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APANHAR O MILHO (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)

Quinta-feira, 09.01.14

Quinta-feira, 18 de Setembro de 1946

“Está a aproximar-se o tempo de apanhar o milho. Pelo menos o que foi semeado nas terras e serrados junto do mar, que nas outras ainda nem sequer foi desfolhado. Antigamente, quando eu era criança, esta época era uma altura de grande festa e alegria, uma época do ano muito agradável e muito bonita, não só a apanhar o milho, mas também e, sobretudo, o encambulhá-lo e descascar as maçarocas mais verdoengas, o pendurar os cambulhões de milho nos estaleiros ou ainda moer, nos moinhos de mão, as maçarocas que, como se dizia, ainda vertiam e cuja farinha servia para fazer as papas saborosas papas grossas. Ainda hoje a minha Maria as faz e são uma delícia. Pena serem feitas apenas por esta altura do ano.

Os dias de apanhar o milho, antigamente, eram autênticos e verdadeiros dias de trabalho mas também de festa, em casa da maioria dos lavradores. Quando as maçarocas já estavam bem maduros, marcava-se o dia da apanha, para não coincidir com os marcados pelos amigos e familiares, pois todos se ajudavam uns aos outros. Depois procedia-se à apanha das maçarocas, retirando-as dos milheiros e enchendo-as em cestos bem “acaculados”, que depois eram colocados sobre as paredes e, posteriormente acarretado para os corsões puxados pelas vacas. Esse dia era um dia de festa e um dia muito especial. Homens, mulheres e crianças, todos se dedicavam à apanha das maçarocas, ao encher dos cestos e carregá-los às costas para os corsões. Estes eram forrados no fundo com milheiros da própria terra e era-lhes colocado ao redor uma sebe feita de vimes. Uma vez cheios, os corsões eram conduzidos a casa e o milho despejado na cozinha ou na sala. Como geralmente vinha muita gente de fora ajudar, a dona da casa mais uma ou outra mulher ficavam em casa a fazer o jantar que nesse dia era melhorado, e, às vezes, depois de preparado era levado até ao cerrado onde se colhia o milho e as pessoas estavam a trabalhar.

 Era da parte da tarde que geralmente se começava a encambulhar e a descascar as maçarocas, a não ser que o cerrado fosse muito grande ou o dono decidisse apanhar o milho de duas ou mais terras no mesmo dia. Neste caso, aproveitava-se o serão, o que tinha a vantagem de ter muita mais gente a ajudar. Esses serões ainda tornavam a festa ainda mais animada. Cantava-se e geralmente serviam-se uns biscoitinhos com genebra ou aguardente de cinco estrelas. Quando o milho era encambulhado de noite, para o pendurar no estaleiro acendiam-se lanternas e era também muito divertido. Mas muitos não gostavam de pendurar o milho de noite, pois diziam que “o que se faz de noite aparece mal de dia”. Penduravam-no dia seguinte.

Uma parte do milho era descascado, fazendo-se com ele também cambulhões que eram dependuradas geralmente nos tirantes dos quartos de dormir, da sala ou da cozinha para aí se conservarem melhor e até secarem. As maçarocas mais verdoengas descascavam-se, debulhavam-se para depois se moerem os grãos nos moinhos de mão e fazer as papas grossas.

No meu tempo ainda havia muitos lavradores que semeavam e cultivavam o trigo e, por isso não tinham milho ou se o tinham era em pequena quantidade.”

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publicado por picodavigia2 às 09:47

O JOSÉ AUGUSTO

Quinta-feira, 09.01.14

O José Augusto ou o “José Augusto do Francisco Inácio”, como era vulgarmente conhecido na Fajã Grande, foi, durante um ou dois anos, meu colega de escola, na altura a funcionar na Rua Direita, na Casa do Espírito Santo de Baixo. Mais velho uns anos do que eu, frequentámos o ensino primário em classes diferentes mas, como partilhávamos todos a mesma sala, que neste caso era uma casa, era-nos proporcionada a nós, os mais novos, a oportunidade não apenas de brincar, confraternizar e conviver com os mais velhos mas até de apreciar as suas capacidades de aprendizagem e de observar a performance dos seus percursos escolares e a excelência dos resultados que obtinham. O José Augusto era um aluno muito inteligente, brilhante e aplicado, um dos melhores da escola, aliando à excelência das suas qualidades intelectuais uma bondade excessiva, uma camaradagem contínua e uma amizade abrangente. Era amigo de todos e, alem disso, carinhoso, atento e solidário para com os mais novos.

Fora da escola, sobretudo nas tardes de domingo e dias feriados, tinha também a oportunidade de me juntar e brincar com ele e com muitos outros, uns da minha idade, outros um pouco mais velhos, pela canada do Pico, ao “Pai Velho”, no pátio da Casa do Espírito Santo de Cima ao “Burrinho do Lamé”, na rua Direita à “Pesca à Baleia”, no Outeiro ao “Velhas às Escondidas”, de participar em lutas à pedrada, no Vale do Linho, contra os da Ponta, de tomar banho no Caneiro do Porto, onde aprendíamos a nadar ou ainda de colaborarmos na construção de alguns brinquedos com que nos divertíamos, nomeadamente as célebres “Músicas de Cana”, em cuja construção ele era exímio. Morava na Assomada, numa casa geminada com a do Cabral e era sempre o primeiro, nos domingos entre a Páscoa e o Pentecostes, durante os quais as coroas de Espírito Santo iam à missa, a colocar no seu pátio um altíssimo mastro, onde hasteava uma enorme bandeira branca com o símbolo do Paráclito. Muitos outros, incluindo eu, seguíamos-lhe o exemplo e a maioria das casas da freguesia ornamentavam-se com bandeiras, umas brancas, outras vermelhas, enquanto os foliões da Cuada, acompanhando a coroa e a bandeira, enchiam a Assomada com os seus cânticos: “Ó venha, hoje venha, Senhor venha…” Sobrinho de meu tio Cristiano, por parte da mãe que era irmã da minha tia, encontrava-me também com ele, muitas vezes, em casa do meu tio. Por tudo isso, o José Augusto estabeleceu sempre comigo e talvez ainda mais com meu irmão António, cujas idades eram mais próximas, grande amizade e cumplicidade em termos de jogos e brincadeiras.

O José Augusto cresceu, tornou-se homem, agricultor, pescador, jogador de Futebol do Atlético Clube Fajãgrandense, músico da Filarmónica Senhor da Saúde e cantor a Capela da Paróquia, dedicando-se, ainda, a muitas outras actividades. Finalmente casou e passou a viver, ali à Praça, na casa que outrora fora do seu Tio Antonino. Homem honesto e trabalhador, cidadão honrado e digno, membro activo e participante quer nas vivências quer nas actividades da freguesia e da paróquia, o José Augusto emergiu como uma das importantes figuras da Fajã Grande, contribuindo significativamente para o seu crescimento e desenvolvimento, nas décadas posteriores aos anos cinquenta, em que o conheci e com ele convivi, enquanto criança.

Infelizmente o infortúnio, feroz, violento, fulminante e cruel, havia de o atingir. O José Augusto, ainda muito novo, faleceu vítima de um acidente marítimo, quando se encontrava, juntamente com um familiar, a apanhar lapas no Monchique.

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publicado por picodavigia2 às 09:31

BALEIA VIRTUAL

Quinta-feira, 09.01.14

Tarde sombria de Agosto. Homens nas lides dos campos a lavrar, a sachar, a ceifar que a tarde não era de grandes calmarias. Mulheres atafulhadas nas tarefas caseiras, a lavar, a limpar, a amassar e a cozer o pão que era sexta-feira. A rua Direita quase deserta. Quatro crianças preparam uma das suas brincadeiras favoritas – a pesca à baleia, - decalcando nos seus folguedos inócuos e fantasistas, as aventuras, as fadigas e os trabalhos estampados no quotidiano dos adultos. Antes haviam-se deslocado ao Outeiro, na mira de cortar algumas canas, com que construiriam um bote. Primeiro, com fios de espadana, amarraram as duas maiores, uma à outra, em ambas as extremidades. De seguida, cortando as restantes em tiras com tamanhos diferentes mas decrescentemente equiparados em pares, com excepção da maior que era única, e com as extremidades escanadas em bicos côncavos, de forma a encaixarem nas duas primeiras, alargando-as, e dando-lhes uma forma elíptica, a simular a superfície superior do tampo de um bote de baleia. Tudo preparado! Três miúdos ocupam o barco: o mestre à ré, um marinheiro a meio e o trancador à proa. O quarto elemento, o Rodrigues, subindo e encavalitando-se no cimo do chafariz, ali à entrada da Casa de Espírito Santo de Cima, com as mãos fechadas e colocadas nos olhos, a deixar no meio um pequeno orifício, finge segurar uns binóculos, com os quais vigia toda a rua, na mira de descortinar baleia. De repente, avista uma e, simulando com as mãos segurar uma bomba, atira para os ares um jacinto que viera do Outeiro, junto com as canas:

- Fexxt! Puum!

O Câncio, o Júlio e o Greves – os três do bote - sentados na soleira duma das portas da loja do Padre Pimentel, à espera do sinal, iniciam uma tresloucada corrida na direcção da casa de Espírito Santo, onde o adro virara porto, ao mesmo tempo que gritavam:

- Baleia! Baleia! Baleia à vista!

- Vamos arriar! Bote para a água! – Anunciam o Júlio e o Greves, saltando para dentro da embarcação que ali estava varada, aguardando a hora da safra.

Enquanto isto, o Rodrigues, num ápice, abandona a vigia e vem fazer de baleia. É que o número de compinchas era muito reduzido e não se podiam dar ao luxo de manter um elemento do grupo sem fazer nada, sentado lá no alto do chafariz. Depois de encher a boca de água numa das torneiras, desata a correr e vai pôr-se de cócoras, no meio da rua Direita. De vez em quando levanta-se e lança rapidamente jactos de água para o ar, ajoujando-se de imediato, evitando ser arpoado. Era a baleia a profundar nas águas escuras do oceano! Depois, sempre à socapa, repete a cena: boca a abarrotar de água e esguichos convulsivos para o ar. Nova fuga ao arpão…

Os outros, em pé, a segurar as canas, remam e movimentam, velozmente, o bote, na perseguição do cetáceo, na mira, duma baleia virtual.

- Vira-me esse esparrel p´ra direita, mestre. Ali há baleia! – Grita o Júlio para o Câncio que logo acrescenta:

- Já está na direcção! Atira-lhe, agora!

De repente o cetáceo vem à tona, lançando um último esguicho para os ares. Secara-se-lhe a boca… e a torneira ali bem perto. O Greves, atirando o arpão, também ele de cana e amarrado ao bote com fios de espadana entrelaçados uns nos outros, tenta atingir a baleia, mas falha… Nesse momento, atravessando a rua em grande correria, um amigo dos quatro, o Álvaro, em tom de gozo:

- Atira-lhe Greves, atira-lhe, mas nunca lhe acertas. Eu cá é que sou um bom trancador! Nunca falho uma.

O Rodrigues tenta suspender a brincadeira:

- Parem, parem. Agora não vale – e dirigindo-se ao Álvaro - Ó Álvaro, anda brincar connosco. Vem fazer de baleia! Não aguento sozinho a fazer de baleia. – Depois, apontando para o Greves em tom recriminatório: - Ele está sempre a perseguir-me e apanha-me logo. Não consigo vir acima d´água, uma vez que seja, que ele atira-me logo o arpão. Com duas baleias é mais fácil não ser apanhado.

- Hoje, não posso, hoje não posso. – Repetia o Álvaro, esquivando-se. Logo o Júlio em tom de gozo:

- Olha o medricas, vai p’ra casa da avó, p’ra baixo das saias das titias…. Áh! Áh! Áh!

E o Greves, pondo mais água na fervura:

- Olhem! E traz os chinelos. O chinelinho hoje vem de chinelos.

- Vocês falam, falam, mas é “roídos de inveja”. Se soubessem p´ronde eu vou!? Vou para Ponta Delgada e de barco, num barco a sério.

O Júlio ainda acrescentou:

- Vais… Vais… Vais mas é tratar das galinhas da avó…

Foi o Rodrigues que pôs termo às suspeitas;

- Eh pá. Olha que ele vai calçado e com a roupa de domingo. Se calhar é mesmo verdade.

- Pois fiquem sabendo que vou a Ponta Delgada, e vou de barco. Mas num barco a sério. É no S. Pedro, que já está no Cais, à minha espera. Adeus que não posso demorar-me mais.

- Vamos continuar a brincar, - concluía o Câncio. - Com ele não podemos contar hoje. Olhem, vem ali o Chapinha. É do melhor que há para baleia.

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publicado por picodavigia2 às 08:34

O ALQUEIRE, A RASOIRA E A QUARTA

Quarta-feira, 08.01.14

Na Fajã Grande, como naturalmente em todas as outras localidades rurais açorianas, os habitantes de outros tempos, desconheciam os sofisticados e modernos meios de peso e de medição, mas tinham necessidade de avaliar e de quantificar os produtos agrícolas que cultivavam e recolhiam nos seus campos, nomeadamente, o trigo, o milho, as favas e o feijão. É que até as simples trocas de um produto por outro, a que muito naturalmente tinham que se sujeitar numa sociedade rural com características ancestrais, exigiam instrumentos de medição fiáveis e critérios de medida rigorosos. Uns e outros foram criados pelo próprio povo de cada localidade, em função das necessidades que sentiam e dos meios de que dispunham. Por isso mesmo, embora com nomes, nuns lugares semelhantes noutros diferentes, foram surgindo, através dos tempos, os pesos, as medidas e os próprios instrumentos de medição, ao mesmo tempo que se iam definindo e delineando os critérios que deviam presidir à sua regulamentação consuetudinária.

