PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A ÁGUIA E A RAPOSA
CONTO TRADICIONAL
Era uma vez uma águia e uma raposa que eram comadres. Um dia a águia convidou a comadre raposa para ir a uma boda ao céu. A raposa disse-lhe que aceitava de bom grado o convite, mas que infelizmente não podia ir, porque a idade avançada e o cansaço das agruras da vida já não lhe permitiam dar grandes passeios ou fazer longas viagens.
A águia, muito solícita e amiga, disse-lhe que não havia problema. Ela, raposa, que não se preocupasse que havia de lhe pegar com as suas fortes unhas, transportando-a pelos ares, enquanto voava. Para além de não se cansar, a viagem seria muito mais rápida e agradável.
A raposa, renitente ao princípio, acabou por anuir ao convite da comadre e lá foram as duas pelos ares. A águia a voar, sustentando pelo pescoço, com as suas garras, a pobre raposa que se torcia e retorcia toda, ao sentir as afiadas unhas da águia a penetrarem-lhe a carne. Mas como tinha aceitado livremente e de boa vontade o convite da comadre, sofria, calada, as agruras do seu destino.
Já iam a mais de meio da viagem, bem lá no alto, quando a águia diz para a raposa:
- Segura-te bem, comadre, que eu quero cuspir nas unhas, para te poder segurar melhor. E dizendo isto largou a raposa que mais nada pode fazer do que estatelar-se estrondosamente no solo, em cima duma enorme laje de pedra granítica, que cobria o chão, no local onde ela caiu.
Desfeita, amachucada, com alguns ossos partidos e muitas dores no corpo, a raposa, aos poucos, lá foi recuperando a saúde, até se recompor por completo.
Ao saber que a raposa escapara da primeira, a águia voltou a procurá-la para lhe armar uma segunda cilada, da qual a enfadonha comadre, não havia de sobreviver. Dirigiu-se pois à toca da raposa, lamentando o sucedido, desculpando-se e fazendo-lhe um segundo convite. Os seus filhos pequeninos, faziam anos e pretendia dar uma grande festa e um bom jantar, lá no alto, no seu ninho e que tinha muito gosto que a comadre e amiga estivesse presente. A raposa, voltou a aceitar de bom grado o convite, que a comadre podia contar com ela, pois que até a poderia ajudar no arranjo do jantar, sobretudo no acender do lume.
No dia combinado, para espanto da águia, apareceu a raposa junto à árvore, onde, bem lá no alto estava o ninho com os seus filhotes:
- Suba, comadre, suba! – Incentivava a águia, esboçando um sorriso cínico.
- Espere um pouco, comadre, que vou começar a ajudá-la de cá de baixo.
Dizendo isto a raposa começou a amontoar junto da árvore uma grande quantidade de palha, tojo e paus secos que incendiou de tal maneira, que depressa fez arder a árvore, o ninho e os filhos da águia. Apenas esta escapou, fugindo dali, jurando que nunca mais se havia de meter com a raposa.
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A MINHA PRIMEIRA VISITA AO CORVO
A primeira vez que fui ao Corvo, pese embora a sua proximidade das Flores, a minha ilha Natal, foi quando, viajando a bordo do velhinho Carvalho Araújo, regressava à Fajã Grande, após o meu primeiro ano no Seminário de Ponta Delgada. Um dos professores que viajava no mesmo navio, da Terceira para as Flores, era o Dr Américo Vieira, na altura professor e Director Espiritual do Seminário de Angra. O Dr Américo era natural das Lajes das Flores e filho do Senhor Pedro Vieira que era o “conhecido” dos meus avós maternos, nas Lajes. Nas Flores naqueles tempos recuados, sem estradas e com deslocações difíceis e demoradas, a saltar grotões e valados, a atravessar ribeiras sem pontes, a descer rochas e a subir ladeiras com veredas sinuosas, cada família tinha o seu “conhecido” nas outras freguesias da ilha. O “conhecido” era um amigo em cuja casa se pernoitava e tomava as refeições, a quando das deslocações a esta ou aquela freguesia, sobretudo, por altura das festas. Ora quando ia à Fajã Grande, à festa da Senhora da Saúde, o Dr Américo, embora se hospedasse no presbitério, ia sempre visitar os meus avós, os “conhecidos” da sua família naquela freguesia. Eu próprio já pernoitara com meu pai, em casa de um irmão dele, certa vez que viéramos às Lajes comprar uma vaca. Por isso mesmo o Dr Américo já me conhecia, pelo menos de vista,
Após o Carvalho fundear na baía do Porto da Casa, na Vila Nova do Corvo, o Dr Américo procurou-me e disse-me que como iria desembarcar nas Lajes, onde o Carvalho chegaria a meio da tarde, iria a terra, enquanto o navio fizia serviço, para celebrar missa, convidando-me para eu ir com ele, a fim de lhe ajudar à missa. Que me havia de pagar o bilhete de ida e volta a terra. Fascinou-me a ideia, não só por acompanhá-lo, mas também por viajar de graça e, sobretudo, por ter oportunidade de, pela primeira vez, visitar o Corvo.
Partimos na primeira barcaça e, logo ao chegar a terra, em cima do pequeno cais do Porto da Casa, estava o padre Eugénio Rita, pároco daquela ilha e único sacerdote ali residente.
Acompanhou-nos até à pequenina igreja matriz da Senhora dos Milagres, onde o Dr Américo celebrou missa, tendo no fim o padre Rita lhe pedido que o confessasse. Dizia ele, um pouco a brincar, que estando ali sozinho, na pequenina ilha do Corvo, só Deus sabia quando havia de morrer e que, por isso mesmo queria “estar preparado” e, por isso, aproveitava para “acertar as suas contas com Deus” sempre que por ali passava outro sacerdote, o que, por vezes, quase só acontecia de ano a ano. Muita fé tinha este homem!
De seguida levou-nos a sua casa, onde a irmã nos serviu um excelente pequeno-almoço, no qual não faltou leite fresco, doces caseiros, queijo e bolo do tijolo de que eu tanto gostava, Depois conduziu-nos numa visita pela vila, com paragem no Outeiro, a mais mítica praça da Vila Nova do Corvo, onde os homens, mais velhos se reuniam todos os dias para descansar, para fumar, para falquejar, para conversar e, nas ocasiões mais solenes, numa estranha forma de gerontocracia, para tomar decisões e fazer julgamentos em nome de toda a população da ilha.
De origem vulcânica como as restantes, o Corvo é a menor das nove ilhas açorianas, com uma área de cerca de 17 km2 e uma população de quase meio milhar de habitantes. Na ilha do Corvo havia apenas uma localidade povoada, a Vila Nova do Corvo, que era considerado o mais pequeno município do arquipélago e o único do país que não tem freguesia. A área habitada da ilha era essencialmente formada por uma rua principal e várias travessas muito estreitas e sombrias, designadas por canadas – um imbricado de ruelas irregulares, de pavimentação grosseira que constituem um conjunto pitoresco e invulgar no contexto do arquipélago. Os vários cones vulcânicos, com lendas que procuram dar sentido ao desconhecido e que se vim ao longe, as casas invulgarmente próximas umas das outras e voltadas para o mar, procurando o aconchego dos vizinhos e a presença, lá ao fundo, da ilha das Flores, a vastidão do horizonte, a vida simples e calma daquela pequena comunidade não só me encantaram como me haviam ficar na memória e perdurar até que ali regressasse muitas outras vezes.
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A BELA INFANTA
“A Bela Infanta” é um poema romanceado da tradição popular portuguesa, recolhido por Almeida Garret e muito divulgado e conhecido em todo o país. A Fajã Grande que sempre se revelou, talvez devido ao seu isolamento, como um excelente e amplo viveiro de desenvolvimento de textos orais, não podia alhear-se deste, assim como de um outro muito conhecido, “Nau Catrineta”. Tal como os outros rimances, “A Bela Infanta” contava-se aos serões das longas noites de Inverno, mas com algumas pequenas diferenças do texto recolhido por Almeida Garret, sobretudo por utilizar algumas palavras ou expressões que eram utilizadas na linguagem típica e corrente na freguesia e até na ilha das Flores. Rezava mais ou menos assim:
“Estava a bela Infanta
No seu jardim assentada
Com o pente de oiro fino
Os seus belos cabelos penteava.
Voltou os seus olhos ao mar
Viu vir uma nobre armada;
Capitão que nela vinha,
Muito bem que a governava.
- «Dize-me tu, ó capitão
Dessa tua nobre armada,
Se encontraste o meu marido
Na terra que Deus pisava.»
- «Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada...
Diz-me tu, ó senhora,
As senhas que ele levava.»
- «Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada;
Na ponta da sua lança
A cruz de Cristo levava.
- «Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer de morte matada:
Eu sua morte vingava.»
«Ai triste de mim viúva,
Ai triste de mim coitada!
Das três filhinhas que tenho,
Nenhuma delas é casada!...»
- Que darias tu, senhora,
A quem o trouxesse aqui?»
- «Dera-lhe oiro e prata fina,
Quanta riqueza há por aí.»
- «Não quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem o trouxesse aqui?»
- «Os três moinhos que tenho,
Todos três são para a ti;
Um mói o cravo e a canela,
Outro mói o gerzeli:
Rica farinha que fazem!
Tomara-os el-rei para si.»
- «Os teus moinhos não quero,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem o trouxesse aqui?»
- «As telhas do meu telhado
Que são de oiro e marfim.»
- «As telhas do teu telhado
Não nas quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem o trouxesse aqui?»
- «De três filhas que tenho,
Todas três são para ti:
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais formosa de todas
Para contigo dormir.»
- «As tuas filhas, infanta,
Não são damas para mi:
Dá-me outra coisa, senhora,
Se queres que o traga aqui.»
- «Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.»
- «Tudo, não, senhora minha,
Que inda não te deste a ti.»
- «Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si,
Por meus vilões arrastado
O farei andar aí
Ao rabo do meu cavalo,
À volta do meu jardim.
Vassalos, os meus vassalos,
Acudi-me agora aqui!»
- «Este anel de sete pedras
Que eu contigo reparti...
Que é dela a outra metade?
Pois a minha, vê-la aí!»
- «Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi!...
Deus te perdoe, marido,
Que me ias matando aqui.»”
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CARTA ABERTA A ALFRED LOUIS
(TEXTO DE GABRIELA SILVA)
Estamos a comemorar o centenário do teu nascimento. Durante muitos anos não sabia da tua existência. A ilha demorou a reconhecer os méritos dos seus ausentes. Não foste apenas tu que ficaste na memória discreta e silenciosa de muitos sem conheceres o fulgor das manifestações póstumas. Foi em Tulare que me falaram de ti, da tua vida, da tua obra, da tua coragem, da tua tenacidade, do teu brilho... Na realidade tu foras também cidadão de Tulare e Los Banos desde bastante jovem e até à morte. Da Fajãzinha foste bem menos tempo mas, às tantas, foi da ilha que levaste o melhor da tua força e (quem sabe?) da tua capacidade para a escrita: uma escrita sentida na distância ainda a pensar na ilha e no “teu” Pico Redondo donde cedo abalaste, mas levando na memória elefantina as imagens da rocha vermelha nos dias em que o sol se punha naquele horizonte que te ensinou a fuga. Pertences a um grupo de ilustres de uma freguesia que viu nascer muitos nomes sonantes nas mais variadas vertentes culturais e que continua a produzir hoje génios à sua dimensão. Homens e mulheres que ultrapassam as limitações da nossa pequenez e se projectam, pelo merecimento de um trabalho empenhado e da força inabalável do seu querer, para além das fronteiras desta estreiteza de terra. Quando, no ano passado, comecei a falar de ti percebi que muitos ainda se lembravam da tua mãe e alguns adolescentes já haviam compulsado um dos teus livros.
...Sabes? Tenho da Fajãzinha recordações muito especiais ligadas ao início da minha vida profissional quando, aos dezoito anos fui leccionar para uma escola nova em folha. Na altura pensei ser, não apenas a docente estreante do edifico mas também a primeira professora do ensino oficial que pisava a escola e ensinava na freguesia. Agora sei que o primeiro auto didacta que fez da Fajãzinha a freguesia que ainda é hoje, foste tu! Sei que ensinaste a ler e escrever a muitos jovens do teu tempo e que deixaste atrás de ti muitos homens livres porque a alfabetização é inquestionavelmente uma forma de liberdade. ...Quando sigo os teus passos não me encontro com um homem parado no Rossio nas tardes de domingo, de mãos nos bolsos à espera da vida acontecer. E, no entanto, na tua poesia perpassa saudade e as tuas palavras albergam memórias de uma localidade aparentemente sem história. Será que as fugas nos fazem clarividentes ou é na distância que encontramos resposta para as nossas interrogações? Foi preciso partir para recordar com tanta saudade o que já lá estava antes da partida? É que tu não foste um emigrante como os destes tempos modernos que em vinte e quatro vêm de S. Francisco às Flores. Tu partiste e nunca mais voltaste mas ficaram impregnadas em ti as marcas de uma insularidade sem limites e uma saudade visceral dos nossos hábitos, da nossa gastronomia, da nossa cultura, das nossas crenças... E isto é ser cidadão de corpo inteiro, isto é ser cidadão do mundo e do berço onde se viu a luz.
...Mesmo decorrido um século a ilha, no essencial, é a mesma. Se chegasses agora à Fajãzinha encontravas o Rossio com duas pás de cimento ao centro e mais dois ou três bancos de madeira ancorados a um canto mas ainda nos dão sombra os mesmos plátanos e a vista de um lado e doutro ainda são a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e a Casa do Espírito Santo. As estradas alcatroaram-se, algumas casas sofreram melhoramentos mas o essencial está ali. Até a tua casa, a casa onde nasceste, está lá. No verão passado fizemos uma festa em tua honra e levámos os nossos convidados até à porta. E do lugar que foi o teu berço, olhámos a rocha num fim de tarde nostálgico mas sereno. Viemos depois para o Rossio comer inhames com linguiça, morcela e tortas de musgão. Mais tarde dançámos a chamarrita e o pézinho como se estivéssemos a cumprir uma vontade tua expressa num daqueles teus poemas em que recordas com saudade estas especificidades ilhoas que levaste no peito.
...Mas saíamos a pé da tua freguesia e façamos o interior da ilha. Aí sim, há uma virgindade intacta na paisagem que nos rodeia. A Rocha dos Bordões continua a ter a altivez erecta dos nossos baleeiros e as lagoas mantêm a beleza serena e secreta que fala de segredos, de partidas, de afectos e despedidas. A vegetação do interior da ilha é sempre matizada de verdes de tons e mais tons e impregnada de uma humidade sangrenta da água virgem do centro desta terra que escorre lágrimas de água doce e fresca em todas as barrocas. Aqui e além tufos enormes parecem provocar-nos para o desafio de uma caminhada no tapete fofo mas perigosos de musgos altíssimos que conferem um charme inquieto a dezenas de terrenos virgens que preenchem a maior parte do interior de uma ilha pudica, recatada, discreta...
...O mar, o nosso mar continua caprichoso como sempre foi. Azul até à transparência, sereno até parecer silencioso e inerte, mostra nalguns dias a fúria do seu estar. E há invernos em que joga tetrápodos como quem atira ao ar bolas de futebol e enrola no cais com a fúria de amante embravecido com a ausência ou a traição.
...Já não há baleeiros mas repousam inertes em museus de pequena dimensão os harpões da coragem e um ou outro bote, agora em terra firma, contam histórias de heróis de um tempo em que o medo e a coragem se misturavam e perdiam quando a proa apontava a baía de S. Francisco que era mais do que um destino uma certeza. E quando o medo ousava tocar ao de leve um coração menos sereno sempre havia um homem que contava histórias de ventura e de sucesso nessa terra magnífica onde as “águias” de outro davam pão aos filhos e segurança ao futuro.
...Sei que foste juiz em Los Banos e que mais tarde abandonaste por altercações com a autarquia. Até nisso, és todo da Fajãzinha, freguesia politicamente diferente de todas as outras que conheço de perto na Região. Gente com opinião e cultura política, gente que respeita os seus ideais em todos os momentos, gente com uma profunda firmeza no querer e uma sábia inteligência nas suas escolhas, gente que não se verga a déspotas ou falsos heróis, gente crítica, dura, justa e directa. Gente capaz de se colocar frente a frente sem medo mas que não ousa colocar em causa coisas sagradas como a solidariedade, a amizade ou os laços de família. Mesmo quando pai e filho alternativas diametralmente opostas. Saber separar as coisas com rigor e com dignidade é uma característica da firmeza de carácter dos teus antepassados, Alfredo. Podes orgulhar-te de ter nascido numa freguesia onde os interesses desta estão acima de querelas pessoais ou questões políticas e onde, no momento de trabalhar para a colectividade todos arregaçam as mangas para o bem de todos. Esta postura invulgar na maioria de outros locais da ilha fazem perceber que a Fajãzinha marca a diferença pela positiva em muitas áreas. Praticamente sem analfabetismo a freguesia encerrou as portas da sua escola por falta de alunos alguns anos atrás. Mas os jovens que restam não param, e, mesmo divididos por poucas famílias, são os únicos que mantêm a porta aberta à única Filarmónica da ilha que já tem organizado digressões diversas fora da ilha e mesmo dos Açores pela qualidade técnica da sua execução.
...Somos ainda uma ilha de emigrantes. Seremos sempre uma terra de partidas e chegadas mas não deixaremos nunca de ser também uma terra de gente ordeira, cordial, trabalhadeira e generosa.
