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ÚLTIMO LUME

Sexta-feira, 28.02.14

Dos gravetos que restam

Faz um último lume

No silêncio das coisas

Confirmando o destino.

 

Resendes Ventura / Manuel Medeiros, in A Noite Enlouqueceu o Silêncio.

 

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publicado por picodavigia2 às 19:09

AS FILHÓS DO ENTRUDO

Sexta-feira, 28.02.14

Na Fajã Grande não havia Entrudo sem mascarados, sem danças e, sobretudo, sem filhós. Fazer filhós era um hábito antiquíssimo e, por isso mesmo, na altura da folia carnavalesca, não havia casa que as não confeccionasse, com mais ou menos ovos, com muito ou pouco açúcar, com mais farinha de milho do que de trigo, de acordo com as posses de cada um.

Os ingredientes eram relativamente fáceis de adquirir, pois eram quase todos caseiros, com excepção da farinha, do açúcar e da canela que eram comprados nas lojas. Para um bom alguidar de filhós bastava um quilo de farinha de trigo e outro de açúcar, uma porção de banha de porco, ovos, casca de limão, água, um pouco de fermento e canela, em pau e em pó.

Para as confeccionar começava-se por juntar ao fermento, devidamente preparado na véspera, a farinha, o açúcar, os ovos, a casca ou raspa de limão e o pau de canela, misturando-se tudo com a água até se formar uma pasta homogénea ou seja com os ingredientes todos muito bem ligados. Com o lenço da cabeça colocado de “calafate”, para não caírem cabelos, amassava-se a mistura muito bem amassada, até ficar muito fofinha, devendo de seguida repousar durante algum tempo até levantar até encher o alguidar. Depois de amassar e antes de se cobrir com grossos cobertores, a mulher que amassava devia benzer, traçando com o lado exterior da mão direita uma cruz sobre a massa e rezando a seguinte jaculatória: “Sam Juan ta fermente e Santantonho ta crescente.” Quando pronta ou seja quando a massa subisse ou “viessse”, colocava-se o alguidar sobre o lar e levava-se ao lume uma sertã com bastante banha de porco. Com as mãos cortavam-se pedacinhos da massa que se esticavam bem esticadinhos (até podiam rebentar a meio) e eram postos a fritar, devendo ser virados e retirados quando bem alourados. Escorrida a gordura as filhós eram polvilhadas com açúcar misturado com canela em pó, mas muitas vezes e para poupar açúcar comiam-se tal qual como vinham do lume. E mesmo assim eram muito boas. Deliciosas!

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publicado por picodavigia2 às 18:21

AÇORIANIDADE

Sexta-feira, 28.02.14

No sentido de procurar uma definição clara e concisa do conceito de “açorianiedade”, encontrei a seguinte, numa tese de doutoramento da Universidade dos Açores, da autoria de José Manuel Dias Batista, sendo o tema da  Contributos para uma noção de açorianidade literária.

 “A açorianidade é o reconhecimento duma identidade cultural que se formou a partir das condições geográficas, meteorológicas, geológicas e históricas do arquipélago dos Açores. A açorianidade literária é a forma como os escritores açorianos representam a vivência insular nas suas obras, criando uma literatura regional com caraterísticas próprias, mas pertencente à literatura portuguesa.”

José Manuel Dias Batista, in Contributos para uma noção de açorianidade literária-

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publicado por picodavigia2 às 16:28

JOSÉ MARTINS GARCIA

Sexta-feira, 28.02.14

José Martins Garcia nasceu na freguesia da Criação Velha, na ilha do Pico, em 17 de Fevereiro de 1941 e faleceu na Lagoa, ilha de S. Miguel, em 3 de Novembro de 2002. Para além de escritor foi professor universitário em Lisboa e nos Açores. Tanto a sua carreira de professor e de crítico literário, como a de escritor, o tornaram digno de referência na sua geração. Bom aluno desde a escola primária, já nessa fase dizia querer ser escritor e mostrava propensão para as letras. Fez estudos secundários na Horta e em Lisboa. As suas vivências, ainda como adolescente, na capital, influenciaram a sua obra literária. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa em 1969, tendo sido aluno de Vitorino Nemésio, Jacinto Prado Coelho, Lindley Cintra, Maria de Lurdes Belchior e de David Mourão-Ferreira. Nemésio e Pessoa foram as suas preocupações críticas, objecto de trabalhos académicos e «modelos» estéticos de forte referência. Além de aluno, José Martins Garcia conviveu com Nemésio em viagens de navio entre Lisboa e os Açores, o que lhe proporcionou aceder a algumas confidências literárias do autor de Mau Tempo no Canal. José Martins Garcia foi leitor de Português em Paris, assistente de Linguística Geral na Faculdade de Letras de Lisboa, Professor-visitante na Brown University e professor na Universidade dos Açores onde se doutorou com uma tese intitulada «Coração Despedaçado» (Subsídios para um estudo da afectividade na obra poética de Fernando Pessoa). Era, de resto, um projecto que já trazia adiantado dos Estados Unidos: um trabalho que, segundo David Mourão-Ferreira, o coloca «na primeiríssima fila dos grandes especialistas da obra de Fernando Pessoa» Professor na Universidade dos Açores, José Martins Garcia leccionou, primeiramente, Linguística, depois direccionou-se para a Literatura, vindo a ocupar a cátedra de Teoria da Literatura até se aposentar. O seu lado de docente e de crítico é faceta muito importante da sua personalidade, na qual se cruzam o criador, o crítico, o professor. «só eu sou o sem deus a contas só comigo»

A obra ficcional de José Martins Garcia é mais conhecida e abundante. Alguns seus contemporâneos contam que terá ensaiado ficção ainda aluno da Universidade e terá mostrado a amigos. O livro não agradou e, num ataque de fúria, tê-lo-á destruído, na lareira da casa onde habitava no Conde Redondo. Martins Garcia era um temperamental a quem a experiência da guerra na Guiné ainda abalou mais os nervos. Martins Garcia ficou fortemente marcado pela experiência das privações, pela violência, pelas incertezas do quotidiano da guerrilha.

Na obra de ficção de Martins Garcia nota-se ironia, sarcasmo e amargura. Não só são evidentes algumas notas disfémicas na reconstituição de alguns ambientes de Lisboa, quer dos anos de estudante, quer mesmo do 25 de Abril, como a recordação de uns Açores de infância e adolescência, iluminada, depois, pelas leituras de história e pela própria reflexão. Ficamos então com uma imagem de ilhas ignotas, caracterizadas por pobreza real e pobreza cultural, por uma religiosidade primária e quase grotesca, por uma aridez do clima e das pessoas. Talvez pensando em especial no Pico da sua infância, lhe ficou esse mundo árido, amargo, injusto, que se esconde porém por detrás de uma paisagem muito bela. A Fome, por exemplo, é uma amarga narração de vivências do estudante das ilhas «perdido» no continente, mas é também um mundo fantástico e simbólico, no qual embrecha uma narrativa histórica do padre António Cordeiro. Há realismo amargo na viagem «paradigmática» dos navios da Insulana (as privações e horrores do enjoo em segunda ou terceira classes de um paquete velho, o destino incerto do estudante, os anos difíceis da capital no fim do regime salazarista. Mais do que a habitual violência verbal, a Fome aponta para uma fome simbólica : isolamento, emigração, terramotos.

A obra de José Martins Garcia, como se vê na dedicatória de A Fome, é quase toda ela uma «descida aos infernos», um acto de preenchimento de uma solidão profunda: «Procuro-me como um fantasma que regressa ao lar (...). [...]. Procuro-me na fome imorredoura.» (A Fome). A vida em Monte Brabo é uma pasmaceira, uma rotina; a montanha do Pico uma espécie de presença tutelar, mas também quase um fantasma – como vê no Conto «Depois do fim do mundo».

São evidentes na obra de José Martins Garcia um sentimento de amarga solidão, de ironia e de sarcasmo veiculados numa linguagem contundente ou mesmo disfémica, com uma repulsa pelo falso moralismo, uma tendência caricatural contra os «bons propósitos» da sociedade, ou até mesmo acerca das contradições da Revolução Mas toda essa irreverência e essa «violência» verbal se fazem num uso impecável da Língua Portuguesa, que se afina no seu ensaísmo e nos seus trabalhos de natureza académica. A obra de José Martins Garcia é já objecto de teses académicas em Universidades Portuguesas e estrangeiras (nomeadamente no Brasil e nos E.U.A.). António Machado Pires

A sua obra apresenta uma diversidade de intervenções, que vão desde o ensaísmo, à poesia, passando pelo romance, pelo conto e pela crítica jornalística.

