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CHEIRO DE DESERTO

Segunda-feira, 10.02.14

O vácuo da solidão

Carrega o cheiro

De um deserto

Incendiado pelo silêncio.

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publicado por picodavigia2 às 21:07

PROSAS DAS CARTAS E DOS RETRATOS DE FAMÍLIA

Segunda-feira, 10.02.14

Pego nestas cartas tanto tempo guardadas,

desato as fitas dos maços, olho as datas seguidas.

Minha mãe sabia a história de cada uma,

melhor direi cada um dos que escreveram,

parentes nossos que quase todos nunca mais

voltaram para acabar onde nascidos.

 

Esta é talvez a mais antigas de todas:

7 de Setembro de 1872.

António, que a data de Broken Hill, na Austrália,

Não se esqueceu que era véspera da Senhora da Saúde,

mas fala já da abóbora assada de Todos os Santos

e do Natal, do Ano Bom e do Dia de Reis.

Sabia que uma carta de lá às Flores tardava,

e por isso, em bom cursivo, os seus votos

de boas festas “com saúde e na graça de Deos”.

 

Era eu bem pequeno quando veio a notícia

desse António, já sobre além dos oitenta anos,

durar ainda, num asilo velhos, parece-me,

numa cidade que me lembro se chamava Adelaide:

e o que ele queria agora não era saber dos seus

mas se herdara alguma terra e, se tivesse herdado,

que lha comprassem, porque o dinheiro, mesmo pouco

fazia arranjo a quem de seu só tinha a idade.

 

Eu imaginava que Austrália cavavam ouro

E só então fiquei sabendo que também lá os velhos

como tantos nossos não tinham para a sua masca.

 - Foi a minha primeira lição de Geografia.

….

 

De 4 de Maio de 1885

e escrita em Red Bluff, na Califórnia,

esta outra carta é do Raulino, que havia um mês

chegara ali para trabalhar, como diz,

nos moinhos da madeira, onde as soldadas eram

melhores que nas ovelhas, e agora estava

em casa de tio José, tratado como seu filho.

Nada mais que contar senão “hua grande desgraçia”;

um do Mosteiro, que já era para vir para trás,

fora apanhado pela serra e ficou sem pernas;

agora estava em Sacramento no hospital e não

se sabia ainda se escapava ou se morria.

E contando-o põe no fim: “Antes elle morra

porq. hum homem assim sem pernas não é nada,”

 

Pobre moço! Um dia aconteceu-lhe a mesma coisa

e não morreu, mas depois a mulher largou-o

e só então ele compreendeu que a sua vida

sem pernas (e sem mulher) não fazia sentido:

como pôde arrastou-se até ao rio, que lá

é o Sacramento River e vai dar, em Vallejo,

à grande baía chamada de São Francisco –

e sem pernas nem vontade de viver se afogou.

 

Agora o que eu encontro é uma fotografia

onde o casal e seus oito filhos que nela estão

diante de um fundo com colunas gregas e parras

vestem uma solenidade de quem faz de conta

que não vive ao lado, exactamente, do equador.

Foi tirada por Fidanza Phoyografpho, no Pará,

e a data na dedicatória de meu tio-bisavô Inocêncio.

é de 16 de Junho de 1894.

Uma carta tarjada de três anos adiante,

conta que o filho maior, José Luís de nome

e então nos vinte, morreu de febre amarela.

E a última notícia que encontrei guardada

desses que as conversas das tias velhas referiam

como os nossos primos Goulartes brasileiros.

 

Finalmente atinjo o fundo do escaninho e tiro

ainda outra carta, solta e a única no envelope,

no entanto aberto e de que arrancaram o selo,

mas que, mesmo assim, dir-se-ia escondida.

Assina-a Afonso, em Luanda, onde assistia,

em 18 de Fevereiro de 1907.

É à mãe e diz-lhe que está bom, mas que passou

um mau tempo, com as febres (o clima pois claro)

e um retrato que junta, mais diz, é com o filho

(um menino mulato, vê-se) e põe que gostava

de o mandar para cá, onde melhor se educaria.

- Mas afinal quem veio, quinze anos além, foi ele

E, que eu me recorde, pois conheci-o bastante,

nunca falava do filho do retrato na gaveta.

Vinha só de visita, disse, mas foi ficando,

Não trazia dinheiro que luzisse e a sua roupa

eram fatos de caqui, sem falar num chapéu

desses que chamam capacetes coloniais.

Com isso, também lá nos veio um papagaio,

que por sinal era cinzento e não verde, mas

falava como falam os outros, do Brasil.

O papagaio chamava- o “Ó Afonso!” – e depois

Era como se desse gargalhadas enquanto

o dono se embebedava com aguardente de figos.

Também gritava “Chiça!”, e foi mesmo o que fez

Quando primo Afonso, como era de esperar

desfeito, verde, morreu de cirrose hepática.   

 

Este meu primo contava pouco da sua vida

dos anos passados em Angola, ao que parece

comprando pelo sertão borracha e cera que logo

revendia a outros comerciantes, na costa.

Um dia perguntei-lhe como eram as pretas

e ele primeiro riu, mas por fim foi dizendo:

“No princípio a catinga enjoava-me, não podia…”

E explicou-me que catinga é como lá se chama

ao cheiro que deita a pele suada dos negros.

 

E a propósito disto, vem-me à lembrança agora

que de uma vez, em Kowloon, além de Hong Kong

uma puta chinesa me disse, e ria, ria

que os nau soc como chamam aos portugueses

(à letra traduzido, vejam lá, cheiro de vaca)

Mesmo lavados sempre cheiram a morto.

 

Mas deixando esta dos odores corporais

que, havemos de concordar, são antipoesia

reparemos antes, com o melhor daquelas cartas

que desde minha bisavó a minha mãe guardaram

e eu agora, a espaços comovido, fui lendo;

reparemos, dizia eu, que é Maio e a manhã

acordou azul e florida, cheirosa, musical

como a dança dos passos das raparigas quando

ainda não sabem (ou não querem saber) que a vida

também é muita vez o mais amargoso que vem

nas tais cartas que são (elas só) a memória que resta

de tantos mortos meus, tão mortos como esquecidos.