Assim, na Fajã Grande, nos anos cinquenta, existiam e eram utilizados três instrumentos de medir os cereais e outros produtos agrícolas: o alqueire, a rasoira e a quarta.

O Alqueire, segundo rezam as crónicas, teria à volta de 10 a 12 quilos e, na Fajã Grande correspondia ao valor de um dia de trabalho corrente e que, na época, rondava os dezasseis escudos. Vendia-se ao alqueire sobretudo o milho, uma vez que, nos anos cinquenta, este era o único cereal produzido em grandes quantidades.

Para os outros cereais produzidos em menor escala, nomeadamente o trigo, assim como para outros produtos, como o feijão, as favas, o tremoço e até para o milho quando se pretendiam medir pequenas quantidades, utilizava-se a rasoira e a quarta.

A rasoira era um instrumento de madeira em forma de caixa, e que levava aproximadamente metade do alqueire, enquanto a quarta, também de madeira e com a mesma forma da rasoira mas muito mais pequena, levava, como o próprio nome indica, uma quarta parte daquela.

No entanto, na Fajã Grande, nas Flores e nas outras ilhas dos Açores, além de alqueire como medida de capacidade, existia um outro “alqueire”, como medida de superfície e que era utilizado nas medições de terrenos agrícolas ou até pastagens e quintas ou terras de mato, para inventário do património dos respectivos proprietários, quer na compra e venda de propriedade quer ainda para cálculos de foros, adubações, sementeiras e colheitas ou ainda nas partilhas. Um alqueire de terra correspondia a cerca de 1000 metros quadrados.

Tudo indica que a base histórica destas medidas venha desde o povoamento das ilhas. É natural que os primeiros povoadores dos Açores não possuíssem grandes aparelhos ou utensílios de medições, sendo que a medida padrão mais ancestral terá sido o próprio palmo, pese embora tivesse a inconveniência de não ser igual em todos os agentes de medida.

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publicado por picodavigia2 às 18:03

A LENDA DA CAVEIRA

Quarta-feira, 08.01.14

A Caveira é uma das onze freguesias da ilha das Flores. Pertence ao concelho de Santa Cruz, tem uma área de 3,29 e, de acordo com o Censos 2011, tem apenas 77 habitantes, sendo a mais pequena freguesia da ilha no que respeita à área que ocupa e, também, uma das menores, em termos de população. A Caveira, situada no extremo sul do concelho de Santa Cruz das Flores, dista desta vila apenas de 5 quilómetros, ficando pois nos seus subúrbios e ergue-se sobre uma alta lomba que se estende e prolonga entre a Ribeira da Cruz e a Ribeira da Silva, separando-a, esta ribeira, da freguesia da Lomba e do concelho das Lajes. O alto sobre o qual assenta a freguesia prolonga-se para o mar, formando um alcantilado promontório, rodeado por falésias basálticas, denominado Ponta da Caveira. É ali que tem lugar um vale, com um miradouro lá do alto e do interior da ilha, donde se pode desfrutar de uma das mais belas paisagens da ilha e dos Açores – o vale da Ribeira da Cruz. A paróquia católica da Caveira, pertencente à Diocese de Angra, tem como orago, actualmente, Nossa Senhora do Livramento, embora oficialmente nunca tenha obtido autorização canónica para abandonar o primitivo orago que eram as Benditas Almas. Considerou, em tempos, a igreja açoriana que, uma vez que as Almas do Purgatório, ainda não eram “santas”, não podiam ter o estatuto nem figurar como padroeiras de ninguém, nem de coisa nenhuma.

O estranho nome desta freguesia e o próprio orago tem a sua origem numa antiga lenda, conhecida por “A Lenda da Caveira”. Segundo esta lenda, antigamente, nos tempos em que as embarcações passavam ao largo das Flores, rumo às Américas ou vindas de lá, carregadas de riqueza, por vezes, eram atacadas por piratas ou assoladas por tempestades, após as quais quase ninguém nem nada se salvava.

Durante uma dessas tragédias, no entanto, salvou-se e arribou à ilha, um náufrago. Vinha todo molhado da água salgada, cheio de fome e de frio e foi ter a um lugar bastante acidentado e ventoso, do lado nordeste da ilha, precisamente onde hoje se situa a freguesia da Caveira e onde as pessoas lhe deram comida, roupa e amizade. Esse homem, chamado Demétrio, começou a gostar da vida no pequeno lugarejo, casou e ali se estabeleceu para sempre.

 Como homem bom que era, tornou-se muito querido das gentes do lugar. Mas, apesar de ser cristão, tinha ideias que alguns consideravam heréticas. Dizia que as orações pelos defuntos não tinham qualquer sentido ou valor e negava a existência do Purgatório e do Inferno. Acreditava que a alma humana reside no sangue e que, no momento da morte, esta se separa do corpo sob a forma de ave, a qual pousa numa planta próxima, até que o corpo seja queimado ou comido pela terra. Acreditava também que essa ave cantava enquanto o homem morria, facilitando-lhe a entrada no sono eterno.

 Com esta crença viveu Demétrio, nela educou os filhos e, embora os vizinhos não acreditassem no mesmo, não deixou de viver em sã convivência com eles, sendo muito estimado e considerado por todos,

 Passaram os anos e um dia, Demétrio, já idoso, adoeceu e, passado algum tempo, morreu. Nesse mesmo momento uma lavandeira levantou voo e foi pousar sobre a faia mais próxima, mas não se ouviu o canto facilitador da entrada da alma de Demétrio no sono eterno, enquanto era sepultado no cimo do monte.

 A mulher, que tinha sido influenciada na sua fé pelo marido, apercebeu-se do sucedido e ficou perturbada por a ave não ter cantado durante o enterro de Demétrio, mas nada disse.

 Passado algum tempo, durante a noite, começou a aparecer sobre a colina uma caveira com uma luz interior. A gente, que morava ali, sentia-se aterrada com a visão e soube-se então que era a caveira de Demétrio, cuja alma vinha pedir orações para ser recebida no Purgatório.

Alguém encarregou-se de mandar rezar missas e de oferecer terços por intercessão do bom, mas herético Demétrio e, passado pouco tempo, uma mansinha lavandeira cantou sobre a faia e a caveira desapareceu.

 No alto e pedregoso lugar a família e os vizinhos construíram um nicho dentro do qual fizeram um painel representando a caveira.

 O nome ficou na mente das pessoas e aquela lugar da ilha das Flores passou a chamar-se Caveira, nome, mais tarde dado também à freguesia que ali se formou e que ainda hoje se mantém, sendo as suas padroeiras de origem, as Benditas Almas do Purgatório.

 

 Fonte – Ângela Furtado Brum, Lendas e outras histórias dos Açores

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publicado por picodavigia2 às 14:24

O BALEEIRO PERDIDO (DIÁRIO DE TI ANTONHO)

Quarta-feira, 08.01.14

24 de Junho de 1946

 

Contavam os antigos, que certo dia, aqui na Fajã, depois do vigia, de lá de cima do Pico, atirar o foguete anunciador de que havia sido descoberta baleia, os homens que andavam na sua faina agrícola diária, de repente, uns largaram o sacho mesmo ali no lugar em que se encontravam, alguns atiraram a foice com que ceifavam fetos e cana roca para um canto, outros abandonaram os animais que andavam a tratar e todos, vindos dos campos de perto ou das terras de longe, correram para o Porto Velho, onde estavam varados os botes baleeiros e em cujo boqueirão estava a lancha que os rebocava. As mulheres, aflitas e espavoridas, corriam para casa a fim de lhes prepararem uma dentada de comida acompanhada com café que os seus homens levassem para o mar e com que se alimentariam o dia inteiro. Depois de tudo preparado lançavam-se também em louca correria na direcção do mar, com a intenção de chegarem antes que partissem. Os homens, sobretudo os mais lestos e que haviam chegado primeiro, arriaram os botes à pressa e, juntando-se aos atrasados, remavam afoitamente, iniciando uma marcha lenta pelo mar fora, enquanto as mulheres de cima dos rochedos do baixio lhes iam atirando os sacos de pão de milho ou bolo, com queijo, linguiça, inhames e peixe frito, uma garrafa com café e num caso ou outro, de sumo ou de vinho. A lancha, esperando pelas sacolas de comida mais atrasadas, iniciava também a sua marcha, aproximando-se dos botes e lá os ia rebocando pelo mar fora, até desaparecerem no horizonte. As mulheres regressavam a casa a abafar suspiros e a avantajar desejos. Os botes, no mar alto, navegando à vela algum tempo, no alto mar para não assustar os cetáceos, avistaram por fim uma gigantesca baleia, que se fosse apanhado daria para cima de cem barris de óleo, despertando assim ainda mais a fúria desesperadora dos baleeiros. Era uma pechincha que não se podia desperdiçar de forma alguma.

Como todos a queriam caçar, gerou-se grande reboliço entre os botes. Apanhar uma baleia daquele tamanho era um acto heróico. Desceram as velas, enrolaram-nas nos mastros e começaram a remar na ânsia de caçar o enorme cetáceo que, pouco depois, como que amedrontado, voltou a mergulhar para aparecer uns bons metros mais fora, lançando para o ar enormes jactos de água que enchiam o mar de ondas e espuma. Um dos botes conseguiu aproximar.se e pôr-se em posição mais vantajosa para atirar. Sob as ordens dooficiale, o trancador, curvando o corpo e fixando o olhar naquela enorme mancha negra, atirou o arpão certeiro ao sítio mais adequado. A alegria enorme mas a confusão ainda foi maior. A baleia, ferida e louca de dor, num instante levou a primeira celha de linha, e depois a segunda. Só que antes da ponta da linha sair da celha, o trancador, apesar de forte e robusto, agarrou-a a amarrou-a ao tronco. Mas de repente, sem que ninguém esperasse, caiu que nem um melro. Preso na linha, num ápice foi arrastado pela borda do bote e engolido pelo mar, enquanto os companheiros ficavam atónitos, aflitos, enterrados num silêncio de morte. Só o oficial dizia: "Não! Não!"

O gasolina passou a triste notícia aos restantes botes e toda a tarde procuraram com tristeza o pobre baleeiro desaparecido. Exaustos, desolados, com uma tristeza de morte a tolher-lhes o rosto, não podendo fazer nada, voltaram, já noite alta para terra.

 A chegada ao Porto Velho foi de grande tristeza e consternação. Todos os baleeiros se abraçavam aos seus e choravam amargamente. Um silêncio profundo enegrecia ainda mais o porto. A família vestiu-se de luto e toda a santa noite as vizinhas choraram e carpiram de dor enquanto os homens contavam em voz baixa, como tudo se tinha passado.

No dia seguinte ainda saíram alguns botes à procura, por descargo de consciência, do corpo do trancador para que lhe dessem enterro digno. Depois de muito andarem, começaram a avistar, ao longe, um negrume no mar e foram para lá. Qual o seu espanto quando avistaram, sobre a grande baleia, já morta, o baleeiro, de pé, encostado ao cabo do arpão fincado no toucinho do animal. Como se nada tivesse acontecido disse para os colegas por quem esperara toda a noite:

 " Só agora é que vocês chegam? Tenho estado aqui toda a noite à vossa espera!". De seguida, perante o pasmo dos outros, saltou para o bote, como se nada fosse. E foi ele que prendeu a baleia ao gasolina para a rebocar para o porto de santa Cruz, porque os outros de tanto medo e pânico que tinham, não foram capazes de o fazer.

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publicado por picodavigia2 às 10:21

O SACRISTÃO QUE NÃO QUIS APRENDER A LER NEM ESCREVER

Quarta-feira, 08.01.14

Conta-se que numa certa igreja, duma pequena e pobre paróquia, havia um sacristão que não sabia ler nem escrever. Quando faleceu o velho bispo que governava a diocese a que a paróquia pertencia, foi nomeado, para o substituir, um prelado muito novo que trazia consigo ideias modernas, com as quais pretendia renovar a sua diocese. Algum tempo depois de tomar posse, entre várias leis que tinha em mente e elaborou, publicou uma, segunda a qual todos os fiéis que trabalhavam no serviço da diocese, incluindo os sacristães, deviam aprender a ler e a escrever. Pretendia assim, Sua Excelência Reverendíssima, combater o analfabetismo na sua diocese, começando pelos seus funcionários.

O sacristão da tal igrejinha é que não esteve nos ajustes, recusando-se a frequentar a escola e a aprender a ler e a escrever. Como a lei era clara e não contemplava excepções, o sacristão foi despedido, caindo no desemprego.