...Este Verão vamos comemorar o centenário do teu nascimento e recordar outros nomes que, como o teu, honram a freguesia da Fajãzinha, o concelho das Lajes e a ilha das Flores. ...No dia da Senhora dos Remédios, o Rossio vai encher-se de gente. E todos vão ouvir falar de todos. Os sinos hão-de repicar para chamar as gentes, há-de sentir-se o cheiro doce da caçoila com inhames, hão-de fritar-se torresmos com linguiça, há-de fazer-se a festa com baile no Rossio ao som das cordas e das vozes dos nossos homens, ecos de um século de história.
...E ao fim da tarde, havemos de ir todos em romaria silenciosa à tua porta, no Pico Redondo, para olhar o pôr-do-sol em direcção à rocha verde toldada de muitos tons. E enquanto no cemitério de Los Banos repousam os restos mortais do poeta, alguém dirá por ti um dos teus poemas. E faremos silêncio. O silêncio respeitoso que a tua memória nos merece.
...As mulheres, de regresso da terra, com a lata à ilharga, hão-de parar também no Pico Redondo para ouvir o bater das trindades e recordar o poeta da ilha que tendo o corpo
na América deixou bem vivas nas Flores as mais doces memórias.
Gabriela Silva
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FIM DO ALOJAMENTO A PASSAGEIROS EM VOOS CANCELADOS DA SATA INTER-ILHAS
Segundo noticiou, na passada quinta-feira, 14 de Março, o jornal açoriano “Diário Insular” a empresa açoriana de transportes aéreos, SATA, poderá, em breve, deixar de estar obrigada a disponibilizar alojamento gratuito aos passageiros afectados pela não realização de voos, devido ao mau tempo ou greves. São as novas regras da União Europeia, segundo as quais as empresas com aeronaves com menos de 80 lugares devem passar a não ser obrigadas a alojar passageiros durante voos cancelados, pois a Comissão considera que a obrigação de dar essa assistência pode pôr em causa a sobrevivência financeira de algumas transportadoras aéreas.
Segundo aquele matutino angrense, a Comissão Europeia propôs, no passado dia 13, um pacote de medidas que visa melhorar os direitos dos passageiros dos transportes aéreos, mas há uma proposta, em particular, que pode vir a afectar quem viaja na SATA entre as ilhas dos Açores. É que segundo o documento, os voos de pequena escala deixam de estar obrigados a oferecer alojamento aos passageiros afectados pela não realização de um voo.
De acordo com as regras actualmente em vigor, as transportadoras aéreas devem oferecer bebidas, refeições e alojamento por um lapso de tempo indeterminado. A nova proposta da Comissão Europeia considera que essa obrigação pode ameaçar a sobrevivência financeira das empresas em causa e, por isso, limita o alojamento a três noites (em circunstâncias excepcionais), ao mesmo tempo que impõe regras aos voos regionais. Assim, a Comissão Europeia suprime a obrigação de oferecer alojamento aos passageiros de voos de menos de 250 km e com aeronaves de menos de 80 lugares. O Dash-200 da SATA, recorde-se, possui 37 lugares, ao passo que o Dash-400 transporta um máximo de 80 passageiros.
As novas medidas propostas pela Comissão Europeia pretendem melhorar os direitos aos passageiros dos transportes aéreos em matéria de informações, assistência e reencaminhamento, sempre que fiquem retidos nos aeroportos. Está em causa também o melhoramento dos procedimentos de reclamação e medidas de execução, para que os passageiros possam fazer valer os seus direitos. O documento clarifica "zonas cinzentas" no plano jurídico e estabelece novos direitos.
Uma das mudanças tem que ver com a obrigação explícita de as empresas de transporte informarem os passageiros sobre a situação de atraso ou cancelamento do seu voo, o mais tardar 30 minutos após a hora de partida programada, avançando também a hora de partida estimada. A proposta reforça o direito dos passageiros receberem assistência após um atraso de duas horas, independentemente da distância de voo.
O documento estabelece, ao mesmo tempo, que quando a transportadora não puder assegurar pelos seus meios próprios o reencaminhamento dos passageiros num lapso de tempo de 12 horas, deve oferecer um reencaminhamento com outras transportadoras aéreas ou outros modos de transporte, o que, no entanto, nos Açores, nos voos inter-ilhas será impensável.
O documento da Comissão Europeia pronuncia-se também sobre questões relativas à bagagem. Actualmente não existe nenhuma autoridade responsável pelo controlo da aplicação dos direitos dos passageiros relacionados com a bagagem, mas a proposta indica que os organismos nacionais de execução, nomeados nos termos do regulamento em vigor, devem ser igualmente responsáveis pela execução das regras de indemnização em caso de problemas com perdas ou prejuízos na bagagem.
Fontes – Diário Insular e Forum Ilha das Flores
Texto publicado no Pico da Vigia em Março de 2013
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O REGRESSO DOS DUPONT
O Peugeot dos Dupont seguia a alta velocidade na A4 em direcção ao Porto O GPS indicava onde deviam sair e depois virar à esquerda. Mariana sentia uma grande ansiedade. Dentro em breve iria percorrer os caminhos e as vielas dos tempos de infância, recordando assim os lugares onde tinha nascido e fora criada. Em França, sobretudo depois do casamento com Pierre Dupont e da mudança de Clermont-Ferrant para Aurillac, poucas informações recebia de Portugal. Mas duma coisa tinha a certeza – tudo estaria muito diferente. À medida que se aproximava o coração apertava-se-lhe mais. É que a oportunidade de ver e talvez até de entrar na pequena casinha onde tinha nascido podia estar prestes a concretizar-se. Os semáforos à entrada da cidade causavam-lhe alguma confusão, mas configuravam grandes mudanças.
Voltaram à esquerda, tornaram a voltar à direita e seguiram em frente na direcção do sítio onde presumivelmente estaria a velha casita. Mais umas voltas e chegaram ao pequeno largo em frente à velha igreja, cuja fachada exterior semelhante a um castelo medieval, ainda tinha bem presente na memória. Não estaria muito longe, pois lembrava-se que, muitas vezes, à noitinha, da janela do seu quarto via, por cima dos telhados das casas circundantes, a torre da igreja. Vinha então debruçar-se à janela para ouvir o toque das Trindades. A avó havia-lhe ensinado as orações que devia rezar entre as lentas e demoradas badaladas do sino. Mais adiante estendia-se uma área enorme de terreno plano onde se misturavam prédios já construídos e outros em construção. Algumas escavadoras reviravam a terra e removiam enormes calhaus que eram retirados dali por camiões. Muito isolada, num dos cantos do grande eirado, com paredes e muros parcialmente destruídos, apenas uma casa, em tudo muito semelhante à sua. Era de uma amiga de escola, a Joaninha, lembrava-se bem. Passava por ali todos os dias, parava e chamava por ela. Depois lá iam, de malas a tiracolo, saltando e cantando pelos campos para encurtar caminho, apanhando flores com que faziam um ramo para oferecer à Dona Ermelinda. Grande parte das casas ao redor já tinham sido derrubadas e era nos seus lugares que edificavam aqueles prédios modernos e abriam novas ruas. Mais além as outras aldeias e o rio. É verdade que também as suas águas já não eram tão limpas, transparentes e cristalinas como as de outrora, muitos moinhos e azenhas haviam desaparecido e ao seu redor os campos já não se enchiam de milho e de couves repolhudas, já não havia matança de porcos, desfolhadas e as vindimas já não eram como outrora. Os homens já não se agarravam, de manhã à noite, à rabiça do arado e as mulheres já não sachavam e mondavam sob o calor tórrido do estio. Mas, em contra partida, nascera ali ao lado uma cidade, uma cidade grande e moderna que crescera graças à força, coragem e determinação de um povo.
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OS DESPAUTÉRIOS DO PADRE LIBÓRIO
(UM CONTO DE COUTO VIANA)
O «Cu de Coibes» (“coibes” significa couves na linguagem popular minhota) era o sacristão da Senhora do Resgate, uma pequena capela apertada entre dois prédios de habitação – para o exterior, apenas a larga porta numa parede de azulejos –, na rua mais antiga e estreita da cidadezinha.
Morava nas traseiras da capela e, do quarto de cama, via-lhe o sino, quase uma sineta, pondo-o a tocar estando ainda deitado, pois tivera artes de prender um arame ao badalo que puxava da janela nas madrugadas gélidas, pelas cinco e meia, no primeiro aviso da missa d’alva, às seis horas, assistida por mercadores de feiras próximas ou distantes, passageiros do primeiro comboio com destino ao Porto.
O «Cu de Coibes», Armandino Candeias no bilhete de identidade, era balofo e imberbe, apesar dos seus quarenta anos, com uma voz de tenorino, tal um castrado da Senhora Dona Maria I. Cantava, fanhoso, ao som do organito dedilhado pela D.ª Clemência, (um feixe de ossos assexuado, irmã do cónego Ângelo), durante a eucaristia do padre Libório, ali, no Resgate, com o velho sacerdote a dispensar acólito.
O sacristão e a organista tinham de comum a língua viperina, capaz de lançar para as profundas do inferno a alma mais imaculada; aquele inferno onde a aguardava a forquilha do cónego Ângelo, um anjo caído, sempre pronto a intrigar junto do bispo D. Teodorico Chaves, muito crédulo, muito confuso de ideias.
O padre Libório, um santo barão, modesto e ingénuo, era conhecido em toda a cidadezinha pelos tremendos despautérios que dizia e fazia durante o exercício das suas actividades sacerdotais.
Atribuíam-lhe, até, aquele caso em que, inadvertidamente, havia quebrado um segredo de confissão perante uma fila de fiéis, aguardando vez, frente ao seu confessionário: Ajoelhara-se diante das grades uma pobre velhota que trabalhava a dias numa casa fidalga da cidadezinha. Padre Libório, cansado de haver velado toda a noite à cabeceira de um moribundo, deixara-se adormecer embalado pela lengalenga bichanada da pecadora. Ela, ao ouvi-lo ressonar, abandonou o confessionário mesmo antes da penitência. Súbito, padre Libório acorda com um ronco mais forte e, dando pela ausência da confessada, deita a cabeça de fora da cortina roxa e pergunta em voz alta aos fiéis aparvalhados:
- Onde está a velha que roubou uma panela?
A.M. Couto Viana, Os Despautérios do Padre Libório e Outos Contos Pícaros
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IGREJA E MOSTEIRO DE VILAR DE FRADES
Dedicada a São Salvador, a igreja de Vilar de Frades e o mosteiro dos Lóios, que lhe é anexo, localizam-se no sopé do monte Airó, junto à margem esquerda do rio Cávado, na freguesia de Areias de Vilar, concelho de Barcelos, distrito de Braga. O conjunto arquitectónico ainda hoje existente faz parte do complexo do antigo convento da Congregação dos Cónegos Seculares de S. João Evangelista que aí estabeleceu a sua primeira casa-mãe, tendo sido, antes, um mosteiro beneditino e hoje é Monumento Nacional. A sua arquitectura é notável, imponente e bela, com destaque para a abóboda da igreja e para o portal manuelino da fachada principal, do lado contrário à torre sineira, que se cuida ter pertencido ao templo primitivo.
As origens deste mosteiro beneditino remontam ao séc. VI e aos tempos em que São Martinho de Dume, apostado em estender o movimento monacal e a cristianização, entre Douro e Minho, era bispo de Braga. O convento, ocupado nessa altura pelos monges beneditinos, terá sido quase totalmente destruído em 714, a quando de uma investida muçulmana. A reconstrução da obra, por nobres locais empenhados em ajudar os reis na Reconquista Cristã, verificou-se apenas em 1070, mantendo-se sob a alçada da Ordem Beneditina, até ao início do séc. XV, altura em que passou a ser uma abadia secular, sob o padroado da arquidiocese de Braga, realizando-se, então, mais algumas obras de restauro. É por essa altura que a Congregação dos Cónegos Seculares de S. João Evangelista ou frades Lóios, ali estabeleceu a sua primeira casa-mãe. Os seus reitores e abades, no entanto, vão adquirindo, aos poucos, alguma autonomia em relação ao arcebispado bracarense, ao mesmo tempo que vão anexando ao convento várias igrejas da região, dando um poderio crescente à Ordem, no Norte do País. Além disso, a Congregação ainda foi, paralelamente, conquistando muitos favores, indultos, graças, isenções e privilégios por parte de reis e papas.
Após o abandono por parte dos frades Lóios a igreja degradou-se e as instalações do mosteiro foram votadas ao abandono, passando a servir de cavalariça e celeiros de particulares.
A igreja voltou a sofrer obras de consolidação e restauro, a cargo da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e do Instituto Português do Património Arquitectónico, a partir de 1990, nomeadamente alterações nas coberturas, limpezas e drenagens, estabilização de estruturas, limpeza e isolamento de alfaias litúrgicas e cantarias, sondagens arqueológicas, bem como obras de reabilitação das fachadas e caixilharias do edifício da igreja e restauro das salas do mosteiro, actualmente ocupado pelos frades da Ordem Hospitaleira de São João de Deus.
Segundo reza a história, neste mosteiro situava-se, outrora, o túmulo de um "Santo Abade" junto do qual acorriam muitos crentes em busca de curas milagrosas. A prova da sacralidade deste túmulo, dizia-se, estava num extraordinário fenómeno de que, sempre que um animal profanava o túmulo, ao passar-lhe por cima, acontecia ficar imediatamente com uma perna partida.
Sob o ponto de vista arquitectónico, exteriormente e para além do portal manuelino da fachada principal, há também, na torre sineira, um portal e uma janela de características românicas, vestígios do mosteiro original. Esta torre, rectangular e com sabor defensivo, é encimada por ameias e por uma águia, símbolo da Congregação dos frades Lóios. Por sua vez, o dorso do templo é coroado por três pares de pináculos, um dos quais (o da frontaria) foi transplantado para o cimo do escadório, à entrada do pátio. Faz parte também deste conjunto arquitectónico, um chafariz, de grande interesse histórico e artístico, existente no pátio conventual e que é composto “por um tanque circular, com uma coluna ornada com elementos vegetalistas e rematada por uma coroa real sustentada por quatro águias, sob as quais correm quatro bicas” e que data do século XVII. No adro da capela há ainda um pelourinho seiscentista. Consta, também, que era pertença deste mosteiro, um outro chafariz, outrora localizado no pátio do convento e que foi transferido para a cidade de Barcelos e colocado no Largo da Praça Nova, em frente à Igreja do Bom Jesus da Cruz.
Quanto ao interior, o templo é constituído por uma nave, uma peça única, pavimentada de granito e dela se separa a capela-mor por um arco de volta perfeita, com capitéis de ordem toscana. O tecto, um dos traços de maior beleza arquitectónica do templo, é constituído por uma abóbada de madeira pintada de azul, com nervuras cruzadas. O frontão apresenta um óculo que, presumivelmente, terá sido “tapado” por um alpendre, durante as obras de restauro do início do século passado. Existem também vários revestimentos nas capelas com azulejos seiscentistas. O altar-mor é constituído por uma peça de talha imponente, datado de 1697. Destacam-se ainda, na sacristia, duas telas do século XVIII, de Pedro Alexandrino e algumas valiosas esculturas. A capela também incluía um púlpito e um retábulo em talha dourada. O retábulo original foi, posteriormente, substituído por um de estilo barroco. Um inventário datado de 1834, menciona a existência de um retábulo neoclássico de mármore de várias cores, frisos e relevos dourados e, segundo documentos da Torre do Tombo, a capela incluía duas esculturas de Nossa Senhora do Socorro, “uma pequena de um palmo de altura, e outra maior de cinco palmos, ambas com uma coroa de folha-de-flandres e a maior com o menino Jesus ao colo”. Do conjunto arquitectónico da igreja e mosteiro de Vilar de Frades ainda faz parte, à entrada, um alpendre de arco abatido apoiado em duas colunas e um muro exterior com um portão de entrada, encimado por um nicho com a imagem de São Lourenço Justiniano que se cuidam ser reminiscências do templo medieval.
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A FREGUESIA DO MOSTEIRO - ILHA DAS FLORES
O Mosteiro, em população, é a freguesia mais pequena dos Açores e uma das menores de Portugal, uma vez que, de acordo com os últimos censos, tem apenas a módica quantia de 43 habitantes, numa área de 6,20 km², o que lhe dá uma densidade populacional de 6,9 hab/km².
Situada na costa sudoeste da ilha das Flores, o Mosteiro apresenta-se como local de uma beleza paisagística bucólica e idílica, com as casinhas muito brancas, plantadas entre o verde das relvas, dos milheirais e dos batatais, delineada pelo mar e pela rocha dos Bordões e por muitas outras formações graníticas, altas e imponentes, que por ali proliferam. Como paróquia católica, o Mosteiro tem como orago a Santíssima Trindade, embora a festa principal fosse, outrora, de homenagem a Santa Filomena, o que na década de cinquenta trouxe alguns dissabores e um ou outro amargo de boca à população, acabando por fazer desaparecer a festa, na altura em que foi posta em causa a idoneidade e a veracidade histórica da santa virgem e mártir, dada a conhecer ao mundo através das revelações pela Serva de Deus Maria Luísa de Jesus.