 

Pedro da Silveira, Poemas Ausentes

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publicado por picodavigia2 às 20:37

MÃE

Segunda-feira, 10.02.14

(TEXTO DE CATARINA FAGUNDES – 8 ANOS)

 

As mães fazem tudo para agradar os filhos. Elas dão-lhes carinho e amor. Mesmo que sejam pobres ou ricas, elas têm, sempre, o que é preciso para os seus filhos. Quando eles estão doentes, com gripe ou com uma constipação, têm todo o seu amor.

A tarefa de mãe é muito difícil: fazer o jantar, o almoço e quando há uma ocasião especial, ou de aniversário de um filho, têm um trabalho muito grande que é fazer o bolo, os queques e os biscoitos para os convidados.

Dá uma trabalheira!...

Também tem de fazer a cama dos filhos e a sua.

No dia cinco de maio, é o dia da mãe, por isso, se puderes, dá um ramo de flores à tua mãe

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publicado por picodavigia2 às 11:01

CONTRASTES (R)

Segunda-feira, 10.02.14

O Outeiro, sobranceiro à freguesia, era o sítio habitual paraas brincadeiras e folguedos da garotada, na qual eu próprio me incluía. Quem atingisse o seu cume, desfrutava duma vista fantástica. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha. A encimá-lo, no meio de imensa e diversa vegetação, uma cruz branca, altíssima e robusta, junto à qual, nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse quer ventasse, ajoelhava entoando cânticos e orações diversas e prolongadas. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os velhos telhados dos casebres. Simultaneamente, em todos os lares, famílias inteiras ajoelhavam também e, em convicta e comunitária oração, uniam-se às preces dos cantores, suplicando perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores.

Em véspera de festa, porém, alterávamos o destino do Outeiro. Prescindindo das nossas brincadeirashabituais, procurávamo-lo, na ânsia de cortar os ramos das árvores que se destinariam à ornamentação de ruas e pátios que não possuíam a beleza ou as qualidades julgadas necessárias e adequadas à passagem das procissões.

Naquela tarde sombria de Agosto para lá nos dirigimos mais uma vez, na procura e corte de verdura. Toda a freguesia aguardava, expectante e esperançada, a visita episcopal. Há vinte e três anos que um bispo não visitava a Fajã! Padre Silvestre, preocupado para que tudo corresse da melhor forma e Sua Excelência Reverendíssima fosse recebido com pompa e circunstância, como convinha a um príncipe da Igreja, mobilizou a parte mais crente do rebanho na preparação e arranjo de tão abençoado e santificado evento. À garotada, conhecedora profunda dos meandros do Outeiro, fora atribuída a tarefa de corte da verdura que encobriria e ocultaria a rudez e a pobreza das ruas ou que, depois de picada, formaria, juntamente com as pétalas das flores o tapete multicolor que o digno e legítimo sucessor dos Apóstolos pisaria.

Eu, apesar da pouca idade, incorporei-me voluntariamente na tarefa sem avisar quem quer que fosse. Embora não podendo trazer grande quantidade de verdura, morava ali perto, nas primeiras casas da Assumada e conhecia melhor do que muitos aqueles descampados. A expedição, terminou ao lusco-fusco. Molhos e gavelas de verdura abundavam, agora, no adro da igreja, à espera que no dia seguinte se iniciasse a ornamentação, à qual eu não podia faltar.

Cheguei a casa tardíssimo!

Porém, o ambiente ensombrado, tristonho e dramático que ali reinava, impediu que sofresse qualquer julgamento, repreensão ou castigo. A preocupação era tanta e tão grande que, pese embora a família estar toda reunida, ninguém notou a minha chegada tardia. Depressa me apercebi do que se passava e senti a iminência da tragédia que ameaçava abater-se sobre nós.

Os dias anteriores tinham sido de grande consternação, sofrimento e tristeza. Minha mãe, de cama há um mês, piorava de dia para dia. Quase em fim de gravidez, sofrera a bicada dum galo, precisamente numa variz. Não dando importância, nem fazendo o tratamento adequado, a situação agravara-se, trazendo-lhe complicadas contrariedades. Quando optou por tratamento, já era tarde. Meu pai, em constante rodopio entre Fajã, Fajãzinha, Lajes e Santa Cruz, procurava conselhos e remédiosque a curassem.

Na terça-feira, por feliz coincidência, o Dr. João Alves, o único médico da ilha, habitualmente mais dedicado àcinegética do que propriamente ao exercício da medicina, viera de barco, em passeio, à Fajã. Meu pai, evitando a onerosidade duma consulta ao domicílio que não poderia suportar, conseguiu, no entanto, falar com ele, inteirando-o do estado de minha mãe. Resposta pronta do facultativo:

- Mande-lhe fazer análises à urina. Depois leve-mas e veremos o que se pode fazer.

Por isso, meu pai se levantara alta madrugada, com destino traçado à Vila. Contudo, ao passar na Fajãzinha, encontrara, casualmente, o padre Albano já conhecedor do estado de minha mãe e que o aconselhou antes a ir pelas Lajes. É verdade que era mais longe, mas as análises feitas na Vila pela Dona Silvina eram, na abalizada opinião do reverendo, muito duvidosas.

- Cheguei às Lajes às nove - explicava meu pai quando eu entrei. - A Dona Antónia não tinha ainda aberto a drogaria. Esperei muito tempo, até que me disseram que ela hoje não abria, pois tinha ido passear para as lagoas com uns amigos do Continente. Tive, então que ir para Santa Cruz, mas tive sorte, porque da Lomba para lá um carro pegou-me e cheguei à Vila a tempo de mandar fazer as análises, de as mostrar ao médico e de ser atendido por ele.

Depois, com ar cansado e entristecido, explicava as dificuldades que teve que enfrentar para encontrar e ser atendido pelo doutor.

- Assim que viu as análises - concluía meu pai - franziu os olhos e disse-me logo que tinha que a levar amanhã para Santa Cruz, para ser imediatamente internada no hospital.

Na escuridão da cozinha, fez-se um silêncio sepulcral. Calados, todos reflectiam sem saber em quê. Lentamente, porém, à medida que a noite mais escurecia, começaram a delinear-se duas opiniões contrárias e controversas, sobre o destino da minha dolente progenitora.