Como não tinha que fazer passava os seus dias à Praça junto com outros homens, muitos deles em condições semelhantes à sua. Quase todos fumavam mas nem todos tinham cigarros, pedindo-os uns aos outros ou indo comprá-los aqui ou além. Lembrou-se o homem que podia muito bem comprá-los e, depois, vendê-los ali, à Praça, ganhando assim algum dinheiro. Se bem o pensou melhor o fez, verificando que, passado algum tempo, a coisa resultara, pois já tinha ganho algum dinheiro. Como os lucros aumentavam de dia para dia, a ponto de o homem já não poder atender a todas as encomendas de cigarros, ali, à Praça, decidiu-se por comprar uma loja e montar uma tabacaria. O negócio floresceu, o homem comprou mais uma tabacaria, depois outra e muitas outras até que enriqueceu.

Resolveu então ir depositar o dinheiro que ganhara num banco. O gerente recebeu-o e, quando lhe pediu para assinar os documentos, o homem disse-lhe que não sabia ler nem escrever, nem sequer assinar o seu nome. O gerente, muito admirado, interrogou-o:

- Como é que você, não sabendo ler nem escrever, conseguiu tão grande fortuna?

O homem pediu ao gerente que, juntamente com ele, se aproximassem duma janela, Depois, apontando para uma igrejinha que se via lá, muito ao longe, disse-lhe:

- Está a ver aquela igrejinha, lá ao fundo? Pois se eu soubesse ler e escrever ainda hoje estava lá de sacristão.

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publicado por picodavigia2 às 00:06

ESTRANHA DECISÃO

Terça-feira, 07.01.14

Desde há muito que o Libório não se conformava com a sua sorte. Viver ali, naquela terra pobre e sem futuro, agarrado à rabiça do arado, de enxada em punho, ou a acarretar molhos e cestos às costas, não era para ele. Por isso é que não se conformava e não lhe saía da cabeça a ideia de que um dia havia de mudar de vida. Esse dia não tardou.

Na feira de um de Março, a que deslocara para vender dois bácoros, encontrou um amigalhaço do tempo da tropa que havia emigrado para a França e agora estava em Portugal a passar uns dias. Conversa daqui, conversa dacolá e o sonho de abandonar a vida agrícola, para o Libório, tornou-se mais real do que nunca. A vida em Portugal não melhorava, o país não progredia e a agravar a situação o regime de então acabara de iniciar uma guerra em Angola. Dizia-se que também seriam mobilizados os que tinham feito tropa nos últimos anos, mesmo já tendo passado à disponibilidade. Como se encontrava nessa situação, temia que o azar lhe batesse à porta e ainda fosse bater com os costados em Angola. Assim, emigrar para França transformou-se numa decisão irreversível.

A mulher nem queria acreditar e atirava-lhe à cara com inúmeras dificuldades, repetindo constantemente:

- Tu endoideceste por completo, homem de Deus!

Não, não endoidecera. Afinal já estava tudo planeado. É verdade que não tinha quem lhe fizesse carta chamada, mas iria como muitos outros tinham ido – clandestino. A diferença é que ela e os pequenos também iam, apesar dos passadores não quererem levar mulheres, nem muito menos crianças. É que a fuga era muito perigosa.

Foi um tipo de Macedo de Cavaleiros que o contactou através de um primo de Senande, para acertar tudo. Era preciso que ninguém soubesse ou desconfiasse de nada. E foi lá, em Senande, em casa do primo, que encontrou o homem. Álvaro Ramalho, assim se chamava o contrabandista, no início recusou levar a mulher e as crianças. Aos poucos foi cedendo. Era uma questão de preço. Mas garantiu-lhe que era sério e honrava os compromissos. O que se combinasse ali seria escrupulosamente cumprido. Oitenta contos: trinta por cada um dos adultos e vinte pelas crianças mas estas, sempre que seguissem de carro ou camioneta, seriam levadas ao colo. Claro que tudo o que lhes acontecesse era da responsabilidade dos pais.

O Libório regressou sem firmar contrato. O preço era altíssimo. Era-lhe de todo impossível arranjar aquele dinheiro. Um segundo encontro e o Ramalho cedeu:

- Vinte mil em notas e quarenta em bens. Aceitamos casas, terras… Mas temos que ser nós a avaliar os bens – sentenciou o homem, apertando-lhe a mão – e tens emprego garantido em Clermont-Ferrand. Ao chegares lá um tipo chamado Cardoso vai procurar-te, vai arranjar-te trabalho e dizer-te como deves pagar o restante. Não devem levar muita bagagem. Para além de ser comprometedor é impossível transportá-la. Levem apenas o indispensável.

A mulher, ocultou a decisão às crianças, mas teve muitas dificuldades em aceitar.

- Vais vender a casa e o campo!? E se temos que voltar para trás? O que vai ser de nós e dos pequenos? Nem ao menos posso avisar meus pais? – Perguntava ansiosa.

- De forma nenhuma. Ninguém, absolutamente ninguém pode saber, a não ser o primo de Senande. E não te esqueças que aos pequenos e a quem te preguntar para onde vais, deves dizer que vamos às Caldas, a casa dos teus pais.

- E o Lavrado? E a cabra? E as galinhas e o porco?

- O boi já está vendido. A casa e o campo ficam ao cuidado de meu primo. Só depois de receber a notícia de que já estamos seguros e em França ele venderá o que puder e fará a entrega da casa e do campo ao passador.

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publicado por picodavigia2 às 23:23

QUADRAGÉSIMO ANIVERSÁRIO DA CASA DO POVO DE SÃO CAETANO DO PICO

Terça-feira, 07.01.14

Decorriam os primeiros meses do longínquo ano de 1972, vivia-se o conturbado terceiro quartel do século XX, quando o responsável da Segurança Social no, então, Distrito da Horta, demandou a freguesia de São Caetano, depois de antes ter parado na de São Mateus. De seguida, havia de procurar paragens em muitas outras freguesias e lugares da ilha do Pico.

O objectivo da sua visita era claro e preciso: o Governo Português da altura, liderado pelo professor Marcelo Caetano, pretendia criar algumas Casas do Povo na ilha do Pico, de forma a se abrangerem-se todas as freguesias, a fim de que toda a população rural passasse a usufruir de alguns benefícios e regalias, até essa altura, apenas atribuídos aos trabalhadores do comércio e serviços. Para a parte sul da ilha, localizada entre a Candelária e o Mistério de São João, seria criada uma Casa do Povo, com sede na freguesia de São Mateus, abrangendo esta freguesia e a de São Caetano. Tudo estava decidido, delineado e definido, superiormente, incluindo os membros da direcção, da assembleia geral e do conselho fiscal, pese embora alguns deles, nomeadamente os pertencentes à freguesia de São Caetano e ao lugar da Terra do Pão, disso não tivessem nenhum conhecimento.

Algumas das pessoas contactadas, no entanto, recusaram, de imediato, fazer parte desses órgãos, enquanto outras desistiram, acabando o projecto por abortar, alguns dias depois. Distúrbios verificados noutras paragens, haviam criado alguma apreensão e até medo, nos espíritos menos aventureiros e audazes.

Mas a ideia de se criar uma Casa do Povo em São Caetano não feneceu. Pelo contrário foi criando raízes, crescendo, tornando-se objecto de conversas entre um grupo restrito de habitantes da freguesia que, aos poucos, foi divulgando os seus intentos, realizando reuniões de esclarecimento no Salão da Casa do Espírito Santo e até na igreja paroquial. Aos poucos a maioria da população foi aderindo à ideia. A Casa do Povo iria, por um lado, solucionar um dos problemas mais graves da população: a falta de assistência médica e medicamentosa e, por outro, proporcionaria aos mais pobres e a os mais desamparados e, por conseguinte, à maioria da população, que beneficiasse de reformas, abonos de família, subsídios de nascimento, casamento e até de morte. 

Como os estatutos das Casas do Povo, em alternativa a imposição governativa inicialmente proposta, previam que o povo de uma localidade pudesse democraticamente, solicitar a respectiva criação, um grupo, constituído por Manuel Goulart, Manuel Celestino, Fernando Marques, Manuel de Tialuzia, Manuel Azevedo, João Melo, Manuel Ferreira e outros decidiram solicitar, directamente, ao Governo a criação da Casa do Povo, integrando a maioria deles a comissão instaladora. Toda a documentação necessária foi devidamente preparada e enviada para o governo central.

O processo, sobretudo devido aos obstáculos criados noutras freguesias da ilha, foi célere, sendo a criação da Casa de Povo de São Caetano, anunciada por o telegrama enviado pelo Ministério da Segurança Social, recebido com enorme regozijo e incontida alegria, em São Caetano, no dia 7 de Agosto de 1972, precisamente no dia liturgicamente dedicado a São Caetano, embora nesse tempo a festa em louvor do mesmo fosse celebrada a 15 de Agosto, conjuntamente com a da Senhora da Assunção.

Uma vez criada e aprovados os estatutos e os corpos directivos, a Casa do Povo de São Caetano, começou a funcionar de imediato, no edifício que o Manuel Celestino construíra após regressar como emigrante da França e cujo processo de construção foi acelerado, propositadamente, a fim de que esta prestimosa instituição que tanto beneficiou a freguesia, funcionasse de imediato.

Inicialmente a Casa do Povo de São Caetano deveria abranger a vizinha freguesia de São Mateus. No entanto como os seus habitantes manifestaram acentuada oposição, foi criada, algum tempo depois, uma Casa do Povo naquela freguesia.

Passaram-se quarenta anos. A Casa do Povo de São Caetano, cresceu, fortaleceu e solidificou-se. Actualmente possui sede própria, dotada de variadíssimas estruturas de apoio á população, de ajuda, de serviços, de cultura e lazer, com destaque para o Grupo Coral de São Caetano, que tem divulgado não apenas a música mas também a história, a cultura e os costumes de uma das mais belas freguesias do Pico.

No passado dia um de Setembro aquela instituição comemorou o seu quadragésimo aniversário com um jantar seguido de um sarau cultural em que participaram o grupo de cantares de idosos da freguesia, o rancho folclórico das Lavradeiras do Vale do Sousa – Meinedo e o rancho folclórico local.

 

Texto publicado no Pico da Vigia, em 2/09/12

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publicado por picodavigia2 às 19:55

FREDERICO LOPES (JOÃO ILHÉU)

Terça-feira, 07.01.14

Frederico Augusto Lopes da Silva, que, geralmente, utilizou o pseudónimo literário de “João Ilhéu”, nasceu na Praia da Vitória, ilha Terceira, em 31 de Maio de 1896 e faleceu em Angra do Heroísmo, em 6 de Fevereiro 1979. Estudou nos liceus de Angra do Heroísmo e Ponta Delgada, frequentou o Instituto Superior de Agronomia e a Escola de Guerra, onde terminou o curso de Infantaria. Foi sucessivamente promovido a alferes, 1918; tenente, em 1922; capitão, em 1938; major, em 1946; tenente-coronel, em 1952. Passou à reserva em 1954, e à reforma em 1966. Foi comandante do Batalhão I.I. 17, aquartelado no Castelo de S. João Baptista, onde aliás passou a maior parte da sua carreira militar. Na reserva serviu na Base Aérea 4, como presidente do Conselho Administrativo. Ocupou o cargo de presidente da Câmara de Angra do Heroísmo em 1933, provedor da Santa Casa da Misericórdia da Praia da Vitória, 1941, e de Angra do Heroísmo, 1949, presidente da Direcção do Montepio Terceirense, 1960, e vários outros cargos de índole social.

Distinguiu-se essencialmente como poeta, contista, autor teatral, etnógrafo e jornalista. Toda a sua obra é de índole regionalista e etnográfica e interligada por uma ideia base da identidade açoriana e da força criadora da cultura popular. Os seus versos, os seus contos, as suas peças teatrais, todas elas estão marcadas por essa opção de ir beber à fonte popular a inspiração e os ensinamentos, ainda que muitas vezes idealizando o povo, dando dele uma imagem romântica e desfasada da realidade.

Obteve sempre grandes êxitos literários, principalmente com as suas obras para o teatro musicado, no género opereta, em colaboração com músicos da sua geração. Foi sócio fundador do Instituto Histórico da Ilha Terceira, onde desenvolveu um aturado e continuado trabalho de investigação e teorização sobre etnografia. A sua obra etnográfica é considerada fundamental para se entender o regionalismo açoriano da primeira metade do século XX. Foi, também um estudioso da história açoriana, sob um prisma da história biográfica de enaltecimento dos heróis insulares no seu contributo para o engrandecimento da pátria comum.

Como jornalista, fundou o Jornal de Angra, em 1933, que marca pelo seu programa renovador na imprensa local e pela qualidade técnica e artística das suas edições. Além disso foi colaborador assíduo de A União, com rubricas de crítica social e política.

Por último é de destacar a sua faceta de animador cultural incansável, através de palestras e montagem de espectáculos, sendo dos primeiros nos Açores a usar a rádio como veículo de comunicação cultural.