O seu nome, que em tempos se designou Mosteiros, parece derivar de uns imensos rochedos que delimitam a freguesia, a nordeste e, que vistos do mar se assemelham a torres de um gigantesco edifício monástico. Esta origem é comprovada pela tradição local e pela semelhança com o topónimo Mosteiros, aplicado a uma freguesia da costa ocidental da ilha de São Miguel, cujo nome, segundo consta, também tem a sua origem nuns grandes rochedos que formam os ilhéus dos Mosteiros. Esta ligação onomástica entre as duas localidades é reforçada pela origem do primeiro povoador da vizinha freguesia, do Lajedo, João Soares, que ali se fixou vindo do então lugar dos Mosteiros, em São Miguel.
Esta zona da costa ocidental das Flores, onde está localizada a freguesia do Mosteiro e a sua vizinha do Lajedo, assim como os lugares da Costa, do Campanário e da Caldeira, este actualmente despovoado, é extremamente alta e rochosa. Por essa razão, cuida-se que terá começado a ser desbravada, apenas, em meados do século XVI, com os primeiros núcleos populacionais estáveis a surgirem nas primeiras décadas do século seguinte. Assim, o lugar do Mosteiro, só surge, estruturado como povoado, em Julho de 1676, altura em que é desanexado da freguesia das Lajes das Flores, a que pertencia, apesar da grande distância a que se situava e dos maus caminhos por que se ligava. Por essa altura, ao ser desintegrada das Lajes, foi incluído e passou a integrar a paróquia das Fajãs, então com sede na igreja de Nossa Senhora dos Remédios da Fajãzinha e que para além destas duas localidades, ainda incluía a Fajã Grande.
Como a população do Mosteiro, apesar de nele se incluir também o local da Caldeira, não crescesse significativamente, aquela localidade manteve-se como curato da paróquia da Fajãzinha, ao longo dos séculos seguintes, mesmo depois de se desanexar a Fajã Grande. Este travo tornou-se amargo para o Mosteiro, cerceou-lhe os horizontes de crescimento e desenvolvimento e manteve a localidade como uma comunidade pequena e pobre, onde os habitantes retiravam o seu sustento dos campos, dos matos e, num caso ou outro, da pesca. Segundo o padre José António Camões, quando o Mosteiro foi elevado a freguesia, possuía apenas 31 fogos, com 83 homens e 92 mulheres, acrescentando que “tem 8 casas de telha, e nenhum homem calçado”.
Assim o Mosteiro foi elevado a freguesia, apenas devido à filantropia do aventureiro António de Freitas, um ex-seminarista nascido precisamente no lugar do Mosteiro, freguesia da Fajãzinha, que esteve emigrado em Macau, onde fez grande fortuna no tráfico do ópio e na compra de crianças pagãs. No ano de 1846, tendo regressado às Flores, decidiu financiar a construção de uma igreja condigna no Mosteiro, dedicando-a à Santíssima Trindade, em sinal de reconhecimento por ter conseguido salvar todos os seus bens. Foi assim que o pequeno povoado veio a dispor do templo que hoje de forma algo incongruente marca a paisagem da freguesia.
Reunindo 90 fogos e cerca de 300 habitantes e dispondo de igreja e cemitério, em 1850, por decreto da rainha D. Maria II de Portugal datado de 23 de Outubro daquele ano, o Mosteiro foi elevado a paróquia, formando, conjuntamente com o lugar da Caldeira, uma nova freguesia. O decreto muda o nome à localidade, cuida-se que por um erro, já que o lugar dos Mosteiros dá lugar à freguesia do Mosteiro. Porque o templo edificado por António de Freitas se encontrava decentemente ornado e provida de paramentos e mais alfaias litúrgicas necessárias para o Culto Divino, a paróquia o Mosteiro foi, também, desanexado da Fajãzinha, por alvará do bispo de Angra, D. Frei Estêvão de Jesus Maria, datado de 18 de Novembro desse mesmo ano de 1850. A ermida inicial foi melhorada por iniciativa do padre Caetano Bernardo de Sousa, que paroquiou no Mosteiro de 1896 a 1915, tendo acrescentado então uma nova capela-mor, retábulos e uma sacristia. O retábulo da capela-mor, concluído em 1906, é da autoria do artista faialense Manuel Augusto Ferreira da Silva. O cemitério da localidade recebeu o seu primeiro enterramento a 8 de Outubro de 1847.
Como todas as restantes freguesias do concelho das Lajes, o Mosteiro esteve integrado no concelho de Santa Cruz das Flores, no período que mediou entre 18 de Novembro de 1895 e 13 de Janeiro de 1898, durante o qual aquele concelho esteve suprimido.
No período de 1893 a 1896 foi pároco do Mosteiro o contista e escritor picoense, Francisco Nunes da Rosa, onde o seu primeiro livro “Pastoraes do Mosteiro”, uma das obras-primas da literatura contista açoriana, foi escrito.
Para além da igreja paroquial da Santíssima Trindade, a freguesia dispõe de um império do Divino Espírito Santo e vários moinhos de água, localizados junto às ribeiras que por ali abundam, mas hoje abandonados. Muitas das casas mantêm traços típicos, sobretudo nos arcos das portas e no cemitério existe um interessante monumento em memória de António de Freitas. Para além da festa da Santíssima Trindade, a freguesia celebra anualmente as grandes festividades do Divino Espírito Santo, centradas em torno do seu império, e a Festa de São Pedro.
Mas impressionantemente notável é o património paisagístico que rodeia a freguesia, com paisagens de grande equilíbrio, marcadas pelos pináculos e agulhas rochosas que deram o nome ao lugar. Os mais notáveis são o Cabeço do Sinal, o Cabeço da Muda e os panoramas que se gozam do Portal Poio e da Cruz dos Bredos. A freguesia mantém activo um Grupo de Foliões para abrilhantar as suas festas do Divino Espírito Santo, tradição multissecular. O rico artesanato tradicional da costa ocidental das Flores, com cestaria em vime, colchas em tear, rendas e bordados, encontra-se em decréscimo devido ao despovoamento e pelo crescente desenraizamento da população. O mesmo acontece com a gastronomia local, em tempos caracterizada por confecções como inhame com linguiça, feijão com cabeça de porco, sopas de agrião de água e de couve, torta de erva do mar, bolos caseiros, filhós de entrudo e folar da Páscoa.
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AVENTURA INCRÍVEL
Ontem, dia 8 de Março, a vila da Madalena e toda a parte sul da ilha do Pico, foi assolada por ventos fortíssimos, com rajadas a rondar os 100 km/hora. Consequentemente o mar embraveceu e agigantou-se, com ondas de 9 metros e, pior do que isso, a soprar de Noroeste, ou seja direitinho pela pequena baía que circunda a vila da Madalena. Cuidou-se que a lancha das seis não viria, tal era a agitação do mar. Mas veio! Veio e entrou no porto da Madalena graças à sábia e astuta perícia do mestre, homem do Pico, experiente nestas andanças. A zona das piscinas “virou” local de romaria, num espectáculo para uns preocupante e aterrador, até por que tinham familiares a bordo, para outos deslumbrante e inesquecível!
Simplesmente indescritível!
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MIGAS
Mesa pobre e pouco variada era a da Fajã Grande, na década de cinquenta e nas anteriores. Cada família alimentava-se com o que produzia ou criava. Nenhum alimento se comprava, até porque não havia dinheiro nem sequer algo que se pudesse comprar. Sendo assim os pratos típicos e da cozinha fajãgrandense eram poucos, escassos e de muito reduzida opulência. Quase insignificantes. No entanto, existiam alguns pratos que, apesar de simples e pobres, se podem hoje considerar, verdadeiramente, típicos ou, se quisermos, tradicionais da Fajã Grande das Flores. A maioria era feita tendo como elemento básico o pão. Mas como este era cozido em cada casa, uma vez por semana, regra geral, ao fim de algum tempo, ficava duro, ressequido, rijo, por vezes bolorento e pouco tragável. Daí a capacidade de o apresentar, quando já velho, cozinhado de forma que parecesse ou se assemelhasse como quando estava fresco, como era o caso do “pão estufado”. As “migas”, por sua vez, também feitas à base de pão, eram um prato muito saboroso, de fácil realização e destinado a aproveitar o pão velho. Faziam-se, geralmente, com pão de trigo, embora as famílias mais pobres as fizessem com pão de milho. Para além do pão era necessária apenas, água, cebola, sal, alho, salsa, banha de porco e umas folhas de hortelã.
A água era posta a ferver, em caldeirão de ferro, juntamente com a salsa, dois dentes de alho picado, com a cebola cortada e um pouco de sal. Quando a água já tivesse adquirido o sabor dos ingredientes, mantendo sempre a fervura, juntava-se o pão, partido aos pedaços, onde ficava a ferver, durante algum tempo. Depois escorria-se a água e juntava-se banha de porco e a hortelã, tapava-se o tacho durante mais algum tempo. Por fim, segurando bem a tampa, sacudia-se violentamente, a fim de misturar a gordura e a hortelã e o pão adquirir o sabor destes ingredientes, sobretudo com o perfume da hortelã.
Era um delicioso prato que geralmente se comia de manhã, acompanhado duma boa tigela de café e uma “niquinha” de queijo fresco. Se comida como refeição do dia ou da noite, tinha ainda a vantagem de não necessitar de outro conduto para acompanhar, pois o sabor da banha era, por si próprio, já um conduto.
As migas serviam-se quentinhas, mas as que sobravam, a meio da tarde ou noutra ocasião qualquer, mesmo frias, eram excelentes.
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A IGREJA DE SÃO JOSÉ DE PONTA DELGADA
Quando pela primeira vez, no longínquo ano de 1958, demandei a cidade de Ponta Delgada, a fim de frequentar o Seminário Menor de Santo Cristo, o monumento da arquitectura religiosa que logo me impressionou naquela urbe micaelense, por uma dupla razão, foi a igreja de São José. Primeiro porque São José também era o padroeiro da igrejinha da minha terra natal e, em segundo lugar, ficava-me no encalce do casarão que ma havia de recolher e abrigar durante dois anos. Na realidade, o percurso entre a doca, onde o Carvalho, juntamente com mercadorias e bagagens e um magote de gente, me despejara bem como um grupo de jovens oriundos das ilhas “de baixo” e o Seminário Menor, situado no antigo Convento Jesuíta, na Avenida Gaspar Frutuoso, era curto, acessível e rápido. Saía-se da doca, voltava.se à direita, circulava-se num pequeno troço de rua, entre o Castelo de São Brás e o Hospital e estávamos, de imediato, no largo de São Francisco. Depois, mais duas ou três ruas e chegava-se ao Seminário. Curiosamente, o largo de São Francisco e a Avenida Gaspar Frutuoso, conhecida também por avenida dos Milionários eram os espaços da cidade de Ponta Delgada mais falados, mais badalados, mais discutidos, mais divulgados na Fajã Grande e os quais me habituara a ouvir referenciar, como marcos de estadia obrigatória, por quantos vinham a S. Miguel, por doença, para a tropa ou para tirar os papéis para ir para a América. O largo de São Francisco, porque nele se situava o admirável e histórico Santuário do Senhor Santo Cristo, onde todos os que visitavam, pela primeira vez, a ilha do Arcanjo, procuravam entrar, não apenas para rezar mas também para colocar uma vela acesa diante da imagem milagrosa e a rua dos Milionários por nela estar sediado o Consulado Americano, local de passagem obrigatória e inevitável, de quantos demandavam os Estados Unidos da América.
No entanto, estranhamente, o que mais ali prendeu a minha atenção foi a magnífica e majestosa igreja de São José. Por um lado a sua enorme fachada branca, toda debruada a tiras de basalto negro e vulcânico, com uma infinidade de portas e janelas que lhe davam um ar alegre, risonho e fantasista e, por outro, porque sendo o seu padroeiro São José, fazia-me lembrar a pequenina igreja da minha freguesia, com o mesmo orago, mas bem mais simples e humilde. Ao fixar a torre sineira, com o seu emaranhado de sinos - três à frente e outros tantos nos lados, - imaginava como seria fantástico, harmonioso e sublime fazer repicar simultaneamente todo aquele minúsculo carrilhão. E encheu-se-me o peito de uma saudade enorme, dos tempos em que subia a sineira da igrejinha da Fajã, para tocar Trindades Dobradas. De toda a garotada da freguesia, eu era o único que sabia tocar devidamente os sinos. Meu tio era o sacristão e eu aprendera com ele. Casando-se, o que aconteceria em breve, abandonaria o cargo. Pensando que um dia havia de lhe suceder, eu já tinha sido iniciado na prática e no acompanhamento das diversas cerimónias litúrgicas e celebrações religiosas. Já sabia de cor, em latim, o "Confiteor" e as respostas ao "Introíbo" e ao "De Profundis". Apenas um senão pesava contra a minha contratação e que levara o Senhor Padre Pimentel a adiá-la indefinidamente: a exígua altura de que dispunha, na opinião do reverendo, não se adequava às exigências preliminares e posteriores ao Santo Sacrifício - acender e apagar as velas dos altares. É verdade que eu jurara solenemente resolver o problema, subindo a uma cadeira e, se necessário, até saltar para cima dos altares, actos que o pároco condenava e reprovava radicalmente, quer porque os considerasse pouco litúrgicos, quer porque, tendo em conta a fama de estroina que eu tinha, corria o risco iminente de, na descida, trazer algum santo embrulhado comigo, estatelando-o no chão.
A minha especialidade, porém, era o toque dos sinos. Era exímio!... Tocava-os como ninguém e de acordo com as exigências de cada festa, celebração ou momento litúrgico.
Animava-me a esperança de que um dia, ali naquela igreja ou na do Seminário se a houvesse, eu ainda havia de tocar os sinos.
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A MORTE DUM SERVO DE DEUS
Bonaboião e Iluminata partiram para Santiago de Compostela, mas em peregrinações separadas. No entanto, durante a viagem acabaram por encontrar-se, unificando as peregrinações. Durante a viagem, Iluminata aproximava-se, sempre que lhe era possível, cada vez mais de Banaboião, enquanto este lhe ia contando como decidira iniciar a vida de asceta, depois do encontro, em Lubisonda, com o seu ilustre esposo, D. Paio de Farroncóbias, que o pretendera integrar na sua mesnada.
D. Paio de Farroncóbias chegara a Valdevez, na altura em que a comitiva de Iluminata, integrando Bonaboião, se aproximava de Compostela. E no preciso momento em que D. Paio de Farroncóbias, cumprindo os anseios do seu amo e senhor, D. Afonso Henriques, enfiava, em Valdevez, a primeira lança num leonês, deitando-o por terra, a mão de Iluminata que havia acampado em Legonhes por uma noite, pairava sobre o corpo de Banaboião, pese embora este a afastasse delicadamente, evitando tocar, mesmo ao de leve, o corpo da sua benemérita e protectora, a virtuosa esposa do nobre D. Paio de Farroncóbias, diante de quem dois anos antes se havia ajoelhado.
- Socorro! Socorro! – Ouviu-se simultaneamente gritar em Valdevez e Legonhes. Eram, no entanto, gritos diferentes. O primeiro, um grito de estertor, o segundo de vingança. É que sentindo que Banaboião não correspondia aos seus lascivos desejos, Iluminata, aos gritos, começou a acusá-lo de ele a ter assediado, ofendendo assim a honra do nobre fronteiro que naquela hora lutava, bravamente, pela independência de Portugal, em Valdevez, ao lado de D. Afonso Henriques.
Os dois eremitas foram presos e Iluminata seguiu viagem...
Terminada a peleja em Valdevez, D. Paio de Farroncóbias dirigiu-se, a mando de D. Afonso Henriques, para o sul. A moirama começava de novo a ameaçar. Restabelecidos da trágica derrota de Ourique, os sarracenos infiéis reorganizavam-se, agora, formando novos reinos taifas surgindo, por todo o sul uma vaga de rebeliões e revoltas contra as praças e fortificações já conquistadas por D. Afonso Henriques. D. Paio de Farroncóbias foi incumbido de, no regresso de Valdevez, sair para o sul, até Coimbra e Leiria, a fim de se aperceber da situação e por termo aos focos de revolta que por aí se verificavam, cada vez em maior número. Tal decisão adiou bastante o regresso a Trancoso, pelo que Iluminata depois de voltar de Compostela permaneceu, meses sem conta, à espera do esposo amado, que tardava em regressar.
Como demorasse a peleja por terras de Leiria e arredores e, como não fosse fácil dominar a moirama que apostava cada vez mais em investir contra as terras já cristãs e conquistadas por D. Afonso Henriques, D. Paio de Farroncóbias foi forçado a ficar por ali comandando a peleja. Preocupado, porém, com os destinos não só da cidade de que era alcaide, Trancoso, mas sobretudo com o abandono a que votava a Iluminata, mandou a Trancoso uma companhia de besteiros, chefiada pelo seu homem de confiança, o lugar-tenente Gemildo, inteirar-se da vida do castelo e da cidade e levar notícias suas à sua bem-amada Iluminata.
De passagem pela Penha-Fria, onde Banaboião vivia desde há muito, na companhia dos servos de Deus Beltrasanas e Guindibaldo, Gemildo e os seus homens depararam-se com um funeral de grande acompanhamento e choradeira, no qual se havia integrado muita gente da fidalguia. Logo se informaram e lhes foi dito que era o enterro do muito venerável e justo servo de Deus, Joahannes Beltrasanas, que morrera na maior das virtudes e da santidade e que se já em vida fizera muitos milagres, agora depois de morto eles aconteciam em maior número.
