada ou roxa e uma outra mais esbranquiçada, conhecida por “Batata da Madeira”. As primeiras normalmente eram plantadas “de latada”, ou seja sem serem misturadas com nenhuma outra cultura e eram bem melhores para cozer, sendo por vezes que o seu interior era branco, tinham “carnegão” como se dizia e essas eram as melhores. Cultivam-se geralmente em terrenos, mais secos, menos férteis e mais distantes do mar, como os da Bandeja, do Mimoio, das Queimadas, da Vale da Vaca e até os do Delgado. Por sua vez a “Batata da Madeira” tinha uma cor mais esbranquiçada, era mais aguada, mas bem melhor para assar no forno, sendo também muito utilizada na alimentação dos porcos. Cultivava-se junto com o milho e preferencialmente nas terras à beira-mar, ou seja, no Areal, nas Furnas, no Estaleiro e no Porto.
Uma vez cortada, a “planta” do canteiro era levada para os campos onde era plantada, geralmente por duas pessoas. Uma ia à frente espalhando-a sobre a terra, demarcando assim os lugares onde devia ser plantada, enquanto a outra ia atrás abrindo uma pequena cova com uma enxada própria, a “enxada de plantar batata-doce”, onde metia o pezinho de “planta”, junto do qual acuculava um pouquinho de terra. Quando plantada entre o milho semeado para ser sachado com caliveira havia que se ter muito cuidado para que a batata não fosse plantada nos regos por onde a mesma havia de passar.
Em Junho, Julho e Agosto os campos estavam cobertos de rama muito verde e espevitada mas infectada de bichos feios, asquerosos e horríveis, mas debaixo da terra havia batatas-doces prontas a apanhar e de excelente qualidade.
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A FURNA DAS MEXIDEIRAS
Na Fajã Grande, no lugar das Furnas, junto ao mar, em frente a uma enseada chamada “Caneiro das Furnas”, existia uma enorme furna conhecida como “A Furna das Mexideiras”. Tratava-se de uma gruta, isto é, uma cavidade natural rochosa com dimensões que permitiam que um ser humano pudesse perfeitamente lá entrar e percorrê-la, embora, agachado. Na altura, cuidava-se que esta gruta teria um prolongamento horizontal, em forma de galerias subterrâneas intercaladas com alguns espaços mais amplos e com uma extensão considerável que atingiria a rua da Via d’Água. Como muitas outras grutas existentes nos Açores, algumas, actualmente, já exploradas e transformadas, parcialmente, em roteiros turísticos, a “Furna das Mexideiras” teria sido originada por um conjunto de processos geológicos, envolvendo uma combinação de transformações químicas, tectónicas, biológicas e atmosféricas. Devido às condições ambientais exclusivas deste tipo de orifícios naturais subterrâneos, nestas grutas, geralmente, não existe fauna e a flora, para além de rara, é específica de ambientes escuros e, consequentemente, despojada de vegetação nativa.