Uns, liderados por minha avó, opinavam que nem médico, nem hospital resolvem nada; quando se tem que morrer, morre-se mesmo, pelo que, consequentemente, se opunham à ida dela para o hospital, sem falar nas dificuldades que teriam em transportá-la para a Vila. Outros, porém, contrariando tal ingenuidade, propunham fazer-se cumprir a vontade do médico, concluindo que em casa, sem assistência e sem medicamentos é que ela não melhorava.

Minha mãe fora poupada a tal discussão. Permanecia no quarto, deitada na velha cama de musgo e casca de milho, alheia à contenda que decidiria o seu futuro, ora olhando meigamente para meu irmão, ora embalando maquinalmente o bercito onde ele consubstanciava o sono com o total alheamento da tragédia que se abatia impiedosamente sobre nós. O pequeno espaço do quarto era ocupado por duas camas: a de meus pais e uma outra destinada às minhas irmãs. Entre ambas, apenas um exíguo e apertado espaço, onde com dificuldade, balouçava o pequeno berço, em que havíamos passadoos primeiros meses de vida. Ao lado a sala simples mas muito clara, evidenciando-se uma enorme barra de madeira, onde eu e meus irmãos nos íamos acomodando e aconchegando, à medida que, sucessivamente, éramos desalojados do berço, por imperativos resultantes da vinda de novo rebento e que, conjuntamente com uma cómoda, duas caixas e seis cadeiras a desfazerem-se, constituía a mobília de luxo da casa. Finalmente a cozinha, enorme, velha e escura, contrastando com a clareza da sala, agora, paradoxalmente, transformada em areópago dramático, onde a minha família debatia extenuantemente e decidia o futuro da minha sofredora e desafortunada progenitora. Pendente duma trave negra de carvão, uma pequena candeia, alimentada a enxúndia de galinha, flamejava frouxa e titubeante, lançando no escuro uma luz ténue, baça e pouco clarificante, que confundia pessoas e objectos. No lar evadiam-se, avermelhadas e cintilantes, duas achas de faia que minha irmã afogueara juntamente com uns pequenos garranchos de incenso, para ferver o leite e estufar o pão de milho, rijo, envelhecido e bolorento, cozido há oito dias e que constituiria a nossa parca e frugal ceia.

As vizinhas mais amigas e chegadas acorriam espavoridas, com xailes sobre o cocaruto, a inteirar-se do sucedido, a oferecer préstimos, a disponibilizar recursos e a colaborar na confusão galopante que se tornara epicentro das atitudes de todos.

Meu pai, evadindo-se do desânimo que o dominava, dirigiu-se para o quarto. Fez-se um silêncio profundo e enigmático. De baixo, da loja, dividida entre arrumos e estábulo, chegava, juntamente com os gemidos dum vitelo e o tilintar da campainha da Benfeita, o nauseabundo e fétido cheiro da retrete. Passado algum tempo meu pai regressou. Consubstanciava no rosto a marca indelével da angústia e o alívio da decisão definitivamente tomada:

- Está decidido!...Ela vai!...

De imediato, incapazes de discutir ou contrariar tal decisão, todos se mobilizaram em esforços confusos e desordenados, numa conjugação de lamentos com a vontade de fazer tudo sem fazer coisa nenhuma.

Dirigi-me ao quarto, com meus irmãos, enquanto minhas tias se atarefavam com os preparos da roupa, como se isso fosse o mais importante. Minha mãe já arrancara meu irmão ao berço e aconchegava-o ao peito em soluços profundos. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e o peito de dor. Pudera eu alterar o mundo e mudava já, ali, de imediato, o destino da minha mãe. Abraçamo-nos, alternadamente, a ela, misturando as nossas lágrimas. Meu pai reagira ao drama e, tentando superá-lo, procurava homens disponíveis, que, na madrugada do dia seguinte, ajudassem a carregar aos ombros a pesada e provisória maca que a transportaria até aos Terreiros. Era opinião unânime, de que estando minha mãe muito pesada seriam necessários quatro homens para a transportar. Dada as dificuldades da viagem, convinha, no entanto, levar dois suplentes. Minha mãe continuava chorosa e indecisa, ora abraçando-se a nós, ora aconselhando e orientando minha irmã Amélia que, apesar de criança, na sua ausência, teria que assumir a tarefa de gerir os nossos destinos e os da casa.

A noite decorreu num contínuo hipotecar de certezas e esperanças. Alta madrugada fui acordado. Já minha mãe jazia no soalho remendado da velha cozinha, povoado de frestas, por onde entrava um ar matinal tépido, misturado com um bafio de animais e um cheiro a estrume e arrumos. A cozinha, totalmente escura, esperava que a manhã a clarificasse. Minha mãe estava estendida sobre dois grossos cobertores, que seriam amarrados nas extremidades e presos com arças a dois fortes temões, tirados a corções de bois. Um lenço amarelado, de merino, tapava-lhe quase totalmente o rosto triste e humedecido. Dos olhos, salientes e despejados de brilho, emanava, contudo, uma ternura esperançada a contrastar com o desespero bastardo que se apoderara de todos nós. Vestia roupas grossas, escuras e pardacentas a fim de se defender do frio da madrugada que, de certo, encontraria ao longo de todo o percurso. A viagem seria árdua e prolongada. Apenas a partir dos Terreiros, uma camioneta a levaria até à Vila. De certo que lhe passavam pela mente as agruras de tão inóspito trajecto, bem como o internamento no velho hospital de São Francisco, afastando-se de todos nós, por tempo indeterminado. Para cúmulo e porque faltavam poucos dias para o Carvalho, começava a delinear-se a possibilidade de ter que ir para o Faial, caso o tratamento em Santa Cruz não fosse eficiente.

Eu tremia, com os olhos arrasados de lágrimas. Ao mesmo tempo, já sonhava com o seu regresso. Iria esperá-la à Eira-da-Cuada, como tinha ido quando meu pai regressara da Terceira. Era o sítio já institucionalizado para, em dias de vapor, esperarmos os passageiros, quer os que vinham da América, quer os que se deslocavam ao Faial ou à Terceira, por doença. Sentados junto ao calhau de Nossa Senhora, víamos, lá ao fundo a rocha dos Bredos e a Fajãzinha, sendo assim possível adivinhar muito antes a chegada dos próprios viajantes que vinham dos Terreiros, a pé, acompanhados dos familiares mais afoitos, que lhes carregavam as malas. O espectro da partida regressava e os olhos voltavam a encher-se-me de lágrimas que se confundiam com as de minha mãe, de meus irmãos e com a simulada consolação que minhas tias e vizinhas lhe davam.