Gemildo decidiu acompanhar com os seus homens tão ilustre finado, porque esse decerto seria o desejo de seu ilustre e nobre amo, o alcaide de Trancoso. Além disso cuidava que sendo o finado tão santo e tão milagroso, decerto que se lhe rogasse ele havia de curar um dos seus homens, que ferido em combate, seguia, na sua comitiva, em muito más condições. Logo desfraldou balsões e foi então que todos, ao identificarem as armas e símbolos de D. Paio de Farroncóbias, reconheceram ainda mais o mérito e santidade de Beltrasanas, que em sua morte era acompanhado por tantos nobres e ilustres, entre os quais os besteiros do ilustre e nobre fronteiro de D. Afonso Henriques.
Banaboião, já acompanhado pelo novo companheiro de eremitério, Gundibaldo, ao ver o balsão com as armas de D. Paio de Farroncóbias, - cinco estrelas de ouro de cinco pontas cada uma, postas em aspa, à volta de três castelos, por timbre um gato preto assanhado com uma estrela vermelha na espádua, armado de azul – interrogou um dos besteiros, perguntando-lhe se D. Paio de Farroncóbias ou sua ilustre esposa, a virtuosa Iluminata estariam por ali, sendo-lhe dito, de imediato, que o alcaide se encontrava em Leiria e a senhora de Cangas e Freixomil permanecia em Trancoso, aguardando, em seu castelo ansiosamente novas do esposo amado de que eles próprios eram mensageiros.
Terminada a cerimónia fúnebre e depositado o cadáver num buraco da rocha, ajustou-se a tampa e o santo começou logo a operar milagres. O besteiro de D. Paio que trazia uma enorme e ruim ferida num sovaco, recebida em combate, foi conduzido por Banaboião junto da rocha e, tocando com ambas as mãos no sepulcro do santo de Deus, ficou logo curado, para espanto dos seus companheiros de armas. Gemildo e os besteiros de D. Paio retiraram-se felizes seguindo para Trancoso.
Fonte de Inspiração – Aquilino Ribeiro São Bonaboião Anacoreta e Mártir.
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ANTÓNIO GIL
António Gil da Silveira Machado Bettencourt nasceu na Praia, ilha Graciosa, em 3 de Junho de 1846 e faleceu em Angra do Heroísmo, em 1883. Desde muito cedo se lançou na escrita, nomeadamente na poesia, destacando-se como poeta de cunho lamartiniano e prosador apurado, com variada colaboração nos jornais angrenses. Formou em Angra um grupo intelectual que lutava pelo desenvolvimento literário dos Açores e fundou o Grémio Literário de Angra do Heroísmo. Juntamente com outros intelectuais e homens de letras dedicou-se ao desenvolvimento da instrução popular e fundando a biblioteca do Grémio Literário, a primeira que nos Açores forneceu leitura ao domicílio. Foi também coleccionador de espécies bibliográficas açorianas, de jornais e de manuscritos, entre os quais a Topografia da Ilha Graciosa de Jerónimo Emiliano de Andrade. Fundou uma escola nocturna juntamente com Mateus Augusto, onde ensinavam pelo método de João de Deus. Fundou, já no fim da vida, uma fábrica de papel na Terceira, a primeira dos Açores. A nível político, defendia o separatismo pugnava pela independência dos Açores sob protectorado dos Estados Unidos da América.
Apenas publicou com Augusto Ribeiro o Almanaque Insulano mas não publicou em livro qualquer obra literária.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A DECISÃO
Foi em Junho, pela festa do Espírito Santo da Casa de Cima que a decisão de Álvaro ir estudar para o Seminário foi tomada. A Dona Madalena, a professora da quarta classe, não cessava de anunciar e proclamar alto e bom som que era uma pena o garoto não seguir os estudos. Mas não havia volta a dar-lhe. Era de todo impossível e impensável. O futuro do último rebento dos Rodrigues estava traçado e seria igual ao dos irmãos mais velhos: viver ali, na ilha, agarrado à foice e à enxada, trabalhando à chuva ou ao sol, carregando cestos de batatas e molhos de incensos, levando as vacas ao pasto ou limpando-lhes o esterco do palheiro, ajudando o pai e os irmãos nas lides do campo. Só que o milagre aconteceu. Uma carta da América veio alterar-lhe, substancialmente, o destino. Uma tia, que há alguns anos para lá havia emigrado, considerando que esse acto teria sido uma fuga perversa ao que julgava serem responsabilidades suas, sentiu uma enorme necessidade de redimir-se. Como consequência custearia os estudos do sobrinho, mas para que a remissão a que ela aspirava fosse mais eficiente, só o poderia fazer no Seminário. O pai a princípio não aprovou a ideia. Embora o filho ainda fosse um badameco de meia tigela, já lhe fazia muita falta. Normalmente era ele que ia buscar e levar o gado, enquanto os mais velhos andavam a ceifar ou a mondar os campos. Uns dias depois, porém, o pai cedeu. Afinal a ideia até nem era de todo má, pois era uma oportunidade única e uma forma airosa de ver pelo menos um dos filhos sair das Flores, libertar-se dos trabalhos forçados, da miséria, da fome e de muitas outras limitações que proliferavam pela ilha. Além disso, perante o feitio e o temperamento que tinha, muito provavelmente o garoto nunca aguentaria aqueles doze longos anos fechado naquela casa e que eram requisito obrigatório e necessário para a Ordenação. Mas mesmo que desistisse, ficaria com os estudos. Depois era a pressão da avó e das tias Graça e Luzia, sempre muito devotas e dedicadas ao serviço de Deus. E decidiu-se que no Carvalho de Setembro Álvaro partiria para Ponta Delgada, para o Seminário Menor de Santo Cristo.
Os três meses que se seguiram foram de grande azáfama e consumição. Nos tempos que tinha livres das tarefas domésticas a irmã começou a preparar-lhe o enxoval de acordo com uma lista que havia sido enviada pela reitoria do Seminário e entregue pelo pároco e da qual constava, como mínimo necessário e obrigatório, quatro lençóis, dois cobertores, uma colcha, duas fronhas, um colchão e uma almofada. A colcha era o mais difícil, pois comprar uma nova era de todo impossível. Foi a avó que se comprometeu a costurá-la. E fê-lo com mestria. Arranjou dois bons bocados de fazenda enramados, um azulado e outro castanho, coseu-os em três dos lados, formando uma espécie de saco, dentro do qual colocou escondidas, algumas peças de roupa velha, devidamente alisadas. Depois coseu a extremidade equivalente à boca do saco, alinhavou, chuleou e voltou a chulear a futura colcha, de alto a baixo e de lado a lado, em linhas perpendiculares e paralelas, de tal maneira que formaram uma espécie de tabuleiro de xadrez, de forma a simular uma colcha acolchoada. Uma obra-prima! A lista também indicava a roupa que deveria levar para uso caseiro: dois lenços de mão, dois guardanapos, duas camisas, duas soeras, dois pares de calças, dois pares de meias e um par de sapatos, e dois guarda-pós. Arranjar tudo isto tornava-se complicadíssimo, até porque cuidava-se que não devia levar roupa usada. Uma encomenda da América, no entanto, veio resolver o problema, trazendo em triplicado algumas das peças de roupa indicadas na lista. Excepção feita para os dois guarda-pós que deviam ser de cotim e que foram mais difíceis de arranjar. No entanto como tinha um tio alfaiate ficaram-se pelo custo da fazenda, verificando-se procedimento idêntico para o fato preto que aparecia logo bem escarrapachado e em primeiro lugar na lista apresentada pelo pároco. Para arranjar os sapatos pretos é que foram elas… Só nas Lajes e os mais baratos custavam para cima de vinte escudos. Um rombo terrível no orçamento familiar! Além disso, a compra iria provocar grande revolta e contestação por parte dos irmãos mais velhos que andavam sempre descalços e a quem, nem sequer pela Comunhão Solene lhes haviam sido comprados uns sapatos novos. Mas não havia volta a dar-lhe: sem sapatos pretos é que não podia entrar no Seminário. A irmã que há muito substituíra a mãe, falecida há alguns anos, inventou uma artimanha para os arranjar. Para evitar a revolta dos irmãos Álvaro havia de jurar a pés juntos que os sapatos tinham sido oferecidos pelo senhor padre Silvestre, como recompensa de lhe ir ajudar à missa todas as manhãs. Ela, por sua vez, iria pedir vinte escudos à vizinha Celeste, muito amiga da mãe, antes de ela falecer e agora, sempre muito pronta a ajudar em momentos de aflição. Havia de lhos pagar, depois, em sete ou oito prestações de maneira a que os outros não se apercebessem do embuste. À lista seguia-se uma observação importante: todas e cada uma das peças deviam ser marcadas com as letras iniciais do nome e sobrenome do candidato, a fim de que a roupa não se perdesse e as lavadeiras não a misturassem com a dos outros alunos. Deliciosa tarefa para a irmã que era uma excelente bordadeira e adorava fazer ponto cruz. Depois foi papelada e mais papelada, o que implicou variadíssimas viagens a pé, entre a Fajã e as Lajes, sempre acompanhado pelo pai, para tirar fotografias, bilhete de identidade, marcar a passagem e comprar papel para os requerimentos. O pior foi quando o pai viu na lista apresentada pelo pároco, - ”uma folha de papel timbrado da Ouvidoria”. Como não soubesse o que era aquilo da Ouvidoria e cuidando que era engano, comprou a respectiva folha na Tesouraria da Fazenda Pública, onde habitualmente se comprava o papel selado. Para além dos recados que ouviu do prebendado, ao regressar à Fajã e de perder o dinheiro gasto no papel timbrado que não tinha nenhuma outra utilidade nem estorno, teve que voltar às Lajes no dia seguinte, exclusivamente para comprar uma folha de papel com o timbre da diocese de Angra do Heroísmo, em casa Senhor Ouvidor Eclesiástico.
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RECORDANDO O PADRE COELHO
(TEXTO DE FERREIRA MORENO)
O padre Manuel Coelho de Sousa, (Padre Coelho como era popularmente conhecido), nasceu a 30 de setembro 1924 na Vila de São Sebastião, ilha Terceira dos Açores, ali falecendo a 2 de setembro 1995. Em outubro 1937 entrava no Seminário d’Angra, recebendo a ordenação sacerdotal a 20 de junho 1948. Foi professor no Seminário e Liceu d’Angra e chefe de redação (1956-62) no jornal “A União.” Frequentou (1962-63) o Curso de Filologia Hispânica na Universidade de Salamanca, Espanha, após o que regressou aos Açores e foi nomeado pároco de São Sebastião, onde permaneceu até à data do seu falecimento. No entretanto assumia, em 1976, o cargo de diretor-adjunto de “A União”, e mais tarde diretor do jornal, posto que manteve até se aposentar em setembro 1994. Além de pároco, professor e jornalista, notabilizou-se ainda como orador sacro, poeta, dramaturgo, pintor, encenador e ensaiador, escritor e animador cultural.
Neste recordando transcrevo agora o que escrevi ao tempo da sua aposentação: “Que dizer acerca do nosso tão querido padre Coelho? Ele que ofereceu magnanimamente os melhores anos da sua vida ao serviço e prestígio de “A União”, apesar de juntamente acarretar tantas e tantas outras responsabilidades, não só como sacerdote mas também como professor, fazendo tudo isto, e muito mais, com um espírito sempre jovem e inquebrantável. É verdadeiramente inesgotável o rol de recordações que me prende ao padre Coelho, desde as aulas de Português no Seminário às peças de teatro na época
do Natal, desde a escuta reverente aos sermões na Sé Catedral à leitura proveitosa dos reflexos, das migalhas e tantos outros registos na imprensa local. Jamais esquecerei, por exemplo, numa das minhas romarias de saudade às ilhas, o convívio da minha visita a São Sebastião, terra natal do padre Coelho, donde parti de regresso à Califórnia trazendo comigo o livro “Na Rota da Emigração Amiga”, que li de ponta a ponta a bordo do avião. Mas a mais preciosa recordação, que ainda perdura na minha memória e que mais se aviva neste momento, encontra-se intimamente entrelaçada com a data inesquecível da sua ordenação sacerdotal, ocorrida em Ponta Delgada, S. Miguel, no dia 20 de junho 1948. Nesse dia e data, a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima estava presente em missa campal, com milhares de açorianos a testemunhar a sagração do neo-presbítero ao serviço do Povo das Ilhas de Nossa Senhora dos Açores.
Obrigado, meu caro amigo, padre Coelho. Recordei, p’ra sempre, o grito que uma vez fizeste ecoar pelo nosso arquipélago: É urgente despertar / Deste marasmo de ilhéu / E pôr bandeiras no ar / Quem não acorda, morreu!” Com a data de 10 d’outubro 1994, o padre Coelho enviou-me a seguinte mensagem: “Amigo Moreno: Acabo de receber o que entendeste escrever sobre a minha saída e substituição no jornal “A União.” Como sempre foste, continuas generoso. Obrigado! Já não era sem tempo. Um cargo como aquele e naquele jornal, 18 anos quase, é esgotante. Faltou pouco para não ser mortal. Conservo saudades dos amigos responsáveis pela feitura e missão daquele jornal tão centenário como útil. Mas saí cansado. Desiludido. Amargurado por não me terem compreendido a tempo e horas e com mais caridade e justiça. Desculpa. Contos largos. Que Deus nos ajude.Peço-te: Continua escrevendo. As tuas crónicas sabem muito bem, ecoando os Açores em tantos jornais das nossas comunidades. Continua e dispõe sempre deste teu velho amigo.”
O jornal “Expresso das Nove” de Ponta Delgada, na sua edição de 24 de dezembro 1993, publicou uma longa entrevista de Tibério Cabral com o padre Coelho. Serviu-me de tema p’ra uma série de quatro crónicas distribuídas pelo Portuguese Times e Portuguese Tribune, a que farei a devida referência no recordando da próxima semana, juntamente com a apresentação de diversos testemunhos de homenagem ao padre Coelho. Por ora registarei apenas os títulos e datas das obras literárias que o padre Coelho nos legou: Poemas de Aquém e Além (1955), Três de Espadas (1979), Na Rota da Emigração Amiga (1983), Migalhas (1987) e Boa Nova (1994), sendo os dois primeiros de poesias e os restantes de prosa. Como acentuou Luís Fagundes Duarte: “O padre Coelho foi mestre nestas duas artes. Enquanto escritor foi um grande cultor da língua portuguesa. Enquanto poeta foi um fino intérprete da aventura humana. Homem de fé, homem da igreja, ele foi também um homem do seu tempo, da sua terra, das pessoas com quem e sobretudo p’ra quem viveu.”
Conforme deixei dito no recordando da semana passada, o jornal “Expresso das Nove” de Ponta Delgada, (24-dezembro-1993), publicou uma longa entrevista de Tibério Cabral com o padre Manuel Coelho de Sousa (1924-1995). Serviu-me de tema p’ra uma série de quatro crónicas distribuídas pelo Portuguese Times e Portuguese Tribune. Evidentemente que, movido por um intuito parcimonioso, não irei repetir aqui e agora todos os excertos então utilizados. Tenciono transcrever tão somente as informações intimamente associadas com o sacerdócio do padre Coelho. “Fui um dos poucos padres que teve um processo na PIDE. Sofri seis horas de interrogatório e fui ameaçado de prisão por dizer a verdade e defender os Açores das injustiças desta adjacência que nos colonizou até aos nossos dias. Nunca me arrependi de ser padre. Foi a melhor escolha da minha vida. Deus tem-me ajudado. Tenho tido muitos defeitos e pecados, mas gosto de ser padre. Não me envergonho do meu sacerdócio. Tenho servido o melhor que posso. Poderia, talvez, ter servido melhor. Deus, talvez, não esteja tão contente comigo, como eu estou com Ele, mas sinto-me bem na Igreja. Isto p’ra dizer que gosto de ser padre e que respeito todos os meus colegas. Eu já disse ao meu bispo que um jornal como “A União”, apesar de pequeno e pobre, vale mais do que dez padres a pregar, porque a imprensa é o arquivo da História, o jornal é o arquivo do dia-a-dia do povo. Pena é que, muitas vezes, haja jornais que só saibam alimentar-se de escândalos e do negativo.”
Em resposta à pergunta se, ao longo da sua vida de sacerdote, havia sido alguma vez assediado por mulheres, o padre Coelho declarou abertamente: “Fui. Basta ser simpático e dar nas vistas. Eu dava nas vistas no púlpito. A maneira como eu falava, porque fiz muita poesia no púlpito. Nosso Senhor me perdoe. Eu imprimia um ar de beleza literária nos meus sermões. Nosso Senhor deu-me este dom, e eu não tinha papas na língua. Houve pessoas que me fizeram declarações de amor platónico, e tive de pedir a Nosso Senhor que me ajudasse e me defendesse. Tive insinuações de uma banda e de outra, pois quem está neste mundo apanha vento dos dois lados da cara. Não faço com isto um papão. Nosso Senhor ajudou-me. Acredito na força da oração e acredito na comunicação dos santos. Cheguei a padre não foi só porque tive professores e diretores espirituais. Foi também porque tive uma mãe que rezou muito por mim e um pai que trabalhou de sol-a-sol.”