Da sua variada obra literária destacam-se: Tipos da minha terra, Touradas e romarias, Gente do Monte, Á boquinha da noite, Discretear (palestras e discursos), Sol das romarias, Alma Perdida, Gente do monte. II série, Do povo e de mim, Da Praça às Covas, Memórias de uma velha rua, Notas de Etnografia e Algumas achegas para o conhecimento da história, da linguagem, dos costumes, da vida e do folclore do povo da Ilha Terceira dos Açores.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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O ILHÉU DO CONSTANTINO

Terça-feira, 07.01.14

O sargaço, ali, no Ilhéu do Constantino, era bem mais negro, avermelhado e abundante do que em todas as outras zonas do Rolo, desde o Pesqueiro de Terra até à foz da Ribeira das Casas. Por isso, nos dias em que as fertilizantes, fertilizadoras e tão desejadas algas, arrancadas das profundezas do oceano pela brabeza das águas e trazidas, até à costa, pelo vaivém altivo e envolvente das ondas e pelo deslumbramento ousado e ritmado das marés, vinham emaranhar-se nos pedregulhos arredondados do rolo, os primeiros que demandavam aquelas paragens, a fim de recolher o precioso estrume - uma espécie de dádiva divina para os campos - bem lutavam, bem se esforçavam, bem aceleravam, bem corriam e bem se esganavam para chegar cedo e em primeiro lugar àquele recanto, assentando arraiais no melhor e mais fértil local de extracção de sargaço: frente a um pequeno ilhéu que ali existia, denominado de “Ilhéu do Constantino”. Ali o sargaço, afluindo em maiores fluxos, como que se amontoava, armazenava e excedia, facilitando a tarefa de quantos pretendiam retirar do mar aquele adubo para o milho semeado nos seus serrados, para as couves plantadas nos seus campos e para a batata-doce cultivada nas belgas mais soalheiras.

O Ilhéu do Constantino, uma espécie de talismã sargaceiro, era um enorme calhau, fixado no fundo do mar, a emergir com uma graciosidade intrigante na quase personificação de uma grande massa basáltica, erecta e projectada para fora da superfície da água, abrigada dos ventos e a enlevar-se com a suave e meiga erosão das ondas. Situava-se a uns bons metros de terra, sendo que do lado do Rolo, em hora de maré seca, era possível atingi-lo e saltar-lhe para cima, a pé. Com a maré cheia, porém e do lado do Pesqueiro de Terra, mesmo com a maré seca, era impossível demandá-lo, a não ser a nado.

Era a esta posição estratégica de uma espécie de calhau mítico, encafuado quase na esquina do Pesqueiro de Terra com o Rolo que o tornava fértil em sargaço. Este, trazido pelo “salseilhar” constante das ondas e pelo rodopiar permanentemente das águas, era como que empurrado para aquele recanto, prendendo-se, encafuando-se e arrecadando-se ali, como se ficasse preso por uma rede enorme ou fosse capturado por um camaroeiro gigante. Por isso mesmo, era fácil e rentável retirá-lo dali, tornando, assim, por quantos demandavam o Rolo em dias de saída de sargaço, aquele lugar o mais desejado e apetitoso de toda a faixa costeiro onde se podia extrair o sargaço.

O Ilhéu do Constantino ainda tinha uma outra vantagem, embora menor e menos explorada. Integrado na orla do baixio, desde o Rolo até às ruínas do presumível Forte do Estaleiro, já quase no Varadouro, era um excelente pesqueiro, ou seja, um bom lugar para pesca, sobretudo de moreias, polvos, sargos, vejas e castanhetas.

Naturalmente que a origem onomástica do Ilhéu do Constantino se prendia com um tal Constantino que nem a história nem ninguém sabia quem era. Perde-se pois no tempo o Constantino, quer fosse um experiente e assíduo pescador daquelas paragens, quer alguém que apenas demandasse, de vez em quando, aqueles baixios e escombros para apanha de lapas ou extracção de sargaço e ali se estatelasse, talvez mesmo falecendo naquele sítio.

Por todas estas razões o Ilhéu do Costantino poderia muito bem ser considerado uma espécie de “ex-libris”, se não da Fajã Grande, pelo menos da enorme baía que ia da Ponta dos Pargos até à Rocha da Ponta.

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publicado por picodavigia2 às 14:43

A NAMORADA FEITICEIRA

Terça-feira, 07.01.14

Conta-se que há muitos anos que, na Fajã Grande, na ilha das Flores, havia um rapaz que namorava com uma rapariga órfã de pai e que vivia só com a mãe. Ele, todos os dias, depois de acabar o trabalho, lavava-se, mudava-se de roupa, ceava e ia fazer serão para casa da namorada. Falavam de tudo, do que ia ser a sua vida, de como seria a sua casa e outras vezes contavam histórias. Um dia, começaram a falar de feiticeiras. O rapaz ria e brincava:

 — Feiticeiras!? Agora cá... Não acredito. Quem me dera ver uma!

 — Não digas que não há feiticeiras, olha que te enganas! — Insistia a rapariga.

 — Sim, sim… tu é que és a minha feiticeira! — Acrescentava o rapaz para não discutirem.

No entretanto o tempo ia passando. Chegada a hora, o rapaz despediu-se e saiu para o escuro da noite. Quando já tinha andado um bocado de caminho e estava quase a chegar a casa, duas cabras saíram dum pátio e deram um salto para a frente dele.

 — Ó diabos, pois eu fui, esta tarde, deitar-vos na rocha, vocês até agora nunca saíram de lá e como é que estão aqui?! — Disse o rapaz, julgando, devido ao escuro, que eram as suas duas cabrinhas.

 Tentou apanhá-las para as amarrar, mas, os animais, que eram habitualmente mansos, davam um salto e ficavam adiante e ele não conseguia pôr-lhes a mão. Já estava a ficar aborrecido e, como estava ao pé do portão de casa, pegou num fueiro que era do corsão e estava ali ao pé da parede. Atirou uma paulada numa das cabras, fincou-lhe a ponta do fueiro na pele, fez-lhe sangue e logo ela, misteriosamente, se transformou na sua namorada. O rapaz não podia acreditar no que via e disse:

 — Oh! Vai-te com o diabo!... E olha que é verdade que há mesmo feiticeiras. E logo quem... Vai-te embora que não quero mais saber de ti!

 — Não, não é assim, tu tens que me ir pôr em casa! — Respondeu a rapariga.

 O rapaz teimou que não ia, que o que queria era vê-la longe, que nunca mais punha os pés em casa dela. Mas, por fim, não teve remédio senão concordar, aceitando ir levá-la a casa. Ela então disse-lhe:

 — Vira-te para trás!

 Ele virou-se e ficou logo à porta da casa da rapariga. Voltou para sua casa e todo o caminho veio maldizendo a sua sorte e o que lhe tinha acontecido. Nunca mais quis saber de tal mulher, mas ela perseguiu-o sempre, durante toda a vida.

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publicado por picodavigia2 às 11:14

O ALFERES ANDRÉ FRAGA MENDONÇA (1677-1750)

Terça-feira, 07.01.14

O Alferes André Fraga nasceu no lugar da Fajazinha, na freguesia das Fajãs em 1677, ou seja precisamente um ano depois de aquela freguesia ter sido criada e faleceu com 73 anos, em 12 de Fevereiro de 1750. Foi casado com Bárbara de Freitas e era sobrinho do padre André Álvares de Mendonça que foi o primeiro pároco da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios das Fajãs, com sede na igreja paroquial na Fajazinha.

Na sua qualidade de alferes, muito provavelmente terá comandado algum dos vários fortes existentes na costa Oeste da ilha das Flores, nomeadamente nalgum dos sediados nas orlas costeiras da Fajã Grande e da Fajãzinha, entre os quais o Castelo da Ponta, o Vale do Linho, a Castelhana, o Estaleiro ou o Portal da Rocha, já na Fajãzinha. Este alferes terá sido uma personagem muito importante e bastante respeitada no seu tempo, una vez que, com apenas vinte e nove anos, foi uma das personalidades escolhidas, juntamente com a esposa, para integrar o grupo de “fregueses” que acompanhados pelo seu tio e vigário da paróquia das Fajãs, André Alves de Mendonça, em 1705, solicitaram ao bispo diocesano, D. António Vieira Leitão, autorização para colocar o sacrário para guardar o Santíssimo, na primitiva igreja da paróquia construída havia já trinta anos. Foi ele e os restantes elementos da comitiva que se prontificaram para oferecer anualmente o dote necessário para a aquisição doo azeite da lâmpada, para as velas e outros acessórios indispensáveis à manutenção do Santíssimo Sacramento na primitiva igreja da paróquia das Fajãs.

Na orla costeira da ilha das Flores, nos seculos XVII, XVIII e XIX existiram sempre vários fortes, ocupados por militares, à frente dos quais estavam oficiais de patente superior ou seja capitães, tenentes ou alferes. Estes fortes e as companhias que os ocupavam tinham como missão principal defender a ilha dos ataques e assaltos de piratas e corsários, muito frequentes nessa altura.

O Alferes André Fraga era pai de Maria de Freitas, primeira mulher de Manuel Lourenço, casados na igreja da Fajãzinha, em 8 de Setembro de 1723, falecida bastante nova. Era pai, também, de Isabel de Freitas casada com um irmão deste, de nome Bartolomeu Lourenço, ambos filhos de António Lourenço e de Maria de Freitas. Foi bisavô do tenente Bartolomeu Lourenço Fagundes que também comandou alguns dos fortes que existiam na Fajã Grande.

Imitando, anacronicamente, a narração da genealogia de Jesus Cristo, por São Mateus e que vem transcrita no primeiro capítulo do seu evangelho, poder-se-á ter a quase blasfema ousadia de dizer que André casado com Bárbara gerou Isabel, Isabel casada com Bartolomeu gerou Catarina, Catarina casada com António gerou Bartolomeu, Bartolomeu casado com Ana gerou Manuel, Manuel casado com Clara gerou Bartolomeu, Bartolomeu casado com Maria gerou José, José casado com Maria da Conceição gerou José, José casado com Joaquina gerou Angelina que casou com João e teve seis filhos, dos quais um é o autor destas linhas.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:37

A CANADA DA FONTECIMA

Terça-feira, 07.01.14

De todas as canadas da Fajã Grande, e não eram poucas, a única que tinha o piso igual ao dos caminhos, isto é, do tipo calçada romana, era a Canada da Fontecima. Situada no lugar com o mesmo nome, que atravessava de Norte a Sul, a Canada da Fontecima ligava o Alagoeiro ao Batel, num trajecto curto, apertado, de bom piso, de fácil e agradável trajecto e, sobretudo, bem mais rápido do que o do caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros. É que este caminho que também ligava o Alagoeiro ao Batel e através do qual se tinha acesso a todos os outros lugares do Sul e Leste da Fajã, incluindo a Rocha, no seu normal trajecto, ia dar uma grande volta pela Ribeira, passando junto ao Arame, o que significava um percurso bastante mais longo, obrigando, consequentemente, os transeuntes a uma demora excessiva relativamente ao trajecto da Canada da Fontecima. Em suma, para quem queria seguir para o Batel e para as outras localidades do Sul, até aos Lavadouros, se fosse pela Canada da Fontecima realizava um trajecto bem mais curto e mais rápido. Era pois, objectivo prioritário desta canada, não apenas dar acesso às propriedades que a ladeavam e a outras circundantes, mas também e sobretudo ligar de uma forma mais rápida e eficaz, sobretudo para quem carregava molhos ou cestos às costas, o Batel com o Alagoeiro e vice-versa. Encurtavam-se distâncias, reduzia-se o trajecto, poupavam-se energias e aliviavam-se as costas de quem vinha carregado com molhos ou cestos.

No entanto, o facto de ser uma canada e, consequentemente, uma via de circulação muito estreita, a Canada da Fontecima não permitia a circulação de gado, nem muito menos dos carros ou corsões. É que de tão estreita e apertada que era, não tinha a largura necessária para que circulassem duas rezes, ao lado uma da outra. Como, por vezes, havia gado a caminhar para baixo e para cima, o que ali não poderia acontecer, estava praticamente vedada a circulação de bovinos naquela canada.

O trajecto da Canada da Fontecima era simples e de razoável qualidade. Partindo-se do Alagoeiro, junto a um poço que ali havia para o gado beber água, voltava-se à direita, evitando o caminho da Ribeira. Subia-se uma pequena ladeira, esta sim bastante larga, paralela à casa do Luís Fraga, ao cimo da qual ficava a Casa da Água, precisamente no sítio onde se situava uma nascente ou fonte que dava nome ao local e cuja água abastecia toda a rede da Fajã, cujas obras se iniciaram em Outubro de 1948, concluindo-se quatro anos mais tarde. A partir da Casa da Água, entrava-se na canada propriamente dita, iniciando-se o seu trajecto com uma pequena curva ao lado daquela casa. Depois uma recta, ladeando pequenos serrados, dela separados por altas e grossas paredes de pedra dupla. No fim da recta uma curva acentuada à esquerda e logo a seguir uma mais suave à direita. Aí havia uma pequena ladeira e as paredes circundantes eram bem mais altas e imponentes. Após o cimo da pequena ladeira, precisamente no sítio onde meu avô materno tinha uma pequena terra de milho e batata-doce, entravámos em nova recta, paralela ao caminho da Bandeja, que ficava mesmo ali ao lado. Daí, por ser lugar mais alto, já era permitido aos transeuntes descortinar ao longe uma parte do casario da Fajã, do mar e a Ponta. Esta vista, no entanto era, vezes sem conta, obstruída, porque aqui as paredes já eram bem mais altas e grossas, impedindo quem por ali passasse de avistar o que quer que fosse, a não ser uma pequena nesga do céu. De seguida uma nova curva à esquerda, seguida duma recta ladeada a Sul, por uma parede altíssima e estávamos no fim da canada, a desembocar no caminho dos Lavadouros, precisamente no cimo da ladeira da Ribeira e quase no início da do Batel.