Sobre a Furna das Mexideiras da Fajã Grande das Flores, nunca explorada, mas ainda hoje existente, na década de cinquenta, circulavam muitas estórias, algumas delas, até um pouco sinistras e apavorantes. Contava-se, por exemplo, que um certo homem tentara entrar por ali dentro com uma lanterna mas ela apagou-se. O homem voltou a acendê-la, mas sempre que o fazia a lanterna apagava-se. Havia ali algo de misterioso, do outro mundo que impedia que a lanterna se mantivesse acesa. Outro homem que nela também entrara, de lá nunca mais saiu. Muitos homens que por ali haviam passado viam luz no interior da gruta, outros, nevoeiros a sair pela abertura exterior e muitos chegaram a ouvir gritos aflitivos. Também havia quem acreditasse e jurasse a pés juntos, de que aquela furna era a morada e o esconderijo das Mexideiras. Estas eram uma espécie de monstros estranhos, com aspecto semelhante ao diabo, em forma de mulheres que ali permaneciam durante o dia e que, apenas durante a noite, saíam do esconderijo para perseguir e atacar os mortais. Quem passasse em frente à gruta, à noitinha, em dias de temporal, podia ouvir perfeitamente, os seus ruídos e barulhos, umas vezes gritos ruidosos e barulhentos outras gaitadas finas e alegres, muito esganiçadas a ecoarem nas paredes da furna. Havia, porém, quem cuidasse e dissesse que aqueles gritos eram das cagarras que aflitas e quase a morrer, ali se escondiam, quando impossibilitadas de chegar aos seus esconderijos naturais, nas encostas do Pico do Areal. Muitas pessoas, porém, acreditavam que eram mesmo os gritos de festa e de regozijo ou então de dor e aflição das malditas. Os mais crentes ouviam-nos perfeitamente, pois cuidavam que elas andavam ali, à solta, a retoiçar, a rebolar, à espera da hora da saída, ou seja à meia-noite, porque só a partir dessa hora podiam sair do esconderijo e circular livremente fora da gruta. Também diziam os sonhadores de tesouros perdidos que aquela furna escondia um enorme tesouro, deixado ali por piratas que se haviam escondido de outros piratas e tinha morrido lá dentro. Em respeito pelos falecidos ninguém poderia lá ir procurar o tesouro. E a verdade é que ninguém ousava ali entrar para recuperar o tesouro ou fosse para o que fosse. Minha avó contava que Pai Cristiano (o homem que a criara desde criança e após a morte da mãe) certa noite, ao voltar da pesca, passou em frente à furna e ouviu um barulho assustador. Hesitou entre ir ver o que se passava ou fugir para casa, neste caso ficaria cheio de medo e nunca mais por ali passaria. Decidiu-se, então, por ir lá, ver o que se passava. Era uma matilha que para ali havia levado a cabeça de um carneiro. Cada cão latia ferozmente e lutava freneticamente a fim de obter um naco do pitéu. Era uma algazarra tremenda!
Que a Furna da Mexideiras existia, era verdade, que era mítica e lendária, lá isso, também, era. E o medo que eu, em criança, tinha de passar por ali!
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PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (XIII)
Ajuntar – Casar.
Alantado ou alantadinho – Forte, robusto, gordo.
Alevantado – Doido, estouvado, leviano.
Antes isso do que um soco num olho – Expressão de desdém ou menosprezo.
Aparelhar o caniço – Preparar o caniço para a pesca.
Aparelhar a madeira – Aplainar.
À porta de casa – Junto de casa. Perto.
Aprofiar – Insistir
Aquecer a pélia – Bater fortemente.
Aquilhe – Aquilo.
Arcada – Brinco de mulher. Argola de arame presa ao focinho do porco, para o impedir de fossar.
Arengar – Pronunciar mal as palavras.
Arrebentado da cachola – Doido, tolo
Arreda que vai d’aposta – Afasta-te imediatamente.
Arreda vaz, satanás – Expressão para afastar o mal.
Arrefiadela – Piscar de olho.
Arreganhado – Rir em demasia, rir com os dentes à mostra.
Atafulhar – Encher muito, encher até às bordas.
Atinado – Que faz as coisas bem feitas.
Bem perfeitinho - Criança muito bonita e saudável.
Bodeca – Algo pequeno e com pouca importância.
Bonzissimo – Óptimo.
Cabeça fina – Criança ou pessoa inteligente.
Enjorcado – Mal vestido, mal feito, com mau aspecto.
Espiquiado – Saliente.
Fazer escarne – Fazer pouco de outro, rir-se ou gozar alguém.
Galo – O mesmo que mamulo. Inchaço resultante de um pancada na testa ou cabeça.
Galocha – Peça de madeira, em forma de barco, com buraco a meio de abrir e fechar que se colocava numa das mãos dos bovinos para os impedir de saltar as paredes das relvas.