Victor Rui Dores, (Crónicas Insulares, 2010) escrevendo acerca do padre Coelho, seu antigo professor no Liceu d’Angra, recordou com correnteza e carinho: “Estou a vê-lo, sorriso amistoso, ajeitando os óculos, caminhando esguio e elegante, nos corredores do Liceu, vestindo os impecáveis fatos de bom corte que sempre usava. É ele uma referência indelével no imaginário de várias gerações de estudantes. Era um interlocutor precioso e amabilíssimo, perspicaz e afectivo, dotado de agudeza de espírito e fina ironia. Profundamente humano, solidário e fraterno, eloquente e afável, culto e cativante, assumindo-se sempre como um homem do povo, desse povo que ele amou
verdadeiramente, e com quem viveu, festejou e sofreu. Em tempos de repressão fascista, ele foi a coragem e a voz resistente, no púlpito, na imprensa e na rádio. Foi um homem universal, porque sentia em si todo o Universo e toda a dor do mundo. Denunciou a falsidade, o egoísmo, a injustiça, o cinismo, a corrupção e a insensatez dos homens. Dotado de grande sensibilidade estética, além de sacerdote e professor, foi jornalista, poeta, prosador, dramaturgo, conferencista e animador cultural de reconhecidos méritos. Poeta lírico do humano e do simbólico, a sua poesia conta e canta a trindade Criador-Amor-Ilha, e é atravessada por um amor pressentido, luminoso e quase feliz.”
É da autoria de monsenhor Júlio da Rosa este cordial testemunho: “Coelho de Sousa foi um espírito dotado de variados dons. Verdadeiramente rico de ideias, projetos e obras. Espírito lúcido e fértil. Homem p’rá oratória, a poesia, a pintura, o drama e o jornalismo. Seria um dos maiores se se tivesse cingido a uma arte e feito uma opção. Sobraçou, contudo, com valor, mérito e glória um leque de valores artísticos, que só um talento bem dotado poderia criar e enriquecer.”
A fechar, esta sentimental e poética evocação do padre Coelho: “Deus / Aquele que é por ser quem é, somente / Igual a si e a mais ninguém / Mas que hei-de ver, gozar eternamente.”
Ferreira Moreno.
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HORÁRIO DO FIM
EM SENTIDA MEMÓRIA DE UM AMIGO E COLEGA DE CURSO – JOSÉ MANUEL MEDEIROS FRANCO - UM POEMA DE MIA COUTO
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Texto Publicado no Pico da Vigia em 14 de Fevereiro de 2013
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LEMBRANÇAS DE NEMÉSIO
(UM TEXTO DE ARTUR GOULART)
Desde criança que o nome de Vitorino Nemésio me é familiar. Meu pai, colega de Nemésio no liceu de Angra, como ele partiu para Coimbra a continuar estudos. Embora frequentando faculdades diferentes, a amizade e o companheirismo mantiveram-se intensos no ambiente coimbrão, como aliás acontecia entre ilhéus e, por maioria de razão, da mesma ilha. Meu pai, em virtude de doença grave, felizmente ultrapassada, viu-se forçado a abandonar as matemáticas e o convívio da lusa atenas, mas os anos de Coimbra marcaram sempre indelevelmente as suas recordações. Daí que, anos mais tarde, já casado na vila das Velas, onde o destino e a profissão o fizeram assentar, as histórias coimbrãs com Nemésio dentro, a solo ou acompanhado, faziam parte dos nossos serões familiares.
Quando os programas escolares me fizeram avançar nos estudos da língua e literatura portuguesas, foi duplamente empenhado e curioso que devorei os escritos de Nemésio. A poesia e a prosa, que iam saindo da imaginação, do saber e da pena do mestre, e que me chegavam às mãos, nutriam a minha admiração e o meu respeito, que mais se consolidaram quando assisti, no Seminário de Angra, julgo que em 1956 ou 57, a uma notável conferência por ele proferida sobre «a cultura como cúspide do saber», tema que desenvolveu, naquele seu jeito improvisado que lhe era peculiar, com profundidade, erudição e elegância.
Aí pelo verão de 1964, estava eu de férias em S. Jorge em casa de meus pais, Nemésio passou por lá de visita. Mal chegou, meu pai tratou logo de o convidar para um almoço em nossa casa e, do programa da visita, já não sei se por iniciativa da Câmara, fazia parte um passeio pela ilha. Conforme combinado, o almoço aconteceu. Com convidado tão ilustre, minha mãe aprimorou-se na cozinha, saíram à cena a toalha e a loiça dos dias de festa, um verdelho velho do Pico viu a luz do dia e evaporou-se, a conversa esteve agradabilíssima, Coimbra surgiu do passado, a Terceira estremeceu entre touradas e cantigas de terreiro. Nemésio, com a finura e simplicidade de homem culto, sociável e velho amigo, saboreava os cozinhados (sem favor, minha mãe era excelente cozinheira) e apaladava-se com as palavras, quando estas temperavam a refeição com o sabor regionalista e insólito de certas expressões. Uma nossa vizinha, moça nova que trabalhava lá em casa a ajudar minha mãe nas lides domésticas, sempre que avistava Nemésio com o prato quase vazio, dirigia-se-lhe pressurosa: «O sr. doutor não quer mais uma niquinha?» Ele aceitava ou rejeitava com um sorriso agradecido a saborear a etimologia e as conotações desta «niquinha» de linguagem.
Para o passeio pela ilha tive a sorte de ser um dos indigitados para acompanhar Nemésio. Fomos de carro pelo Norte, a estrada e os verdes bordados de hortênsias, as fajãs adormecidas no fundo das falésias, a volta pelo Sul, a pequena joia da igreja de Santa Bárbara das Manadas entretecida de talhas, azulejos e alfarges, a Urzelina e as memórias do barão do Mau Tempo no Canal, anfitrião hospitaleiro de Margarida Dulmo, as velhas casas empertigadas nas negras cantarias de basalto, as Velas reclinadas lá ao fundo junto ao Morro, tudo pespontado com o comentário oportuno, o humor inteligente, o olhar penetrante de Nemésio. Já na vila, a passagem indispensável pela igreja de São Francisco, outrora da ordem franciscana, agora anexa ao hospital concelhio. Nemésio apreciava o altar-mór e os laterais, falava da mestria dos entalhadores, quando reparo que, devagar e ostensivamente, passava o dedo indicador pela bela grade de pau santo do presbitério. Reparando no meu olhar interrogativo perante gesto tão inusitado, apressou-se a esclarecer-me: «Estou a ver se as freiras mantêm limpa esta bela peça!» Na verdade estava impecável, e este gesto, para mim inesperado, de Nemésio trouxe-me à consciência um pormenor que, de tão natural, nem me tinha apercebido. De facto, como pude comprovar muitas vezes, as freiras, então ao serviço do hospital, mantinham a igreja e toda a casa numa limpeza exemplar.
Hoje, ao passar por tanto do nosso património em estado de abandono e sujidade, vem-me sempre à memória o gesto de Nemésio e, parafraseando o mestre, constato dolorosamente que tanta barbaridade e tanto desleixo só pode ser a cúspide da ignorância e da incultura
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FIOS DE OURO
(CONTO TRADICIONAL)
Era uma vez uma mãe tinha duas filhas. A mais velha era muito preguiçosas, desajeitada, impertinente e, além disso, muito invejosa, a outra, a mais nova, era extremamente bondosa, aprimorada, metódica e muito trabalhadora.
A mãe não cessava de aconselhar a mais velha, atirando-lhe à cara o que em tempos lera num livro:
– “A inveja é filha do orgulho, autora do homicídio e da vingança, o início das sedições secretas, a perpétua atormentadora da virtude. A inveja é a imunda lama da alma; um veneno, um azougue que consome a carne e seca a medula dos ossos.”
Como se isso não bastasse ainda lhe apresentava, vezes sem conta, exemplos de pessoas que a inveja não só corrompera mas até arruinara.
Certo dia, a mãe e a irmã mais velha saíram de casa e foram à missa mas deixaram a cozer no forno, ao cuidado da irmã mais nova, sete pães de milho. Como se demorassem, a rapariga, depois de cozidos, foi comendo um a um os sete pães, de modo que, quando a irmã e a mãe regressaram da igreja não restava nenhum.
Faltando-lhes pão para o almoço, a mãe e a irmã mais velha, ralharam tanto com ele e fizeram tão grande barulho, que um dos mais ricos mercadores da cidade que naquele momento passava, por acaso, na rua onde moravam, teve que intervir, para as apaziguar
A mãe e a irmã mais velha gritavam ambas, falando ao mesmo tempo, acusando a mais nova de ser uma comilona, de comer por sete e roubar-lhes o pão que era delas. Mas o homem compreendendo que o barulho era motivado por inveja e que a rapariga se bem comia, melhor o merecia, pois trabalhava e fiava por sete, pediu-a em casamento à mãe e, para desespero e inveja da mais velha, começou logo a tratar de tudo para se casar com ela.
Realizado o casamento, o negociante partiu para uma longa viagem deixando à mulher, como tarefa, um grande quarto cheio de linho para fiar.
Estava prestes o regresso do negociante e a mulher ainda não tinha fiado nada. Por mais que quisesse não o podia fazer, e as outras duas jubilosas riam e troçavam dela, contentes por calcularem que o marido logo que chegasse não deixaria de a castigar severamente, talvez até a abandonasse e casasse com outra. Nessa altura, decerto que rico mercadora escolheria a mais velha para a substituir como esposa.
A pobre rapariga chorava, chorava, pretendendo debalde fiar o linho mesmo com lagrimas, mas não conseguia.
Um dia, enquanto estava à janela, a lastimar a sua sorte passaram umas fadas boas que, compadecendo-se da infeliz, lhe disseram que ao fiar, em lugar de passar os dedos pelos lábios, os passasse por farinha de milho.
A rapariga assim fez, e d'ai por diante, com grande alegria sua e raiva da irmã, não só podia fiar quanto queria mas também o fio, ao contacto da farinha de milho, transformava-se logo em rico fio de puro ouro.
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PAPAS QUE FORAM FORÇADOS A ABDICAR
Para além dos papas que abdicaram livremente e por iniciativa própria, embora fazendo-o por razões diversas, outros chefes da Cristandade foram forçados a abandonar a cátedra de São Pedro, por motivos alheios à sua própria vontade, sendo que, nalguns casos, as pressões foram tão violentas e tão execráveis que culminaram no assassinato do Sumo Pontífice. Desta lista histórica, obviamente, estão excluídos os papas mártires, dos primeiros séculos do cristianismo.
O Papa Eusébio foi eleito em 309, permanecendo na cátedra de Pedro apenas quatro meses, em consequências das perturbações e actos de violência na Igreja, devido a uma rumorosa disputa sobre a readmissão dos apóstatas, Eusébio foi banido pelo imperador Magêncio, que governava Roma, na altura. Foi exilado para a Sicília onde morreu em 310. A Igreja venera-o como santo e a sua festa é no dia 26 de Setembro. Sucedeu-lhe Melquíades, um papa africano de origem berbere, eleito após o imperador Maxêncio ter exilado Eusébio. Dois anos depois, Constantino derrotou Maxêncio, assumiu o governo de Roma e garantiu a liberdade religiosa aos cristãos.
João I, eleito papa em 523, ao ser enviado a Constantinopla, em 525, a fim de tentar obter tolerância da parte do imperador Justiniano para os árabes, foi aprisionado por Teodorico, o Grande, que o obrigou a abdicar do papado, colocando no seu lugar Félix IV, que, antes da sua morte, reuniu vários clérigos e importantes cidadãos romanos e, solenemente, elegeu seu sucessor, Bonifácio II, evitando assim as ameaças consubstanciadas na eleição do antipapa Dióscoro.
No mesmo século João III, eleito papa em 561, foi deposto e forçado a abdicar pelo general Narses, uma vez que, durante o seu pontificado os Lombardos invadiram a Itália e Narses tornou-se governador de Roma, entrando em rota de colisão com João III. Devido à guerra, durante mais de um ano, a Sé de Roma esteve vacante, sendo então eleito Bento I.
No século seguinte, o papa Martinho I, eleito em 649, condenou e afastou os escritos do imperador bizantino, Constante II, que, de imediato, o mandou aprisionar e levar cativo para Constantinopla, sendo julgado, considerado infame e condenado à morte. No entanto, ao ser forçado a renunciar, teve a pena capital suspensa, mas foi encarcerado, submetido a maus-tratos e desterrado para Quersoneso (actual Ucrânia), onde faleceu.
João VIII, eleito em 872, morreu envenenado, dez anos depois. Embora não descuidando os assuntos espirituais da igreja, João VIII assumiu-se mais como chefe militar e líder politico do que do pai espiritual da cristandade. Os seus exércitos defenderam a Itália contra os sarracenos, derrotando-os em Terracina. Em 875, coroou imperador o rei dos francos ocidentais, Carlos o Calvo, e à morte deste, coroou imperador, o rei dos francos orientais, Carlos III o Gordo. Mas depois da coroação, o imperador não manteve a ajuda que lhe prometera, pelo que o papa foi derrotado pelos árabes e forçado a abdicar. Em sua substituição foi eleito, precisamente no dia da sua morte, Marinho I.
Depois da morte de Bonifácio VI, em 896, algo de muito estranho e pouco ortodoxo aconteceu no Vaticano. O partido dos duques de Espoleto, a seu belo prazer, colocou no trono pontifício o Estêvão VI. Roma passou para a chefia de Lamberto de Espoleto e o novo papa foi obrigado a reconhecer Lamberto como único imperador e a reprovar e anular todos os actos do Papa Formoso, antecessor de Bonifácio VI, que coroara Arnolfo, imperador da Alemanha. Abusando da subserviência de Estêvão VI, os partidários de Lamberto instituíram o tribunal do "Sínodo do Cadáver". O cadáver mumificado do papa Formoso foi retirado, sacrilegamente, do seu ataúde, sentado num trono e acusado do grande crime de haver aceite ter sido Papa. Intimado a se defender, e logicamente nada respondendo por ser um mero cadáver, foi julgado criminoso, despojado das insígnias pontificais, sendo-lhe cortados os dedos da mão que abençoara as multidões. O cadáver foi depois lançado ao Tibre, donde foi retirado pelo povo, que lhe guardava enorme carinho e admiração e lhe deu sepultura. Estêvão VII foi aprisionado, obrigado a abdicar, acabando por ser linchado.
Leão V foi eleito papa em 903 e assassinado, dois meses após a eleição, pela família romana dos tusculanos, os mesmos que mataram o antipapa Cristóvão. A causa da sua morte permanece obscura e pouco se sabe, também, sobre a sua vida e acerca do seu curto pontificado. Foi preso por motivos desconhecidos e há uma lenda atribuindo a sua morte a Sérgio III, seu sucessor e, supostamente, pai do papa João XI. Muitos historiadores, no entanto cuidam que é mais provável Leão V ter morrido de causas naturais, na própria prisão.
O Papa João X foi eleito em 914. O seu pontificado foi profundamente influenciado por Alberico I de Spoleto, conde de Túsculo e esposo da bela princesa toscana, Marózia, que dominava Roma. João X foi um papa enérgico e independente, criou grandes inimigos, acabando por ser preso pelos partidários de Marózia, cujos planos ambiciosos condenara. Foi obrigado a abdicar do papado, morrendo na prisão, um ano depois, ao que consta de fome ou de ansiedade.
Pouco se sabe do papado de Estevão VII que terá sido eleito em 928 ou 929. A sua eleição foi imposta pelos condes de Túscolo, graças às suas intrigas contra Marózia, então senatriz de Roma. A validade do seu pontificado é dúbia, pois tal como o seu antecessor, Leão VI, foi eleito quando o Papa João X ainda era vivo mas estava preso. Consideram os historiadores que, se a retirada do papado a João X for inválida, Leão VI e Estêvão VII não foram papas legitimados. Ambos tiveram pontificados curtos e sem nenhuma informação relevante. Estevão VII, possivelmente, morreu assassinado em 931, pelo filho de Marózia, Alberico, que também assassinou a própria mãe.
Após a morte de Estevão VII, foi eleito João XI, com apenas 21 anos de idade, filho de Alberico I de Espeleto e de Marózia, através de intrigas da mãe, ficando completamente sob a sua influência, sob um governo tirano. Depois de várias lutas, um de seus irmãos tornou-se governador de Roma, obrigando João XI a refugiar-se num convento e a renunciar ao cargo.
Bento VI foi eleito papa em 973. Pouco se sabe do seu pontificado, excepto que confirmou os privilégios de várias igrejas e mosteiros e que, um ano após à sua eleição, foi preso, obrigado a abdicar e assassinado por estrangulamento.
Numa época perturbada, com dois antipapas à porfia, João XIV, foi eleito em 983. Após a morte do imperador Oto que o colocara no trono, os nobres de Roma aproveitaram o clima de insurreição e revoltaram-se contra o pontífice, sob o pretexto de que este não era romano. Foi o próprio antipapa Bonifácio VII que, aproveitando o contexto de agitação que se vivia em Roma, o prendeu no Castelo de Santo Ângelo, onde veio a morrer envenenado.
Finalmente, João XXI eleito em 1276 e o único papa português, até ao presente. João XXI não abdicou voluntariamente, nem foi forçado a fazê-lo por imposição de ninguém, mas simplesmente porque foi vítima de um acidente que lhe provocou a morte. Foi homem de grande sabedoria, professor, médico, cientista, pároco em Mafra e arcebispo de Braga e, nessa qualidade, participou no XIV Concílio Ecuménico de Lião, sendo, nessa altura elevado a cardeal pelo papa Gregório X. A sua eleição papal, após a morte do Papa Adriano V, decorre num período muito perturbado por tensões políticas e religiosas. O acidente que o vitimou e que, precocemente o afastou da cátedra de Pedro, ocorreu durante as obras de restauro do palácio onde vivia, em Viterbo.