A Canada da Fontecima, como outros imponentes caminhos da Fajã Grande, uma interessante construção a marcar um espaço e um tempo, mediante o esforço, a bravura e o empenhamento dos nossos antepassados.

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publicado por picodavigia2 às 00:33

CAPITÃO FRANCISCO AUGUSTO

Segunda-feira, 06.01.14

(EXCERTOS DE UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

Capitão Francisco Augusto, meio americano, meio

Do Reino de Portugal; açoriano de berço,

De sua raiz, flamengo;

Comandante de navios,

Bom trancador de baleias,

Com fama de beber bem:

Brabo no soco, perdido

em lhe cheirando a mulher…

 

Mas porquê lembrar-me agora deste primo

Mais que morto, afogado,

Ausente do meu sentido?

 

Assim mesmo, exactamente:

guerras na Índia…ou não era ?

Assim mesmo: levar tropas .

E vem então um senhor…

Senhor não, um senhorito

lá dos palácios d’El Rei, pra ensinar ao comandante

do ”África”, ou como seria

O nome desse vapor,

que a El Rei se beijava a mão

Quando El Rei a estendia.

 

Capitão Francisco Augusto, meio americano, meio

Do Reino de Portugal; açoriano de berço,

De sua raiz, flamengo;

comandante de navios,

que outra coisa ele não era

senão bicho de mar alto

rude por fora, por dentro

coração de cera-bela:

mar, whiskey e mulheres…

famoso de costa a costa,

querido dos armadores,

estimado da maruja,

comandante de primeira

entre todos os melhores!

 

Rosa dos limos do mar; pedra de musgo

E candura, meu puro primo terceiro,

Porque lembrar-me de ti ?

(…)

Capitão Francisco Augusto

(…)

 -É tudo quanto eu guardei,

 E um retrato em corpo inteiro.

 De resto nada mais sei

 Deste meu primo terceiro.

 Nem importa quando foi.

 

Pedro da Silveira “Sinais de Oeste” 1952

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publicado por picodavigia2 às 22:19

PELOS TRILHOS DE SÃO JOÃO DO PICO

Segunda-feira, 06.01.14

A freguesia de São João do Pico explodiu cultural e desportivamente, através dum vaivém intenso, variado, pleno de vivências, encharcado de actividades e iniciativas, acorrentado à história e às tradições, galvanizado de empenhamento e dedicação, uma espécie de “vulcão de cultura e de desporto” donde emergiu uma lava agregadora, atraente e construtiva, unindo a memória do passado às vivências do presente, fortalecendo o sentido de união e o espírito colectivo, solidificando a identidade e a idiossincrasia da sua população.

Na realidade e integrando o Projecto “Freguesias CoMvida”, organizado pelo pelouro da Cultura da Câmara Municipal das Lajes do Pico, a freguesia de São João, como o já haviam feito a Ribeirinha, a Piedade e a Calheta, embora de forma diferente mas com actividades semelhantes, organizou entre os dias 21 e 28 de Abril, uma Semana Cultural e Desportiva, durante a qual se realizaram diversíssimas actividades. A Semana, agora realizada, caracterizou-se por um forte empenho dos seus organizadores e uma desmesurada afluência de participantes e constituiu um marco importante no desenvolvimento cultural e na prática desportiva não apenas da população da freguesia mas também dos forasteiros que, por estes dias, demandaram São João.

 Desta erupção de vivências culturais e de realizações desportivas, em que a semana foi fértil, emergiu, na manhã do dia 28, a realização de um trilho pedestre, por veredas e atalhos de outrora, com epicentro no Pico da Urze e que se estendeu, numa torrente de alegria, satisfação, camaradagem e confraternização, pelas encostas da montanha, quase até ao mar. Transportados até ao Pico da Urze em viaturas particulares, os cerca de cinquenta participantes num dos vários “Trilho dos Pastores de São João” iniciaram uma caminhada desde aquele monte até aos subúrbios de São João, não apenas descendo o vetusto e histórico “Caminho da Serra” mas também atravessando pastagens pejadas de gado bovino e percorrendo campos outrora a abarrotar de inhames, de frutos e de lenha. O “Caminho da Serra”, hoje um percurso abstracto, emerso em sombras e memórias, constituiu, no entanto, em tempos idos, a principal via pedestre a ligar o mar à serra, percorrida por quantos retiravam daqueles campos o seu sustento quotidiano ou, naquelas paragens, apascentavam os seus gados. Além disso, o “Caminho da Serra” também ligava aquela freguesia picoense às povoações do norte da ilha, nomeadamente, à vetusta vila de São Roque, nas demandas em Tribunal, para ir ao médico ou simplesmente consular um advogado. Era também a vereda que permitia o aceso às relvas para a ordenha, para tratar do gado alfeiro e que conduzia, diariamente, a população nas suas idas e vindas àqueles recantos serranos, para cortar lenha, apanhar inhames e sobretudo para acarretar o leite.

Orientado sob a sábia experiência do senhor Rui, profundo conhecedor daqueles párramos e andurriais desde criança, o grupo participante desfrutou de um interessantíssimo percurso pedestre que, embora cerceado, aqui ou além, por algumas dificuldades inerentes não apenas à natureza agreste e abrupta do terreno mas também provenientes do seu abandono actual, lhes proporcionou uma verdadeira caminhada de deslumbramento, de fascínio, de encanto e de magia, adocicado pela frescura do ar, pelo perfume dos campos, pelo sabor do poejo e da nêveda.

Nas encostas meridionais do Pico da Urze, a enorme e ampla Fajã, pejada de endémicas, onde sobressaem, para além do cedro, da urze e da queiró, o sanguinho, o tamujo, o rosmaninho, o pau branco, o folhado e o lendro, num chão atapetado do musgos, fetos, intercalados com árvores seculares com o tronco caiado de musgo, pejado de parasitas, com destaque para a “doiradinha”, a reivindicar para si o estatuto de um habitat em clausura, “sem ver o mar e sem ver a montanha do Pico” e que, outrora, se transformava em chá milagroso que curou os nossos antepassados dos mais variados achaques, das mais vis maleitas e dos mais atrozes sezões.

Depois da floresta endémica, as pastagens da Vereda do Giga a abarrotarem de erva verde, fresca e tenrinha, misturada com trevo, poejo, nêveda e mantastro, que fazem a delícia dos bovinos e enchem o ar de um perfume perturbante, adocicado, tranquilizante e enternecedor.

Finalmente o Outeiro do Cação, já mais cá para baixo, a fazer-nos regressar, novamente à floresta, onde agora o incenso, de braço dado com a faia e o loureiro, tem o seu império, com árvores seculares, de porte altíssimo, copas avassaladoras, transformando o “Caminho da Serra” num manancial de frescura, numa abóboda de murmúrios, numa torrente de imponência tranquilizante mas dominadora. Depois, o caminho segue ainda, ingreme e abrupto, atravessando a Falquejadura, pejado de furnas minúsculas onde se “acaçapavam” os homens para se abrigarem das intempéries e da chuva, de descansadouros, de marcos históricos, de cruzes a assinalar mortes e das ruínas da histórica Casinha da Laje, uma espécie de hall de entrada na serra e que servia de abrigo a quantos, em dias de chuva demandavam aqueles descampados.

Não ficaria completa, esta crónica, se não informasse os leitores, que o grupo, atravessando, agora sim, as modernas e alcatroadas ruas de São João, continuou, é verdade que já um pouco desfeito e sem recurso ao guia, a caminhar, como se do “Caminho da Serra” se tratasse, indo desembocar, ali mesmo, no restaurante “Tacão”, com janela debruçada para o mar e onde os caminhantes que assim o entenderam, puderam saborear um excelente almoço e desfrutar de um agradável e inesquecível convívio.

 

Texto publicado no Pico da Vigia, em 01/04/12

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publicado por picodavigia2 às 19:23

RASTRO DE FOGO

Segunda-feira, 06.01.14

há uma força telúrica

que amarfanha

e entontece a Terra.

 

há esguichos de vento

a gerarem respingos de espuma

- rastro de fogo -

transformando o Oceano

num deserto inacabado.

 

mas sobre o testemunho do vento

vagueia uma incerteza:

 

tempestade,

ou arco-íris tingido de esperança?

 

a incerteza

deste rastro de fogo

é cruel,

queima,

destrói,

arrasa

e aniquila.

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publicado por picodavigia2 às 16:38

AS FILARMÓNICAS DO CONCELHO DAS LAJES DAS FLORES

Segunda-feira, 06.01.14

Das onze Filarmónicas fundadas na ilha das Flores, ao longo da sua história, cinco pertenciam ao concelho das Lajes. No entanto, destas apenas uma ainda está em actividade – a filarmónica União Operária de Nossa Senhora dos Remédios, da Fajãzinha - aliás a única filarmónica sobrevivente de todas as que existiram na maior ilha do grupo ocidental, açoriano. Essas filarmónicas foram as seguintes:

Filarmónica Nossa senhora do Rosário, das Lajes – Esta filarmónica foi fundada nos finais do século XIX, por volta do ano de 1885, sendo na altura pároco nas Lajes o padre Tomé Gregório de Mendonça. Na sua criação esteve um grupo de lajenses, entre eles João Maurício de Fraga, Lúcio Maurício da Câmara, José Pimentel Soares e José Francisco Pereira. Organizada de forma insipiente e pouco organizada, a filarmónica decaiu, alguns anos depois, sendo reorganizada nos primórdios do século XX, sob a direcção de Jerónimo Lino de Freitas. Depois de mais uma década de actividade, voltou a dissolver-se para ser novamente reorganizada em 1932, sob a égide do professor Manuel da Silva Júnior e pelo pároco de então, padre José Francisco Soares, mantendo-se em actividade até 1958. Sob a direcção do padre Luís Pimentel Gomes, também pároco das Lajes, nessa altura, foi reactivada, mantendo-se em actividade até aos finais do século passado.

Filarmónica Lombense Manuel Martins, da Lomba – Foi fundada em 1931 pelo pároco de então, padre Francisco Vieira Soares, natural das Lajes do Pico, que ali paroquiou alguns anos. Mais tarde foi transferido para a Piedade do Pico onde fundou uma outra filarmónica a União da Piedade. Os fundos para a compra do instrumental foram obtidos por emigrantes florentinos nos Estados Unidos e teve em Manuel Martins que ofertou os primeiros 22 instrumentos, o seu principal benfeitor. Essa a razão porque recebeu o seu nome. A sua apresentação em público, com instrumental branco, o que era inédito no distrito da Horta, ocorreu no dia da festa do padroeiro, São Caetano, 7 de Agosto. Na organização e primeiros ensaios, o padre Francisco Vieira Soares foi auxiliado por Lino Augusto Santos. Esta filarmónica deslocou-se por várias vezes à fajã Grande para actuar na Festa da Senhora da Saúde. Em 1949, porém, ao ser convidada mais uma vez para abrilhantar aquela festa e depois de confirmar a sua presença, acabou por faltar nas vésperas daquela festa, sendo impossível, nessa altura, contratar outra. O povo ficou triste e revoltado a tal ponto que decidiu criar uma Filarmónica na própria freguesia.

Filarmónica União Fazendense da Califórnia, da Fazenda: Foi fundada, na Fazenda das Lajes, em 1938, por José Arlindo Armas Trigueiro, Francisco de Freitas Silva, António Rodrigues Gomes, Francisco Coelho Gomes e Luís Armas Gomes. Manteve a\sua actividade até 1961, sendo reorganizada, alguns anos depois, pelo pároco, padre José Vieira Gomes. Foram seus regentes José Armas Trigueiro, José Nunes da Silva e José Francisco da Rosa.

Filarmónica Nossa Senhora da Saúde da Fajã Grande – Foi fundada em 1951, fazendo a sua apresentação no dia 7 de Setembro desse ano. O instrumental e equipamento foi pago com o leite do primeiro domingo de cada mês, pelos sócios da Cooperativa de Lacticínios. Após várias interrupções, foi reactivada em 1979, sendo, nessa altura mudada a sua sede, da Casa do Espírito Santo de Cima para o antigo palheiro de gado do David, na loja da casa do António Teodósio, na Fontinha. Foram seus regentes, inicialmente José Mancebo Fagundes e, após a sua reactivação, José Lourenço Fagundes.

Filarmónica União Operária Nossa Senhora dos Remédios, da Fajãzinha – Foi fundada e inaugurada em 1953. Depois de alguns anos de inactividade, foi reorganizada em 1985, sendo a única filarmónica da ilha que se mantem em actividade, abrilhantando, actualmente, com um calendário muito preenchido, todas as festas da ilha. Depois da extinção da Filarmónica da Fajã Grande, alguns músicos, transitaram para a da Fajãzinha, ajudando assim a que esta sobrevivesse até aos tempos actuais.

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publicado por picodavigia2 às 15:50

JANEIRO

Segunda-feira, 06.01.14

“Em Janeiro não metas obreiro.”