No jornalismo português destacou-se, antes e depois do 25 de Abril, no República, Jornal Novo, A Luta, A Capital, o Diário de Notícias, O Diabo e a Vida Mundial. No ensaio e crítica: Linguagem e Criação, Cultura , Política e Informação, Vitorino Nemésio .A Obra e o Homem, David Mourão-Ferreira. A Obra e o Homem, Temas Nemesianos, Fernando Pessoa – “Coração Despedaçado”, Para uma Literatura Açoriana, David Mourão-Ferreira – Narrador, Vitorino Nemésio – à luz do Verbo e Exercício da Crítica(1995). No teatro: Tragédia Exacta e Domiciano. No conto: Katafaraum é uma Nação, Alecrim, Alecrim aos Molhos, Querubins e Revolucionários, Receitas para Fritar a Humanidade, Morrer Devagar, Contos Infernais e Katafaraum Ressurecto. No romance: Lugar de Massacre, A Fome, O Medo, A Imitação da Morte, Contrabando Original e Memória da Terra. Na poesia: Feldegato Cantabile, Invocação a um Poeta e Outros Poemas, Temporal e No Crescer dos Dias.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

 

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publicado por picodavigia2 às 16:15

RUA ESCURA

Sexta-feira, 28.02.14

Rua Escura. Rua da noite preta, com sabor a alecrim peçonhento, onde resfolgam sombras apavorantes, aninhadas sob os débeis estertores dos salgueiros ressequidos. Rua de carrascos, de facínoras, de déspotas, calafetada com o restolho de maçãs apodrecidas e caiada com dejectos de lodo languescido. Rua pútrida, onde os cães mijam em repuxo e onde eflui um atribulado cheiro a cio de ratazanas. Rua sem luz, sem claridade, onde as portas das casas, forradas com as farripas das pedreiras abandonadas, apenas, ostenta crisântemos desfolhados, em putrefacção. Rua de um abismo sórdido, carregado de putrescências e fezes. Rua derrelicta, indesejada, perversa, infectada, a abarrotar de fezes putrefactas. Rua abantesma, rua chavascal, rua churra, rua abstrusa, rua execrável. Rua aleijada, torta desfeita, ensanguentada pelas lágrimas dos choupos perdidos entre os sufocos das manhãs desertas, sem sol e sem o cântico das cotovias. Rua pobre, miserável, infame parceira duma humanidade também ela desfeita, intranquila, a balouçar entre as golfadas sufocantes das baleias moribundas. Rua embalada em sacudidelas da escuridão, da desventura, no restolho de alecrim podre e malcheiroso, onde os gritos dos pardais são ganâncias de desespero estéril, de raiva e de morte. Rua, invertida, voltada, rebolada, revirada de cima para baixo e de baixo para cima. Rua do individualismo, da maldade, da ganância, dos abismos nascidos e cultivados em odres de barro putrefacto. Rua modelo de morte, de terror e de traição onde foi injectada a avidez, a cobiça, a castração do destino. Rua dos passos cerceados por mordaças atrozes, indignas, mascadas e atiçadas em fogueiras de enxofre pútrido. Rua de maldades pérfidas, desejos pútridos e vontades anuladas. Rua atrofiadora de desejos, castradora de aspirações, defensora da destruição total e absoluta.

Rua Escura como a noite podre.

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publicado por picodavigia2 às 10:16

REAL

Sexta-feira, 28.02.14

MENU 29 – “REAL”

 

 

 ENTRADA

 

Canapés simples de favas e carne de porco,

 

PRATO

 

Rolo de filete de pescada, recheado com salmão, legumes e ervas aromáticas.

Puré de talos de brócolos e maçã. Rodelinhas de cenoura barradas com creme de queijo fresco, com sabor a salmão

 

SOBREMESA

 

Pêssego de calda e Gelatina do mesmo.

 

 

******

 

Preparação da Entrada: Aproveitar sobras de um guisado de favas com carne de porco, dispor, num prato, quadradinhos de tostas e cobri-las, alternadamente, um com favas outro com carne. NB – As favas devem ser substituídas por figellots.

 

Preparação do Prato – Preparar o filete de modo a que se possa enrolar e temperá-lo juntamente com o salmão. Cozê-los com os legumes e esmagar. Estrugir um pouco de cebola e alho em azeita, juntar o esmagado, temperar e reduzir a pasta. Estender o filete, barrá-lo com a pasta e enrolá-lo em película aderente, formando um rolo atado nas pontas. Cozer ao vapor, juntamente com os talos e a maçã e reduzir a puré, juntando creme de queijo fresco. Cozer as rodelas de cenoura e barrá-las com creme de queijo. Desembrulhar o rolo e alourá-lo em azeite perfumado a alho e ervas. Empratar

 

Preparação da Sobremesa - Confecção tradicional.

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publicado por picodavigia2 às 09:00

E DEPOIS?

Quinta-feira, 27.02.14

“ - E depois?

- Morreram as vacas e ficaram os bois.”

 

Espécie de adágio, sob a forma de diálogo, utilizado frequentemente na Fajã Grande. A segunda frase surge como resposta à primeira, sendo uma forma de manifestar que alguém não estava interessado em falar sobre um assunto ou continuar uma conversa. Por vezes, também significava falta de paciência por parte dos mais velhos para dialogar ou responder às crianças.

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publicado por picodavigia2 às 18:13

CARNAVAL

Quinta-feira, 27.02.14

Chegou o Carnaval

Vamos todos Carnavalar

Pois no carnavalinho

Iremos sempre Carnavalitar.

 

Catarina Fagundes

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publicado por picodavigia2 às 17:35

A LENDA DE BOIEIRO

Quinta-feira, 27.02.14

Especialmente na primavera, é possível observar, relativamente perto da Ursa Maior, em noites claras e de céu estrelado, uma das mais brilhantes estrelas do firmamento chamada Arcturus, situada no vértice inferior da constelação Boieiro a que o próprio Homero faz referência na Odisseia.

Esta constelação, ao longo das noites, movimenta-se, embora muito lentamente, na abóbada celeste, de este para oeste, dando a ideia de um pastor ou criador de gado a caminhar, conduzindo um rebanho ou uma manada. Essa a razão por que aquela constelação houve jus deste nome – Boieiro.

A origem deste nome prende-se, com uma interessante lenda, contada antigamente, segundo a qual, Boieiro era um jovem muito sensato e com um grande sentido de dedicação e de entrega aos outros, mantendo uma delicada consciência social. Certo dia, descobriu que afinal os habitantes do planeta Terra que ainda viviam um puro e original nomadismo, se encontravam em grandes dificuldades para obter os alimentos necessários à sua sobrevivência, uma vez na procura dos mesmos, tinham que se deslocar de região, o que nem sempre era possível, devido às distâncias, ao caudal dos rios, às tempestades, etc., etc.. Boieiro decidiu, então, apoiá-los, a fim de que se tornassem capazes de se ajudarem uns aos outros, cultivando eles próprios os alimentos com que haviam de sobreviver. Para tal, construiu o primeiro arado, enviando-o para a Terra. Desde então, os homens conseguiram lavrar, semear e cultivar os campos, produzindo o seu próprio alimento, tornando-se auto-suficientes e sem terem necessidade de se deslocarem de uns sítios para outros. Devido a tão grande benefício que Boieiro disponibilizou à humanidade, os deuses decidiram recompensá-lo, dando-lhe a honra de ser colocado, para sempre, no céu, sob a forma de constelação, ao lado do arado que ele próprio enviara para a Terra, ou seja, a Ursa Maior, também conhecida como o Arado, por ter uma forma semelhante a este importante instrumento agrícola.

 

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publicado por picodavigia2 às 10:40

O IGNORANTE, O SÁBIO E O SENSATO

Quinta-feira, 27.02.14

"O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflecte.”

Aristóteles

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publicado por picodavigia2 às 09:30

SENTIMENTO DE CRIANÇA

Quarta-feira, 26.02.14

cada palavra,

cada gesto

cada olhar

e, sobretudo, cada sentimento

de uma criança,

é um verso que

mesmo rasgado

ou nunca escrito,

se transforma

no mais belo poema de amor.

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publicado por picodavigia2 às 14:39

TODOS

Quarta-feira, 26.02.14

Finalmente chegaram os alunos de São Miguel. Vinham aos magotes quase todos acompanhados pelas famílias, oriundos do Nordeste, Algarvia, Povoação, Maia, Lomba da Maia, Ginetes, Capelas, Ribeirinha, Ribeira Grande, Pico da Pedra, Ribeira das Tainhas, Fajã de Baixo, Relva, Furnas, Lagoa, Água de Pau e, sobretudo, de Ponta Delgada e que, depressa, encheram os corredores, ocuparam as salas e atafulharam as camaratas. Senhores de um à vontade superior ao dos alunos oriundos das outras ilhas, donos de uma pronúncia estranha, arrastada e pouco inteligível, mas graciosa e ternurenta, tornaram mais vivo, mais alegre, mais claro e menos silencioso, aquele inóspito e estranho ermitério. Instalaram-se nas camas ainda vagas, ocuparam as carteiras livres, arrumaram as malas nos espaços disponíveis e completaram os restantes lugares do refeitório, enchendo o Seminário por completo.

À tarde, foi-nos apresentado o outro prefeito, o padre José Franco, cuja primeira tarefa foi a de formar a “bicha”. Tendo como critério principal a altura de cada aluno, colocou os mais pequenos à frente e os maiores na retaguarda. Nessa altura tive o meu primeiro momento de ânimo, conforto e alegria. Eu e o Manuel Faria, a quem aos poucos mais me ia afeiçoando e que, umas vezes me consolava e outras, chorava tanto ou mais do que eu, éramos, sem sombra de dúvida, os mais pequenos, pelo que formamos par e fomos colocados na frente da fila: ele à direita e eu à esquerda. Atrás de min, o Jorge Nascimento, acabado de chegar de São Pedro de Ponta Delgada e, a seguir ao Manuel Faria, o Lima Oliveira, vindo do interior da ilha. Lá no fundo e porque eram os maiores, o José Gabriel, o José Maria Couto, o Onésimo, o Octávio, o José Maria Bettencourt e o Noé. Pelo meio, os restantes, formando um total superior a trinta, a que se juntavam quase outros tantos do segundo ano. Seria assim, em fila indiana, que nos havíamos de deslocar, durante dois anos, quer fora quer dentro do Seminário, nas idas e vindas, para os passeios, para as aulas, para o refeitório, para a capela e, até, para ir ao coro da igreja, fazer a oração da noite, antes de dormir.

Organizada a “bicha”, tocou a campainha e conduziram-nos, através de escuras e fleumáticas escadarias de pedra, até à capela-mor da igreja de Todos os Santos, onde fomos recebidos pelo Reitor e pelos restantes professores, onde rezamos em conjunto pela primeira vez e onde nos foram transmitidas algumas das normas, das orientações e das regras que haviam de orientar a nossa vida, a partir daquele dia.