Inteiriçado – Esticado, hirto, duro.
Iscariotas – Aquele que faz pouco dos outros.
Lalabete – Pouco.
Lambarear – Acender e apagar-se do lume ou da luz de um candeeiro a petróleo, com o vento.
Língua destravada – Falador.
Mamulo – Inchaço, maleita resultante de uma pancada na testa ou cabeça
Mausíssimo – Péssimo.
Mentes com quantos dentes tens na boca – Mentes muito. Grande mentiroso.
Metes nojo – Estás muito sujo.
Mexe as aivecas – Incentivo a um companheiro de jornada para andar mais depressa.
Ministra – Mesa da cabeceira
Ó home, sim ou ó home, não – Estou ou não estou de acordo.
Ossos desmanchados – Luxação Ossos partidos.
Parrogilde – Planta apanhada junto ao mar. Perrexil.
Peche – Defeito.
Perfeita de mãos – Mulher que sabe fazer renda, bordar ou costurar com perfeição.
Pica-porte – Fechadura manual de uma porta.
Reboitalho – Resto de folhas e caules depois de escolher as sementes.
Safa daqui pra fora – Vai-te embora, imediatamente.
Safate – Açafate.
Troiceste – Troceste.
Truce - Trouxe
Vaca dando – Vaca que não conseguiu engravidar e que continua a dar leite todo o ano.
Velhas às escondidas – Jogo de crianças em que formando dois grupos, cada um, por sua vez, tentava descobrir onde o outro estava escondido.
Verga – Grosso e comprido arame preso no cimo e na parte baixa da rocha de forma oblíqua por onde eram atirados os molhos de lenha, erva, fetos, etc.
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PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (XII)
Abrir o fastio – Ter apetite ou vontade de comer.
A caminho – Logo, naquela direcção.
Advertido – Divertido.
Aferrar – Apanhar o peixe pelo anzol.
Aferroada – Picada de abelha.
Afogar-se – Engasgar-se.
Alfanica – Vaca ou pessoa folgazona.
Alminha de deus – Pessoa ingénua e simples.
Alpantesma – Pessoa desajeitada.
A mode c’ma tole – Tolo, atoleimado.
Adanar – Nadar.
Apensionado – Com defeito.
Aqui atrasado – Há algum tempo.
Arrebantado – Falido, destruído, mal, doente.
Arregoado – Dizia-se do pão quando ficava aberto, mal cozido.
Atira-te da rocha a baixo – Foge, desaparece de junto de mim.
Avantage – Façanha. Acto heróico.
Avariado da cabeça – Maluco. Doido.
Balaio – Espécie de cesto muito grande onde se guardavam os cereais.
Boa bisca – Pessoa má, mal intencionada e de maus hábitos. Pessoa cuja companhia se devia evitar.
Buzil – Remoinho de água do mar, provocado por forte ventania
Caganeira – Diarreia.
Calçar milho ou Correr milho – Puxar, com o sacho, a terra para junto do pé de milho para o fortalecer.
Carnegão – Parte branca, no interior da batata doce e que era sinal da sua excelente qualidade.
Danasteres – Andar de baixo
Dar em cara – Referir, com frequência, o que se ofereceu.
Está consolando – Está muito bom.
Feio – Enorme, grande.
Inchade c’mum pão de milho – Muito inchado.
Inferno do moinho – Parte inferior do moinho, onde existem as rodas dentadas que fazem girar a mó.
Lanzeira – Sorna, Preguiça, lentidão no trabalho.
Mantinho – Véu com que as mulheres cobriam a cabeça para ir à missa ou entrar na igreja.
Muja – Tainha muito pequeno que vive em poças.
Raitear – Passear
Ranzelar – Resmungar, barafustar.
Rasoira – Caixa de medir os cereais.
Ser c’má folha do álamo – Ser inconstante.
Sortes – Inspecções militares.