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PAPAS QUE RENUNCIARAM ANTES DE BENTO XVI
A anunciada renúncia à chefia da Igreja Católica, por vontade própria, pelo actual Papa, Bento XVI, senão inédita, é, pelo menos muito pouco vulgar entre os 262 sucessores de São Pedro. No entanto, alguns foram os papas que já o fizeram, embora por outras razões, cabendo a Bento XVI ficar na história como sendo o primeiro papa a abdicar por motivos, considerados pelo próprio, de incapacidade física ou mental, embora haja rumores, no Vaticano, de que João Paulo II, falecido em Abril de 2005, tenha escrito e deixado, aos cardeais, uma carta de renúncia, a fim de que fosse protocolada, caso viesse a ser vítima de qualquer tipo de doença que o deixasse incapacitado para o governo da Igreja.
A primeira renúncia de um chefe da Cristandade ocorreu no ano de 235, e foi feita pelo papa Ponciano, o 18º sucessor de Pedro, durante o seu exílio na Sardenha. Ponciano abdicou voluntariamente, ao perceber que jamais sairia com vida da “ilha da morte”, a fim de voltar ao Vaticano. Ponciano foi chefe da Igreja entre os anos 230 e 235, não foi martirizado como os seus predecessores, mas condenado a trabalhos forçados na Sardenha, pelo Imperador Maximino Trácio. Ponciano foi canonizado e a Igreja recorda-o, juntamente com Santo Hipólito, a 13 de Agosto. Desconhece-se quanto tempo Ponciano viveu exilado, após a renúncia, mas sabe-se que morreu de esgotamento, em virtude do tratamento cruel, violento e desumano de que foi vítima, nas minas da Sardenha, onde trabalhava, condenado a trabalhos forçados. Os seus restos mortais foram transladados para Roma pelo Papa Fabiano e enterrados na catacumba de Papa Calisto I.
O segundo papa a abdicar foi Silvério, em 537. Fê-lo, também, por ser forçado a exilar-se, por ordem da imperatriz Teodora, na ilha mediterrânea de Palmaria. Quando conseguiu libertar-se do exílio e regressar ao Vaticano, a imperatriz já havia colocado outro pontífice no seu lugar, o papa Virgílio, pelo que Silvério aceitou manter-se definitivamente afastado da cátedra de São Pedro. Também foi canonizado.
O Papa actual não ficará na história por ser o único papa de nome Bento a resignar. Durante uma época tumultuosa da história da Igreja Católica, conhecida como a “idade das trevas”, os papas acotovelaram-se, guerrearam e entregaram-se à corrupção e à venalidade, aliando-se, geralmente, a famílias aristocráticas, poderosas e influentes. Para acabar com exageradas mordomias e extravagantes excessos, nada abonatórios do Vigário de Cristo, a Igreja e o povo de Romana elegeu Bento V, como Sumo Pontífice, em 964. Algum tempo depois, o imperador Oto I, fundador do Sacro Império Romano, fez eleger, Leão VIII, pelo que Bento V, foi forçado a resignar, alguns meses após a sua própria eleição. Nascido em Roma, o papa Bento V foi eleito em 22 de Maio de 964, ainda durante o pontificado do seu antecessor, João XII, em circunstâncias políticas críticas e contra a vontade do poderoso imperador que depusera João XII. Bento V passou por períodos turbulentos, não conseguindo opor-se ao todo poderoso imperador que, assim, reinstalou Leão VIII no trono de São Pedro. Bento V abdicou e abandonou Roma, um mês, após a sua eleição, refugiando-se na Alemanha, onde permaneceu exilado, até a morte de Leão VIII. Com a nova vacância da Santa Sé, o imperador Oto I acabou por reconhecer-lhe a autoridade pontifícia sob pressão dos francos e romanos, mas o Sumo Pontífice emérito, faleceu poucos dias depois, com fama de santidade.
No século seguinte, em 1009, há relatos de uma nova renúncia papal. Desta feita foi o papa João XVIII, que abdicou pouco antes da sua morte, pela simples opção de querer viver os últimos tempos da sua vida, como monge, na basílica de São Paulo, em Roma. Eleito em 1004, durante os cinco anos e meio de pontificado, promoveu e paz por todos os lugares alcançados pela Igreja Romana, lutou tenazmente para que o cristianismo fosse difundido entre os bárbaros e os pagãos e realizou vários sínodos para levar mudanças à vida dos clérigos. Abdicou voluntariamente e retirou-se para o mosteiro de São Paulo Fora dos Muros, vivendo como monge, durante alguns anos.
No mesmo século, porém havia ainda de verificar-se uma nova mas heteróclita renúncia. Trata-se de Bento IX a quem são reconhecidos três mandatos como papa, implicando outras tantas renúncias.
Bento IX ascendeu ao papado em 1032, com apenas 20 anos, levando uma vida imoral e dissoluta. Em 1044, a cidade de Roma revoltou-se e elegeu como papa Silvestre III, a favor de quem Bento IX se viu obrigado a renunciar. Um ano depois, após a morte de Silvestre III, Bento IX voltou a ocupar a cátedra de São Pedro, num segundo pontificado, que durou apenas 21 dias, pois voltou a renunciar ao papado, mas de forma estranha “vendendo a tiara” ao seu padrinho João Gratian, o qual se fez eleger como novo papa, tomando o nome de Gregório VI. João Gratian, Arcipreste de S. João "ad portam Latinam", forçou o afilhado a abdicar, com o objectivo de ver a Santa Sé livre de um pontífice tão indigno, pese embora o seu pontificado também não tenha trazido a paz à Igreja. No entanto, os bispos reunidos em Sínodo consideraram que o modo como Gregório VI obtivera o pontificado era, claramente, um caso de simonia e obrigaram-no a renunciar, o que acabou por fazer. Como seu sucessor foi eleito Clemente II, que teve um curto papado. Após a sua morte, Bento IX retomou o trono de São Pedro, governando a igreja, apenas durante 228 dias, voltando a abdicar, pela terceira vez, mas definitivamente, em 1048. Bento IX nasceu em Roma com o nome Theophylactus e era filho de Alberico III, conde de Túsculo e sobrinho dos papas Bento VIII e João XIX. Foi o pai que devido ao seu poderio e influência, lhe obteve o trono papal. São Pedro Damião, no Liber Gomorrhianus descreve-o como "regozijando-se em imoralidade" e "um demónio do inferno dissimulado de sacerdote". O destino de Bento IX, depois de renunciar pela terceira vez, é obscuro. No entanto, parece provável que tenha abandonado, definitivamente, as suas pretensões papais.
Também o papa Celestino V abdicou em 1294. Frade beneditino radicalmente espiritualista e um asceta de vocação que vivia como recluso, Celestino V foi eleito num conclave que demorou cerca de dois anos, apesar de haver apenas doze votantes. O conclave foi mesmo interrompido por causa de uma epidemia de peste, que, inclusivamente, vitimou um dos cardeais. A somar a isso, vivia-se um período de lutas pelo poder, entre famílias italianas mais influentes. Em 5 de Julho de 1294, finalmente, elegeu-se Celestino V. De carácter fraco, submisso e desajustado para o cargo, deixou-se iludir e influenciar por famílias poderosas, sendo forçado a abdicar, meio ano após a sua eleição.
Por fim, o último papa a renunciar antes de Bento XVI foi Gregório XII, em 1415. Deposto pelo Concílio de Pisa em 1409, onde foi eleito o antipapa Alexandre V, manteve-se, teimosamente, no trono. A renúncia foi tomada, anos mais tarde, como uma negociação feita durante o Concílio de Constança, no período do Grande Cisma do Ocidente - uma grande crise religiosa que ocorreu na Igreja Católica entre 1378 a 1417. Gregório XII tinha 90 anos à época e sua renúncia acabou por contribuir positivamente para o termo da crise. Consta que o concílio, em reconhecimento pela dignidade mostrada pelo Papa, o convidou a assumir o bispado do Porto e a representação pontifícia da região italiana do Marche. Gregório XII não aceitou e agradeceu, através duma carta que enviou aos padres conciliares. Morreu dois anos após a renúncia.
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OS PADROEIROS DAS PARÓQUIAS AÇORIANAS
Os Açores têm 156 freguesias e 164 paróquias, uma vez que, nalgumas ilhas existem paróquias que não correspondem a freguesias, assim como há freguesias que ainda não são paróquias.(1) Obviamente que cada paróquia tem a sua igreja paroquial e, consequentemente, o seu padroeiro. Algumas paróquias terão sido constituídas logo após o povoamento e, por isso, muitos dos seus padroeiros assim como os das localidades que mais tarde lhes deram origem, foram o resultado da devoção dos primeiros povoadores, de cujos santos traziam as respectivas imagens. Mas, por vezes e muito naturalmente, nalguns lugares não havia imagens. Sabe-se, por exemplo, que a primeira igreja construída no Faial, teve como padroeiro a “Santa Cruz”, precisamente porque os povoadores que ali chegaram não tinham nenhuma imagem, construindo uma cruz para colocar no altar-mor. Outros padroeiros terão surgido como resultado da aflição dos habitantes em momentos de angústia, como crises sísmicas e tempestades, (Santa Bárbara, Senhora da Agonia) ou crises agrícolas (Santo Antão e Santo Amaro) ou de ataques dos piratas (Senhora dos Milagres), etc.
São 74 os padroeiros açorianos para as 156 paróquias, pelo que muitos se repetem em várias ilhas e até dentro de cada ilha. Nossa Senhora é a mais proclamada como padroeira, sobre 36 invocações diferentes, muitas delas também repetidas, num total de 69, o que corresponde a 42% do total das paróquias açorianas.
A invocação mais repetida, nos Açores, é a de São Pedro, padroeiro em nove paróquias: S. Miguel (4), Terceira (3), Flores e Santa Maria. Segue-se Santa Bárbara com oito invocações, como padroeira, o que acontece em todas as ilhas, excepto Flores, Corvo e Graciosa, sendo esta invocação repetida na Terceira e em São Miguel. As invocações marianas mais frequentes são a Senhora da Conceição (6): S. Miguel (3), Terceira, Faial e Flores e a Senhora do Rosário (6): S. Miguel (3), São Jorge (2) e Flores. Santo António é padroeiro de 5 paróquias: S. Miguel (2), Terceira, S. Jorge e Pico, o mesmo acontecendo com São José: S. Miguel (3), Terceira e Flores e também com São Mateus: Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial. Nossa Senhora da Ajuda tem 4 invocações: S. Miguel (2), Pico e Faial, assim como a Senhora da Luz: S. Miguel (2), Graciosa e Faial e a Senhora dos Milagres: S. Miguel, Terceira, Flores e Corvo. Ainda com 4 invocações, temos a Santa Cruz: S. Miguel, Terceira, Graciosa e Pico e São Sebastião: São Miguel (2), Terceira e Pico. O Divino Espírito Santo, embora amplamente festejado e fruto de muita devoção em todas as paróquias, é padroeiro, apenas de 3: S. Miguel, Terceira e Faial. Voltando às invocações marianas, a Virgem é 3 vezes proclamada padroeira como: Senhora dos Remédios: S. Miguel (2) e Flores, Senhora da Graça: S. Miguel (2) e Faial e Senhora do Pilar: S. Miguel, Terceira e Flores. Santa Ana também tem 3 invocações: S. Miguel (2) e S. Jorge, assim como Santa Catarina de Alexandria: Terceira, S. Jorge e Faial e Santa Luzia: S. Miguel. Terceira e Pico. Curiosamente, na Terceira existem duas paróquias com o nome de Santa Luzia, sendo que o padroeiro de uma delas (Santa Luzia da Praia) é São José. A Santíssima Trindade tem 3 invocações: Pico, Faial e Flores assim como o Santíssimo Salvador: S. Miguel, Terceira e Faial. São Jorge também tem 3 invocações: S. Miguel, Terceira e, naturalmente, S. Jorge. São Roque tem 3: S. Miguel, Terceira e Pico. São muitas as invocações como padroeiros de duas paróquias, quer de Nossa Senhora, quer de Santos. Nossa Senhora da Penha de França (S. Miguel e Terceira), da Piedade (S. Miguel e Pico), das Candeias (S. Miguel e Pico), das Dores (Pico e Faial), das Neves (S. Miguel e S. Jorge), do Guadalupe (Terceira e Graciosa), do Livramento (S. Miguel e Flores) (2) e, ainda, dos Anjos, neste caso, com ambas as invocações em São Miguel. Há também várias invocações de santos, como padroeiros, simultaneamente, em duas paróquias açorianas: Santo Amaro (S. Jorge e Pico), Santo Antão (S. Jorge e Pico), São Bartolomeu (Terceira e Pico), São Brás (S. Miguel e Terceira), São Caetano (Pico e Flores), São João Baptista (Terceira e Pico), São Lázaro (S. Miguel e S. Jorge) e São Miguel Arcanjo (S. Miguel e Terceira)
São 35 as invocações Divinas, de Maria ou de Santos que não se repetem nas paróquias dos Açores. As invocações divinas, são apenas três: duas em S. Miguel: Bom Jesus Menino e Senhor Bom Jesus e, nas Flores) Santo Cristo, enquanto as marianas são bastantes mais: Senhora da Assunção, da Purificação e do Bom Despacho em Santa Maria, Senhora da Anunciação, da Apresentação, da Boa Viagem, da Estrela, da Misericórdia, da Oliveira, da Saúde, das Necessidades, do Amparo, dos Prazeres e Mãe de Deus, na ilha de São Miguel. Por sua vez na Terceira as invocações marianas não repetidas, são apenas três: Senhora da Pena, das Mercês e de Belém, no Faial, Senhora das Angústias e Senhora do Socorro e no Pico senhora da Boa Nova.
Finalmente são treze os santos invocados, singularmente, como padroeiros das ilhas açorianas: Em São Miguel: Santa Clara, São Nicolau, São Paulo, São Vicente Ferreira e Santos Reis Magos, na Terceira: Santa Beatriz, Santa Margarida, Santa Rita, São Bento e São Francisco Xavier, em São Jorge: São Tiago Menor e no Pico, Santa Maria Madalena.
(1) Nos Açores existem 10 paróquias que não são freguesias: Corvo, Pico 2 (Silveira e Santa Bárbara/Santa Cruz-Ribeiras), S. Jorge 2, (Santo António e Beira): Terceira 3, (Santa Rita, St Luzia e Casa da Ribeira) e S. Miguel 2 (Atalhada e Saúde/Milagres-Arrifes). Por sua vez há duas freguesias que não são paróquias: Ribeira Seca no concelho de Vila Franca do Campo e Lomba de S. Pedro, no da Ribeira Grande.
(2) Nas Flores, na Caveira, a invocação primitiva era “As Benditas Almas”, caso único no mundo. Esta invocação, no entanto, foi retirada e substituída pela Senhora do Livramento, durante o episcopado de D. Manuel Afonso de Carvalho, argumentando o Prelado que as “Almas do Purgatório” ainda não eram santas e que o dia da sua festividade (2 de Novembro) era inadequado a uma celebração festiva condigna.
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A LENDA DO CALHAU DAS FEITICEIRAS
Na Fajã Grande, ilha das Flores, no cimo da ladeira do Covão, no caminho que dava para o Outeiro Grande e antes do cruzamento da Pedra d’Água, existia, e provavelmente ainda hoje existe, um enorme e estranho calhau, que o povo chamava Calhau das Feiticeiras.
Tratava-se de um enorme e negro tufo de forma oval, encravado na rocha que ostentava desde a base até ao cume, mais de uma dúzia de pequenas pegadas, cuja elegância, delicadeza e graciosidade pareciam ser denunciadoras de que pés femininos por ali teriam passado, vezes sem conta.
Como este, tantos outros montes, morros, ribeiras e até ilhéus, da ilha das Flores estavam, antigamente e muito provavelmente ainda hoje estarão repletos de lendas e histórias que os seus nomes, geralmente, guardam e que umas vezes nos levam aos tempos remotos do povoamento da ilha e noutras nos transportam aos tempos primordiais e pré-históricos da civilização da Atlântida ou da sua destruição.
Reza uma lenda muito antiga que um dos mais altos picos montanhosos da Atlântida era o Vamilkmar. Durante os cataclismos, os terramotos e os vulcões que destruíram aquele mítico continente, situado no meio do Atlântico, um estranho gigante, conseguindo a muito custo escapar à fúria de Analtredevica, a deusa dos cataclismos e terramotos, ter-se-á refugiado naquele local, ficando, durante milhares de anos, adormecido, no meio do Oceano. Os enormes cataclismos e temíveis terramotos que ali se verificaram, antes, durante e depois da formação da ilha das Flores, foram lentamente alterando o colossal e gigantesco atlante, acabando por transformá-lo naquele rochedo, ali plantado. Só que e à medida que o estranho ser se agigantava para se defender fosse do que fosse, enquanto um dos seus sentidos ou capacidades se desenvolvia extraordinariamente e de forma gigantesca, os outros adormeciam e como que se atrofiavam. Na sua luta titânica para sobreviver, escapar às violentas tempestades e orientar-se durante os espessos nevoeiros, Vamilkmar exercitava de tal modo e com tanta intensidade a visão que o ouvido, o olfacto, o gosto, o tacto e a própria inteligência se ofuscavam. Para sobreviver às constantes tempestades e orientar-se nas noites escuras das tremendas catástrofes, no negrume e libertar-se da fúria dos vulcões e dos densos nevoeiros matinais, o gigante desenvolvia excessivamente a vista, enquanto o ouvido, o olfacto, o gosto, o tacto e a inteligência se atrofiavam. Perante os estrondos aterrorizadores dos trovões, os rugidos roufenhos das tempestades e o bramir altivo do oceano era o ouvido que se excedia enquanto todos os outros se atrofiavam. Quando os enormes vulcões se abriam e jorravam rios de enxofre de cheiro nauseabundo e atrofiante e das altas montanhas jorravam rios de lava mefítica, era a vez do olfacto se desenvolver na sua máxima capacidade, aniquilando totalmente todas as outras capacidades. O mesmo acontecia quando gosto saboreava os amargos sabores das maresias provenientes da gigantesca agitação dos oceanos ou o tacto se defendia dos gelos glaciares ou das chuvas e dilúvios torrenciais. Por fim e depois de ensaiar constantes e necessárias tentativas de sobrevivência, era a inteligência do gigante que crescia, crescia até se sobrepor e adormecer todas as suas outras capacidades sensoriais.