O reitor do Seminário era o padre Jacinto Almeida, um homem baixo, de meia-idade, sempre muito sério e de poucos sorrisos. Geralmente estava no seu quarto, raramente celebrava missa para os seminaristas, a não ser nos dias considerados mais importantes ou especiais, mas no refeitório era ele quem presidia às refeições, fazendo as orações iniciais, anunciando o “Deo grátias” – sinal de que terminava o período de silêncio e podíamos conversar - e, no fim, dava indicação para que os seminaristas se levantassem e saíssem. Era sobre ele que caía toda a responsabilidade e orientação da casa. Leccionava as disciplinas de Latim e Francês, com grande rigor, exigência e sabedoria. Por vezes, também aparecia nos recreios, conversando com os alunos e contando algumas histórias, mas sempre com um ar muito sisudo e, aparentemente, um pouco distante. 

O Dr Simão Leite de Bettencourt era o director espiritual, confessor e professor de Religião. Já de avançada idade, passava muito tempo na sua terra natal, a vila da Lagoa. Fora durante muitos anos professor e director espiritual do Seminário de Angra, e agora, ali, estava numa espécie de pré-reforma, dado que os seminaristas que frequentavam aquele Seminário, de tão novinhos que eram, pouco trabalho lhe davam, em termos de exigências e práticas espirituais. O Dr Simão, logo que soube que eu era da Fajã Grande das Flores, manifestou um enorme carinho e interesse por mim, dispensando-me grande atenção e amizade. Gostava muito de conversar comigo, porquanto, há uns anos atrás, tinha ido passar as férias de Verão à Fajã Grande. Tanto gostara, tanto se extasiara, tanto se envolvera com tudo e com todos e tantas saudades tivera que, passados uns anos, lá voltara, embora eu dessa segunda visita, que da primeira ainda nem era nascido, tivesse apenas uma vaga e ténue lembrança. Ficara hospedado em casa do padre Jaime, na Assomada, mesmo ali ao lado da minha casa, pelo que se lembrava dos meus pais, de meus irmãos e até de mim. Além disso conhecia quase metade das pessoas da Fajã Grande e até da Ponta, pelas quais me ia perguntando, uma a uma. Contou-me que subira o Outeiro Grande, o Pico da Vigia, a Bandeja e até a Rocha, bebendo água na Fonte Vermelha. Fora várias vezes celebrar missa à Ponta, substituindo o pároco, o Senhor Padre Pimentel. Visitara a Cuada, fora às maçãs ao Delgado e às ameixas à Cabaceira. Viu as lagoas dos Matos, a Rocha dos Bordões e deu belos passeios até ao Poço da Alagoinha, às Furnas, ao Areal e ao Porto, sendo que estes eram diários, sentando-se, à tardinha, à beira mar, a ver o pôr-do-sol. Não cessava de louvar e engrandecer a Fajã Grande: a imponência das suas rochas com as admiráveis quedas de água, a beleza das paisagens, a bondade das pessoas, a simplicidade do seu viver e a singeleza dos seus hábitos e costumes. Numa palavra, afirmava sem rodeios, que depois da sua terra natal, a Vila da Lagoa, o lugar açoriano de que mais gostava era sem dúvida a Fajã Grande, o que me envaidecia e lisonjeava de sobremaneira. Foi este relacionamento amistoso que o Dr Simão sempre me dispensou que, aos poucos, me foi animando, alegrando e, de alguma forma, fazendo apagar mágoas, desfazer tristezas e até sublimar as saudades.

Por sua vez o padre Agostinho e o padre José Franco eram os prefeitos. Era a eles que cabia a responsabilidade e a custódia dos seminaristas desde de o amanhecer até à hora de deitar e, mesmo depois desta, permaneciam algum tempo nas camaratas, passeando para trás e para diante, às escuras, até que os alunos adormecessem ou eles julgassem que todos tivessem adormecido por completo. Eram eles que celebravam a missa da manhã, orientavam as orações e a meditação, acompanhavam as horas de estudo, os recreios, nos faziam as compras de livros, cadernos e restante material e até eram eles que nos acompanhavam durante os passeios para fora do Seminário. Tudo isto era feito semanalmente e à vez, por cada um deles. O padre José Franco era também o ecónomo da casa e professor de Português e Matemática, enquanto o padre Agostinho Tavares exercia as funções de secretário do Seminário, leccionando as disciplinas de Ciências e Música.

Um único professor não residia no Seminário. Era o padre José Baptista, professor de Desenho e pároco de São Pedro, de Ponta Delgada.

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publicado por picodavigia2 às 09:08

O FRADE O ESTUDANTE E O SOLDADO

Quarta-feira, 26.02.14

(CONTO TRADICIONAL)

 

Um frade, um estudante e um soldado iam, juntos, a caminho, em peregrinação. Caminhavam a pé, sem um tostão no bolso e a pedir. Deram-lhes, numa casa, um pequeno queijo de cabra. Não sabendo como dividi-lo pelos três, porque, de tão pequeno que era, não chegaria um pequenino pedaço para cada um, o frade propôs que todos dormissem e o que queijo seria guardado e, no dia seguinte, havia de ser comido por aquele que entre eles tivesse, durante a noite, o sonho mais bonito. Pensava o frade que havia de ser ele a arrecadar o queijo, pois para tal utilizaria, ao descrever o seu sonho, todos os seus recursos oratórios. O estudante aceitou a proposta com entusiasmo, pois sendo possuidor de muita sabedoria e senhor de muita lábia, facilmente, encantaria, com a narração do seu sonho e o queijo havia de ser seu. Olaré se havia! O soldado, por sua vez, encolheu os ombros e nada mais teve a fazer do que aceitar. Foram deitar-se. O frade e o estudante depressa adormeceram. Mas o soldado não conseguia dormir, pensando na forma como havia de conseguir o queijo. Cuidava ele que o frade habituado às práticas nas igrejas, decerto faria mais um dos seus belos sermões e o Estudante muito sábio, senhor de muita treta, não lhe ficaria atrás. Ele não teria hipótese alguma, por isso, levantou-se, foi ao queijo e comeu-o.

Pela manhã, os três sentaram à mesa para tomar café e cada qual teve de contar o seu sonho. O frade, num discurso belo e eloquente, disse ter sonhado com a escada de Jacob e descreveu-a brilhantemente. Por ela, ele subia triunfalmente para o céu e sentava-se à direita de Deus Pai, rodeado de Querubins, Serafins, Mártires e Virgens. O estudante, também com um belo discurso, narrou que sonhara já estar no céu à espera do frade quando ele subia as escadas. Quando chegou a vez do soldado, ele, sorrindo, contou:

— Pois meus senhores, eu sonhei que via no céu o senhor frade sentado junto de Deus, entre cânticos e louvores e, o senhor estudante, a seu lado, também muito feliz. Eu ficava cá em baixo, na Terra, sozinho e triste. Então comecei a gritar:

— Senhor estudante, senhor frade, o queijo, o queijo!? Os senhores esqueceram-se do queijo.

Então, vocês, lá no céu, muito felizes e contentes, sem precisar de comer ou de beber o que quer que fosse, responderam:

— Come tu o queijo, soldado! Come o queijo, porque nós estamos no céu, não precisamos de comê-lo.

O sonho foi tão forte e real que eu pensei que era verdade. Então levantei-me, enquanto vocês dormiam, fui ao queijo e comi-o.

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publicado por picodavigia2 às 00:25

MUDAR O MUNDO

Terça-feira, 25.02.14

“Antes de iniciares o trabalho de mudar o mundo, dá três voltas pela tua casa.”

 (Provérbio chinês)

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publicado por picodavigia2 às 19:09

A PARÓQUIA DA FAJÃ GRANDE

Terça-feira, 25.02.14

A erecção da nova paróquia de São José da Fajã Grande, por separação da de Nossa Senhora do Remédios de Fajãzinha, foi feita por alvará do bispo de Angra, D. Frei Estêvão de Jesus Maria, datado de 20 de Junho de 1861, instituindo de facto uma nova paróquia, incluindo nela as povoações da Fajã, da Ponta e da Cuada.

A igreja paroquial de São José da Fajã Grande nasceu como uma pequena ermida da mesma invocação, cuja construção foi iniciada em 1755, sendo benzida a 24 de Maio de 1757, pelo vigário da Matriz de Santa Cruz e Ouvidor de toda a ilha e também do Corvo, Agostinho Pereira de Lacerda. Situava-se no serrado do Licate. O seu primeiro administrador foi o padre Francisco de Freitas Henriques. Segundo a tradição, esta ermida comunicava, através duma ponte, como solar dos Freitas Henriques, que antes teria pertencido a um sargento-mor, deportado no lugar. O primeiro enterro na ermida teve lugar em Janeiro de 1758. A actual igreja, construída no sítio da antiga ermida, foi iniciada em 1847, ficando concluída em 1849. O templo foi benzido a 1 de Agosto de 1850.sendo feita pelo padre Francisco António da Silveira, ouvidor eclesiástico. Por legado de um emigrante fajãgrandense na América, de seu nome José Luís da Silveira, a igreja recebeu grandes melhoramentos em 1880.

 

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publicado por picodavigia2 às 15:02

MEMÓRIA VAGA

Terça-feira, 25.02.14

(PEDRO DA SILVEIRA)

Era um vapor que passava

e o seu rasto na água.

 

Era uma ave suspensa

no redondo do céu.

 

Era a tarde e a sua

luz esmaecente.

 

E eram as nossas mãos

que se uniam

 

em silêncio.

 

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publicado por picodavigia2 às 14:09

O VESTUÁRIO

Terça-feira, 25.02.14

Não se pode falar, com rigor, de um traje típico da Fajã Grande, no que às primeiras décadas do século passado, diz respeito. As pessoas, no geral, andavam descalço e vestiam pobremente, sendo que a maioria da roupa vinha da América e por isso mesmo, muitas vezes o seu uso tornava as pessoas desaleitadas e pouco elegantes. Apesar de tudo o vestuário permitia uma perfeita distinção entre o pobre e o rico, sobretudo entre os que trabalhavam no campo e os que não faziam nada e que, consequentemente, andavam sempre bem vestidos. Cada qual se vestia de acordo não tanto com as suas possibilidades, mas sobretudo em função do que vinha da América, nas tradicionais encomendas e lhe coubera, muitas vezes por sorte.