Chegaram os homens com os temões! Enfiaram-nos nas arças formadas nas extremidades das cordas que prendiam os cobertores. Estas, testadas pelo peso do corpo, rangeram acremente. De repente, um grito enorme, estrondoso e conjunto ecoou nos recantos da velha cozinha. Parecia que toda aquela artesanal, provisória e mal concebida geringonça se desfazia e o corpo inerte estatelava-se sobre as duras tábuas do remendado soalho.

Colocada novamente no chão, minha mãe, vaticinando as dificuldades que a tentativa do levantamento inicial haviam pré anunciado, esperou pacientemente que os homens renovassem todo o sistema de suspensão da provisória maca em que jazia. As cordas foram novamente apertadas e testadas com excessivos cuidados, numa confusa e apressada azáfama, que teve a vantagem de despertar e provocar preocupações que alienaram e anestesiaram uma despedida dolente e sinistra.

Na imensidão escura da noite, a porta da cozinha abriu-se. Lá fora, arrogantemente assustador, o abismo ofuscante da madrugada delineava formas incertas e inseguras que engoliam, sofregamente, o nosso destino e a nossa esperança. Com excessivos cuidados os homens levantaram, novamente, o catre. As cordas adequadas e ajeitadas aceitaram submissas e serenas o enorme peso que se suspendia dos temões arquejantes. Atrás as tias Matilde e Gervásia escalonadas para acompanhar no transporte das roupas e na desventura. Estariam a seu lado, durante a viagem e no hospital, prestando assistência e amparo. As sombras dos corpos e do catre confundiram-se e perderam-se na sinuosidade da Assumada!

E a porta fechou-se!...

Voltei a deitar-me! Mas não conseguia dormir. Ao Outeiro, anunciando o amanhecer, regressavam bandos de cagarras, cujos gritos agonizantes ecoavam sobre mim. Nuvens escuras perdiam-se sobre a imensidade ténue e profunda de um pântano negro e estranho onde me via só, na iminência de me perder. Minha mãe aparecia ao longe, sobre um tapete voador, vestida de branco, cabelos soltos e ao vento, as mãos estendidas para mim, sem, no entanto, me conseguir agarrar ou impedir de cair. Quanto mais eu corria na sua direcção, mais ela se distanciava de mim e caminhava chorosa, sentindo a mágoa e a dor de não poder ajudar-me. Um alto tapume interpunha-se entre nós, e eu ficava só. Rodeava-me um enorme e profundo vale, povoado de árvores sem folhas e sem esperança, ribeiras sem água, caminhos desertos e sem direcção, pássaros sem ninhos, borboletas sem asas e flores sem cor e sem perfume. O próprio Sol perdera o brilho e a esperança era escura. De repente, uma chuva, diluviana, torrencial e gelada, caía sobre o vale e sobre mim e eu não me podia abrigar. Queria fugir e não conseguia. A chuva era tanta que o vale, a pouco e pouco, enchia e quase me afogava. Uma sombra negra e assustadora descia sobre mim! Minha irmã Amélia, assumindo plenamente a responsabilidade que minha mãe lhe confiara de gerir os nossos destinos, acordava-me e, decididamente, decretava:

- Levanta-te! Tens que ir levar as vacas ao Outeiro Grande.

 

Ao meio-dia chegaram notícias de Santa Cruz. Eram muito desanimadoras. Minha avó, matriarca assumida da família, mobilizou, de imediato, todas as minhas tias, candidatas a tias e meus irmãos mais velhos, para se deslocarem para a Vila. O estado de minha mãe era gravíssimo! A viagem fora prejudicial e ela piorava a cada momento.

Partiram todos! Fiquei apenas eu, meus irmãos mais novos, minha avó e as tias Graça e Luzia. Era tal o empenho em que se imiscuíam, desde há muito, em missas, devoções, novenas e outros rituais litúrgicos, que não podiam de forma nenhuma, agora, abdicar da oportunidade de receber as graças, bênçãos e indulgências em que uma visita episcopal era tão profícua, até porque esporádica e pouco frequente.

 

De tarde, toda a freguesia, alheia ao nosso drama, paralisou, na preparação da visita do bispo.

Eu, que, na véspera, colaborara no corte e transporte da verdura, sentia-me, agora, no direito de ajudar na ornamentação das ruas e do adro, embora soubesse que não crismava. Sem que minha avó se apercebesse ou notasse, escapuli em debandada e rumei direitinho ao adro, onde se movimentavam gentes confusas e ideias desordenadas. Ramos de árvores e arbustos, montes de verdura e cestos de flores abundavam por ali, à espera de destino.

Entrei na igreja. Era a hora da confissão!...

O prolongado interregno das visitas episcopais originara que quase metade da freguesia se preparasse para receber o crisma. Os restantes estavam, no entanto, também ligados à cerimónia, uma vez que tinham sido recrutados como padrinhos ou madrinhas. A todos fora imposto, no domingo anterior, a necessidade prévia de lavar culpas e confessar pecados, branqueando costumes e purificando atitudes. Daí uma procura penitencial como há muito se não vira e que ultrapassava, de longe, a desobriga pascal. Tão excessiva e desusada concorrência obrigou padre Silvestre a reforçar notória e substancialmente as estruturas penitenciais de que, habitualmente, dispunha. O número de confessores foi aumentado e, para além dos velhos confessionários laterais, acrescentou dois ralos suplentes, encravados na grade da capela-mor, onde, estrategicamente, colocou padre Albano e padre Pinheiro, mais experientes em Casuística. Ele próprio reforçava o elenco penitencial, sentado ao lado do altar-mor, atendendo a pequenada, menos pecaminosa e dispensada canonicamente do ralo.