Estranho mas interessante e significativo adágio fajãgrandense, utilizado apenas no sentido real, para significar que na realidade, na Fajã Grande, o primeiro mês do amo, era um mês de muito mau tempo, de ventos fortes, grandes chuvadas e temporais ciclónicos, pelo que cada qual havia de prevenir-se em termos de contratar alguém para trabalhar para si ou programar a realização grandes empreendimentos, caso contrário perderia todo o trabalho investido, dado que, geralmente no primeiro mês do ano, o mau tempo havia de dar cabo de tudo.

Na realidade no verdadeiro coração do inverno, ou seja, no mês de Janeiro, na Fajã Grande não era possível trabalhar devido aos temporais e ciclones que assolavam a ilha, sobretudo na costa ocidental.

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publicado por picodavigia2 às 11:52

O CALHAU DO TOURO

Segunda-feira, 06.01.14

Misterioso, enigmático, mítico e assombroso, o Calhau do Touro era um gigantesco pedregulho encastoado na primeira relva do Mato, ali mesmo logo ao cimo da Rocha que, em certos dias, vomitava urros uivantes, gemidos dolentes, rugidos assustadores, como se fosse um monstro vivo e verdadeiro. Um espanto, aquele calhau! Uma das mais interessantes e misteriosas maravilhas naturais da Fajã Grande! Tratava-se, na realidade, de um normal mas gigantesco pedregulho, possivelmente arrancado a algum pináculo, lá das alturas do Queiroal ou da Água Branca, por chuvas diluvianas e intempéries catastróficas e que arrastado pelas encostas macias e verdejantes do Rochão do Junco, por fortíssimas rajadas de vento, associadas à força da gravidade, saltitando por valados, rebolando por grotões, deslizando por socalcos, se viera alapar ali, inerte, zurzido, resvalado, quase morto. O Calhau do Touro, com os seus uivos angustiantes e berros medonhos assustava quantos, desprevenidos e alheados, passavam por ali.

De vereda em vereda, de socalco em socalco e de grotão em grotão, o Calhau do Touro, em tempos muito recuados e de que nem memória havia, quando a ilha ainda não parecia ilha, naturalmente viera parar ali, logo acima da Rocha, na primeira belga planáltica que encontrara, a separar os atalhos que, na direcção do Norte conduziam ao Queiroal e para os lados de Nordeste permitiam aos transeuntes chegar ao Curral das Ovelhas, atingir o Rochão do Junco, alcançar a Burrinha e a Água Branca ou até seguir para Santa Cruz ou outras localidades do Nordeste da ilha.

Alapado ali, o Calhau do Touro ali permanecera ao longo dos séculos, talvez desde de que a ilha era ilha e ali havia de fixar-se para sempre, manso, tranquilo e calado em dias de tempo calmo e de ventos de Sul e de Oeste, que a Rocha íngreme e altiva impedia de lá chegarem. Mas nos dias de grande ventania, com ventos muito fortes a soprarem, ininterruptamente, do Norte e do Nordeste, com fortes rajadas, a enfiarem-se encanadas por aqueles descampados abaixo, era um lamento perene e intercalado, um berreiro medonho e assustador, uma gritaria que nunca mais acabava. Parecia que tinha o diabo no corpo, aquele maldito calhau!

Tanto berrava, tanto gritava, tanto rugia que assustava os que por ali passavam, sobretudo os desprevenidos ou quantos desconheciam os dotes estridentes daquele misterioso e estranho prodígio da natureza.

Mas, afinal e bem vistas as coisas, o Calhau do Touro, simplesmente, não passava de um enorme pedregulho que rolara pelas encostas do Queiroal e do Rochão do Junco e viera parar ali quase ao cimo da Rocha, na primeira relva a que se chegava, logo após a Cancela. A sua localização e o seu exagerado tamanho faziam com que, fustigado por certos ventos, se formasse ali uma espécie de eco que se repercutia pelos arredores, assemelhando-se aos berros de um touro. Era essa a razão do seu epíteto.

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publicado por picodavigia2 às 10:32

CANTAR OS REIS

Domingo, 05.01.14

No chamado “Dia de Reis”, em que a Igreja liturgicamente comemora a Epifania, outrora celebrado a seis de Janeiro e na altura considerado “dia santo abolido”, mas que o povo na Fajã Grande, como em muitos outros locais, respeitava como se de “dia santo de guarda” se tratasse, a garotada percorria as casas da Fajã, de forma semelhante à que fizera no primeiro dia do ano ou dia de “Ano Bom”.

Os grupos eram os mesmos, o líder não mudava, os percursos também eram idênticos, assim como todos os procedimentos tidos no dia um. A única diferença estava na cantoria, que agora, em dia de Reis, continha temas relacionados não apenas com os três reis mas sobretudo com o atribulado percurso que fizeram, guiados por uma estrela, desde os seus países de origem, até encontrar o menino deitado em palhinhas, na gruta de Belém, oferecendo-lhe os seus melhores presentes: oiro, incenso e mirra.

Entre outros versos cantávamos os seguintes:

 

“Os três Reis do Oriente,

Sonharam, sonharam bem

Sonharam que era nado

 O Menino em Belém.

 

 Os três Reis que eram santos

Uma estrela os guiou

Do alto duma montanha

Brilhantes raios deitou.

 

 Herodes como malvado

Como perverso e malino

Aos três reis lhes ensinou

Às avessas o caminho.”

 

Mais tarde, surgiu na Fajã Grande, trazido da Lomba por pessoas que para ali vieram morar, o canto do “Rei Preto”, celebrado no fim-de-semana seguinte aos Reis. Os cantores eram adultos, percorriam todas as casas, mas à noite, acompanhados de alguém fantasiado de rei com a cara pintada de preto, cantando entre outras quadras a seguinte:

 

“Eram três raças diferentes

Cada um em seu falar

O que dava mais nas vistas

Era o Preto Baltazar.”

 

Assim como os das crianças, o grupo de adultos também percorria todas as casas, batia a todas as portas e muitas das quais se abriam para os brindar com aguardente, traçado, licores e figos passados.

 

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publicado por picodavigia2 às 23:58

A PRIMEIRA RÉPLICA DO GRANDE ENCONTRO

Domingo, 05.01.14

Era inequivocamente previsível e conjecturalmente provável que acontecesse. É que um “Encontro” de tamanha grandeza, como o que havíamos realizado em Angra, no passado mês de Julho, havia de perpetuar-se num rastilho de camaradagem e simpatia, um envolvimento de tão excelsa sublimidade havia de reiterar-se para sempre, um abalo de tão grande intensidade havia de ter as suas réplicas, um incêndio de tão intensiva vivência havia de propagar-se em outras envolvências. Na realidade, a partir de agora e depois de tão gigantesco, de tão sublime e tão envolvente “Encontro”, como aquele dos alunos das décadas de 50/60 do SEA, quem esteve nesse encontro e passar por Ponta Delgada arrisca-se, no mínimo, a ser abalroado com amizade de um punhado de residentes na ilha que não perdoa fugas, não aceita recusas, nem admite rejeições. São inflexíveis e retumbantes, estes “Senhores” de São Miguel, assim como as suas esposas! Envolvem-nos em laços incríveis de amizade pura e sincera, rodeiam-nos de afabilidades e carinhos, disponibilizam-nos uma camaradagem envolvente verdadeira, recheada de momentos de alegria e boa disposição e aureolada com um rosário de memórias e recordações. Como se isso não bastasse, ainda nos proporcionam e oferecem um excelente jantar. São desmesurados na sua amizade, desmedidos na sua camaradagem, inatingíveis no seu companheirismo. São estes “Senhores” – alguns até nem puderam ir ao Encontro - que, na realidade, provocam e continuam a acicatar as réplicas do grande “Encontro” e, estão permanentemente alerta para, logo que se lhes proporcione uma oportunidade, reacenderem o seu rescaldo.

 Pois a primeira gigantesca réplica do “Encontro” de Angra aconteceu precisamente ontem à noite, em Ponta Delgada. Chegara o entardecer e a cidade, vista lá do alto, cobria-se com um manto de púrpura acinzentada, escura, pouco clarificante. A manhã havia sido atormentada por chuvadas, ventanias e trovoadas. Agora a calma parecia querer voltar e a tranquilidade a querer impor-se.

 A SATA, oriunda do Pico, a aterrar no João Paulo II e o sorriso afável, meigo, ternurento, amigo e, diga-se de passagem, um bocadinho atrevidote, do João Carlos Carreiro, acompanhado pela esposa, a boicotar uma mera e simples escala técnica em São Miguel e a transformá-la num magnífico e mágico Encontro. Que não havia desculpas, que não existiam hipóteses de fuga. Vens connosco e pronto. Ora como a minha avó já dizia “Sempre que viajares e tiveres, em qualquer aeroporto, um amigo à tua espera não recuses o convite que te faz”. Aceitamos.

Com uma pequena visita ao Manuel Azevedo, sempre ávido de livros e notícias do Pico, fomos parar ao antigo Seminário Colégio, hoje hotel. Já lá estavam o Alberto Ponte, Alfredo Vieira, o Carlos Dias, o Humberto Clementino e o José Augusto Borges acompanhados das esposas e ainda o Adelino Moules, o Carlos Sousa e o Manuel Francisco.

 Todos tinham manifestado uma enorme vontade e uma grande alegria por ali estar, mas alguns não puderam, por compromissos assumidos ou outra impossibilidade, o Cipriano Franco, o Fernando Mota, o Gualter Dâmaso, o José Constância, o Manuel Azevedo, o Santos Narciso e o Urbano Bettencourt que enviaram mensagens carregadinhas de abraços. Era como se ali estivessem.

 E embarcámos num oásis da sublimidade, entre os sabores pantagruélicos da cozinha micaelense, recheados de graçolas, regados com boa disposição, interlaçados com uma amizade do tamanho do Oceano e um companheirismo que parece ser eterno..

 Porque será que estes açorianos em geral e os micaelenses em particular são assim tão empenhados em construir esta amizade que nunca se esmorra, tão balanceados em cultivar esta camaradagem adubada com a alegria e se imiscuem, de alma e coração, em espicaçar esta amizade que, apesar de anestesiada pelo tempo, nunca se dilui nem se desfaz? Não será tudo isto uma réplica do primeiro “Encontro” que todos recordam com saudade e elogiam com desvelo?

 

Setembro de 2012

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publicado por picodavigia2 às 22:49

A BALANÇA DE PESAR LÃ

Domingo, 05.01.14

Na Fajã Grande quase todos os lavradores criavam ovelhas no mato. O objectivo principal de uma pastorícia muito específica, em que não havia necessidade de acompanhar os rebanhos, una vez que estes pastavam soltos e em conjunto com os dos outros proprietários, nos matos, era, simplesmente o de fornecer lã. Na Fajã Grande, salvo uma outra excepção e sempre no caso de ovelhas criadas à porta, nunca se utilizou nem o leite das ovelhas para alimentação das pessoas, nem nunca com ele se fabricou queijo. Criavam-se as ovelhas apenas para dar lã, embora quando abatidas se utilizasse a carne na alimentação e também as peles, que depois de curtidas serviam para forrar os berços e as camas das crianças de tenra idade ou para agasalhos dos adultos. A lã, sim, ocupava um lugar de relevo e de grande importância na economia fajãgrandense, pois tinha um papel primordial na confecção não apenas de diversas e variadas peças de vestuário mas também na tecelagem de mantas e cobertores. As casas que, eventualmente, não tinham ovelhas compravam a lã, a quem tinha produção excedente. Porém, antes de ser preparada e trabalhada e, sobretudo antes de ser vendida, era necessário pesar a lã. No caso de ser vendida, para estabelecer e definir preços, no caso de a usar em proveito próprio, para saber a quantidade necessária para a confecção daquilo que se pretendia obter. Por essa razão em muitas casas existia a tradicional e típica “balança de pesar lã”. Quem não a tinha e dela precisasse, ia pedi-la emprestada aos vizinhos, sempre dispostos a oferecer e disponibilizar ajudas, préstimos e favores.

Estas balanças obedeciam a uma estrutura muito específica, porquanto sendo o objecto a pesar muito volumoso, os braços da balança não podiam ser iguais. Assim um deles, o dos pesos era muito pequeno e o contrário, ou seja aquele em que se pendurava a lã era muito comprido. As balanças de pesar a lã eram feitas geralmente de ferro mas também as havia de madeira e tinham uma haste vertical, com um gancho na parte superior, de forma a pendurá-las durante a pesagem, geralmente num tirante da cozinha e um eixo na inferior, na qual balanceava uma haste, numas horizontal noutras um pouco curva e que se equilibrava em função do princípio das alavancas, em que duas forças, neste caso duas forças suspensas, se equilibram quando o produto da força potente pelo seu braço é igual ao da força resistente também pelo seu braço. Por isso mesmo, o braço onde se pendurava a lã tinha que ser contrabalançado em peso, devido à pequenez daquele em que se pendurava o respectivo peso. Em cada um dos lados da alavanca, suspensos na parte de baixo, estavam encravados dois ganchos para nele se pendurarem os pesos, num lado e a lã no outro. Acresce dizer-se que os pesos eram pedras furadas, devidamente quantificadas em termos de peso, de forma a se poderem prender no gancho.

Toda esta geringonça estava de tal maneira bem construída e balança de tal modo afinada e aferida que nunca havia enganos na pesagem ou se os havia ninguém dava por eles.