De entre as peças de vestuário feminino usadas, antigamente, na Fajã Grande, merecem lugar de destaque a chamada saia peliçada e o bolero. Muitas vezes e em muitas ocasiões, as mulheres usavam um lenço de merino, a cobrir a cabeça, atando-o por debaixo do maxilar inferior ou com as pontas amarradas atrás: de clafá. As mulheres de mais idade, muitas delas viúvas, vestiam totalmente de negro até ao fim da sua vida. Usavam um xaile negro, por cima do vestido e um lenço escuro na cabeça. A forma de trajar o xaile dependia do estado da portadora ou de uma situação passageira porque passava. Assim, as viúvas e as mulheres quando deitavam luto usavam-no dobrado em triângulo e sem cadilhos, para maior simplicidade, fazendo-o cair em ponta, ao longo das costas. Era o chamado xaile de ponta. Por sua vez as mulheres solteiras ou casadas usavam o xaile, dobrando-o como se fosse uma manta. Para sair de casa depois de cozer pão e estar quente do forno ou em dias de chuva ou de noite, as mulheres colocavam o xaile sobre a cabeça, prendendo-o, à frente, com as mãos

As cores preferidas na indumentária feminina variavam com o estado de solteira, casada ou viúva. Estas vestiam de preto até ao fim da sua vida ou até contraírem novas núpcias. As solteiras usavam roupas de cores vivas e claras, as casadas de cores mais modestas, mas tudo isto, na maioria dos casos era condicionado pela roupa que vinha nas sacas da América. Como objectos de adorno, as raparigas solteiras, geralmente, traziam, ao pescoço, um colar ou um fio com uma cruz ou medalha e usavam brincos nas orelhas. Também era muito usado o broche e as prisões de prender o cabelo. O anel, geralmente fantasia, constituiu o mais apreciado objecto de luxo da mulher, que o trazia não só como adorno mas ainda como distintivo do seu estado. As solteiras traziam-no nos dedos indicadores e médio, as casadas, no anelar da mão esquerda.

Os homens vestiam calça de cotim ou de angrim, estas vindas da américa, camisa de flanela e a froca, uma espécie de blusão também de angrim, substituído, poe vezes por uma jaqueta e noutras por uma suera, sendo esta também muito comum às mulheres.

A roupa melhor era designado por roupa de domingo enquanto a outra simplesmente se chamava roupa de trazer.

Vindos da América, também era muito vulgar, nos homens o uso dos alvarozes imitação do inglês overalls. Tratava-se de umas calças de angrim, bastante larga que se vestiam sobre uma camisola feita de lã de ovelha. Os homens, mesmo os mais novos, geralmente cobriam a cabeça com uma boina ou com um boné. Ao domingo alguns usavam chapéu de lona e nos dias de muito sol quase todos recorriam ao chapeu de palha de trigo entrançada, fabricado na própria freguesia e também comuns às mulheres, mas com formas diferentes e distintas para cada um dos sexos. Sobretudo os mais novos andavam, em regra, descalços, sendo a cobertura dos pés quase considerada um luxo escusado e dispendioso. Andar descalço era o mais normal, noentanto, além de ser prejudicial à saúde e inconveniente, na travessia de grotas e ribeiras, e no trânsito por caminhos íngremes e escorregadios. Pior no entanto era a lama que se infiltrava em dedos gretados e em topadas, situação que atingia o seu apogeu nos momentos de tirar o esterco e a urina dos palheiros do gado. Somente os velhos e doentes andavam calçados, sendo muito comuns os chamados sapatos de pele de cabra. Os sapatos que vinham nas encomendas da América, muitas vezes grandes outras curtos e quase sempre usados e desajeitados eram um luxo, sendo o seu uso exclusivo de domingos e dias de festa.
Para certos serviços, nomeadamente o de ceifar erva nas lagoas, eram as botas de borracha, compradas nas lojas da freguesia e muito prejudiciais à saúde. Alguns homens usavam tamancos e as mulheres galochas

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publicado por picodavigia2 às 10:50

PERDÃO

Terça-feira, 25.02.14

O António Tenente era um exímio pescador mas tinha um feitio dos diabos. Autoritário, impulsivo, rabugento, teimoso e, sobretudo, incapaz de perdoar ofensa que lhe fizessem. Anos a fio, na “Senhora da Ajuda”, à pesca da albacora, o afastamento prolongado da família como que o abrutalhara, filtrando-lhe a sensibilidade, arrefecendo-lhe os sentimentos, gravando-lhe, na alma, o restolho da solidão, da apatia e da indiferença. Tornara-se frio, solitário, insensível, implacável e, sobretudo, casmurro. Agora, apenas o mar e só o mar lhe domava os sentimentos e satisfazia os desejos. O mar, para o Tenente, parecia ter-se tornado numa paixão rude, num fascínio relutante, num encanto achaboucado. O mar era algo de que jamais se havia de separar e, mesmo agora, já trôpego e pouco afoito a aventuras em águas distantes e profundas, longe da costa, arrastava-se, até ao porto e passava horas e horas ali, ora sentado sobre a rocha a olhar, sombriamente, o horizonte perdido, ora a pescar de pedra. Hábil e expedito, caniço bem aparelhado, peixe bem engodado e era um abarrotar de sargos, prumbetas, vejas, garoupas, castanhetas, salemas e um ou outro peixe-rei. Enchia a casa, a mulher pagava favores às vizinhas e ainda vendia uma ou outra cambulhada mais robusta e substanciosa.

O Tenente tinta três filhas. A mais velha, a Ermelinda havia-se perdido de amores pelo Augusto, o filho do Chico do Cabeço, ele, também, um velho e experiente pescador de traineira. O Tenente e o Chico, porém, não se falavam. Pior. Odiavam-se a tal ponto que nem se podiam ver. Enredos e discussões a bordo da “Senhora da Ajuda” geraram ameaças, despoletaram insultos e, sobretudo, cimentaram ódios, que, dificilmente, se haviam de dissipar. Ermelinda sabia-o e temia que o progenitor algum dia anuísse ao namorico. O coração, porém, fora mais forte. A simpatia inicial transformara-se em paixão e esta, em namoro. Afinal, ele, o Augusto, também a amava e muito.

Correram os dias, intensificou-se o namoro, divulgou-se pela freguesia a novidade, a qual, rápida e célere, foi parar aos ouvidos do Tenente. Muniu-se o facínora duma corda dobrada em quatro e esperou a filha, ao lusco-fusco, perante os choros e imprecações da mulher que, adivinhando a borrasca, implorava clemência.

Mal entrou Ermelinda em casa, surge-lhe, pela frente, o Tenente, furibundo e terrífico, de chicote em riste, indagando, em tom ameaçador:

- É verdade que namoras o filho daquele pulha? – Perante o silêncio comprometedor da rapariga, o Tenente insistiu, ao mesmo tempo que lhe assapava, como rito inicial da zurzidela, uma forte chicotada nas costas, com a corda que, momentos antes, dobrara em quatro.

Como Ermelinda continuasse calada, pese embora os gritos da mãe que a todo o custo tentava libertar a filha da fúria do pai, este, empurrando a mulher, assapou na rapariga uma nova vergastada e ainda uma terceira. A moça, por entre gemidos de dor e gritos de angústia, caiu por terra, esvaindo-se em sofrimento. Prostrada, ao lado, a mãe alvoroçara-se em choros e berreiros que em nada demoviam o algoz da sua pertinaz atrocidade. Encarando a filha, com os olhos a abarrotar de raiva, furioso e colérico, o Tenente ameaçou:

- Ou esqueces o filho daquele porco, para sempre ou sais por essa porta fora imediatamente.

Muito a custo, Ermelinda, lavada em lágrimas e arquejar em dor, levantou-se em silêncio, abriu a porta e saiu, enquanto o pai continuava a vociferar impropérios e injúrias.

Com o corpo dorido e a alma perfurada, Ermelinda foi procurar alento em casa dos pais do Augusto. Recebeu-a a mãe que o rapaz passava os dias no mato, a roçar. Saia alta madrugada, levava consigo um pedaço de bolo e queijo, uma garrafita de vinho e lá ia, trabalhando à jorna. Regressou já noite, surpreendendo-se com a presença de Ermelinda. O pai, ao lado, até parecia que saboreava com enlevo mesquinho o desprezo a que o Tenente botava a filha, vangloriando-se, cinicamente, de a ver ali, destronada, sofrida, humilhada, pedinte, afastada do aconchego familiar. Casasse o filho com quem quisesse mas ali em casa, rebento de tão ruim cepa, filha daquele Caim, nunca havia de pernoitar, nem lhe havia de lhe chegar uma febra que fosse de comida, nem uma coberta de cama, ou outro provento qualquer.

Fez-se o casamento à socapa, sem boda e sem enxoval e foi o Aníbal, para quem o Augusto, habitualmente, trabalhava e que lhe alojara a moça, que lhe arranjou uma casa, velha e decrépita, um pardieiro, onde, apesar de tudo, poderiam, ao menos, colocar uma barra, uma mesa e acender o lume. Nesse dia o Tenente, a propósito de renovar a cédula, partiu para o Faial na lancha da manhã e voltou na da tarde…

Envoltos em penúria, abalroados por privações mas dignificados pelo amor, sem terras, sem vinhas, sem gado, com parcos recursos, mas fugindo aos vitupérios dos progenitores, Augusto e Ermelinda fixaram-se ali, recuperando e melhorando, aos poucos a velha casa que o amigo lhe emprestara.

Chegou o primeiro rebento. Novamente os ouvidos do Tenente se aferroaram com a novidade. Vociferou, uivou, recalcitrou e protestou, jurando que neto do pelintra do Chico do Cabeço nunca lhe haveria de entrar em casa.