O templo convidava à oração e à penitência. Ensombrado numa penumbra clarificante, exalava um cheiro a silêncio, a perdão e a arrependimento simulados. Dos altares, recheados de sécias, gladíolos, azáleas e velas a arder, emanava um perfume doce, atraente e sereno. Das altas janelas suspendiam-se sanefas de damasco vermelho, debruadas a amarelo e cortinas de linho rendado. Homens e mulheres, de joelhos ou sentados, cabisbaixos, entretinham-se, indistintamente, a simular arrependimento e penitência, num esforço improfícuo, de lembrar as culpas de que iriam solicitar perdão. Alguns, menos pacientes, esgueiravam-se, na tentativa de procurar confessor mais benevolente. Outros, já aliviados, bichanavam Padres-Nossos e Ave-Marias, em quantidades variáveis, conforme lhes fora imposto, pelo confessor, de acordo com a quantidade e a gravidade das faltas declaradas. O templo transformara-se, enfim, num epicentro de arrependimento e de perdão! Não havia falta, culpa ou pecado declarado pelo arrependimento dos penitentes, que escapulisse à fúria benevolente e perdoadora dos confessores.

Padre Silvestre, ao ver-me, chamou-me apressadamente. É que desde há algum tempo eu fora iniciado na colaboração e ajuda dos ritos e cerimónias litúrgicas. Cuidando ele que havia muitos penitentes que ainda se não tinha submetido ao julgamento divino e, com receio que se esquecessem, mandou-me tocar os sinos.

Não podia atribuir-me tarefa mais gratificante! De toda a garotada da freguesia, eu era o único que sabia tocar devidamente os sinos. Meu tio Onofre era o sacristão. Casando-se, o que aconteceria em breve, abandonaria o cargo. Desde há muito que eu fora indigitado como seu legítimo e natural sucessor. Por isso, fora já iniciado na prática e no acompanhamento das diversas cerimónias litúrgicas e celebrações religiosas. Já sabia de cor, em latim, o "Confiteor" e as respostas ao "Introíbo" e ao "De Profundis". Apenas um senão pesava contra a minha contratação e que levara padre Silvestre a adiá-la indefinidamente: a exígua altura de que dispunha, na opinião do reverendo, não se adequava às exigências preliminares e posteriores ao Santo Sacrifício da Missa - acender e apagar as velas dos altares. É verdade que eu jurara solenemente resolver o problema, subindo a uma cadeira e, se necessário, até saltar para cima dos altares, actos que o reverendo condenava e reprovava radicalmente, quer porque os considerasse pouco litúrgicos, quer porque, tendo em conta a fama de estroina que eu tinha, corria o risco iminente de, na descida, trazer algum santo embrulhado comigo, estatelando-o no chão, como já fizera, em tempos, com o vidro do relógio.

A minha especialidade, porém, era o toque dos sinos. Era exímio!... Tocava-os como ninguém e de acordo com as exigências de cada festa, celebração ou momento litúrgico.

Feliz, subi a sineira, agarrando-me aos enormes badalos com frenesim diabólico, estonteante e quase artístico. Iniciei, de imediato, um harmonioso repique, que se prolongou enquanto as minhas forças o permitiram. Para além de saborear o som harmónico que emanava dos bronzes gigantes, pretendia que nenhum penitente deixasse de procurar a oferta penitencial que lhe era facultada e que ninguém, na freguesia, permanecesse em pecado, por incúria minha. Toquei tanto, tanto, que, padre Silvestre, fértil em irritação quando os seus desejos não eram concretizados, para suspender a sinfonia, teve que mandar emissário portador da mensagem habitual:

- Vai dizer àquele paspalho que pare de tocar os sinos!

Regressei pela sacristia, para que ele não despejasse sobre mim as iras a que era propenso, sobretudo em vésperas de festa. Lá estava, sobre o velho e envernizado mesão, a casula festiva, de damasco branco, debruada e bordada a amarelo e que o bispo vestiria, ao chegar ao templo, substituindo a capa de asperges que envergaria desde a Casa do Espírito Santo. Ao lado, o cálice, a píxide, a custódia, a caldeirinha com o hissope, o turíbulo e a naveta, tudo muito limpo e areado, brilhando a novo, para que o prelado vendo o empenho que o pároco colocava no asseio e manutenção das alfaias litúrgicas, concluísse do seu zelo espiritual, da dedicação religiosa e dos cuidados e orientação que dedicava ao rebanho que, por mandato canónico, lhe confiara.

No adro, os que já se tinham aliviado dos pecados e cumprido a penitência imposta iniciavam a ornamentação. Bandeiras multicolores suspendiam-se, cruzadas, das varandas e beirais das casas. Muitos portões eram revestidos com verdura, a fim de ocultar a sua rudez e pobreza. Uns picavam ramos e folhas, enquanto outros desfolhavam as pétalas das flores. A azáfama era grande e a confusão ainda maior. Depressa me integrei no frenesim que ali se institucionalizara. Corria, alegremente, de lado para lado, levando ramos a uns e trazendo barbante a outros.

De repente e sem me aperceber, quando corria desalmadamente, carregando um ramo que o Eduíno me pedira, atirei tão grande e tão forte pontapé no gume de um machado que descuidadamente fora deixado por ali. Andava descalço e tinha os pés totalmente desprotegidos. A pancada foi fatal. Senti a lâmina afiada entrar-me na carne, abrindo-me o pé de trás adiante, num enorme golpe. Caí desfalecido, enquanto a meu lado começava a formar-se uma poça de sangue, gerando-se o pânico entre os meus comparsas de ornamentação. Fui conduzido, imediatamente ao passal, cujo quarto de banho, dos poucos existentes na freguesia, em situações similares, se transformava em sala de urgência.

Era a hora do lanche dos senhores padres que, por tal razão, tinham interrompido o confesso. Mas a gravidade do acidente exigiu que padre Albano, tão experiente no exercício da medicina como no do sacerdócio, suspendesse o seu lanche, para me prestar os primeiros socorros.

Tal incidência provocou, na dona Serafina, irmã do pároco e administradora doméstica do passal, uma zanga enorme e paradoxal. Cuidava ela que o lanche do clero, sobretudo em tarde que os reverendos se agastavam em excessivas bênçãos, perdões e penitências, era sagrado e, por conseguinte, não devia ser interrompido por um badameco qualquer. Pesava ainda contra mim, na opinião da ilustre senhora, o facto de, estando minha mãe no hospital, ser meu dever estar em casa, fazendo companhia à minha avó:

- És sempre o mesmo Alvarinho! Tinha que seres tu a interromper o lanche dos senhores padres! Nem estando a tua mãe a morrer no hospital tomas juízo. Antes estivesses em casa, porque a tua avó bem precisa de ti.

Eu chorava desalmadamente!... Chorava de dor, chorava de raiva, chorava de medo!