As balanças são consideradas o mas antigo instrumento de avaliar e tiveram origem na antiga civilização egípcia, por volta do ano 5000 a.C. Por sua vez a chamada balança de braços desiguais terá sido inventada pelos romanos, Inicialmente as balanças destinavam-se a duas pessoas que quisessem trocar mercadorias. Colocavam-nas numa balança de braços iguais e mudavam as quantidades até que se conseguisse o equilíbrio.

Com o passar do tempo, a balança foi sendo aprimorada e modificada para melhor se adaptar as necessidades, mantendo-se, no entanto, nas comunidades rurais agrárias com as suas características primitivas, até às décadas de cinquenta e sessenta do século passado. Hoje, proliferando as balanças digitais, tornaram-se peças de adorno e de museu.

Balanças de pesar lã, um objecto que outrora teve grande importância na vida dos nossos passados, na própria história da freguesia e até na economia fajãgrandense. Naturalmente como tantos outros, ter-se-á perdido no tempo e nas memórias

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publicado por picodavigia2 às 15:28

O MITO DE ALVALADE OU A RAZÃO DE O RIO SADO CORRER DE SUL PARA NORTE

Domingo, 05.01.14

 Os romanos chamaram-lhe Calipus, os árabes Xâter e os portugueses Sado. Nasce na serra do Caldeirão, passa ao lado de Ourique, correndo para oeste, na direcção do mar. Ao chegar à vila de Alvalade, porém, muda o seu curso, isto, é, corre para norte, fenómeno inédito na orografia portuguesa, acabando por ir desaguar em Setúbal e não em Santiago do Cacém, como seria mais natural.

A explicação desta suposta irregularidade fluvial, poderá justificar-se assim. Segundo um mito pre-Abbevilense, Eros, filho de Erebo e da Noite, força suprema, invisível e omnipotente, elemento primordial do universo, ter-se-á, certo dia, envolvido de ternuras e amores com Afrodite, atraiçoando Caos, sua natural e originária companheira, dona e senhora do espaço sobrenatural e infinito. Desta adúltera relação nasceu Saláceo.

Para proteger o filho das iras de Caos, Eros e Afrodite esconderam Saláceo num bosque, situado numa pequena serra alentejana, precisamente naquela que hoje é denominada por serra do Caldeirão. Caos, no entanto, descobriu o embuste. Furiosa, quis vingar-se. Para isso procurou o ilegítimo rebento, escondido nos barrocais e contrafortes do Caldeirão, transformando-o num pequeno e ténue fiozinho de água, que, brotando daquela serra, começou a correr, lenta e vagarosamente, ao longo da enorme planície alentejana, dirigindo-se para o Oceano, onde seria totalmente destruído e desfeito, para desespero dos seus progenitores.

E o jovem Saláceo, alheado das intenções malévolas de Caos, iniciou, alegremente, o seu percurso a caminho do mar, descendo encostas e barrocais, perdendo-se entre florestas e barrancos, atravessando campinas e prados, seguindo o destino que, maquiavelicamente, lhe fora imposto: caminhar em direcção à sua própria destruição.

Porém., ao chegar à enorme planície que hoje abrange as terras de Alvalade, surgiu-lhe a caminho o jovem Aladde, filho do Oceano e duma Nuvem, disposto a salvá-lo, impedindo-o de continuar, o caminho para o Oceano e, consequentemente, para a sua própria destruição.

Os ódios de Caos, porém, voltaram a acender-se e a incendiar-se. Os dias tornaram-se escuros e as noites trevas contínuas e, sobre a face da terra começaram a cair, incessantemente, durante quarenta dias e quarenta noites, chuvas diluvianas, que encheram os lagos e fizeram transbordar os rios. As águas do Oceano também se revoltaram e, transformando-se em ondas gigantescas, mais altas do que árvores e maiores do que montanhas, ameaçavam, impiedosamente, galgar e destruir a Terra. Estas ondas, acompanhadas de tumultos estrondosos e do ribombar de trovões, invadiram a Terra, na ânsia de a engolir, desfazendo-se e misturando-se à restante água que cobria a outra parte da superfície terrestre, em horrível tremedal. O Oceano transformou-se, assim, num terror infinito e a terra foi condenada a uma destruição total.

Mas Eros não desistiu e voltou a tentar salvar Saláceo das iras ameaçadoras de Caos. Para isso, chamou Aladde, que vivia desesperado. Eros atribuiu-lhe a incumbência de ordenar, acalmar e a apaziguar todas as águas existentes sobre superfície da terra alentejana – dos lagos, dos rios e das fontes - permitindo assim que a calma e a tranquilidade voltassem à superfície da Terra e Saláceo fosse salvo.

Aladde bem tentava pôr termo a estes horrores e a estas ondas destruidoras, ignorando o destino da enorme planície, agora transformada em medonho escarcéu, quase condenada à destruição, mas sentia-se impotente para dominar aquelas forças que destruiriam tudo, incluindo o jovem Saláceo. Para o ajudar, Eros voltou, mais uma vez à Terra, trazendo-lhe Alba, a mais bela, a mais brilhante e a mais poderosa estrela do firmamento, por quem Aladde, de imediato, se apaixonou. Alba brilhava no universo infinito, com uma intensidade invulgar e um poder extraordinário, desafiando os próprios deuses, que temiam a sua luminosidade e grandeza. Quando se aproximou de Aladde este solicitou-lhe auxílio e socorro para quantos se viam vítimas daquelas catastróficas enxurradas.

A estrela condoeu-se de quantos sofriam as iras infinitas de Caos. E regressando ao firmamento, voltou, pouco depois, montada em nédia hacaneia, acompanhada de um enorme séquito, onde pontificavam carros de fogo, puxados por escorpiões e protegidos por gerifaltes, transportando miríades de gigantes. Lançando o seu brilhante e luminoso poder sobre todas as águas, tanto as que cobriam a superfície da Terra, como as que emergiam do Oceano, expulsou-as da extensa planície. Depois, fazendo descer os gigantes dos carros de fogo, construiu, para defesa e protecção da grande planície, um enorme e alto muro, que mais tarde se transformou em montanha, de que a actual serra do Cercal é um resíduo.

Mas o pobre e ainda frágil Saláceo, apesar de salvo das águas diluvianas e daquele medonho escarcéu, devido à construção de tão imponente montanha, ficou totalmente impedido de seguir o seu lento e vagaroso curso para o mar. Então Alba e Aladde, decidiram mudar-lhe o destino, fazendo-o deslizar para norte e fortaleceram o seu caudal, juntando-lhe as águas que, sobrando do dilúvio, escoriam ainda pelas encostas do Cercal, com outras que continuavam a brotar das cercanias e que hoje formam os rios de Campilhas, Alvalade e S. Domingos.

E Saláceo, ou melhor o rio Sado, seguiu, o seu rumo para norte, alimentando e dando vida a toda a planície alentejana, enquanto Alba e Aladde, verdadeiramente apaixonados, uniam os seus destinos e, para vigiar Saláceo, fixaram-se, mesmo ali, naquele campo cercado pelo enorme muro, no sítio onde hoje é a vila de Alvalade.

 

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publicado por picodavigia2 às 11:48

ÁFRICA FRENTE E VERSO DE URBANO BETTENCOURT

Domingo, 05.01.14

Integrada no programa do festival de verão “Caisagosto 2012”, organizado pela Câmara Municipal de São Roque do Pico, teve lugar, no passado dia 26 de Junho a apresentação do livro “África frente e verso” de Urbano Bettencourt. O evento ocorreu na Biblioteca Municipal e contou com a presença do autor, estando a apresentação da obra a cargo de Carlos Alberto Machado. Ao longo da sessão foram lidos alguns textos do referido livro por Susana Moura e pelo próprio autor que também explicou, aos presentes, o contexto em que a maioria dos textos foi escrita, tendo como pano de fundo o cenário da guerra colonial, em África.

Urbano Bettencourt, natural da freguesia da Piedade, concelho das Lajes, ilha do Pico, é professor de Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e de Literatura Açoriana na Universidade dos Açores, está representado em várias antologias nacionais e estrangeiras. É autor de vasta obra, onde predominam a poesia e o ensaio literário. Publicou o seu primeiro livro, “Raiz de Mágoa”, em 1972, em Setúbal, altura em que leccionava naquela cidade. Seguiram-se “Ilhas”, em 1976, “Marinheiro com Residência Fixa”, 1980, “Naufrágios Inscrições”, 1987, “Algumas das Cidades”, 1995, “Lugares sombras e afectos”, e “Santo Amaro sobre o Mar”, 2005, e “Que Paisagem Apagarás”, 2010, para além de vários ensaios, uns publicados em livro, outros dispersos por revistas da especialidade, dentro e fora do país

Segundo o próprio autor, o livro agora apresentado, “África frente e verso” e que contém uma primeira parte intitulada “Recuperar o Tempo”, constituída por (13+1) poemas e uma segunda onde predominam textos de prosa-poética, “recupera os textos que ao longo de vários anos foi deixando nos seus livros, acrescidos de alguns inéditos, e nos quais a experiência da guerra repercute, sucessivamente refeita e transfigurada, agora a uma luz crua, e cruel também”. Trata-se, pois, de uma colectânea de textos cuja temática integrou o quotidiano mavórcio do próprio autor, nos primeiros anos da década de setenta do século passado, em plena guerra colonial, em Bissorã, (Guiné-Bissau) e que, de algum modo, revelam “os fantasmas de uma geração aflita” atulhada com a permanente e contínua ameaça do recrutamento para a guerra do Ultramar. É pois um livro “contaminado pela guerra” e no qual, por isso mesmo, talvez nos traga mais luz sobre o “verso” do que propriamente sobre a “frente” de uma África, massacrada, consternada, sofredora, com os perfumes tropicais e das bolanhas a misturarem-se com cheiro mefítico do enxofre e da pólvora, com sons dos batuques a silenciarem-se com os rebentamentos estrambólicos dos obuses, com os tiros acutilantes das Kalashes e com o trepidar lento e moroso dos Unimogs, com os sabores das noites frescas e dos frutos adocicados a cruzarem-se com os dissabores da tragédia permanente, com o colorido do entardecer e o “lilás violado em cada noite pelas bombas”, onde até as “baga-baga” se erguiam majestosas, altivas e imponentes nas suas perspectivas de gigante, no meio da savana, secularmente construídas por colónias de formigas e se confundiam com os soldados – “estátuas de sombras, trémulas e cansadas”. O verso e talvez até o reverso de uma África onde até a especificidade linguística dos falares fulas, mandingas, balantas e bijagós e o “manga de ronco” se apagam e amarfanham pelo palavreado obsceno das patrulhas militares, e as aguarelas florescentes das madrugadas africanas se obstroem pela recolha permanente e continua dos mortos em combate e dos caixões de chumbo guardados nas sacristias das igrejas, à espera de transporte para a Metrópole.

Por tudo isso e por muito mais, ainda bem que o “meu amor não veio à guerra”, à guerra do “verso” duma África, reprimida, torcida, e dorida, porque e para além de não provar a “agonia dos rios moribundos, derramando tédio nas horas magoadas” ilibar-se-ia da morte numa emboscada “entre o Uenquem e o Imboé” ou, talvez pior, do rebentamento de uma mina e do sucessivo ataque ao longo do famigerado “carreiro da morte”, numa das colunas geralmente atacadas e que por ali eram forçadas a circular, entre Cutiá para Mansabá, com destino a Farim, ou, quem sabe, até do massacre duma qualquer tabanca de nativos.

Todos os que como Urbano Bettencourt viveram o terror, a angústia, o medo, a aflição permanente e a imposição da guerra que não era sua e na qual se viram envolvidos involuntariamente e para onde foram conduzidos à força e que, além disso, embora sem o poder manifestar, já se opunham e condenavam a ideologia que a defendia, mantinha e incentivava, armazenaram dentro de si sentimentos de revolta permanente, momentos de sofrimento angustiante, imagens de tragédias terríveis, resultantes de um envolvimento contínuo, premente e destruidor, em ataques massivos, emboscadas permanentes, massacres arrasadores, em que tombavam colegas e amigos de um lado, homens e irmãos de outro. Mas nem todos, talvez mesmo poucos ou apenas alguns, os prestigiados, os assinalados pelas musas, os dotados com a beleza e a sublimidade da poesia e da escrita o souberam traduzir em palavras, sob a forma de poemas, como o fez Urbano Bettencourt, no livro “Africa frente e verso”. Como diria um conceituado crítico literário “África Frente e Verso….despeja força e sangue, raiva e amor… Faz parte de uma literatura cuja arte maior tem sido sempre a coragem de desconstruir os meandros submersos da nossa sociedade…”

 

Texto publicado no Pico da Vigia, em 03/08/12

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publicado por picodavigia2 às 10:46

CRÓNICAS SANJOANINAS

Domingo, 05.01.14

Da autoria de Emílio Porto, publicado em “Alto dos Cedros”, 1 de Julho de 2011, aqui transcrevo na íntegra o texto com o título em epígrafe:

“Dois dedos de conversa aconteceram, numa noite de São João. Noite serena, à beira da tasca, bem surtida e bem apetitosa. Muita gente, por ali à volta, na conversa amena. Uns atentos, outros distraídos, e outros mirando.