Certa tarde, porém, ao passar junto ao pobre casebre onde morava a filha, parou, espreitou e viu. Viu que um garotito, talvez já com dois anitos, saltava, pinchava, corria com alegria e deslumbramento como se fosse a criança mais feliz do mundo. Cabelos loiros e encaracolados, olhos azuis, rosto muito branco e pele macia, a criança aspergia docilidade, irradiava ternura, emanava inocência. O Tenente, não se conteve. Impulsivamente, saltou o muro e viu-se no pequeno quintal, junto à porta do humilde casebre. O petiz, como que descobrindo, no rosto calejado do velho, uma onda de ternura tão grande como o mar, pressentindo que aquele homem o desejava abraçar, correu na sua direcção, de braços abertos, agarrando-o e abraçando-o, como se sempre o tivesse conhecido. Lágrimas grossas, amargas, dolorosas mas emotivas escorriam dos olhos e cobriam o rosto calejado do Tenente, que, simultaneamente, também se abraçava ao neto, idolatrando-o na sua cândida inocência.

E quando Ermelinda, apercebendo-se de que alguém lhe rondava o casebre, assumiu à porta, chamando o “António”, o pai voltou-se. Ela vendo-o embebido naquele idílio, também se dirigiu para ele de braços abertos, exclamando:

- Está perdoado, meu pai! 

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publicado por picodavigia2 às 09:21

A MUSGUINHA

Segunda-feira, 24.02.14

Fora assinalada, logo à nascença, com o carácter indelével da indiferença paterna: “Só faltava mais este empecilho!... Há de se criar praí”. A mãe, ainda mal refeita das dores puérperas, também, encolheu os ombros e limitou-se a confirmar, em tom doloroso e suplicante: “Com a ajuda de Deus”.

Predestinada com a indiferença paterna, assinalou-a tragicamente, o acaso obsequiando-a com uma infância dolorosa, amargurada e displicente. O destino pautou-lhe a juventude com desgraça, sofrimento, solidão e tristeza. Por isso mesmo, entrou na adolescência envelhecida e infeliz, açulada pela desventura, pelo abandono, pela miséria e, até, pela fome. Já feita mulher escapou-se-lhe o amor, escapuliu-se-lhe o carinho e evaporou-se-lhe, insustentável, a alegria de viver.  

Maria de Freitas de seu nome, granjeara o epíteto de “Maria Musguinha” ou, simplesmente, “A Musguinha” porquanto, em vida, se especializou na apanha de musgo, nos baldios dos matos, que acarretava à cabeça em pesados sacos e que depois ia vendendo aqui e acolá, por tuta e meia. Com este mísero e incerto rendimento lá foi sobrevivendo e, ajudando os pais, velhos, doentes, também eles abandonados e sós, escanzelando-se em desmazelo, finando-se em abandono e indiferença.

Ficou só, a Musguinha. Com a morte dos pais fixou-se, ainda mais, num isolamento, total, absoluto e hediondo. Abdicando no desmesurado empenho da apanha do musgo, optou pela pedincha

Agora, velha e quase desmiolada, durante o dia, ora deambulava pelas ruas na demanda de uns centavos ora batia a uma ou outra porta na procura de uma côdea de pão. Depois, à noite, a solidão, no escuro pútrido do miserável casebre onde se enclausurava.

Ciosa de voz, maltrapida de roupas, vacilante no caminhar e fragilizada nos anseios e aspirações, mantinha, lá bem fundo e no seu íntimo, ofuscada e sem dela ter consciência ou sequer sentir, uma obscura, inebriante e inexaurível vontade do que quer que fosse.

A ganapada, na rua, corria atrás dela, instigando, desafiando, provocando, gritando:

- Olha a Musguinha, bendita santinha. – E levantando-lhe a fibra do saiote, riam, gozavam, escarneciam, insinuavam e davam-lhe beliscões nas pernas.

Ela insurgia-se, revoltava-se, indignava-se, praguejava como se os não quisesse a seu lado, nem muito menos que lhe tocassem… Os monços, porém, cada vez mais açulados.

Mas se eles dela não se aproximavam ou se os não via, ávida de desejos, perguntava a quantos com ela se cruzavam:

- Ti vite ui monce? Tu vite ui monce? Undé candim ui monce? Undé candim ui monce?

 

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publicado por picodavigia2 às 14:22

PASSASTE SENHOR

Segunda-feira, 24.02.14

(POEMA DE JOSÉ CARLOS SIMPLÍCIO)

Passaste, Senhor...

E o teu olhar

longo e suave

a luz em mim

fez despertar.

 

Passaste, Senhor,

para dizer

de tanto amor...

Palavra assim

não sei de haver!

 

Passaste, Senhor,

e eu lá segui

tangendo a harpa

do coração

atrás de Ti.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:37

A CARTEIRA

Segunda-feira, 24.02.14

Daniela Furtado é licenciada em engenharia química pela Universidade do Porto. Actualmente exerce o ofício de carteiro, sendo a primeira e única mulher a exercer tal actividade na cidade onde reside.

Após terminar o curso universitário, com uma média bastante alta, foi lhe proposto fazer um estágio profissional num laboratório de análises de água e alimentos. Após o estágio e face à qualidade do trabalho realizado e à dinâmica que introduziu no sector em que se integrou e ainda, tendo em conta o seu perfil de trabalhadora qualificada e competente, foi convidada a integrar os quadros da empresa, onde trabalhou, com qualidade e afinco, durante cerca de dois anos. A empresa, no entanto, faliu e encerrou, vendo-se, Daniela, de imediato, no desemprego. Nessa altura, porém, já havia casado e era mãe de um filho, com dois anos. A piorar a situação, uns meses depois, foi abalroada por um inevitável drama conjugal. O marido, a trabalhar na empresa do próprio pai, enveredara por caminhos estranhos e duvidosos, atafulhando-se em meandros escuros, ilegais e pouco abonatórios da honra e da dignidade de marido e pai de família. Perdera-se em devaneios malévolos, em embustes e corrupção, o pulha. Despesas atrás de despesas, desfalques, roubos, falcatruas e a empresa do pai a desmoronar-se, aos poucos, acabando por ruir por completo, que nem um castelo de cartas. Quando o progenitor se apercebeu da fraude, já era tarde, muito tarde. E como o crápula se agigantara em insensatez e em inconsciência e se tornara incapaz, sequer, de submergir da alhada em que se metera, de se ressarcir em costumes e de se envolver em docilidade ou de se adereçar de arrependimento, o divórcio foi a única alternativa.

Há dias encontrei-a, na minha rua, desenvolta e graciosa, ágil e esbelta, a distribuir o correio. Aproximei-me, apreensivo e admirado, pois chegava-me à memória os tempos de criança, franzina e débil, em que fora minha aluna. Sorridente e, aparentemente, feliz, esclareceu que sem trabalho, fosse ele qual fosse, é que não havia de viver. A empresa não a indemnizara por não ter tempo de serviço que o justificasse e não tinha recebido subsídio de desemprego, nem recebia outro subsídio qualquer. Trabalhava no que quer que fosse, pois tinha que sustentar o seu menino, cuja fotografia trazia colada ao peito. Começara por empregada de balcão, passara pela caixa de um supermercado, mas, infelizmente, tudo ocasional e esporádico. Agora surgira-lhe aquela oportunidade que agarrara a todo o custo, embora também fosse efémera, uma vez que estava, apenas, em substituição de um carteiro que estava doente. Nas horas vagas ainda distribuía publicidade de um supermercado.

- Adoro este trabalho – confessou. - Circula-se ao ar livre, vagueia-se pelas ruas, vê-se gente. As cartas e as encomendas vêm neste carrinho. Até parece que viajo num mundo de sonhos, num barco de fantasia.

- E não tens receio de que alguém se meta contigo, te provoque, te ofenda ou te faça mal?

- De forma nenhuma! Os meus colegas aceitaram-me muito bem e tratam-me com respeito e carinho. É verdade que não existem mais mulheres carteiras mas eles estão habituados a lidar, no seu trabalho diário, com mulheres, porque os funcionários dos correios, na maioria, são do sexo feminino. Quanto aos moradores das casas onde faço as entregas, ai deles! Mas, geralmente, nem os vejo. Apenas um cão ou outro me faz frente, mas nenhum me mete medo

Elogiei-a. Retorquiu-me:

- Sabe uma coisa, professor? Lembro-me, muitas vezes, de um conselho que o professor nos dava nas aulas.

- Qual? – Indaguei. – Acho que vos dava tantos!..

- Pois dava. Mas lembra-se de nos dizer que, quando na nossa vida sentíssemos problemas graves, para os resolver devíamos seguir o princípio de uns filósofos gregos, cujo nome já não me lembro, mas o princípio era o seguinte: “Cerra os dentes e aguenta”? Na vida, para vencermos, há que lutar com força e tenacidade, há que ser forte!

- Eram os estóicos, os discípulos de Zenão de Citium. Esses filósofos, realmente ensinavam que o fim último da existência humana, consistia na prática da virtude e do bem e entendiam que a melhor atitude diante dos problemas, sobretudo dos mais complicados e de difícil solução era, para os poder ultrapassar, a de não nos deixarmos abater, nem muito menos vencer pelas dificuldades, nem pela dor ou pelo sofrimento. Devemos reagir com força, coragem e, se necessário, até com sofrimento, a fim de os solucionar. Os estóicos eram homens com garra e de “genica”.

- É isso que eu tenho feito, professor. Procuro, sempre, não me deixar abater. Enfrento os problemas e procuro soluções para os resolver. Tenho a certeza de que quando terminar este contrato, hei-de arranjar outro trabalho. Mas, na verdade, o meu sonho era trabalhar na minha área… E isso vai acontecer, pode acreditar.