Depois assoava-me, soluçava e voltava a chorar.

Padre Albano que voluntariamente abdicara do seu lanche para me tratar não a ouvia. Tirara a batina e o cabeção para poder, mais facilmente, prestar-me assistência. Agora, de calças negras e camisa branca, mangas arregaçadas parecia um homem, olhando para mim com blandícia e piedade. Do seu rosto vermelho, altivo e sorridente, emanava um olhar terno, meigo, benevolente e preocupado:

- Não chores! - Exclamava ele, carinhosamente, com voz estridente e bondosa. - Vamos tratar disto! Vais ficar bom e amanhã já podes ir esperar a tua mãezinha.

Depois, desapertando com excessivos cuidados os panos em que me haviam embrulhado o pé ferido, franziu os olhos e, virando-se para padre Joel, que assomara à porta para se inteirar do sucedido, murmurou flacidamente:

- É maior do que eu pensava! Vou ter que lhe dar pontos.

Entrei em delírio excitante e em pânico redobrado. Arrogava-me o direito estapafúrdio de fugir dali imediatamente, vendo-me, no entanto, totalmente impedido de o fazer. Os meus gritos, resultantes, conjuntamente, das dores e dos protestos por não querer ser cosido, foram tais que provocaram o reaparecimento da dona Serafina, que voltou a despejar sobre mim algumas imprecações, que contrastavam com a ternura e o carinho que me dedicava o padre.

Os meus protestos de nada serviram. O padre tinha decidido coser-me e coseu-me mesmo, apesar de o ter feito com grande carinho, delicadeza e ternura. Uma picada fria, seca e destemida acelerou exageradamente as dores. Senti, de imediato, deslizar áspero, agreste e desabrido, por entre as excrescências carnosas que ladeavam o golpe, uma espécie de fio. Gritos estrondosos e tresloucados ecoaram pelos corredores e dependências da casa, com tal intensidade e persistência que todo o clero foi forçado a suspender o lanche, em que dona Serafina pusera tanto enlevo. Até as cozinheiras, contratadas para ajudar a preparar as refeições do prelado, saíram da cozinha e acorreram esbaforidas e sobressaltadas. Levantou-se, em suma, um medonho e descomunal alarido, em nada abonatório e pouco condizente com a calma e tranquilidade de um passal, sobretudo em preparativos de visita episcopal.

Dona Serafina, desesperada, vociferava, culpando-me de ser o crónico e efectivo provocador da desordem sistemática e da confusão permanente, não apenas em minha casa, mas também na casa alheia e até por toda a freguesia.

Terminada a operação, a Genoveva, uma das cozinheiras contratadas e amiga de minha mãe, pegou-me ao colo e, tentando acalmar-me, levou-me para a cozinha, onde nunca tinha entrado. Sentou-me numa cadeira e prometeu-me uma fatia de bolo, do "dos senhores padres" se eu cessasse o meu choro. Calei-me, muito a custo, não tanto pela promessa da Genoveva, mas porque, agora, começava a consciencializar-me da minha dramática, infeliz e triste situação e das consequências que me iria trazer.

Sentado ali, muito quietinho, com as marcas da dor estampadas no rosto e os estigmas da raiva reflectidos no peito, olhava, no entanto, aquela cozinha, tão deslumbrante e tão diferente da minha. Tachos e panelas, tudo brilhava e reluzia, contrastando com a negrura e ferrugem dos caldeirões que povoavam o meu lar. Ali, nem traves negras de tisna, nem linguiças penduradas dos tirantes a pingar graxa, nem frestas ou remendos no soalho, nem balde de porco, nem a velha e pequena candeia de enxúndia, nem cheiro a retreteou a estrume. Tudo era novo, limpo, claro, brilhante e asseado. Era forrada e do tabique esbranquiçado pendiam cachos de papel rendilhado, multicolores, onde as moscas se entretinham e se perdiam, afastando-se dos alimentos e das pessoas. O chão era liso e limpo e ultrapassava, em qualidade, o da minha própria sala. À volta da mesa dispunham-se cadeiras em vez de bancos ou caixotes. A Genoveva deu-me, então, uma enorme fatia de bolo que sobrara do lanche eclesiástico, enquanto me perguntava meigamente:

- E de tua mãe? Souberam mais alguma coisa?

Eu, abanando a cabeça negativamente, deliciava-me com um manjar a que, quer por não estar habituado, quer porque excedente do lanche dos senhores padres considerava celestial. Ao mesmo tempo, continuava pasmado observando a abundância pantagruélicaque proliferava por toda a cozinha: galinhas depenadas, peixes de várias qualidades, carnes de porco e de vaca, massa sovada, bolos, pudins, frutas e muitas outras iguarias que me faziam crescer água na boca. Enquanto me deliciava com tal contemplação, entrou a dona Serafina, informando que alguém me iria levar a casa.

Era o Eduino. Sentira uma certa cumplicidade na minha desventura e disponibilizara-se, imediatamente, para me tirar dali. Subiu o saguão e pegou-me às cavaleiras, levando-me a casa da minha avó. Esta, quando me viu e se apercebeu do sucedido, levando as mãos à cabeça, como se endoidecesse, expeliu gritos alucinantes e lamentações dramáticas tais que provocaram enorme alarido em toda a vizinhança, que, tendo em conta os acontecimentos anteriores, permanecia alerta ao menor ruído, grito ou lamentação:

- Valha-me o "Não-sei-que-diga"!... Não me faltava mais nada!... A Floripes às portas da morte, no hospital!... E eu aqui sem saber de nada!... E tu chegas-me nesse estado!... Eu me benzo do "Coiso-mau»!...

E benzia-se e persignava-se vezes sem conta, como se isso resolvesse alguma coisa.

Eu bem a esclarecia e elucidava, de que tudo acontecera em prol duma causa santa e que até tinha merecido honra de atendimento eclesiástico, sem, no entanto a demover da sua consumição.

 

A noite foi de dor, de enfado e de incerteza!...

Acordei, na manhã seguinte, com o pé túrgido e dormente, totalmente incapacitado de andar ou, sequer, de me mover. Sentei-me à janela da sala, com o pé estendido e muito quietinho, desfrutando duma vista maravilhosa e global sobre grande parte da freguesia. Dali, podia ver não apenas as ruas por onde Sua Excelência Reverendíssima e o seu séquito passariam, mas também o gasolina que o transportaria da Vila até ao cais, uma vez que a casa da minha avó, situada nos contrafortes do Outeiro, na Fontinha, ficava sobranceira ao mar.