Familiares e amigos ali se encontraram, fortuitamente. Logo surgiram, de imediato, dois dedos de conversa, enquanto a marcha se divertia e fazia divertir. Uma marcha feita de todas as idades. Porque assim é que deve ser: a comunidade inteira participa.

Enquanto as companheiras se divertiam com as suas novidades – sempre novas e sempre velhas – ficavam os companheiros a desbobinar também coisas velhas e novas, estas mais específicas e singulares, quase todas das áreas castrenses, e também, as muito específicas do reino dos castos.

Ninguém pode estranhar. Os percursos, embora diversos no tempo e no espaço, foram semelhantes – na freguesia, na guerra e na dispensa do santo ofício.

São poucos, mas ainda são alguns, os que, no fim da vida, se podem orgulhar de ter recebido os sete sacramentos da Santa Madre Igreja! Por isso, serão gloriosos, com direito ao melhor dos melhores tronos dos reinos celestiais, rodeados de anjos e arcanjos, querubins e serafins!

As histórias da guerra são sempre as mais marcantes, mais solidárias, e por isso, paradoxalmente, as mais humanas e cristãs. Foram “castigo” da mitra, exclusão forçada. Depressa se transformaram em humanidade salvadora, antítese do reino que ficou para trás, lugar de podridão e mentira. Que, como ontem, hoje e cada vez mais, parece continuar a sê-lo.

 Nada muda. Tudo parece ser igual. Mas as evidências ou consequências vêm sempre ao de cima. Já dizia o velho chanceler da cúria: “são poucos os que não molham o prego”.

É na dificuldade, na luta pela sobrevivência que os laços humanos mais se fazem sentir e deixam marcas para sempre. A solidariedade só aparece no meio da desgraça e do abandono; vem sempre de outros que andam longe, dos quais menos se espera; os mais próximos fogem, como Pedro. Quando todos estão bem, não se fala em solidariedade. Que se arranje e que passe bem!

Porém, passadas as horas difíceis, as guerras, os abandonos, e encontrados os tempos mansos e estáveis, geralmente vem a mesma tentação: que se arranjem os algozes de antanho, e que passem bem.

As histórias acabam por ser repetidas pela vida fora, perante os que passam e os que vem depois. Repetidas e aumentadas, porque os fregueses pouco mudam e passam de geração em geração o que sempre fizeram e dizem. E deixam sempre a sua marca. Quem conta um conto acrescenta um ponto. Os comportamentos não mudam facilmente.

Ficaram as histórias do professor Pisca-pisca, do Presidente Amaro, da tia Maria da Ribeira. E também – é bom não esquecer – as histórias do Reitor e do Monsenhor.

Do professor Pisca-pisca que vigiava o padre, e vigiava a mulher, quando esta ia para a igreja. Do Presidente Amaro que exigia ser consultado quanto à procissão do padroeiro. Da tia Maria da Ribeira, que exigia saber qual era a opinião do padre sobre os jarros das flores do altar. Do Reitor, que recebia mensagens diárias, de comportamentos desviantes, e de práticas antes nunca experimentadas. Do Monsenhor, que controlava a modernidade doutrinal. De ambos, trocando mensagens entre si, levadas e trazidas por informadoras piedosas e assíduas às novenas das almas.

Da guerra, ficaram os encontros com homens, carregados de problemas familiares, de bebedeiras frequentes, de ausências prolongadas, de doentes, mutilados, e mortos enviados em caixões de chumbo. Do Tenente-Coronel, Comandante, que todos os dias se embebedava e chorava pela mulher que lhe tinha falecido, vítima de cancro no seio, mais do filho, metido pela droga. Do Major, Segundo Comandante, que, com feridos à sua volta, aos berros, dizia: “lá por morrer uma andorinha não acaba a Primavera”; valendo-lhe, da reacção furiosa e imediata, correr depressa para o quarto!!! Das chuvas e da seca prolongada que condicionava o tempo de paz e o tempo de guerra, ficaram recordações, lembranças de solidariedade, nunca sentidas antes nos corredores dos paços, das cúrias e dos passais.

A noite sanjoanina já ia longa. Era tempo de dispersar. Outras ocasiões virão, e outras histórias se hão-de contar. E os blogs poderão registar.

Que belas estavam as iscas de atum e as lulas guisadas!...Até daqui a dias.”

 

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publicado por picodavigia2 às 09:28

RIO SECO

Domingo, 05.01.14

margens de sombras

leito de resteva,

caudal entontecido,

amarfanhado,

morto      como

um espelho estilhaçado,

que já não reflecte o brilho da aurora,

como

um campo ressequido,

que não se encharca com o alarido das chuvas.

 

rio inóspito,

esponjado,

que já não se abre às quilhas dos barcos,

nem amamenta o sorriso dos peixes.

 

rio seco,

derrelicto.

onde     navegam fantasmas

e onde nada o silêncio

 

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publicado por picodavigia2 às 00:07

FIAMBRE DE PEITO DE PERU

Sábado, 04.01.14

Moçoila robusta, bem constituída fisicamente, a arfar estafamento e a verter suores, aparentemente mais talhada para o cabo da vassoura, para a pá do forno ou até para o da enxada do que, propriamente, para o serviço numa montra de supermercado, a abarrotar de carnes, enchidos e charcutaria diversa, mas tudo numa caldeação muito desorganizada e numa espécie confusão sofisticada e permanente.

 Não há muitos clientes, e os que se aproximam do balcão da montra vão solicitando produtos do mais trivial que ali se vende e de fácil identificação: febras de porco, carne de vaca, linguiça, torresmos, fiambre, etc. E a moçoila, embora pouco engenhosa e bastante lenta, lá vai escolhendo, seleccionando, cortando, pesando, embrulhando e fechando as embalagens na máquina adequada. Finalmente espeta-lhe uma etiqueta com o preço, que lhe havia saído da balança de pesar, como se de um ticket de portagens de auto-estrada se tratasse. Depois estende o braço rechonchudo sobre balcão da montra e entrega o embrulho ao cliente. Tudo extremamente simples e, aparentemente bastante fácil, mas muito lento e muito vagaroso… uma eternidade, que a moçoila, supostamente, não tem pressa.

 Chegou a minha vez. Aguardo que ela olhe para mim e me interrogue. Mas a rapariga não se apressa. Até parece que cuida que eu não sou cliente. Decide primeiro tirar os óculos e limpá-los, depois opta por enxaguar o suor que lhe corre pela testa e, de seguida, ainda resolve passar as mãos pela bata, não se percebe bem se a secá-las ou se a sacudir alguma sujidade porventura a manchar a brancura, já bastante esbatida, da dita cuja. Só então levanta os olhos na minha direcção, fixa-me com ar estranho e pergunta-me, pouco convencida:

 - O qui é que o sinhô qué?

 Como a desarrumação da montra me impede de saber se o produto que eu pretendo adquirir existe ou não, indago:

 - Tem fiambre de peito do peru?

 - Tem o quêêê? – Pergunta ela pasmada, com os olhos muito arregalados, enquanto com a mão direita ajusta o boné branco, com o logotipo da empresa, na frente. Tive a sensação que havia falado grego ou chinês.

 - Fiambre de peito de peru. Eu quero fiambre de peito de peru. – Repeti pausadamente, elevando o tom de voz.

 - Ah! Peite de peru! Pois olhe, o sinhô. De peite de frango há p´raí umas coisas, agora de peite de peru é qu’ei nam sei s’há ou senan há.

 Sem ela se preocupar, minimamente, com a minha situação de despojado, dei meia volta, afastei-me da montra e comentei, em voz baixa:

 - Pois agora vais-te amanhar sem ele!

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publicado por picodavigia2 às 23:33

RELANCE

Sábado, 04.01.14

(Pedro da Silveira)

 

O Mar. O rolo. A ribeira

e, além da ponte, os moinhos.

Relvas e terras de milho.

 

Sol a pino. Olhando em volta

não se vê ninguém lidando

nem indo no seu caminho.

Nenhuma nuvem no céu.

 

Sobre a folha azul do mar

vem um vapor e outro vai.

- Eu fico a vê-los passando.

 

VIII 1942

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publicado por picodavigia2 às 20:35

CASA COM JANELAS SEM CORTINAS

Sábado, 04.01.14

Tia Júlia chegou a casa muito tarde. Vinha da novena das almas. Não que a cerimónia litúrgica, realizada na igreja paroquial, demorasse muito, mas por começar, como era hábito, a horas bem tardias. Sim, porque às nove da noite, ali na Fajã Grande, em pleno mês de Novembro, há muito que era escuro, que o Sol desaparecera lá para bem longe, para o fim do mundo, para o infinito, onde tudo era um mistério escuro e desconhecido. Tia Júlia apenas sabia que era naquela direcção em que o Sol se punha, que ficava a América… A América dos seus sonhos, dos seus segredos, das suas mágoas, das suas tristezas, do seu sofrimento, da sua miséria, da sua solidão e, sobretudo, daquele enigmático luto que desde há mais de sessenta anos carregava sobre si.

Entrou pela porta da cozinha, que a da sala já não abria nem fechava. Emperrara por completo, a maldita, desde aquele dia em que, muito aflita, a fora destrancar para receber a visita do Senhor Espírito Santo, forçado a entrar pela porta da cozinha. Um crime! Um pecado que havia de envolvê-la, para sempre, numa recriminação sinistra, provocando um falatório medonho, na freguesia. De cansada por subir aquele martírio que era a Fontinha, sentou-se num banco, junto à velha e desconjuntada mesa, apoiando aí os dois braços, devidamente, cruzados e sobre eles o rosto quase tapado com um lenço em forma de bioco, a cair-lhe sobre os olhos. Para quê acender a candeia se o sono era tanto e já nada havia para fazer?

… Num de repente, começou a olhar para longe, para muito longe, para onde o Sol caminhava todos os dias… Era uma cidade enorme, com prédios altíssimos, ruas muito estreitas e apertadas a abarrotar de pessoas, a empurrarem-se umas às outras, na ânsia de fugirem da chuva que caía a cântaros sobre a cidade. Um vento fortíssimo soprava com rugidos roufenhos, ensurdecedores. Gotas gigantes caíam sobre os edifícios e muitos deles explodiam e desmoronavam-se. A cidade cobria-se de nuvens negras de pó e cinza e o céu transformava-se num tenebroso manto escuro, ora a clarear-se, repentinamente, com o faiscar impertinente dos relâmpagos ora a toldar-se, cada vez mais, com o ribombar aterrador dos trovões. A chuva caía forte, diluviana e destruidora. A enorme cidade, agora parecia quase vazia: as pessoas haviam-se escondido e abrigado em todos os resguardos mais recônditos, com medo da chuva, da explosão dos prédios e do desabar das nuvens. Um vento muito frio percorria tudo, entrava nas casas, levava as roupas penduradas nas varandas, formava rolos de espuma, sobre os quais voavam pássaros estranhos e agoirentos. A chuva caía em gotas gigantes, sobre a forma de pesados pedregulhos, destruindo os prédios, transformando-os numa poeira que se espalhava pelas ruas, transformando-as em reluzentes riachos, sem árvores nas margens. Já ninguém existia na cidade e os prédios haviam sido todos destruídos. As ruas desfeitas. Não ficara pedra sobre pedra. Apenas um enorme tapete preto, debruado a amarelo, com quatro gigantescos castiçais com velas a arder nas quatro extremidades. No meio, sobre o tapete, um gigantesco caixão, todo forrado de negro, com um pequeno cruxifixo em cima e uma faixa branca no lado com meia dúzia de palavras, com as letras tão trémulas, tão desfeitas e tão amareladas que nem se entendiam. Ao longe, um leve dobrar de sinos. Três fortes pancadas soaram na porta. Era a Olinda, a filha da comadre Inácia. Desde há muito que lhe prometera fazer umas cortinas para a janela da sala. Seriam de renda, com desenhos de flores e de frutos, com letras e palavras evocando a felicidade, a sorte e a fortuna. A tia Júlia havia de as colocar na janela da sala no dia em que o seu marido regressasse da América. Era a Olinda que lhe vinha trazer as cortinas para a janela da sala. Afinal o Senhor Espírito Santo não a castigara por lhe ter aberto a porta da cozinha…

Ao meio da tarde a vizinha Jacinta, que na noite anterior lhe fizera companhia desde a igreja até à porta de casa, perante o estranho e misterioso silêncio que emanava do pobre e humilde casebre, bateu-lhe à porta. Como ninguém respondesse, decidiu-se por abri-la.

Quando mais tarde a vestiam para lhe colocar o corpo inerte entre os velhos e rotos lençóis que a haviam de embrulhar na sua caminhada para o cemitério, encontraram num dos bolsos do velho avental que sempre trazia vestido, muito amachucado, muito amarelado, muito amarrotado, muito regado com lágrimas de dor, muito embalado em suor de sofrimento e angústia, aquilo que parecia ser uma carta, que a Tia Júlia nunca percebera e nunca mostrara a ninguém mas que marcara para sempre o seu mísero destino:

Mrs Júlia Silva:

We are sorry to inform you that your husband Joe Silva died in an unfortunate caught fire in the building where he lived in the suburbs of San Francisco, California. We further inform you that there was an accident at work and the building was insured, so therefore not entitled to any compensation.

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publicado por picodavigia2 às 17:41






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