E lá seguiu, puxando o carrinho com agilidade, segurança e entusiasmo, introduzindo uma cartinha aqui, outra ali, nunca hesitando, apesar de haver um ou outro cão que lhe ladrava, tentando, infrutiferamente, obstruir-lhe o caminho.

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publicado por picodavigia2 às 00:01

JOSÉ BENSAÚDE

Domingo, 23.02.14

José Bensaúde nasceu em Ponta Delgada, a 4 de Março de 1835, tendo falecido em1922, tendo pertencido à primeira geração de judeus naturais dos Açores.

Cuida.se que foi a falência comercial de pai que o impediu de seguir uma carreira totalmente dedicada às letras, como teria sonhado. Autor de algumas poesias e regular colaborador na imprensa local, José Bensaúde manteve, até ao fim da sua vida, um peculiar interesse pela cultura e literatura. De resto, ao longo dos anos, a sólida amizade com Antero de Quental, a obsessão com a reunião de informações sobre a produção e a transformação de tabaco e o cuidado posto na educação de seus filhos são reveladores do seu incessante interesse pelas letras e pelo desenvolvimento científico e tecnológico do seu tempo.

Com 23 anos de idade, em 1858, José Bensaúde foi convidado para organizar uma das mais importantes fortunas fundiárias da ilha de S. Miguel – a casa do Morgado Caetano de Andrade Albuquerque, enteado de António Borges da Câmara Medeiros. Até 1870, José Bensaúde desempenhou com competência e dedicação estas funções. A fama que granjeou como administrador tornou-o respeitado no universo dos negócios da ilha, sendo depois convidado pelo Visconde da Praia, irmão de António Borges, também grande proprietário fundiário da ilha, para organizar a contabilidade de sua casa. Organizou ainda as contabilidades agrícolas de Ernesto do Canto e de Jacinto Fernando Gil, visconde do Porto Formoso. Anos mais tarde, a título de amizade, administrou os bens de Maria Carlota da Câmara Borges, viúva de António Borges e administrou, também, as propriedades do Conde da Ribeira Grande - o maior senhor fundiário da ilha.

A fama de gestor competente e escrupuloso valeu-lhe a nomeação para desempenhar o cargo de secretário da Junta Administrativa das Obras do Porto Artificial de Ponta Delgada, onde permaneceu entre 1861 até 1872 – desde a data da fundação à da dissolução. A José Bensaúde cabia a gestão dos dinheiros e a encomenda dos materiais para a construção do porto.

José Bensaúde também se interessou pela cultura do chá, tendo construído uma pequena fábrica de secagem, preparação e manipulação das folhas de chá. Também a plantação de matas de criptomérias esteve entre os seus investimentos, pois a lenha era um inestimável combustível para o forno de cal, para a secagem do chá e para a preparação do tabaco. As matas também forneciam a indispensável madeira para construir as caixas para o transporte, outrora da laranja, e, agora, do ananás.

Paralelamente aos projectos agro-industriais, José Bensaúde ainda teve interesses na navegação. Tinha acções na Empresa Insulana de Navegação e na Empresa Nacional de Navegação. Também negociava aprestos marítimos, fornecia carvão aos vapores e era sub-director de uma companhia espanhola de seguros mútuos. José Bensaúde também possuía inúmeras acções. Detinha uma carteira de títulos de empresas micaelenses, no valor de quase cem contos de réis. À semelhança dos demais empresários de sucesso da ilha de S. Miguel, também adquiriu acções da Companhia de Seguros Açoreana, Banco Micaelense e Fábrica de Santa Clara. Trabalhador infatigável, José Bensaúde morreu milionário aos 87 anos. Deixou uma importante fortuna construída por si.

Como escritor destacou-se com as obras Genealogia Hebraica. Portugal e Gibraltar, séculos XVII a XX, A Vida de José Bensaúde, José Bensaúde: self made man e Os Judeus Sefarditas entre Portugal, Espanha e Marrocos.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 22:36

O DESCANSADOURO DA RIBEIRA

Domingo, 23.02.14

Interessante embora prescindível, o descansadouro da Ribeira. Interessante porquanto ladeado pela Ribeira, prescindível pois ficava a dois passos de um seu congénere gigante - o descansadouro do Alagoeiro - com o quase inédito e inexaurível dom de ser dos poucos da Fajã Grande que possui água potável. Afinal e bem vistas as coisas, a Ribeira também possuía água e muita. Mas a água da Ribeira, apesar do seu forte e permanente caudal, da sua pureza cristalina e do seu doce ciliciar-se por entre pedregulhos e moitas de agriões, não era bebível, servia apenas para criar enguias, para lavar roupa e tripas, para os animais beberem e, mais cá para baixo, quase junto ao mar, para mover os moinhos.

Paralelo à própria Ribeira, este descansadouro, que dela recebia o nome, tinha como principal razão da sua existência ou enigmática edificação, o arame, ou seja, aquele enorme fio de aço esticadíssimo, que unia o cimo da Rocha com o chão, mas a uma boa distância da base, a fim de que, tornando-se inclinado, molhos de lenha, de fetos, de bracéu e de erva deslizassem por ali abaixo até se açaparem, uns sobre os outros, num enorme largo que existia cá em baixo, junto à junção da Ribeira com os caminhos da Figueira e da Escada-Mar e que tinha espetadas umas enormes e grossas estacas, onde estava preso o portentoso e inclinado arame. Com o tempo, porém, o descansadouro da Ribeira foi crescendo e alterando o seu estatuto de se reduzir ou limitar a ser apenas uma espécie de serviço de apoio ao dito cujo. O descansadouro da Ribeira também tinha como plano B, servir aos homens que vinham, quer das Águas, quer da Figueira, quer do próprio lugar da Ribeira, carregando, às costas; molhos pesadíssimos de erva, encharcada de água e de limos ou cestos de inhames, muito acaculados e com uma outra folha verde que remanescia como prova do seu crescimento e excêntrico tamanho. E como se isso não bastasse para que aquele local de descanso e de paragem de homens crescesse e ombreasse com o seu congénere do Alagoeiro e quejandos, era o facto de ali em frente ser o local predestinado para as mulheres lavarem a roupa. Muitas mulheres também ocupavam os seus degraus, transformados em assentos, lado a lado com os homens enquanto outras, apesar de objectoras assumidas a tão pouca ortodoxa convivência, não se coibiam de dar dois dedos de conversa aos que a elas se dirigiam, louvando, elogiando, mimoseando e, sobretudo, mirando algum nesga de perna que a saia puxada para cima deixasse vislumbrar, enquanto ajoelhadas a beira do açude, inclinadas sobre os toscos lavadouros de pedra, balanceavam o corpo, em movimentos convulsivos.

Todo este dinamismo e esta excentricidade concediam a este descansadouro um misticismo inebriante, transformando-o num recanto de enlevo, por vezes de namoro.

Os molhos eram colocados sobre as paredes, no rodo em que o próprio caminho vindo do Alagoeiro, entrava, abruptamente, pela ribeira dentro, na margem direita. Entre este e a Canada das Águas a própria ribeira transformava-se em via de circulação para os animais, enquanto os humanos caminhavam sobre uns rebordos laterais, construídos para o efeito. Alta a parede protegia do vento norte e facilitava o estatuto dos voyeurs que ali se sentavam, uma vez que os assentos de pedra ali colocados desembocavam sobre a própria ribeira, onde ficava o açude preferido das lavadeiras.

Nos dias em que se apanhava bracéu ou ceifava feitos nas relvas do Mato, o Descansadouro da Ribeira vivia um reboliço desusado. Eram dezenas e dezenas de molhos atirados pelo arame e, cá em baixo, no largo que lhe servia de plataforma de suporte, dezenas de homens, mulheres e crianças, os mais lestos a retirá-los e os outros a acarretá-los, às costas para o caminho, onde aguardavam que os carros de bois e os corções os trouxessem para casa.

Nos restantes dias, o Descansadouro da Ribeira, vivia uma tranquilidade tranquila, normal e desconcertante, apenas intercalada por momentos de vivências mais intensas, como o lavar das tripas, os dias de oitono, com o gado amarrado à estaca nas forrageiras das terras circundantes ou em dias de fio quando, sobretudo, as mulheres e as crianças, ali se sentavam, antes de subir aquele alcantil pétreo e abruto, que era a Rocha que, no entanto, o abrigava do vento, quando este soprava de leste.

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publicado por picodavigia2 às 22:15

INOCÊNCIA

Domingo, 23.02.14

Dormíamos

Sobre rios de inocência,

 

Porque o Sol,

Em cada madrugada,

Nunca se esquecia de apagar o resfôlego dos temporais.

 

Por isso cantávamos…

E rezávamos…

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publicado por picodavigia2 às 09:08

MANUEL LINO

Sábado, 22.02.14

Manuel António Lino nasceu em Angra do Heroísmo, em 4 de Janeiro de 1865, tendo falecido na mesma cidade, em 15 de Junho de 1927. Foi médico, inspector de saúde, professor, Governador Civil, poeta e dramaturgo. De origem humilde, estudou em Angra e partiu para Coimbra, em 1884, onde fez os preparatórios para frequentar Medicina, tendo concluído a formatura em 1892. Aluno excelente, foi premiado em todos os anos da licenciatura, mas recusou o convite para leccionar na Universidade. Regressado a Angra, abriu consultório, exercendo clínica geral e oftalmologia. Foi médico municipal na Praia e em Angra, delegado de saúde do Distrito, guarda-mor de saúde e subinspector. Em 1899, integrou uma missão encarregada de estudar a peste bubónica em Espanha, França e Inglaterra. No regresso, ficou algum tempo no Porto, ajudando a combater aquela epidemia, cuja experiência, mais tarde, lhe foi muito útil no tratamento da mesma na ilha Terceira. Foi várias vezes agraciado pelos serviços prestados à comunidade. Foi professor de Ciências Naturais e de Química no Liceu de Angra. Dedicou-se ao cultivo de flores, tendo feito várias exposições em Angra. Como amante do teatro, escreveu algumas comédias de costumes sobre a vida local e traduziu outras de dramaturgos estrangeiros. Amador musical, compôs a partitura para a opereta Rosas e Crisântemos, da sua autoria. Foi ainda colaborador de vários jornais, membro da Comissão de Estudo e Propaganda da Autonomia Administrativa dos Açores, governador civil da Horta, vice-presidente da comissão administrativa da Junta Geral e presidente da Cozinha Económica Angrense. Politicamente, alinhou com João Franco, no Partido Regenerador Liberal, tendo sido membro da direcção no distrito.