Tá bunzinhe c’ma parece – Forma de cumprimentar.
Tailhe – Zona de forrageira até onde os animais bovinos, amarrados à estaca, comeram.
Tarrafa – Rede de pesca.
Tempo manso – Tempo bom.
Tempo manso ou o tempo amansou – Tempo bom. O tempo melhorou.
Ter a língua destravada – Falar demais ou que se não deve.
Ter bicho-carpinteiro – Dizia-se das crianças irrequietas.
Ter fervuras – Estar inquieto, preocupado.
Terras de relva – Pastagens.
Xabouco ou xaboco – Desajeitado. Que não sabe fazer algo.
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A FUGA
Foi na véspera dos anos de Mariana que ela, os pais e o irmão partiram para a França. Para os vizinhos e amigos iam às Caldas, a casa dos avós maternos, passar o aniversário da menina.
Quando chegaram a Bragança, um tipo de aspecto esquisito aproximou-se, recebeu-os e, ostentando disfarçadamente uma premeditada intenção, ofereceu-se, como taxista, para os levar a Gimonde. Que esperassem um pouco sem dar muito nas vistas. A viagem era curta e só à meia-noite em ponto deviam estar em Talhinhas junto à ponte de Remondes, sobre o rio Sabor. O plano em nada falhou. Ao dar a meia-noite, lá estavam juntando-se a eles dois desconhecidos, com quem teriam que efectuar uma longa e perigosa viagem. Pouco depois, chegou o guia que, disfarçadamente, os acompanhou e conduziu até à fronteira.
Era Outubro. As noites já eram grandes e frescas. As crianças começaram a sentir fome e frio. O pai de Mariana, pensando nos pequenos, prevenira-se com comida, em Bragança, mas o Zezito não se calava e, em vão, pedia leite. O choro e a impaciência começavam a importunar. A mãe, vezes sem conta, arrependia-se de ter partido.
Na manhã seguinte, uns a dormir e outros acordados, chegaram a Puebla de Sanábria, em Espanha, juntando-se a alguns pequenos grupos que tinham passado a fronteira noutros locais. Alguns dias depois estavam em Dancharie na França, onde o último guia os deixou.
- Agora tomem o comboio e sigam os vossos destinos conforme as instruções que vos deram. Governem-se, como puderem – e virou costas.
O comboio ainda parou em Puyoô e em Agen onde saíram alguns portugueses. Apenas um pequeno grupo seguiu para Clermont-Ferrand.
Na capital de Auvergne o pai de Mariana procurou o Cardoso, que morava na rua de La Rotunde e desde há muito estava radicado em França. Os conhecimentos que tinha junto dos patrões de algumas fábricas de pneus, metalurgia, produtos farmacêuticos e alimentares proporcionavam-lhe que fosse arranjando alguns empregos e residências para os que o Ramalho lhe recambiava de Portugal. Era uma maneira de, à socapa, ganhar mais algum. O que tinha disponível de momento era numa fábrica de pneus. Não era nada mau.
- O trabalho é pesado, mas vais ganhar bem. És novo e forte. Se com o teu trabalho agradares aos patrões, tens promoção pela certa. Já sabes que para aqui não se vem passar férias.
O alojamento é que estava um pouco complicado. Para já só conseguira um quarto, um pouco distante da fábrica. Era na rua Berlliard. A mulher podia usar a cozinha e o preço era acessível. Em breve lhe arranjaria uma casita. Havia um tipo de Viana que, em breve, ia tentar melhor sorte em Paris e deixava casa vaga. Já a tinha “apalavrada”. Quando ele fosse embora ficaram de vez com a casa.
E no dia seguinte, o pai de Mariana começou a trabalhar na fábrica de pneus “ La Souquete”.
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CANÇÃO DO REMENDO E DO CASACO
(BERTOLD BRECHT)
Sempre que a nosso casaco se rasga
Vocês vêm correndo dizer: assim não pode ser
Isso vai acabar, custe o que custar!