Duraram séculos e séculos, estas tentativas de sobrevivência de Vamilkmar foram tantas, tão contínuas e tão frequentes que o gigantesco corpo se foi alterando na sua forma humanóide. O seu corpo adquiriu uma forma opaca, dura e teúrgica e a sua cabeça foi-se ramificando e desarticulando de tal modo que se lhe foram crescendo ramificações, mais tarde transformadas em cabeças, num total de seis – cinco para cada um dos sentidos e uma sexta para a inteligência. Com o serenar das tempestades e das intempéries, com o apaziguar dos trovões e tempestades, com o aplacar dos vulcões e terramotos, com amainar das ondas e maresias, com o aquietar dos ventos, com o diminuir de chuvas e dilúvios, porém as cabeças do gigante foram adormecendo lentamente, atrofiando-se e juntamente com o seu corpo transformaram-se naquele enorme e gigantesco tufo.
Passaram dezenas, centenas e milhares de séculos e o gigante ali permanecia em plena e constante hibernação, enquanto, lentamente e ao seu redor, a ilha ia adquirindo a forma que hoje tem, não sem que antes voltassem tempestades violentíssimas, cataclismos abissais, tremores de terra e maremotos contínuos que, apesar de fortíssimos e muito violentos, não conseguiram ressuscitar o gigante adormecido, transformado em tufo. O passar dos anos havia-o empedernido de tal maneira que o seu corpo nunca mais perdeu aquela forma rochosa e pétrea. Apenas as cabeças sobreviveram, mas como não tinham corpo que as alimentasse, que lhes desse vida, foram autonomizando-se e acabaram por transformar-se em belos seres com formas estranhas - as feiticeiras - que se subiam, desciam e se escondiam nas abas do calhau, aparecendo apenas ao crepúsculo. Como não se podiam afastar do tronco adormecido do gigante, nem aparecer durante o dia, passavam desde o lusco-fusco do anoitecer até ao crepúsculo da madrugada, subindo e descendo, descendo e subindo aquele enorme gigante adormecido, deixando-lhe no dorso as indeléveis pegadas do seu contínuo, permanente e secular subir e descer.
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DR JOSÉ SOARES NUNES
Aqui, da ilha montanha, parcialmente boqueado do mundo, da informação e, sobretudo, da Internet, uma vez que não disponho de outro meio que não seja um simples, mas muito gastador e, por vezes, desajustado Mobile USP, raramente recebo informação actualizada.
Hoje porém foi-me permitido aceder ao FB e entre outras, recebi uma agradabilíssima notícia: a Assembleia Regional dos Açores decidiu homenagear, entre outros ilustres açorianos, José Soares Nunes, Monsenhor e professor no Seminário Episcopal de Angra do Heroísmo. Lendo com maior atenção a notícia que de imediato me despertou um interesse gigantesco, percebi que a Monsenhor José Nunes será atribuída, no próximo dia vinte, a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico dos Açores
Fui aluno do Dr José Nunes, no Seminário de Angra, na década de sessenta, tinha ele acabado de chegar de Roma, onde havia feito a sua formação universitária. Primeiro tive-o como professor de Grego e, três anos depois, como mestre de Teologia Dogmática. Durante estes anos, o Dr José Nunes exerceu também o cargo de Vice-Reitor do Seminário, onde se manteve até ao presente, como professor. Ao longo destas cerca de cinco décadas, ter-se-ão sentado à sua frente centenas de alunos, muitos dos quais poderão, com certeza, dar, em momento tão solene, testemunhos muito mais válidos e doutos, mas não mais verdadeiros e sinceros, sobre o mestre.
Sentei-me na carteira de aluno, durante vinte e dois anos e na de professor trinta e seis e, por isso, tive a possibilidade de perceber que cada aluno tem sempre, no seu, íntimo, entre os seus professores, um preferido, talvez mesmo, de eleição e, consequentemente, mais desejado e mais querido. Porém, nem sempre todos os alunos são unânimes ou consensuais nesta sua, subjectiva e muito pessoal, escolha.
Para mim e que me perdoem todos os outros de que guardo as mais belas recordações e grandes amizades, José Nunes foi o meu professor de eleição e já lho confessei. Provavelmente, não terá sido o professor mais sábio, nem sequer o mais competente, talvez até nem aquele que me dispensasse maior atenção e amizade, mas com certeza que foi, por quantas atitudes suas ao longo de mais de meia de dúzia de anos como aluno, pude perceber, o mais humilde. E isso me basta, para hoje e desta forma simples e singela o homenagear!
Senhor duma simplicidade deslumbrante, o Dr José Nunes entrava na aula com uma postura horizontal, paralela aos alunos, firmando-se como mais um de nós, uma espécie de colega mais velho que partilhava os conteúdos programáticos das disciplinas de que era responsável. Não se sentava na cátedra do mestre para ensinar, mas colocava-se ao lado dos alunos para partilhar conhecimentos. Isso fazia com que as suas aulas se transformassem em momentos duma envolvência fantástica, em que o mestre, embora mantendo a sua dignidade, se metamorfoseava numa espécie de companheiro que ajudava, amparava, apoiava, auxiliava e nunca recriminava, reprimia ou descriminava quem quer que fosse, por errar ou até por não saber. Magnânimo na condescendência, benevolente no esforço, complacente nas dificuldades, encorajante no desânimo, fortalecedor nas fraquezas e tolerante no erro, o professor José Nunes, perante os descalabros em que as traduções do grego eram férteis, nunca recriminava, condenava ou sequer utilizava a tradicional expressão: “Está errado.” Perante o maior dos erros de qualquer um dos alunos, apenas e tão-somente, com o doce sorriso que lhe era peculiar, sugeria: “Eu acho que isso se pode traduzir doutra maneira”.
Não resisto a transcrever um dos mais significativos episódios reveladores da sua simples e natural humildade. Estava eu, certa tarde, no quarto do Dr Américo Vieira, na altura Director Espiritual do Seminário e considerado uma “sumidade” em Teologia Dogmática. Bateram à porta. Era do Dr José Nunes que, enquanto preparava a aula do dia seguinte, lhe tinha surgido uma dificuldade e vinha esclarecê-la com o Dr Américo. Apesar de me ver, não se coibiu de pedir a ajuda e de a receber. Eu era um dos alunos com quem ele teria a aula no dia seguinte…
Passaram-se muitos anos e seguimos destinos diferentes, desencontrando-nos nos caminhos da vida. Regressei a Angra e procurei o Dr José Nunes. Estivemos horas a conversar, num café de Angra. Tive a oportunidade de recordar, na frente dele, o seu perfil de mestre, cuja postura simples, amiga e humilde, nunca esqueci. Mais, confessei-lhe que ao longo da minha vida de professor me lembrei muitas vezes dele, modelando a minha postura e o meu relacionamento com os meus alunos, por aquele modelo de simplicidade e humildade que descobrira nele, granjeando assim uma amizade recíproca. Felizmente, pude concluir que isso resultara num deslumbrante sucesso da minha actividade profissional, obtendo, sempre, da parte dos meus alunos uma amizade transcendente e recíproca e respeito verdadeiro e inequívoco.
Há uns anos, rejubilei de contentamento quando soube que a Santa Sé havia reconhecido os méritos do Dr José Nunes, atribuindo-lhe o título de Monsenhor. Agora voltei a exultar de alegria porque a Sociedade Civil e o Poder Político lhe atribuíram esta insígnia, a qual, para além de representar o seu reconhecimento público como um cidadão que, ao longo da sua vida, contribuiu de forma significativa para consolidar a identidade histórica, cultural e política do povo açoriano, pretende também, “de forma simbólica, estimular a continuidade e emergência de feitos, méritos e virtudes com especial relevo na construção do património insular”. Na realidade o Dr José Nunes, com justiça, se junta ao rol daqueles açorianos que foram reconhecidos por se notabilizarem com o seu labor, a sua arte ou o seu pensamento, simbolizando a perpetuação da própria identidade açoriana.
Recorde-se que o Dr José Soares Nunes é natural da freguesia dos Rosais, ilha S. Jorge, tendo entrado para o Seminário de Angra em 1946, completando o curso de Teologia, no ano de 1958. Por não ter a idade canónica na altura, foi ordenado de Presbítero a 6 de Janeiro de 1960 na capela do Seminário Episcopal de Angra, por D. Manuel Afonso de Carvalho, a quem servira já como secretário. Após a Licenciatura em Teologia Dogmática, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, o Padre José Nunes regressou à diocese de Angra, passando a integrar o quadro de professores do Seminário Episcopal de Angra, onde se tem mantido até ao presente, tendo contribuído, ao longo de várias décadas para a formação de muitos sacerdotes ao serviço da Igreja. Entre outros serviços prestados à diocese angrense, foi Vigário Episcopal da Ilha Terceira, capelão do BI 17, do Regimento de Infantaria e do Regimento de Guarnição nº1 em Angra durante mais de três décadas, Administrador Paroquial do Posto Santo em 1997/1998, e capelão de várias casas religiosas. Actualmente, além de professor de Teologia, ocupa também o cargo de vice-chanceler da cúria diocesana.
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MAROIÇOS DE MANUEL TOMAS
Foi lançado, no passado dia 9 de Março, na vila da Madalena, na ilha do Pico, por ocasião da celebração do 290º centenário da elevação daquela localidade a concelho, o livro Maroiço da autoria do Dr Manuel Tomás da Costa. Trata-se do último trabalho deste escritor e poeta picoense, apresentado no salão solene dos Paços do Concelho, com a presença dos presidentes da Câmara, José António Soares, da Assembleia Municipal, Dr Álvaro José Alves Manito e de muito público. Trata-se de um livro de poesia, editado pela Companhia das Ilhas, sediada nas Lajes do Pico e cuja apresentação esteve a cargo do Dr Júlio Aroeira, professor da Escola Cardeal Costa Nunes e do Dr Manuel Costa Júnior, Director do Museu Regional do Pico, sendo a mesma precedida pela encenação do espectáculo cénico, “Entre a terra e o mar”, apresentado por um grupo de alunos da EBS da Madalena, sob orientação das professoras Carla Silva e Gilberta Goulart.
Natural da Madalena do Pico, Manuel Tomás fez uma boa parte da sua formação académica no Seminário de Angra, tendo dedicado toda a sua vida profissional ao serviço da educação, quer como professor, quer como dirigente de algumas escolas, sendo actualmente director da escola básica e secundária Cardeal Costa Nunes, da Madalena. Manuel Tomás faz parte da “ínclita geração” que frequentou e se formou no Seminário de Angra, na década de sessenta, sob a competência, a sabedoria, o humanismo e a dignidade de um excelente punhado de mestres que, na altura, constituíam o corpo docente daquela instituição. Manuel Tomás que, segundo as palavras do autarca madalenense, José António Soares, tem dado “ um contributo inestimável no campo da Informação, na nossa região e, sobretudo, na nossa ilha, como co-fundador do jornal: “Ilha Maior”, pelo qual foi responsável durante largos anos como Director”, iniciou a sua actividade literária em 1978 com alguns ensaios, publicou em 1996, “Miragem do Tempo” de Tomás da Rosa, em 1999, A Música das Sete Cidades e em 2011 Eu Sei Lá o Quê, o seu primeiro livro de poesia. Este ano, para além da obra agora apresentada, já publicou Picolândia, uma colecção de crónicas divulgadas ao longo de alguns anos, em jornais da região.
Telúrica, acutilante, realista mas deslumbrantemente enternecedora, a poesia de Manuel Tomás em Maroiço apresenta-nos um Pico espelhado em emoções e sentimentos, “a terra dos ilhéus” descrita “à maneira antiga” onde as cores, os sons, os perfumes e os sabores da natureza, pura, original e genuína, nos penetram, dominam e como que nos cristalizam numa simbiose ente “as pedras pedrinhas e pedregulhos” que desde os primórdios do povoamento, os nossos antepassados foram arrancando do chão pétreo, para conquistar uma “nesga de terra”. Da sua pachorrenta e sofrida arrumação formaram-se os maroiços, autênticos zigurates recheados de funchos e heras, testemunhos vivos da persistência picoense, ecos de um passado egrégio e progénie, a envolverem-nos em sensações dinâmicas, que nos enlevam em encanto e nos sublimam em deslumbramento. Ladeados por atalhos e veredas, atapetados de musgo, balizados por bardos de incenso e faia ou ornados de madressilva e poejo, erguidos nas encostas pedregosas da ilha, muitos deles, talvez, nos primórdios do povoamento da mais jovem ilha açoriana. Manuel Tomás ainda nos transporta por viagens de sonho, pelos mares que rodeiam a ilha e a separam das outras que por ali abundam, em barcos recheados de memórias, muitos deles com a história escrita nas ondas e agora a apodrecer sobre o cais. Depois, chegam as gaivotas que “já não cantam, nem voam à noite”, o mar, a espuma, “as sombras” da montanha e “o vento e o vinho destes mares verdes e sem limite”.
A encerrar a apresentação, Manuel da Costa Júnior, surpreendeu o autor e o público presente ao cantar, acompanhando-se à viola, um dos poemas do livro de Manuel Tomás - “Canção do Garajau”, com música da sua própria autoria:
“Partir na voz do vento
ouvir as asas do vento
estar e não estar
tocar no seio do vento
e ver a onda
no momento de salgar a alma
Partir na voz do vento
regressar em toada molhada
pela rocha e pelo relento
sem sotavento
sem barlavento
sempre à deriva
na amura de um fado”.
Texto colocado no Pico da Vigia em 19 de Março de 2013
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O CAMINHO PARA A PAZ
“Não existe um caminho para a paz; a paz é o caminho.”
(Mahatma Gandhi)
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ALEGREMO-NOS ENQUANTO SOMOS JOVENS
(Texto de Maria de Jesus Maciel, esposa do Emílio Porto, publicado no Semanário “O Dever”, no aniversário do seu falecimento.)
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.”
Alberto Caeiro
E todos os dias sãos seus. De uma vida simples, a comunicar, a criar, a cantar. Começo pela identidade: Manuel Emílio do Porto, filho de Manuel Pereira do Porto e de Laureana Emília Pimentel nasce na Ribeirinha, freguesia da Piedade do Pico, a 20 de Dezembro de 1935.
É pela mão de D. José Vieira Alvernaz e de seu irmão Monsenhor Manuel Alvernaz que dá entrada e faz os seus estudos no Seminário Diocesano de Angra do Heroísmo. Aluno distinto, sobretudo na disciplina de Canto e Composição, para a qual revela desde cedo particular interesse e aptidão, compôs temas musicais que lhe valeram receber o primeiro e segundo prémios, da Academia Dr. Manuel Cardoso do Couto, o primeiro prémio e menção honrosa da Academia D. Bernardo de Vasconcelos, assim como a batuta do maestro Edmundo Machado de Oliveira para a regência da Capela do Seminário.
Forma-se em Teologia em 1962, recebe as Ordens Sacras, serve a Igreja, primeiro na actividade paroquial e posteriormente como Capelão militar, em Angola, até ao final de 1975. O comandante do Batalhão em que serviu nas patentes de alferes, tenente e capitão, louvou-o pelas suas qualidades militares e morais: “oficial inteligente, de conhecimentos vastos e de uma cultura musical apreciável”, “uma alma aberta às vicissitudes e dificuldades” que muitos então viviam, recebendo “de todos o respeito, a admiração e a amizade”.
Em 1975 é eleito Vereador da Câmara Municipal das Lajes do Pico. No mesmo ano é deputado independente do Partido Socialista, desempenhando funções no Parlamento Regional nas duas primeiras legislaturas. Exerce os cargos de Secretário da Mesa da Assembleia Regional e da Comissão de Assuntos Políticos e Administrativos.
Em 1976, dispensado das Ordens, dedica-se ao ensino nas Lajes. Primeiro no Externato, depois na Escola Preparatória/Secundária, como professor de Língua Portuguesa e Educação Musical. Em 1986, fazendo parte do Conselho Directivo, e para melhor favorecer a população do concelho, cria, com outros dois colegas, o Ensino Secundário na mesma escola. Durante o percurso escolar, e para actualizar e desenvolver a sua actividade musical que exerceu até à reforma, faz o Complemento de Habilitações na Escola Superior de Setúbal. Paralelamente com a actividade lectiva vai constituindo grupos corais infantis e o grupo de cantares de professores. Organiza e ensaia Ranchos de Natal e de Reis e dá o seu contributo a outros com temas que compôs e harmonizou. Colabora no festival “Baleia de Marfim”, é premiado diversas vezes, não só nas Lajes, como nos festivais da Povoação e da Figueira da Foz, onde recebe o Prémio de Música na Gala Internacional dos Pequenos Cantores.