A Câmara Municipal de Angra resolveu homenageá-lo com um pequeno busto, no jardim da cidade, em 1949. Carlos Enes

Obras Principais: Kodaks e Edelweisse.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 19:16

CHOQUE INICIAL

Sábado, 22.02.14

Quando entrei, pela primeira vez. no velho edifício do Seminário de Santo Cristo, no antigo Convento dos Jesuítas, em Ponta Delgada, estava receoso, apreensivo e muito amedrontado. Tudo ali era extravagante, estranho, descomunal, esquisito e austero. Habituado às reduzidas dimensões da minha minúscula e simples casa da Assomada, na Fajã Grande, onde nascera e fora criado, amedrontava-me com aquelas paredes altíssimas, aqueles salões enormes, aqueles corredores infindáveis e aquelas escadarias geladas, escuras e gigantescas. Uma onda de estranheza associada a frémitos de medo e convulsões de angústia dominavam-me por completo, em cada hora, em cada minuto, fulminando-me radicalmente. Um choque inicial terrível. Entrei num choro amargo, dolente e convulsivo que, por vergonha, tentava esconder dos outros retirando-me, sempre que possível, para os cantos que julgava mais recônditos, a fim de que ninguém me visse chorar. Desejava ardentemente regressar às Flores, donde, cuidava, nunca deveria ter saído.

Passado algum tempo, no entanto, fui-me recompondo daquele choque inicial, previsível e inevitável. A roupa já se me enxugara no corpo, mas necessitava de mudá-la. Há quatro dias que andava com ela, que a roçara pelos corrimões e amuaras do Carvalho, sujando-a e besuntando-a por completo. Parecia-me que ainda cheirava a vomitado e a terceira classe. Uma imundície a que não podia sujeitar-me, que não devia partilhar com os outros e a que urgia por termo. Antes que o fizesse, porém, vieram chamar-me. Entendia o padre Agostinho Tavares que o nosso principal problema seria a fome, por isso, juntou todos os recém-chegados no corredor central e conduziu-os ao refeitório. Era uma sala grande, com janelas altíssimas, muito clara e com três enormes mesas paralelas e enfileiradas umas ao lado das outras, havendo uma quarta, mais pequena e perpendicular a estas, destinada aos professores. Serviram-nos café quente com o leite e açúcar já misturados, pão e manteiga, esta antecipadamente colocada nos pratos de cada um, através de uma pequena forma de madeira com um êmbolo no fundo. O empregado passava pelas mesas, enchia a forma, voltava-a sobre os pequenos pratos destinados aos alunos, carregava no êmbolo, despejando assim a forma da quantidade de manteiga que ela continha. Apesar de ter muita fome, pois não me alimentava desde a manhã do dia anterior, não tinha apetite e pouco comi, vingando-me no café, saboroso, adocicado e quase a ferver, que me aqueceu o corpo e animou o espirito.

Terminado o bródio fomos conduzidos ao salão de estudo, onde já nos aguardavam as nossas malas.

Foi nesta altura que o Jorge, um miúdo alto, esguio e espadaúdo, veio ter comigo, a pedir-me desculpa e a fazer as pazes, embora isso pouco me animasse, pois continuava sem saber como havia de abrir as malas. Havia sido ele que, a bordo do Carvalho me dera sumiço às chaves. Só mais tarde, enquanto chorava, sentado sobre elas e sem saber o que fazer, o padre Agostinho me procurou, inteirando-se do meu problema. Chamou de imediato um empregado, munido de martelo, escopo e um molho de chaves velhas e já sem uso ou destino. Por sorte e para espanto meu, uma delas abriu a minha mala. O baú, porém, só à marretada, desfazendo-se-lhes não apenas as fechaduras mas até uma das dobradiças, ficando eu como meu pobre e velho baú americano permanentemente aberto.

De seguida, o padre Agostinho, sempre muito solícito e atencioso, indicou-me onde podia tomar banho, conduzindo-me até ao piso inferior, por uma escadaria de pedra. Escolhi a roupa que devia vestir e peguei numa toalha e dirigi-me para o local indicado. O balneário era um pequeno cubículo, com uma prateleira entrincheirada nas paredes, onde podia colocar a roupa limpa e a toalha, e um chuveiro, que se ligava por duas torneiras. Em minha casa tomava banho sentado numa selha de madeira, enquanto a minha irmã, depois de eu me ensaboar, me ia deitando água por cima, por isso, era a primeira vez que tomava banho de chuveiro e não sabia que uma torneira se destinava à água fria e outra à quente, nem muito menos sabia que, abrindo as duas ao mesmo tempo, poderia controlar a temperatura da água. Abri a primeira e a água caía por cima de mim fria como gelo. Novo choque, desta feita térmico. Fechei-a e experimentei a outra. A água pelava como lume. Entre ficar queimado ou gelado, optei pela torneira que abrira inicialmente e tomei um banho geladíssimo. Era com se estivesse na Fajã, no Inverno, a caminho dos Lavadouros para ir buscar à relva a Benfeita e a Toucada e começasse a chover, torrencialmente, sem eu ter onde me abrigar.

Terminado o banho voltei ao baú, para tirar o colchão de casca, a travesseira de musgo e a roupa da cama. Por determinação do prefeito, a minha cama era a sexta, do lado direito de quem entrava na camarata, junto a uma janela que dava para o campo de futebol. Os primeiros espaços ficavam reservados às camas de alguns alunos do segundo ano, pois as camaratas destinadas a estes, no outro lado do edifício, tinham lotação limitada. O Jorge, optou por colocar a sua cama, logo a seguir à minha. Agora falávamos e conversávamos como se tivéssemos sido sempre amigos e não tivesse acontecido aquele episódio das chaves que tanto me arreliara e preocupara. No entanto, passados poucos dias, ele decidiu abandonar o Seminário.

Cansado da viagem, tendo dormido pouco nas três noites anteriores a bordo do Carvalho, a minha primeira noite em São Miguel foi de um sono calmo, profundo e tranquilo. Antes de adormecer, porém, ainda ouvi os três silvos do Carvalho. Naturalmente que abandonava Ponta Delgada com destino a Santa Maria. Apenas daqui um mês regressaria, novamente, das Flores e havia de trazer uma carta da minha irmã. Os olhos voltaram a encher-se-me de lágrimas e o peito de dor, mas adormeci pouco depois.

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publicado por picodavigia2 às 17:18

JUSTA HOMENGEM A COELHO DE SOUSA

Sábado, 22.02.14

Ontem, dia 21 de Fevereiro, a Assembleia Municipal e a cidade de Angra, finalmente, prestaram uma justa e devida homenagem a um dos mais ilustres terceirenses, o padre Coelho de Sousa, galardoando-o com a Medalha de Honra do Município Angrense.

Manuel Coelho de Sousa nasceu a 30 de Setembro 1924 na Vila de São Sebastião, ilha Terceira, ali falecendo a 2 de Setembro de 1995. Filho de João de Sousa Pacheco e de Maria de Melo Toste, entrou para o Seminário de Angra, em Outubro 1937 onde cursou Filosofia e Teologia, ordenando-se de presbítero em 20 de Junho 1948, precisamente no dia, em que a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima visitava os Açores.

Foi professor no Seminário de Angra e no Liceu da mesma cidade, jornalista e chefe de redacção de “A União.” Já em plena década de sessenta frequentou o Curso de Filologia Hispânica na Universidade de Salamanca, Espanha, após o que regressou aos Açores, sendo nomeado pároco de São Sebastião, onde permaneceu até à data do seu falecimento. Durante esse período de tempo foi director-adjunto do jornal “A União”, e mais tarde seu director.

Além de pároco, professor e jornalista, Coelho de Sousa notabilizou-se, também, como orador sacro, como poeta, dramaturgo, pintor, encenador e ensaiador, escritor e animador cultural. Da sua vasta obra literária destacam-se, na poesia Poemas de Aquém e Além (1955) e Três de Espadas (1979), e na prosa Na Rota da Emigração Amiga (1983), Migalhas (1987) e Boa Nova (1994).

Tive o Padre Coelho de Sousa como meu professor nos primeiros anos de estudo no Seminário de Angra, em duas disciplinas: Português e Desenho. Confesso que a segunda nunca me motivou, não por culpa dele mas por falta de aptidão minha. Mas como professor de Português guardo dele as mais belas lições que foram despertando em mim acelerado interesse não só pela prosa mas sobretudo pela poesia. Recordo uma aula de Português em que o tema era o soneto. Tarefa nada fácil a qualquer professor, a de ensinar o soneto a crianças. Coelho de Sousa fê-lo de forma sábia, agradável e, sobretudo, cativante. No fim da aula, Coelho de Sousa munido dos mais interessantes e conhecidos sonetos de Camões, distribuiu um por cada aluno, com a tarefa de o decorar e o declamar na aula seguinte. A mim coube Erros meus, má fortuna, amor ardente que ainda hoje declamo de cor e que mais tarde me deliciei ao ouvi-lo cantar, magnificamente, por Amália Rodrigues.

Para além de professor e de sacerdote, apreciei sempre Coelho de Sousa como um homem digno, honesto, exemplar, educado, elegante, simpático e meigo. Deliciava-me ouvi-lo declamar os seus poemas, deleitava-me com o deslumbramento da sua sensibilidade estética, adorava presenciar as suas peças de teatro levadas à cena pelos teólogos e guardo dele a mais verdadeira memória de professor amigo, sincero e nobre nas suas relações comigo.