Cheios de fé vão aos senhores
Enquanto nós, cheios de frio, aguardamos.
E ao voltar, sempre triunfantes
Nos mostram o que por nós conquistam:
Um pequeno remendo.
Óptimo, eis o remendo
Mas onde está
O nosso casaco?
Sempre que nós gritamos de fome
Vocês vêm correndo dizer: Isso não vai continuar
É preciso ajudá-los, custe o que custar!
E cheios de ardor vão aos senhores
Enquanto nós, com ardor no estômago, esperamos.
E ao voltar, sempre triunfantes
Exibem a grande conquista:
Um pedacinho de pão.
Que bom, este é o pedaço de pão
Mas onde está
O pão?
Não precisamos só do remendo
Precisamos o casaco inteiro.
Não precisamos de pedaços de pão
Precisamos de pão verdadeiro.
Não precisamos só do emprego
De toda a fábrica precisamos.
E mais a carvão
E mais as minas
O povo no poder.
É disso que precisamos.
Que têm vocês
A nos dar?
Bertold Brecht
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SEMPRE NÃO
(CONTO TRADICIONAL
Um cavaleiro, casado com uma dama nobre e formosa, teve de ir fazer uma longa jornada: receando acontecesse algum caso desagradável enquanto estivesse ausente, fez com que a mulher lhe prometesse que enquanto ele estivesse fora de casa diria a tudo: – “Não”. Assim pensava o cavaleiro que resguardaria o seu castelo do atrevimento dos pajens ou de qualquer aventureiro que por ali passasse. O cavaleiro já havia muito que se demorava longe da corte, e a mulher aborrecida na solidão do castelo não tinha outra distracção senão passar as tardes a olhar para longe, da torre do miradouro. Um dia passou um cavaleiro, todo galante, e cumprimentou a dama: ela fez-lhe a sua mesura. O cavaleiro viu-a tão formosa, que sentiu logo ali uma grande paixão, e disse:
– Senhora de toda a formosura! Consentis que descanse esta noite no vosso solar?
Ela respondeu:
– Não!
O cavaleiro ficou um pouco admirado da secura daquele não, e continuou:
– Pois quereis que seja comido dos lobos ao atravessar a serra?
Ela respondeu:
– Não.
Mais pasmado ficou o cavaleiro com aquela mudança, e insistiu:
– E quereis que vá cair nas mãos dos salteadores ao passar pela floresta?
Ela respondeu:
– Não.
Começou o cavaleiro a compreender que aquele “Não” seria talvez sermão encomendado, e virou as suas perguntas:
– Então fechais-me o vosso castelo?
Ela respondeu:
– Não.
– Recusais que pernoite aqui?
– Não.
Diante destas respostas o cavaleiro entrou no castelo e foi conversar com a dama e a tudo o que lhe dizia ela foi sempre respondendo “Não”. Quando no fim do serão se despediam para se recolherem a suas câmaras, disse o cavaleiro:
– Consentis que eu fique longe de vós?
Ela respondeu:
– Não.
– E que me retire do vosso quarto?
– Não.
Na manhã seguinte, o cavaleiro partiu, e chegou à corte, onde estavam muitos fidalgos conversando ao braseiro, e contando as suas aventuras. Coube a vez ao que tinha chegado, e contou a história do “Não”; mas quando ia já a contar o modo como se metera na cama da castelã, o marido que era um dos cavaleiros presentes, já sem ter mão em si, perguntou agoniado:
– Mas onde foi isso cavaleiro?
O outro percebeu a aflição do marido e continuou sereno:
– Ora quando eu ia eu a entrar para o quarto da dama, tropeço no tapete, sinto um grande solavanco, e acordo! Fiquei desesperado em interromper-se um sonho tão lindo.
O marido respirou aliviado, mas de todas as histórias foi aquela a mais estimada.