Nas ruas circundantes à igreja e no adro, já era grande a azáfama. Uns davam os últimos retoques na ornamentação, enquanto outros já demandavam o cais. A Senhora da Saúde, novinha e em folha, inaugurada ainda não havia um ano e para a qual meu pai também havia contribuído, oferecendo o leite do primeiro domingo de cada mês, expelia, a custo, os primeiros acordes.

Olhei a infinidade azulada do oceano. Lá ao fundo, emergindo da rocha da Ponta, uma mancha escura crescia e, rapidamente, transformava-se em embarcação, que, em breve, ultrapassava a Baixa-Rasa, aproximando-se do cais. Era a "Leta", o melhor e mais rápido gasolina da ilha, requisitado à pesca da baleia, para transporte do eminente visitante. Lembrei-me, então, das dificuldades e agruras por que teria passado minha mãe, doente, sem poder andar, para chegar à Vila. E o bispo, que ainda era novo e gozava boa saúde, vinha de lancha. E, para cúmulo, fora-lhe posta à disposição a melhor e mais rápida embarcação que existia nas Flores. Perguntando à tia Graça, o porquê de tão, em minha opinião, injusta diferença, ela respondia-me simplesmente:

- Ora porquê? Porque é o senhor bispo!... É como se fosse Deus.

Eu, porém, não entendia tão contrastante contraste. E, dentro de mim, germinava uma ingénua e improfícua revolta.

Eu não via o cais de desembarque, mas o estalejar dos foguetes e os sons estridentes e desafinados da Senhora da Saúde eram indicador seguro de que o prelado já estava em terra firme.

Pouco depois, via deslizar, junto ao Matadouro, uma enorme e pouco habitual mole humana, atrás da qual se podia divisar, o vulto “negro-roxo” do bispo. Foguetes perfuravam o céu sombrio, deslizavam o ar sereno e estalejavam, ininterruptamente, destemidos, em sons quebrados e roucos que ecoavam nas rochas das Águas e da Figueira. Os acordes musicais da Senhora da Saúde, sob a batuta presunçosa mas pouco experiente do Alfredo Couceiro, embora desafinados e grosseiros, continuavam a efluir, repercutindo-se pelos vales e pelas encostas dos montes. Na torre da igreja iniciava-se um toque de sinos anunciador de festa e de alegria. A freguesia inteira era um mar de regozijo e satisfação, onde se movimentavam marés de contentamento e ondas de felicidade. O povo todo saía à rua ou acorria às janelas e varandas para ver, saudar e aclamar o Pontífice, que não se poupava a distribuir bênçãos, indulgências e sorrisos.

E eu, ali, sozinho, empalidecido e triste a lamentar a minha sorte, amarrado à dor e preso pelo infortúnio, já não acreditando na esperança, em evidente contraste com o folguedo sagrado, em que toda a freguesia participava e do qual o bispo era cúmplice.

Este, porém, sem que ninguém esperasse, recolheu a casa de padre Silvestre para descansar, enquanto povo continuava a festejar a sua chegada!

«Afinal, tinha vindo da Vila de gasolina e necessitava de descansar?!» - pensava eu, sem entender.

A mente povoava-se-me de ideias confusas. A viagem do bispo a contrastar, não apenas com a da minha mãe, mas com todas as que o meu pai fizera durante aquela semana...

Passado algum tempo, o bispo já paramentado de capa de asperges, báculo e mitra, assumindo a verdadeira razão de ser do epíteto de Príncipe da Igreja, saía da Casa do Espírito Santo de Cima, percorrendo em procissão a rua Direita, toda atapetada e engalanada. À frente, os anjinhos de asas brancas e cestas de flores e as crianças da Cruzada Eucarística, cobertas com a cruz de Malta, desenhada a vermelho, em faixas brancas, atravessadas sobre o peito. A seguir os que iam crismar e os padrinhos. Depois os homens de opas brancas e vermelhas, carregando lanternas, pendões, cruzes e velas. Finalmente o clero, envergando batina preta e sobrepeliz branca e o pálio, sob o qual seguia Sua Ex.cia Reverendíssima, acolitado pelos ouvidores das Lajes e da Vila. A Senhora da Saúde, persistindo nos seus acordes desafinados e, por vezes, abafados pelo toque dos sinos ou pelo ribombar dos foguetes, fechava o cortejo. Das janelas, varandas ou pátios, jovens donzelas atiravam pétalas de flores, que o prelado retribuía com bênçãos e sorrisos.

Chegando à igreja, o bispo pegando no hissope que padre Silvestre lhe oferecia, revestido do poder jurídico e canónico que a qualidade de pároco lhe conferia, levou-o à cabeça e, desenhando cruzes sobre si próprio e no ar, aspergiu o povo, humildemente ajoelhado, submisso e contrito, enquanto o coro, sob a trémula e pouco hábil batuta da Dona Serafina, entoava o "Ecce Sacerdos".

E a porta do guarda-vento fechou-se!...

A freguesia tornou-se um deserto! Parecia toda adormecida. Apenas dois oásis: um a igreja onde pontificava o bispo, onde se evadiam fluxos de santidade e fervilhavam bênçãos e graças por entre cânticos de glória e hossanas de louvor; outro, a casa da minha avó, onde reinava a solidão, a dor e a esperança refulgia cada vez menos incerta e mais confusa.