Em boa hora, pois, foi prestada uma justa homenagem, àquele que desde há muito a merecia.

O padre Coelho de Sousa, no entanto, já havia sido homenageado pela população da freguesia que o viu nascer, crescer e que o teve como pastor, mandando edificar-lhe um busto na adro da Matriz e atribuindo-lhe o nome a uma rua na Vila S. Sebastião.

Aqui lhe presto, também, a minha simples, humilde, singela, mas sincera e grata homenagem.

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publicado por picodavigia2 às 15:41

À ESPERA DO ENCONTRO

Sábado, 22.02.14

No aconchego

da amizade,

aguardávamos,

ansiosamente,

o Encontro:

uma revoada de recordações e de memórias

- encantos entontecidos pelo tempo -

que haviam de cair sobre nós,

em catadupa,

e a unir-nos

ainda mais.

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publicado por picodavigia2 às 08:54

A SOBERANIA DA MÚSICA

Sábado, 22.02.14

A Música, no Seminário de Angra, fazia parte do quotidiano dos seminaristas e estava presente em todos os momentos mais importantes, sobretudo nas mais diversas celebrações litúrgicas e nas variadas realizações culturais, realizadas, ao longo do ano, no Seminário. Ocupando um lugar destaque nos currículos, para além de ter uma carga horária alargada, que incluía aulas teóricas e práticas, vulgarmente chamados “ensaios”, era a Música a única disciplina que integrava todos os planos curriculares, desde o primeiro ao último ano, uma vez que os mentores dos currículos entendiam que o clero deveria saber música para a poder ensinar e, sobretudo, realizar condignamente as celebrações litúrgicas que a exigiam. Além disso, já se cuidava que a Música, tinha um papel importante no desenvolvimento global dos alunos, contribuindo também para o seu desenvolvimento cultural, científico e intelectual, desenvolvendo muitas outras capacidades. Para além da formação obtida nas aulas, havia variadíssimos ensaios, para a Capela, para os saraus, para festas, para as Academias e até para os passeios que se realizavam às freguesias. As próprias reuniões da Congregação Mariana e dos Escuteiros iniciavam-se e encerravam-se com música e todos os domingos em que os seminaristas não se deslocavam para a Sé Catedral ou para outra da igreja da cidade, a fim de animar, musicalmente, as celebrações aí realizadas, havia missa solene e cantada na capela do Seminário.

Dentro do Seminário, a Capela não parava, imiscuindo-se quase diariamente no acompanhamento de missas, das novenas do Natal, o mês de S. José em Março, o de Maria, em Maio e o do Coração de Jesus, em Junho. Durante as novenas de Maio e Junho eram cantadas as Ladainhas de Nossa Senhora e do Coração de Jesus. Além disso havia muitas outras devoções, missas solenizadas devoções diárias e outras novenas e tríduos, que exigiam músicas adequadas e que exigiam ensaios diários, geralmente pedaços de tempo retirados às horas de estudo.

Mas o epicentro de toda esta soberania musical, era incontestavelmente o concerto do Orfeão do Seminário, realizado por altura da festa de São Tomás de Aquino, para o qual os seminaristas se preparavam com ensaios diários, logo a partir do início de cada ano lectivo. Para além do hino do Seminário que abria a sessão, seguia-se sempre o “Oremus Pro Pontifice - de Licinio Refice. Ao longo dos vários anos muitas outras obras de uma beleza extraordinária se cantaram e que, acompanhadas pela Orquestra Filarmónica de Angra, atraíam uma enorme plateia ao salão de festas do Seminário e que eram transmitidas em directo pela Rádio Club de Angra”.

Notáveis também eram as festividades na Sé, que a Capela do Seminário acompanhava com grande qualidade e competência e que atraíam à Catedral Açoriana imensos fiéis, muitas vezes mais para saborear a beleza musical dos cânticos executados do que para participar nas celebrações litúrgicas. Eram notáveis os cânticos da Semana Santa, das Matinas de Natal e, sobretudo, o “Dies Irae” no dia de Fiéis Defuntos.

Toda esta efervescente e brilhante actividade e animação musical se deveu à acção de grandes mestres, alguns deles ilustres maestros, que lideraram, nas décadas de cinquenta e sessenta, o ensino da Música no Seminário: o padre Ávila, o Dr Antonino Tavares, o padre Jaime e, sobretudo, o Dr Edmundo de Oliveira, meu mestre e maestro durante dez anos. Foi também a exímia e formação destes músicos que fizeram com que muitos alunos que frequentaram o Seminário naquelas décadas, sobretudo os mais dotados, obtivessem uma sólida, consistente e completa formação musical que, mais tarde, os havia de guindar na senda êxitos notáveis e feitos assinaláveis, a nível da música.

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publicado por picodavigia2 às 00:11

A MENINA E A ÁGUIA

Sexta-feira, 21.02.14

Era uma vez menina que fora abandonada pelos pais, no meio duma floresta. Algum tempo depois, passou por ali uma águia que, vendo-a sozinha, apiedou-se dela e, poupando-a à sua famélica atrocidade, pegou-lhe com cuidado e trouxe-a consigo para a rocha, alta e abrupta, onde tinha o seu ninho, cuidando dela, alimentando-a e, sobretudo, amando-a, como se fosse uma filhinha. A menina cresceu e, embora com uma aparência rude e um aspecto selvagem, tinha um temperamento dócil e um feitio meigo, tornando-se numa linda, bela e atraente jovem.

Certo dia passou por ali um Príncipe que andava a caçar, naquela zona. Ao ver tão linda e atraente donzela, de imediato, se apaixonou por ela, decidindo trazê-la consigo para o palácio real, a fim de a apresentar aos pais, para a tomar por esposa. Mas algum tempo antes, os pais haviam celebrado um contrato de casamento entre o príncipe, seu filho, e uma ilustre princesa, filha do monarca de um reino vizinho. Apesar disso, percebendo o encantamento do filho pela jovem, aceitaram que ele lha apresentasse e que ela se hospedasse no palácio, por algum tempo. Cedo, porém, se aperceberam os zelosos monarcas de que a jovem, na verdade, era muito bonita, de boas maneiras e de brandos costumes, mas apresentava um aspecto rude e um temperamento esquisito e estranho, em nada abonatório da esposa do futuro monarca. Pelo contrário, a princesa que havia sido prometida em casamento ao filho, não sendo bonita era dotada de um exemplar educação, sendo exímia na arte de costurar, de tratar da casa e de se arranjar.

Convencidos de que lhes seria muito fácil resolver o problema, afastando a rapariga do palácio e obrigando o príncipe a abdicar dos seus intentos, os reis propuseram que o príncipe havia de aceitar como esposa e casar com aquela das duas noivas que costurasse o vestido mais bonito. Sabiam eles muito bem que seria a princesa prometida a cumprir a tarefa com excelência e qualidade e, assim, haviam de afastar a intrusa para as rochas de onde viera e onde fora criada. Fecharam cada uma no seu quarto e deixaram-nas sozinhas, disponibilizando-lhes os recursos necessários e impondo-lhes a tarefa, conforme haviam planeado. A rapariga muito preocupada e aflita pois nunca tinha costurado, nem sabia o que era uma máquina de costura ou uma agulha, chamou pela sua mãe águia. Esta apareceu-lhe, trazendo consigo o mais experiente costureiro que havia no reino, que, em pouco tempo, lhe fez um belo vestido. Quando foram apresentar os vestidos, os reis ficaram espantados com aquele que a rapariga da rocha costurara, porque ganhava, de longe, em qualidade, arte e beleza, ao da princesa. Ainda não convencidos e muito embasbacados, os reis decretaram, de novo:

- Agora será a que preparar o melhor banquete para o rei servir aos seus ministros é que casará com o príncipe.

Decidiram assim porque cuidavam eles que a rapariga criada na rocha não saberia cozinhar. Ela, porém, muito aflita, voltou a chamar pela sua mãe águia que, de imediato, se lhe apresentou, trazendo-lhe o melhor cozinheiro do reino. Este, vendo o quarto repleto dos mais diversos produtos, não teve dificuldade em preparar uma excelente refeição que superou em muito a que a princesa cozinhara.

Quando viram e, sobretudo, quando provaram o manjar apresentado pela rapariga, os reis ainda mais admirados ficaram com a rapariga da rocha, porque ganhava, em tudo, a princesa que, no entanto, tivera uma esmerada e cuidadosa educação.

Apesar de tudo e ainda não satisfeitos, nem muito menos convencidos, os reis decidiram dar um grande baile, para o qual convidaram príncipes, princesas, os nobres e todas as ilustres donzelas do reino. Estariam presentes, também, a princesa prometida ao príncipe em casamento e a rapariga da rocha. A que dançasse melhor, seria considerada a verdadeira princesa e, por conseguinte, seria a eleita para esposa do príncipe, vindo a ser a futura rainha. De novo a rapariga se entristeceu e afligiu, cuidando que agora sim, não poderia ser melhor do que a sua rival. Apesar de tudo voltou a chamar pela mãe águia.

Iniciou-se o baile e, mal a rapariga começou a ensaiar os primeiros passos de dança, começaram a entrar na sala, trazidas pela águia, um bando de pombas brancas que rodeando a jovem donzela, a elevavam e erguiam, fazendo com que dançasse com arte, sabedoria e elegância, como jamais se vira no reino. Então os reis, nada mais puderam fazer do que aceitá-la como a futura esposa do filho.

Agendou-se a boda, fez-se uma grande festa e celebrou-se o casamento com tão grande pompa e solenidade como já mais se vira no reino.

E passados nove meses, entrou, mais uma vez, por uma das janelas do palácio, a águia, desta feita acompanhada por uma cegonha branca que trazia, numa cestinha, uma bela menina.

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