Teófilo Braga Contos Tradicionais do Povo Português
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GAIA
Palácios senhoriais,
com o rastro das uvas
a alterar-lhes o destino!
Caves vetustas,
bordadas a mosto,
léguas de aromas,
amontoado de sabores!
E o Douro,
ao lado,
atafulhado de marés
mas a correr, inutilmente,
como se fosse um rio louco, deserto e sem destino.
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OVELHAS DA BURRINHA
“Ser (não ser) como as ovelhas da Burrinha.”
Os adágios são, incontestavelmente, uma das mais interessantes formas de ensinamento moral, inventadas pelas sociedades a fim de alertar os seus membros para uma vivência de acordo com os mais nobres princípios da moral, da ética e dos bons costumes. Baseados, normalmente, em factos do quotidiano, os adágios exprimem, em pequenas e sucintas frases, sentenças que tem como objectivo moldar a experiência e as acções humanas, geralmente apresentadas em breves e elegantes palavras e são como que um precioso erário, não só de sabedoria popular, mas também do código de conduta moral e cívica do povo.
Ora como todas as sociedades a Fajã Grande, até porque diferenciada por um isolamento acentuado, também criou, naturalmente, ao longo da sua história, costumes, tradições e os seus próprios adágios, entre os quais era muito frequente o seguinte: “Ser (não ser) como as ovelhas da Burrinha.”
Para compreender o significado deste interessante adágio muito utilizado, talvez mesmo exclusivo ou se quisermos “endémico” da Fajã Grande, é necessário recorrer-se a alguns costumes daquela freguesia florense, na primeira metade do século passado, nomeadamente no que se relacionava com a forma como se criava o gado ovino. Na realidade, na Fajã Grande, como aliás noutras freguesias das Flores e até no Corvo, as ovelhas eram criadas de forma comunitária, sendo colocadas numa zona do mato chamada “concelho”, um grande espaço comunitário de pastagens, situado nas zonas mais altas da ilha e, consequentemente, mais pobres e consideradas “terra de ninguém”. Despejadas aí as ovelhas, abandonadas ao seu destino, eram assinaladas nas orelhas com o sinal do seu proprietário, sendo que todos sinais eram diferentes. O povo juntava-se, duas vezes por ano, para as recolher, num “curral” para tal construído, com o fim de as tosquiar. Era o chamado dia de “Fio” a que se atribuía um ar festivo. Nesse dia de manhã, bastante cedo, os homens partiam para o mato, para a zona do concelho, a qual, pelo menos uma boa parte, se situava no lugar chamado a “Burrinha”, onde se distribuíam estrategicamente, a fim de recolher todas as ovelhas, que, sentindo-se perseguidas por homens e cães, caminhavam umas atrás das outras, sem saber qual era o seu destino e muito menos sem o escolher. Foi este costume secular que naturalmente deu origem ao provérbio “Ser ou não ser como as ovelhas da Burrinha”, com o qual se queria significar e transmitir às pessoas que ao fazerem as suas opções, não deviam ser como as ovelhas recolhidas pelos homens nos terrenos da Burrinha no dia de Fio e que caminhavam umas atrás das outras, sem escolherem o seu caminho e sem saber para onde iam. Pelo contrário, o ser humano devia ser livre de agir e pensar por si próprio, evitando deixar-se arrastar pelas ideias ou pelos costumes, pensamentos e atitudes dos outros.
Pensar livremente e por si próprio, agir de forma coerente com os seus princípios, ser responsável pelas suas opções e projectos de vida, ser coerente consigo próprio e construir o seu próprio percurso de vida é o que de mais nobre tem o ser humano e era precisamente isso que se pretendia sintetizar, na Fajã Grande, na década de cinquenta, com este adágio. Em boa hora, pois, era lembrada a estultícia e o desatino das ovelhas da Burrinha e, sobretudo, a sua falta de liberdade.