Cria e dirige capelas litúrgicas e grupos corais, nomeadamente na paróquia da Conceição, Angra do Heroísmo, 1962 -1964; S. Caetano (Pico), 1964-1969; Sanza Pombo (Angola), 1969-1971; Ponta Delgada, 1971-1973; em Cabinda, 1973-1975. A partir de 1976, nas Lajes, na Ribeirinha e em S. Mateus, no Santuário do Bom Jesus. Aí, cerca de duas décadas, reintroduz no ciclo festivo, não só os textos clássicos tradicionais, como o tríptico de Tomás Borba, mas sobretudo renova o canto litúrgico, em parte com temas da sua autoria.
Quando jovem, ainda na década de sessenta, (1968-1969) foi Mestre da Filarmónica Recreio dos Pastores de S. João, e mais tarde da Filarmónica Liberdade Lajense, nas Lajes. Em 1983, no centenário de Lourdes, forma o Grupo Coral das Lajes do Pico. Na sua actividade, ao longo de 28 anos, para além de diversas actuações nos Açores, no continente português e no estrangeiro, deixa parte do seu repertório registado em cinco CDs: - Música Popular Açoriana, Montanha do meu Destino, Música em tempo de festa (CD duplo: CD1 - temas de carácter tradicional e popular; CD2- temática religiosa), e por fim, dois CDs – Espírito Santo e Natal –, tendo participado ainda no CD - Os Melhores Coros Amadores da Região. Para além da composição de textos sacros, harmoniza e compõe um significativo número de temas, quer da música tradicional, quer da nova música açoriana, quer no fado: “Montanha do meu Destino”, e “ Bom Jesus Milagroso” (Oração do Peregrino). De referência ainda é a célebre harmonização das Ilhas de Bruma, bem como os arranjos corais do Hino Nacional, do Hino dos Açores e Hino do Espírito Santo, sendo da sua autoria, entre outros, a composição do Hino de Santa Cecília, Hino ao Bom Jesus, Vila Mãe (Hino às Lajes) e do Hino da Santa Casa da Misericórdia do Nordeste.
De temática diversificada é igualmente a colaboração jornalística: musical, religiosa, política, social e cultural. Colaborou nos jornais Ilha Maior e no Tribuna das Ilhas, com destaque para o Dever (Farol da Ponta) e no blog Alto dos Cedros. Nos seus artigos é um grande defensor da Ponta da Ilha. Para ele, como já fora para Nemésio, aquela é a sua “Terra Santa aproada a Sueste”. No seu Farol de afectos, deu força e visibilidade a uma Ponta esquecida, projectando sobre ela uma luz única que só uma grande afeição é capaz de prodigalizar. Para a Piedade propõe o estatuto de Vila. Para a Ribeirinha – onde quis ficar para sempre – para a sua Ribeirinha que fora elevada a freguesia quando ele fora deputado, vai o seu último acto de cidadania: uma petição dirigida ao Parlamento para que não seja extinta. Acompanha entusiasmado, participa e regista as actividades das “Semanas Comvida”, da Ribeirinha, da Piedade e da Calheta. Grande defensor das freguesias rurais, do valor histórico e do significado que elas representam na vida das populações, deixa escrito: “é um crime se alguma delas for banida do mapa”.
Publica os livros: Canções Populares Açoreanas (1994), Senhor, Levanta os Teus Olhos… (1999), O Meu Cancioneiro, (2001), 25 anos a cantar – Grupo Coral das Lajes do Pico, (2008), tendo entretanto colaborado no livro Grupos Corais e Instrumentais de Portugal, de Lauro Portugal, em 2007.
Teria D. José antevisto os seus dotes musicais, aquando da sua vinda da Índia ao Pico, em 1950? No seu olhar atento o que viu nele, naquele curto contacto que o encaminha logo para o Seminário? O que sabemos é que o jovem de então lhe ficou grato para sempre. E essa gratidão viria a manifestar-se, particularmente nos tempos difíceis vividos pelo Patriarca na Índia e no exílio que se seguiu em Angra. Em 1980, e então deputado, Emílio Porto organiza uma petição de reconhecimento pela actuação corajosa de D. José, quando as possessões portuguesas foram invadidas e anexadas à força pela União Indiana. E merecidamente, nesse mesmo ano, o Patriarca vem a receber a Grã-cruz da Ordem do Infante, das mãos do Presidente da República, Ramalho Eanes.
A música, na dimensão mais expressiva que é o canto – a voz é o instrumento musical por excelência – para a qual o pai já o iniciara em menino, será sempre a companheira predilecta da sua vida, nas celebrações religiosas e nos momentos de descontracção de entretenimento e de cultura”; a segunda preferência – a escrita – embora por muito tempo arrumada na gaveta, não é esquecida, apenas ficando no subconsciente. E quando decide dar os primeiros passos, fá-lo de forma tímida, primeiro com pseudónimos: xyz, xp.com, depois com o nome de família J. Janeiro, e por fim, com o seu próprio nome.
Para além destas preferências, regista-se também a culinária e jardinagem, entusiasmando-se na criação e cultivo de flores e árvores de fruto, vivendo sempre próximo da natureza que a sua ilha lhe oferece. Tem gosto pelas viagens, que só tardiamente tem possibilidade de fazer. Fosse qual fosse o destino, santuário, cidade ou país (Santiago de Compostela, Monserrat, Mont Saint Michel, Roma, Terra Santa, Nápoles, Capri, S. Petersburgo ou Istambul), corre atrás das novidades musicais ou de outras clássicas que em jovem apreciara e agora pode adquirir. As sementes das plantas ou árvores exóticas são a sua predilecção, que podiam estar no chão da rua, nas muralhas ou até na torre de Herodes em Jerusalém. Tudo o que é novidade quer trazer para a sua terra. É a ela que dedica um afecto forte e incondicional. E foi nela que decidiu – e gostava – de viver. Como se a Montanha fosse – e foi – o seu destino.
É agraciado com o Grau de Comendador da Ordem de Mérito pelo Presidente da República Jorge Sampaio, em 2001, e com a Insígnia Autonómica de Mérito Cívico, pela Assembleia Regional dos Açores, em 2008.
Herdeiro de um sorriso franco e divertido, de gargalhadas sonoras que escarneciam e esconjuravam as situações mais ridículas, é a educação nos valores do trabalho e do estudo que lhe foram incutidos na infância, que pautam o caminho que lhe coube percorrer, agora confinado a duas datas.
Deixa a vida, cantando, com o seu grupo coral: “Lá no cimo da Montanha”, em plena noite de ensaio, na Filarmónica Liberdade Lajense, a 11de Abril de 2012.
Na madrugada desse dia concluíra a sua “Epístola aos Estorninhos” (dirigida aos companheiros da primeira hora, e que acabaria por ser a homília da celebração litúrgica dos 150 anos do Seminário). Escrita num estilo irónico como gostava, por dar mais expressividade ao conteúdo, terminava inesperadamente em tom místico. “Acredito em Cristo Ressuscitado e no Seu Santo Espírito”. É que, apesar de dispensado das Ordens, de ter optado pelo casamento, e fê-lo duas vezes, nunca deixou de ser um homem da Igreja e um homem de Fé. Basta recordar “a unção, a doçura, a religiosidade” que os seus cânticos conferiam ao acto litúrgico. Que lutou até ao fim por uma Igreja coerente e íntegra. Finalmente, compreenderam essa linha de vida, os sacerdotes que celebraram as cerimónias exequiais. Que o fizeram em concordância com as Ordens Sagradas que recebera e com a dignidade e solenidade consentâneas ao momento e ao homem crente que ele fora.
Se ele está à vista de Deus – está a reger o Coro dos Anjos como disse, ao vê-lo partir, o amigo Artur Goulart – deve ter olhado com encanto o seu Grupo Coral. Que caído por terra com a sua morte, foi capaz de reerguer-se. E que hoje é seu Maestro o Professor Hildeberto Peixoto, o menino que outrora fora seu aluno. Que foi acompanhando a caminhada no estudo e a quem chamava afectuosamente o rapazinho da Piedade. Que a ele recorrera ainda estudante, para cantar a voz de tenor, depois para tocar órgão e sobretudo clarinete. Representando cada vez mais a esperança do tempo futuro. Ainda sem saber que esse futuro se faria presente tão depressa e inesperadamente. Por isso “Alegremo-nos enquanto somos jovens…que amanhã seremos húmus”, como nos ensinou a cantar no Gaudeamos Igitur – o Hino dos Orfeonistas.
São memórias de uma vida simples, que se foi humildemente multiplicando em modos vários, que aqui ficam como testemunho.
Apenas algumas. Por mais que dissesse ficaria sempre aquém.
Porque, na verdade, os mortos são pessoas completas.
Pico, 11 de Abril de 2013
Maria de Jesus Maciel
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HOMILÍA DO PAPA FRANCISCO NA INAUGURAÇÃO DO SEU PONTIFICADO
Queridos irmãos e irmãs!
Agradeço ao Senhor por poder celebrar esta Santa Missa de início do ministério petrino na solenidade de São José, esposo da Virgem Maria e patrono da Igreja universal: é uma coincidência densa de significado e é também o onomástico do meu venerado Predecessor: acompanhamo-lo com a oração, cheia de estima e gratidão.
Saúdo, com afecto, os Irmãos Cardeais e Bispos, os sacerdotes, os diáconos, os religiosos e as religiosas e todos os fiéis leigos. Agradeço, pela sua presença, aos Representantes das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, bem como aos representantes da comunidade judaica e de outras comunidades religiosas. Dirijo a minha cordial saudação aos Chefes de Estado e de Governo, às Delegações oficiais de tantos países do mundo e ao Corpo Diplomático.
Ouvimos ler, no Evangelho, que «José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua esposa» (Mt 1, 24). Nestas palavras, encerra-se já a missão que Deus confia a José: ser custos, guardião. Guardião de quem? De Maria e de Jesus, mas é uma guarda que depois se alarga à Igreja, como sublinhou o Beato João Paulo II: «São José, assim como cuidou com amor de Maria e se dedicou com empenho jubiloso à educação de Jesus Cristo, assim também guarda e protege o seu Corpo místico, a Igreja, da qual a Virgem Santíssima é figura e modelo» (Exort. ap. Redemptoris Custos, 1).Como realiza José esta guarda? Com discrição, com humildade, no silêncio, mas com uma presença constante e uma fidelidade total, mesmo quando não consegue entender. Desde o casamento com Maria até ao episódio de Jesus, aos doze anos, no templo de Jerusalém, acompanha com solicitude e amor cada momento. Permanece ao lado de Maria, sua esposa, tanto nos momentos serenos como nos momentos difíceis da vida, na ida a Belém para o recenseamento e nas horas ansiosas e felizes do parto; no momento dramático da fuga para o Egipto e na busca preocupada do filho no templo; e depois na vida quotidiana da casa de Nazaré, na carpintaria onde ensinou o ofício a Jesus.
Como vive José a sua vocação de guardião de Maria, de Jesus, da Igreja? Numa constante atenção a Deus, aberto aos seus sinais, disponível mais ao projecto d’Ele que ao seu. E isto mesmo é o que Deus pede a David, como ouvimos na primeira Leitura: Deus não deseja uma casa construída pelo homem, mas quer a fidelidade à sua Palavra, ao seu desígnio; e é o próprio Deus que constrói a casa, mas de pedras vivas marcadas pelo seu Espírito. E José é «guardião», porque sabe ouvir a Deus, deixa-se guiar pela sua vontade e, por isso mesmo, se mostra ainda mais sensível com as pessoas que lhe estão confiadas, sabe ler com realismo os acontecimentos, está atento àquilo que o rodeia, e toma as decisões mais sensatas. Nele, queridos amigos, vemos como se responde à vocação de Deus: com disponibilidade e prontidão; mas vemos também qual é o centro da vocação cristã: Cristo. Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação!
Entretanto a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Génesis e nos mostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis e que muitas vezes estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na intimidade, no respeito e no bem. Fundamentalmente tudo está confiado à guarda do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões dos dons de Deus!
E quando o homem falha nesta responsabilidade, quando não cuidamos da criação e dos irmãos, então encontra lugar a destruição e o coração fica ressequido. Infelizmente, em cada época da história, existem «Herodes» que tramam desígnios de morte, destroem e deturpam o rosto do homem e da mulher.
Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito económico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos «guardiões» da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para «guardar», devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida; então guardar quer dizer vigiar sobre os nossos sentimentos, o nosso coração, porque é dele que saem as boas intenções e as más: aquelas que edificam e as que destroem. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.A propósito, deixai-me acrescentar mais uma observação: cuidar, guardar requer bondade, requer ser praticado com ternura. Nos Evangelhos, São José aparece como um homem forte, corajoso, trabalhador, mas, no seu íntimo, sobressai uma grande ternura, que não é a virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da bondade, da ternura!
Hoje, juntamente com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, que inclui também um poder. É certo que Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? À tríplice pergunta de Jesus a Pedro sobre o amor, segue-se o tríplice convite: apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas. Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz; deve olhar para o serviço humilde, concreto, rico de fé, de São José e, como ele, abrir os braços para guardar todo o Povo de Deus e acolher, com afecto e ternura, a humanidade inteira, especialmente os mais pobres, os mais fracos, os mais pequeninos, aqueles que Mateus descreve no Juízo final sobre a caridade: quem tem fome, sede, é estrangeiro, está nu, doente, na prisão (cf. Mt 25, 31-46). Apenas aqueles que servem com amor capaz de proteger.
Na segunda Leitura, São Paulo fala de Abraão, que acreditou «com uma esperança, para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18). Com uma esperança, para além do que se podia esperar! Também hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança. Guardar a criação, cada homem e cada mulher, com um olhar de ternura e amor, é abrir o horizonte da esperança, é abrir um rasgo de luz no meio de tantas nuvens, é levar o calor da esperança! E, para o crente, para nós cristãos, como Abraão, como São José, a esperança que levamos tem o horizonte de Deus que nos foi aberto em Cristo, está fundada sobre a rocha que é Deus.
Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados, fazendo resplandecer a estrela da esperança: Guardemos com amor aquilo que Deus nos deu!Peço a intercessão da Virgem Maria, de São José, de São Pedro e São Paulo, de São Francisco, para que o Espírito Santo acompanhe o meu ministério, e, a todos vós, digo: rezai por mim! Amen.
Texto publicado no Pico da Vigia, em 19 de Março de 2013
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PURO
MENU 26 – “PURO”
ENTRADA
Salada de flageolets com pimentos, cebola, salsa e alho,
regada com azeite e vinagre balsâmico.
Rodelas de pepino, ao natural, barradas com creme e com nozes sobrepostas.
Massa farfelle cozida em legumes, passada com creme de queijo fresco.
PRATO
Salmão em papelote no forno, temperado com pimenta preta, alho, ervas aromáticas (alecrim, orégãos), sumo de limão e mel.
Batata cozida e flageolets regados com azeite.
Brócolos cozidos salpicados com mel e vinagre balsâmico
SOBREMESA
Pera natural e Gelatina de pêssego.
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Preparação da Entrada: Abrir a lata e lavar o feijão verde (flageolets). Misturá-los com cebola e pimentos de várias cores picados. Cozer a massa farfelle em água de legumes, secá-la e barrá-la com o creme de queijo fresco. Cortar rodelas de pepino e barrá-las com mel, sobrepondo-lhes pedacinhos de miolo de nozes.
Preparação do Prato – Cortar um bocado de alumínio e colocar sobre o mesmo a posta de salmão, temperando-a com o sal, alho, pimenta, ervas, limão e mel. Embrulhar o papelote de alumínio e levá-lo ao forno dentro de um tabuleiro por sensivelmente 15/20 minutos.
Acompanhar com brócolos, feijão verde e batata branca. Temperar com azeite, vinagre balsâmico e o mel.
Preparação da Sobremesa - Confecção tradicional.
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O REGRESSO DO COLCHÃO
Depois dos acontecimentos políticos dos últimos dias e dos pertinentes comentários que se ouvem e lêem começa a parecer-me, o que há muito vinha cuidando, que isto está mesmo muito mau, diria, péssimo. Como dizia a minha avó “não há ponta por onde se lhe pegue.
Após as decisões do Tribunal Constitucional, elogiadas por uns e condenadas por outros, muitos comentadores políticos e alguns “paineleiros” de programas televisivos e das rádios, assim como um ou outro político, começaram a jurar “a pés juntos” que só nos restam três alternativas, cada uma delas mais dramática do que a outra: ou o Governo arranja, à “queima-roupa” um plano B que, pelos vistos nunca teve mas deveria ter tido, ou o mesmo Governo demite-se ou é demitido e é colocado como chefe de um novo governo um “tresloucado” qualquer, por nomeação ou através de eleições legislativas intercalares, ou caímos todos num buraco sem fundo, que desde há muito andámos a escavar.
Parece-me, no entanto, que quer se verifique a primeira ou a segunda destas hipóteses, porque no caso da terceira tudo é muito mais linear, corremos sérios riscos de a famigerada “Troika”, nos fazer algo semelhante ou ainda pior do que aquilo que, há uns meses, fez em Chipre: “gamar-nos” 50% de todos os depósitos e contas bancárias superiores a dez mil euros. Perante tal, embora apenas hipotético, descalabro, parece que há quem ande já - se é que ainda seja possível – a poupar uns troquitos e, à semelhança dos nossos avoengos, embora estes por outras razões, os ir guardando debaixo do colchão.
Texto publicado no Pico da Vigia em 6 de Junho de 2013