 

O dia chegava ao fim e a noite aproximava-se lúgubre e tenebrosa. Eu continuava sentado à janela, sem esperança e sem notícias da minha pobre genetriz. Nos caminhos cruzavam-se sombras humanas, estranhas e paradoxais, recolhendo aos lares. Na curva, que ao longe divisava, surgiu um vulto negro, confundindo-se com a noite. Caminhava lento e taciturno. Depois de subir a ladeira subjacente à casa da minha avó pude identificá-lo: era padre Joel, professor no Seminário de Angra e que, todos os anos, ia passar férias à Fajã, donde era natural. Morava na Assumada e era meu vizinho. Aparentando os seus trinta anos, sempre muito limpo, asseado e bem penteado, passava muito do seu tempo em amena cavaqueira comigo e meus irmãos, nos pátios traseiros e contíguos de nossas casas, contando muitas histórias, cantilenas e ditos. Ouvira-os, em criança, a minha avó paterna, há muito falecida, que morara na casa que agora era de meus pais. A sua mãe, a dona Alcinda, chamava-me, frequentemente, para lhe fazer recados, recompensando-me sempre com uma fatia de pão de trigo fresquinho, coberta com doce de pêssego e que me fazia olvidar o pão de milho velho e bolorento, barrado com graxa de porco, simulando sabor a linguiça, a que estava habituado. Outras vezes, o que para mim significava maior satisfação, dava-me um moeda de dez centavos que eu ia cuidadosamente amealhando, até fazer um escudo, com a qual compraria um chocolate, na festa da Senhora da Saúde, único dia no ano, em que me era licito fruir tal prazer. Quando o montante ultrapassava um escudo, era obrigado a depositá-lo nos "cofres" de minha mãe, contribuindo assim para o reforço do nosso escasso e paupérrimo orçamento familiar.

Padre Joel subiu a ladeira e estacou frente à entrada da casa da minha avó, permitindo-me adivinhar que o seu destino terminava ali. Estava triste, cabisbaixo e revelava grande preocupação e desalento. Minha avó, ao vê-lo, sabendo que não era hábito do reverendo circundar-lhe a casa, desatou em altos gritos, profetizando as más notícias de que ele seria portador:

- Foi a Floripes que morreu! Foi a Floripes que morreu! - Exclamava ela, obstaculizando a consolação e a tranquilidade que as tias Graça e Luzia, simuladamente, ousavam transmitir-lhe. Eu, também estranhando a presença comprometedora do padre, quase lhe dava razão e enchia-me de medo.

Tia Graça, nervosíssima, foi destrancar a porta da sala, que apenas se abria em ocasiões mais solenes ou em dias de festa. O padre entrou, cumprimentou-nos a todos e, dirigindo-se a mim, como que a distrair-nos do que ali o trazia, perguntou-me se estava melhor. Eu, porém, nem tempo tive para lhe responder. Minha avó não lhe dava tréguas! Quase tresloucada, exigia:

- Senhor padre! Sei que me vem trazer uma notícia má!...Diga, diga!... Foi a Floripes que morreu!... A minha Floripes morreu?

O padre confirmou, acenando levemente com a cabeça. Não foi preciso dizer qualquer palavra. Minha avó e minhas tias iniciaram, de imediato, tão alta gritaria e tão grande choradeira, que as vizinhas, adivinhando o pior, acorreram apressadas. Eu senti um baque estridente e doloroso, no peito e, segurando a cabeça com as mãos apoiadas nos joelhos, chorei amarga mas silenciosamente...

Padre Joel, sem que ninguém o ouvisse, explicava que minha mãe tinha falecido no dia anterior. Na impossibilidade de trazer o cadáver para a Fajã, tinham decidido sepultá-la em Santa Cruz. Para impedir que a família lá ficasse mais uma noite, tinham realizado o funeral às três da tarde. Meu pai, meus tios e meus irmãos já tinham chegado à Assumada e estavam na nossa casa. Tinham lá ficado pois meus irmãos ao entrar em casa, ao sentir a falta da mãe, tinham começado a chorar e de lá não queriam sair. Tinham-lhe pedido, para ele vir à frente, dar a triste notícia...

Eu já nem o ouvia... Uma enorme e sobressalto e uma desmesurada angústia apoderaram-se de mim. Não podia cessar as lágrimas. Agora e pela primeira vez, sentia a terrível e suprema certeza de não voltar a ver a minha infortunada progenitora...

Passado algum tempo, na curva negra da Fontinha, surgia uma pequena multidão. Eram vultos desconexos, inseguros, desajeitadamente ambulantes, trajando de negro e de dor. Indecisos e tímidos, olhando de soslaio para a casa da minha avó, hesitavam e paravam... Eram meu pai, meus irmãos e meus tios e tias, a quem já se tinham juntado alguns vizinhos e amigos, partilhando a dor, a angústia e a mágoa, oferecendo préstimos e consolação.

E a casa da minha avó, de repente, encheu-se de gente, de pranto, de dor e de escuridão, como nunca. Era uma amálgama confusa, escura, dolente, medonha e hedionda. Choro, pranto e lamentos devoravam todos!

Padre Joel retirou-se, passado algum tempo, com destino ao passal, onde, àquela hora, em flagrante contraste com o que se passava na sala da minha avó, bispo e padres saboreavam o lauto e apetitoso jantar que dona Serafina, ajudada pela Genoveva, prepara com tanto esmero. Soube-se, mais tarde, que o prelado, notou a ausência de padre Joel e, quando este entrou, interrogou-o, sobre as razões do seu atraso, com intenções de o repreender. Apenas quando o meu vizinho explicou, sumariamente, a nossa tragédia e como nela se envolvera, Sua Excelência Reverendíssima lhe perdoou e, continuando o seu jantar, acrescentou piedosamente, referindo-se a minha mãe:

- Coitada! Depois do jantar vou rezar por alma dela.

E como os actos generosos de um bispo não devem ser ocultados, depressa se espalhou, por toda a freguesia, a notícia de que o senhor bispo, ao ter conhecimento da morte da Floripes, rezara por alma dela. Anacronicamente, todo o beatério da freguesia como que invejou a "sorte" da minha pobre e desafortunada genetriz:

- Sorte teve a Floripes! - Exclamavam umas para as outras, as beatas mais exageradamente beatas. - Até o senhor bispo rezou por alma dela! Foi direitinha para o Céu!

 

Nessa noite, não tivemos coragem de regressar à Assumada. Decidimos ficar em casa da minha avó. Como esta era pequena e os tios e tias eram muitos, meu pai, meus irmãos e eu aconchegámo-nos uns aos outros e acomodámo-nos no chão da sala.

Coube-me a mim, talvez por ser o mais pequeno dos maiores, dos que, na opinião de minhas tias, já podiam ficar sozinhos, assumindo a sua incondicional condição de órfão, ficar ao lado de meu pai e sentir a dor e a desventura que ele agora, ao deitar-se, consciencializava e que, julgando que eu não ouvia, sintetizou num desabafo dorido e desastrosamente profético:

-"Ela vai fazer-nos tanta falta!..."

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